Nao te Deixarei Morrer DC

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Miquelina, a pintora Uma personagem notável, esta Tia Miquelina, que aos noventa e quatro anos, à beira de morrer, ainda partia de manhã a pé para o Marão, levando um farnel e uma caixa com telas e pincéis e por lá se quedava o dia todo, a pintar. Quando estava no Porto, fazia sete quilómetros a pé todos os dias e não se dispensava de subir e descer para os eléctricos da Foz em andamento. Começara a pintar aos dezasseis anos, quando o pai lhe trouxe uma caixa de tintas e lhe disse: «Agora, pinte!» E ela pintou, sem descanso, mais de uma centena de quadros, injustamente desconhecidos. Um dia, alguém, zombeteiramente, perguntou-lhe qual era o estilo dela, como pintora. «Ó filho», respondeu, «quando tenho tempo, pinto à antiga, quando não tenho, pinto à moderna». Além de pintar, também esculpia e um dia veio-lhe a ideia de fazer uma estátua do Infante D. Henrique sem chapéu. «Não é possível», explicou, «que o Infante usasse um chapéu de abas largas com o vento de Sagres!» O argumento parecia lógico, mas o destino contrariou-lhe a razão e a arte. Sucedeu que o homem encarregado de molhar o barro, já a estátua estava pronta, tanto o molhou que o Infante se desintegrou. A Tia Miquelina, que acreditava nos sinais do destino, incluindo as profecias do Bandarra, conformou-se à sua sorte: «O Infante não concorda comigo. Quer o chapéu!» Miquelina Teixeira de Vasconcelos foi a segunda mulher em Portugal a ter carta de ligeiros e, certamente, a primeira a ter carta de pesados. Fazia tranquilamente as dez horas de estrada entre Lisboa e Amarante e só uma vez, e por culpa alheia, se despistou: foi em Coimbra e entrou por uma farmácia adentro. Deve ter sido outra partida do destino, visto que farmácias eram locais que não frequentava. Naturista, ecologista, curava-se de tudo com cataplasmas de barro e uma vez que teve de ir ao dentista arrancar um dente recusouse a ser anestesiada. Como o médico dissesse que assim não a tratava, ela enfureceu-se: «Ou me tira o dente assim, ou vou ao ferrador de Padronelo». E lá foi o dente a sangue-frio. Aos noventa anos de idade, ainda andava a cavalo no Marão e fazia o passeio de cinco horas a cavalo da sua belíssima, irreal, casa de Travanca da Serra até à Sr.a da Serra, no alto do Marão. Como todos os irmãos, não comia quase nada. Aliás, os Pascoaes não só odiavam comer, como desprezavam quem gostava de comer. O João, de quem adiante falaremos, alimentava-se basicamente de bicarbonato, «para se desintoxicar». E o Joaquim, o poeta, ao ser entrevistado pelo Diário de Lisboa, saiu-se com uma frase que resumia o

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