O SÃO PAULO - edição 3020

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14 | Reportagem |

24 a 30 de setembro de 2014 | www.arquidiocesedesaopaulo.org.br

Rafael Leitão/Abaçaí

Um festival de cultura feito à mão

Fotos: Nayá Fernandes/O SÃO PAULO

XVIII Revelando São Paulo reuniu manifestações culturais e artísticas do Estado, com a presença de mais de 1 milhão de pessoas Nayá Fernandes

nayafernandes@gmail.com

Culinária, artesanato, fé, música e mãos, muitas mãos à obra. Pelos corredores, tachos sobre fogão a lenha, doces sendo apurados, café no bule e coador de pano, cachaças caseiras, senhores esculpindo madeira, pedra sabão, mulheres tecendo a palha do coqueiro, de bananeira, fazendo crochê e fuxico, rodas de moda de viola, indígenas com seus artesanatos, negros, gente que veio de longe mostrar sua arte. Essas e outras manifestações culturais, parte do Patrimônio Imaterial de São Paulo, como Folias de Reis e do Divino, Congada, Tropeiros e Bonecões, puderam ser vistas por quem visitou entre 12 a 21, no Parque Vila Guilherme-Trote (PVGT), o “Revelando São Paulo” – XVIII Festival da Cultura Paulista Tradicional. Com martelo e madeira em uma mesinha no fundo do estande, Jesuel Fernandes fazia mais um aviãozinho enquanto uma menininha com o pai escolhia a borboleta verde para brincar. Jesuel e sua esposa, Luiza de Paula Fernandes, vieram de Américo Brasiliense (SP) e, durante todo o ano, participam de eventos e feiras para expor os brinquedos. “Acho que o brinquedo de madeira, feito à mão, tem seu espaço privilegiado, para um público determinado”, disse Jesuel, que mesmo otimista em relação ao seu trabalho, admite que a indústria dos brinquedos é cruel e, estimula o consumismo desde cedo nas crianças. Também da madeira é que Ednelson José Andrioti, 59, de Cândido Mota (SP), extrai as pe-

Ednelson, de Cândido Mota, participa do Revelando há cinco anos e mostra peças artesanais com madeira e palha

‘Agostinho da Paçoca’ esbanja alegria

ças que ele orgulhosamente mostra e estimula o tato, o olfato e o olhar de quem passa por ali. “Esta é raiz de aroeira, eu praticamente não fiz nenhuma intervenção”, disse, mostrando um porta canetas. As dezenas de objetos de decoração expostos são raízes ou pedaços de eucalipto vermelho, ypê, canelinha, goiabeira. “Recolho o que a natureza ou algumas construtoras descartam e me encanto com o resultado, pois cada peça é única. Minha esposa também faz artesanato com palha de milho e, assim, fazemos uma boa parceria”, afirmou o artesão. E, se alguém, desavisado, desconfiou da perfeição nos detalhes das cestas no estande de Caraguatatuba (SP), estava ali, senta-

para provar. Paçoca de amendoim com farinha de milho, com farinha de mandioca ou açúcar mascavo, de carne ou de torresmo. “Quem compra leva a sacolinha de brinde”, brincava o senhor de cabelos e jaleco brancos, que já foi desenhista mecânico, músico e historiador. Mas deixou tudo para começar uma pequena fábrica de doces caseiros e paçoca. “Além disso, faço pilões e instrumentos musicais e já escrevi vários livros. Alguns até me chamaram de Monteiro Lobato Moderno”, disse Agostinho José da Silva, o “Agostinho da Paçoca”, também conhecido por “Vô Gustinho”, que mora em Guaratinguetá (SP) e é um grande conhecedor da culinária e da cultura brasileira, contador de causos e inventor. “Uma nação que melhora seu ato de cozinhar, melhora sua civilização”, afirmou Agostinho, que emendou outras várias conversas sobre literatura, doce, pilão e tudo o que faz parte da vida deste homem que deixou tudo para trabalhar com as mãos. Há mais de dez edições participando do “Revelando São Paulo”, o paulista de Guaratinguetá esbanja saúde, simplicidade e alegria. Aliás, característica marcante em todos por ali.

Especulação e ameaças Mesmo com uma trajetória de 18 anos, e tendo reunido, somente na edição 2014, cerca de 1 milhão de pessoas e mais de 10 mil alunos em visitas guiadas sofre a cultura do interior paulista, o evento sofre ameaça de uma nova mudança. O “Revelando” acontecia no Parque da Água Branca, e teve que sair

da numa cadeira, com luvas nas mãos, Luana Kogus, 29, tecendo a palha do coqueiro enquanto conversava com a reportagem. Durante a semana, ela tem outro trabalho e cursa faculdade, mas, aos fins de semana, expõe seu artesanato nas feiras da cidade. “O artesanato é uma forma de manter viva a pessoa do meu pai, que faleceu há oito anos. Ele era conhecido na cidade por seu artesanato”, disse a jovem, emocionada. Na décima oitava edição, o “Revelando” também não deixou de lado a tradição que tomou conta do bairro, local que, até 2005, mantinha a Sociedade Paulista de Trote. Assim, cavaleiros vestidos com trajes típicos mostraram suas habilidades e carros

de boi, passearam sob os olhos atentos das crianças. A cultura e culinária de outros países também foram representadas nos dez dias do evento. Portugueses, poloneses, chineses, bolivianos, com suas comidas e trajes típicos, mostraram aquilo que qualquer passeio pelas ruas da capital faz saltar aos olhos; a diversidade. O “Revelando São Paulo” é um festival de cheiros, cores e costumes de gente que vive as próprias raízes e faz questão de mostrar a todos que o que vale também é o fazer-se em grupo, é o fazer com as mãos.

devido à reformas no parque. Segundo Roberto Freire, presidente da Associação de Amigos do Parque Vila Guilherme-Trote, há uma grande especulação imobiliária desde sua ampliação, em 2006. Por isso, os expositores apoiaram um abaixo-assinado contra a construção de um shopping center ou torres de apartamentos na área de 178 mil m2 que pertenciam ao Mart Center. No estande de artesanato do

grupo de detentas da Penitenciária Feminina Santana, estava Márcia Cataldo com um formulário explicativo e uma lista para recolher assinaturas. “Se tirarem o “Revelando” daqui, não sei que outro espaço o poderia receber tão bem, porque não é um evento como os outros. Além disso, ficará prejudicada uma das únicas áreas verdes dessa região”, lamentou a responsável pelas oficinas de artesanato na penitenciária. (NF)

A paçoca de Agostinho Os pilões em fila, a colher generosa e muitas mãos estendidas


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