JA Magazine | Março 2012

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Música I Cinema Fernando Proença

LITERATURA INCLUSA

Número vinte e nove 1 – Leio um artigo da “Letras Libres”, a excelente revista mexicano – espanholita, sobre o abominável / esplendoroso mundo da cultura e afins e penso a possibilidade muito pouco remota de, daqui por uns tempos, comprar um daqueles aparelhos eletrónicos, que permitem armazenar milhares de livros. No caso vertente, o objeto é o Kindle, mas podia ser uma outra plataforma qualquer. Não se ponham já a agourar, os maníacos do livro de papel que têm em mim um defensor oficial e oficioso em modo distendido é certo, mas defensor. Com o tempo aprendi que não tenho estrutura para grandes bravatas. Podia dizer que sim, que sou um irredutível situacionista, mas como sabem é mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo. Num dos meus primeiros artigos para este jornal – talvez no primeiro, escrito no tempo em que as galinhas tinham perdido os dentes há bem pouco – lembro-me de ter defendido o vinil, com dentes e dentes (unhas não, porque sou um roedor), contra a introdução, na altura, recente, do CD. Passados uns meses era verem cá o maduro comprar CD, já sem se lembrar do anterior amor. É que a questão principal nestas merdices está toda do lado da indústria. Eu era um indefetível do vinil, mas não fui capaz de contrariar um facto: deixaram de ser fabricados e só agora voltaram a sê-lo, rebocados pelo trabalho dos DJ, caros e apenas para colecionadores. Penso que os consumidores de livros e discos (não escrevo sobre coleccionadores de latas de conserva de sardinha em azeite e aviões telecomandados) são essencialmente conservadores (daí que me tenha lembrado das

conservas) e vão constantemente mostrá-lo ao longo da sua vida. Por exemplo o autor do artigo em questão sobre o Kindle, afirma gostar do gadget, porque, contrariamente ao que se passa por agora em que os telefones fazem tudo e também telefonam e em que frigoríficos têm televisão, o Kindle apenas serve para ler e armazenar livros. Ou seja, eletrónico mas não demasiado. O que me fica – para o bem e para o mal – sempre, é esta capacidade que todos temos de nos agarrar a qualquer coisa que já ouvimos e lemos, construindo coordenadas que podem depois ser reconstruídas ou derrubadas. Não somos a tábua rasa que podíamos ser, ouvindo como se fosse a primeira vez que é sempre na três. E ninguém escapa felizmente a esta ordem de ideias, qualquer que seja o gosto ou a liga cultural em que joga. Eu, por exemplo, sempre menorizei o videoclip, segundo o princípio em que a imagem me afasta e distrai da música. Por esse princípio da sagrada pureza do som, devia pensar que a gravação digital em ficheiros, prontos a ser consumidos, sem a presença física de um CD, com capa, cartão ou plástico, letras e fotos, seria o culminar de um certo e magnânimo ascetismo musical. A música ou seria boa ou não por si só, não dependendo de mais nenhum suporte que não fosse a internet. O problema é que no fundo eu quero é um sistema que me permita comparar, valorizar, desvalorizar, sobre o que já ouvi ou li. Nada veio de Marte, por via aérea, direito aos nossos ouvidos virgens. Por isso, construímos constantemente listas de discos e quando sai um trabalho novo de alguém que conhecemos, rapidamente o engavetamos em relação ao que conhecemos: é o melhor disco desde tal, ou, depois de escrever coiso e tal (tal em alta), o escritor X nunca mais me interessou. Claro que existe sempre o perigo de criar uma teia excessiva de balizas, que é o problema das pessoas com pendor para a

culturite aguda. Podemos passar a ser uns tipos terrivelmente cerebrais, ligando sempre tudo e todos, tornando a audição de um disco (até quando um disco?), um martírio onde não se encontra vestígio de emoção. Xô!

Disco - Yo la Tengo - "I am not afraid of you and I will beat your ass" - CD - Matador – 2006 A primeira ideia em torno dos Yo la Tengo é que são um daqueles grupos que devem ser ouvidos, pensando no que terão pensado (gosto muito deste efeito de repetição. Para os meus leitores que apreciam outros efeitos sugiro que escutem Luís Freitas Lobo a comentar jogos de futebol) para escrever música assim. Mas também porque o grupo suscita outras particularidades não muito comuns. Primeiro: ninguém se lembrará deles como primeira escolha em coisa alguma. Ninguém oferece um disco dos Yo La Tengo, a não ser que o aniversariante seja um fã do trio, o que representa em termos estatísticos uma probabilidade de um para um milhão. Não que não exista gente capaz de perceber e aceitar a sua forma de fazer as coisas, percebendo que muitas vezes as melhores ideias vêm de onde menos se espera. Mas os que o sentem assim têm quase de certeza absoluta, oito grupos à frente. Ou seja, comprar um disco dos norte-americanos pode ser por exemplo a ocasião para aproveitar um saldo ou uma promoção. O primeiro pressuposto conduz-nos ao seguinte: quem estará sempre à frente dos Yo La Tengo, na hora da escolha? Por exemplo, os Sonic Youth, primos da mesma zona da música popular, no uso da distorção. Porquê primos e não, por exemplo, irmãos? Então aqui entra uma das particularidades que podem ser discutidas, no que apontei no primeiro ponto do artigo. Os melhores discos e grupos serão então os que nos convidam a comparar, medir, teorizar, clas-

Apontamento de Vídeo Todos os outros "Eis a história de Gitti e Chris. Um jovem casal de férias que se vê obrigado a lidar com os problemas da sua relação. É um retrato fiel da intimidade entre duas pessoas: os rituais secretos, os momentos imbecis e os sonhos que ficaram por realizar. O resultado é uma história de amor que testa os limites de cada um para salvar a relação". Um filme que obteve os galardões Grande Prémio do Júri e Melhor Actriz (Birgit Minichmayr) no 59.º Internacional Filmfestespiele

Berlim e Melhor Realizador e Prémio Fipresci no Bafici 2009. Interpretações de muito mérito, numa realização de grande impacto artístico. Realização e Argumento: Maren Ade. Com: Birgit Minichmayr, Lars Edidinger, entre outros. Distribuição: Clap Filmes. Vítor Cardoso

JORNAL DO ALGARVE MAGAZINE - MARÇO/2012

sificar. Posso então dizer que os Yo La Tengo serão uns Sonic Youth que descobriram não só a melodia por debaixo da distorção das guitarras, mas que a praticam isoladamente noutras faixas dos seus discos (neste concretamente). Podem parecer também músicos que praticam um rock variado (há vestígios de baladas; funky; soul; electrónica; lo-fi repetitiva e pop simples e gracioso) e hedonista, usando a distorção para simplesmente marcar diferenças. Por isso, primos. Independentemente de teorias, é verdade que a zona de pesca do grupo é extensa e que eles se mexem bem na rapina teórica e desenvolvimento de cada um dos temas. Talvez por não se encaixarem em nenhuma gaveta musical é que interessam tanto a tão poucos e pouco a tantos. Em geral, o público não gosta de músicos mais ou menos indefinidos. Terceiro pressuposto que me faz gostar do que fazem: a música de “I am…”, deixa quase sempre um sabor que apenas alguns discos nos proporcionam durante toda uma vida; a de que já ouvimos a maior parte daquelas músicas noutros discos, ficando no fim com o estudo sistemático do que temos na cabeça e em casa, com a certeza que não sabemos onde nem quando. Apenas já conhecíamos o ambiente de cada tema. E não é isso estimulante?


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