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Terras lusitanas escritores

Mário Sacramento

a resistência através das Letras

Sara Vitorino Fernandez CLEPUL Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias sara.faria.fernandez@gmail.com

P

or vezes, deparamo-nos com personalidades que, pela acção intelectual, pela humanidade e pela resistência, se tornam fascinantes. É o caso de Mário Sacramento, médico e um dos maiores vultos da crítica literária do Neo-Realismo português. Mário Emílio de Morais Sacramento nasceu em Ílhavo em 1920. Em 1931 termina a instrução primária e matricula-se no Liceu José Estevão, onde começa a dirigir o jornal dos alunos do liceu, A Voz Académica. É devido a esta actividade que é preso e torturado pela primeira vez pela PIDE, em 1938. Matricula-se no curso de Medicina na Universidade de Coimbra, em 1939, que frequenta só durante um ano para depois se mudar para as universidades do Porto e de Lisboa. Estas mudanças devem-se a uma constante inquietação intelectual e a uma procura dos melhores professores. Casa-se

em 1944 com Cecília Marques da Maia e, em 1946, licencia-se em Medicina. Cumpre o serviço militar e fixa-se em Ílhavo para exercer a sua profissão de médico. É novamente preso pela polícia política em 1953, 1955 e 1957, ano em que muda a sua residência para Aveiro, onde abre consultório. É também neste ano que promove, juntamente com outros intelectuais, e organiza o I Congresso Republicano, reunião de debate político realizada na cidade de Aveiro em 6 de Outubro, que reuniu as principais figuras da oposição democrática ao regime do Estado Novo. Em 1960 consegue uma bolsa do governo francês e vai para Paris a fim de se especializar em gastroenterologia. No ano de 1962 é preso novamente e, em 1965, participa, em representação da Sociedade Portuguesa de Escritores, no Congresso de Escritores Europeus, que decorre em Itália. Desgastado pela frenética actividade intelectual e pelo mau tratamento que tivera nas prisões da PIDE, morre em 27 de Março de 1969 devido a um derrame cerebral enquanto preparava o II Congresso Republicano, que se viria a realizar de 15 a 17 de Maio seguinte. O III Congresso Republicano, mais conhecido por Congresso da Oposição Democrática, teria lugar, mais uma vez na cidade de Aveiro, de 4 a 8 de Abril de 1973. Apesar das vicissitudes e da perseguição política de que foi alvo toda a sua vida, Mário Sacramento foi um intelectual e um crítico literário respeitado pelos pares. Eduardo Lourenço dedica-lhe a obra de 1968, Sentido e forma da poesia neo-realista; Óscar Lopes dedica-lhe, em 1969, Ler e depois; Manuel Alegre dedica-lhe o volume de poemas O canto e as armas, de 1970. O seu trabalho intelectual é estudado

«Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá» (Mário Sacramento)

e citado por José Régio, Eduardo Prado Coelho, Urbano Tavares Rodrigues, Joel Serrão, Fernando Guimarães, João Medina e Agostinho da Silva. Da sua bibliografia completa destaco a obra de teorização crítica da corrente neo-realista, Há uma estética neo-realista?, de 1968, e as obras de crítica literária sobre escritores portugueses. Sobre Eça de Queirós escreveu Retrato de Eça de Queirós, em 1944, e Eça de Queirós – Uma estética da ironia, de 1945, texto que foi merecedor do Prémio Oliveira Martins. Sobre Cesário Verde e Fernando Namora escreveu o artigo «Lírica e dialéctica em Cesário Verde» (1958) e o livro Fernando Namora, a obra e o homem, de 1967. Sobre Fernando Pessoa compõe, durante um período em que esteve preso em Caxias, um ensaio intitulado Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda, publicado em 1959 e que teve uma 2.ª edição em 1970. Prefaciou, entre outros, os livros Horas Vivas, de Natália Correia e Praça da Canção, de Manuel Alegre e colaborou em diversas obras, das quais destacamos: Livro do centenário de Eça de Queirós, Perspectiva literária portuguesa do século XIX e 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade. Na sua Carta-Testamento, escrita em Abril de 1967 e publicada em1973, rematou com um parágrafo final que mostra bem o fino humor que mantinha, apesar da desilusão e da doença: «Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!» Nota: Por vontade da autora, este texto mantém a ortografia anterior à do último Acordo Ortográfico.


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