Como citar esse texto: ALEGRIA, João; LEITE, Camila. Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: http://joaoalegria.webnode.com. Acessado em [inserir a data].
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa. Camila Leite e João Alegria “O mundo é feito de histórias. Histórias que acontecem a cada dia, histórias grandes ou pequeninas. E é preciso contá-las.” (Eduardo Galeano, O Globo, 5/3/2004) 1. Apresentação.
Este artigo propõe uma reflexão sobre metodologia para a prática mídia-educativa com crianças e adolescentes, especificamente para atividades de produção de audiovisuais. Ou seja: como estabelecer e garantir as condições para a realização de vídeos “por” e “com” crianças e adolescentes num contexto de mídia-educação. Neste texto, a comunicação, a educação e o próprio pensar sobre uma determinada experiência, estão sendo assumidos como ...prácticas socioculturales cambiantes, complejas, fluidas... que, a um só tempo, ...crean y son creadas por las identidades sociales en un juego continuo de interacción-representación-acción (Massoni, 2002:136). A experiência em foco apresenta-se como um desafio à nossa compreensão e sistematização, pois tratamos com objetos de estudo …que en realidad son procesos (idem, ibidem:129). A oficina de produção de audiovisuais, a seguir analisada, não foi previamente orientada por “uma” ou “outra” determinada teoria. Nem se pretende, agora, teorizar uma experiência vivida. Retornamos às contribuições teóricas como quem busca os instrumentos que podem auxiliar a construção do conhecimento a partir da prática (Bujes, 2002), ...no para resolver el problema, sino para aportar a encontrar la manera de comunicar-nos, como un hacer común com el outro (Massoni, 2002:137). Ao refletir sobre o que vivemos, damos novo significado à experiência. Ao ressignificá-la, construímos novos conhecimentos: ...sempre que se produz um novo conhecimento também se inventa um novo e peculiar caminho (Costa, 2002:19).
2. A Oficina TVE de Mídia.
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
2
A TVE Rede Brasil — televisão pública de alcance nacional, com sede no Rio de Janeiro — realizou, no segundo semestre de 2003, o projeto Oficina TVE de Mídia, sob a coordenação da Assessoria de Educação da emissora. Entre os dias 2 de setembro e 14 de dezembro, foram realizados encontros semanais, com 3 horas de duração, envolvendo educadores, profissionais da comunicação e um grupo formado por crianças e adolescentes, alunos de escolas públicas do Rio de Janeiro, sem experiência prévia na realização de audiovisuais.1 Para a realização do projeto foi montada uma equipe mista, reunindo educadores e comunicadores. A coordenação das oficinas, por exemplo, ficou sob a responsabilidade de uma arte-educadora e um autor e diretor de tv. A produção esteve a cargo de uma produtora de tv, mas a coordenação de produção era de uma educadora e assim por diante. Ao final, os participantes realizaram o vídeo O pescador de Partes e a equipe de profissionais envolvida no projeto produziu um documentário sobre o processo de trabalho, intitulado Oficina TVE de Mídia. Os dois produtos foram veiculados pela TVE Rede Brasil no Dia Internacional da Criança no Rádio e na TV, conclamado mundialmente pelo Unicef para o segundo domingo de dezembro de 2003. Durante os quatro meses de atividades, foi desenvolvida, pela equipe do projeto, uma prática mídia-educativa ancorada nos seguintes eixos de trabalho: (a) construção de identidades (do projeto, de cada um dos participantes e do grupo como um todo); (b) construção coletiva de um território em comum; (c) criação e contação de histórias; (d) expressão criadora através de linguagens da arte e da comunicação, priorizando a linguagem audiovisual; e (e) construção coletiva do conhecimento. A definição destes eixos de trabalho foi importante por ter implicado numa prática incomum, no que diz respeito à mídia-educação, que teve, como objetivo principal, possibilitar que os participantes se apropriassem da linguagem audiovisual para a criação e comunicação de suas próprias narrativas audiovisuais. Não nos detivemos em oferecer oficinas centradas no domínio de processos técnicos da produção de vídeo — isto é: “dar aulas” de “como fazer” roteiro, iluminação, produção, edição etc. Nem priorizamos “ensinar” crianças e adolescentes a desfazerem mensagens da mídia a partir de uma “análise crítica” centrada nos produtos. A apropriação da tecnologia —
1
Maiores informações podem ser obtidas em www.tvebrasil.com.br/oficinatvedemidia
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
3
mais que dos processos técnicos — e o diálogo sujeito-receptor/produtos de comunicação, foram incorporados às oficinas de produção, como desdobramentos do processo de criação e elaboração de narrativas audiovisuais. 2.1. Construindo identidades.
Para crianças e adolescentes foi encantador estar “dentro” de uma emissora de tevê. Na TVE, uma sala foi escolhida e reformada para se tornar o espaço de trabalho do projeto e, aos poucos, passou a “pertencer” ao grupo das oficinas — crianças, adolescentes e adultos envolvidos. Essa conquista de espaço físico na emissora começou com a negociação para se conseguir uma sala de uso exclusivo do projeto e continuou, após a chegada das crianças e adolescentes e o início das atividades regulares, até o encerramento do projeto. Crianças e adolescentes ocuparam espaço com sua presença, trabalhos afixados pelas paredes da sala do projeto, objetos pessoais que ficavam guardados ali de uma semana para a outra e com incursões por outras dependências da emissora. A “sala do projeto” tornou-se um espaço ímpar, muito diferente de outros espaços de trabalho da instituição, não sendo utilizada para nenhuma outra finalidade durante os meses de atividade do projeto. A Oficina TVE de Mídia também se transformou numa grande novidade para os funcionários da tv. A princípio apenas olhavam curiosos, pediam para visitar a “sala do projeto”, a “sala da oficina”, que “ouvi dizer”, testemunhavam, estava “muito bonita”. Depois, curiosidade se transformou em reconhecimento, disponibilidade e interesse: “contem comigo”, ou “pôxa, eu também gostaria de ajudar, de trabalhar no projeto”, foram manifestações recorrentes. No calor do processo, os envolvidos puderam interagir como agentes, definindo e redefinindo a identidade do grupo e sua identidade particular no grupo, segundo um determinado sentido que o jogo do social, em que estavam inseridos, assumiu a cada novo momento ou necessidade (Bourdieu, 1983). As identidades são construções históricas e sociais, são plurais, flexíveis, abertas, contraditórias, tecidas na coletividade, tramadas em sociedade. …a identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 2000:13). Não uma identidade única: há identidades.2
2
O tema das identidades ganhou novo impulso com a globalização. Porém, estudos empíricos vêm mostrando que este processo não transformou, necessariamente, como se previa, cidadãos locais em cidadãos planetários (Candau, 2002). O planeta não está homogeneizado, ao contrário, verifica-se um importante papel para as especificidades socio-culturais na formação dinâmica das identidades. Um movimento no sentido da hibridização ...à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possí-
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
4
Daí a importância de empreender iniciativas que tratem da diversidade cultural criada pelos mais jovens, como forma de entendê-los, como defende Vianna (1997). Ou, acrescentaríamos, a importância de engendrar situações onde pessoas e grupos possam ser, em sua plenitude, manifestando-se ao outro de forma autônoma e criativa, deixando claro seu modo particular de ver e representar o mundo, inclusive no sentido do esgotamento das diferentes linguagens e meios de expressão, como procurou propiciar a Oficina TVE de Mídia. Do que adiantaria “saber usar” uma câmera se estamos “desprovidos de identidade”: quem estou sendo num determinado tempo, lugar, sociedade e cultura? Só aquele que enfrenta suas próprias identidades consegue criar mensagens? 2.2. Territórios em comum.
Estar “dentro da tevê” permitiu a convivência com os profissionais e técnicos de diferentes especialidades, além de possibilitar a apreensão do modus operandi característico dos espaços institucionais destinados exclusivamente à realização e difusão de audiovisuais. Esta pode e deve ser considerada uma diferença significativa na experiência vivenciada pelos participantes destas oficinas, já que as iniciativas similares de mídia-educação não dispõem do privilégio da observação in loco da produção profissional de mídia. O que os participantes puderam observar foi a produção de mídia em larga escala e em atenção a uma grade de programação televisiva, audiência e demais fatores que determinam a natureza do conteúdo e a forma dos produtos transmitidos por um canal de televisão. Ocupar o espaço da televisão pública foi um ato simbólico e uma atitude cidadã. Como realça Beth Carmona, a tevê ...feita para o cidadão dialoga com a sociedade civil e deve existir além da tela, sair dos prédios da emissora para buscar, nos centros urbanos e rurais, inspiração nos movimentos sociais de cultura e informação, retratando a dinâmica social de seu público (Carmona, 2003:10). Logo no primeiro encontro do projeto, foi proposta uma atividade envolvendo crianças, adolescentes e seus familiares, onde cada um dos presentes escolheu uma imagem, dentre muitas que estavam espalhadas pelo chão da sala, valendo-se de uma identificação estritamente pessoal com a mesma para se apresentar aos outros. Todas as imagens haviam sido retiradas de veículos de comunicação, portanto, extraídas do
veis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (Hall, 2000:13) Descobriu-se ...que estados turbulentos não são necessariamente desprovidos de ordem, e que muitos fenômenos que antes eram tidos como perfeitamente ordenados atualmente são tidos como caóticos (Vianna, 1997:13). Como então esperar encontrar ordens rígidas — para que identidades “fixas” possam ser definidas — no mundo extremamente complexo em que vivemos? Acima de tudo essa vida social deve ser caracterizada por sua diversidade e não pela busca daquilo que é uniforme (idem, ibidem:14).
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
5
universo pictórico com o qual as pessoas se deparam no cotidiano e que, indubitavelmente, estão integradas à sua permanente produção de identidade. Falar sobre si mesmo, das suas caraterísticas pessoais, assumir-se como agente no processo histórico-social, revelando, via universo de representações simbólicas, suas singularidades e sua forma de participar no grupo social ao qual pertence, foi um primeiro passo no estabelecimento de um território em comum. Num segundo encontro, desta vez já sem a presença dos familiares, as crianças e adolescentes foram convidadas a rememorar a atividade do encontro anterior, bem como a afixarem “suas imagens” e as “imagens dos seus pais” num grande painel numa das paredes da sala do projeto. Fomos começando a preencher com novos significados o espaço inicial, atribuindolhe sentido e, mais uma vez, consolidando território. Essa primeira galeria de imagens permitiu aos participantes uma “noção de grupo”. Para ser no grupo é preciso reconhecer as individualidades e diferenças presentes, produzindo em si uma nova identidade que ultrapassa a manifestação estritamente pessoal e vai em direção ao coletivo. O coletivo, por sua vez, obriga e é dependente da delimitação de um território, pois só é possível a um coletivo ser numa dimensão de tempo, espaço, cultura e, por que não dizer, numa certa dimensão midiática. Neste mesmo encontro, já se tendo entendido enquanto partes de um todo, os participantes construíram coletivamente o Pescador de Partes: é um personagem imaginário, confeccionado e batizado pelo grupo, a partir de partes do corpo do personagem que cada um dos participantes criou separadamente, através de desenho. Após a confecção do Pescador, crianças e adolescentes foram desafiados a, novamente, se apresentarem uns aos outros. Desta vez, enquanto parte de um “corpo”. Através deste artifício — a construção de um corpoterritório-imaginário em comum — foi possível tornar visível aspectos da identidade do grupo. A valorização do coletivo e o estabelecimento de um território em comum, propício à expressão criadora, foi, sem dúvida, uma das maiores metas da Oficina TVE de Mídia. 2.3. Criar e contar histórias.
O Pescador “ganhou vida própria” e “conduziu” o processo de trabalho das oficinas. A partir deste ente, resultante da soma das “partes” de cada um dos participantes, crianças e adolescentes foram mobilizados para criar e contar suas próprias histórias. Partimos do princípio que a criação e a contação de histórias está na base de toda forma de mídia. Por isso investimos na possibilidade das crianças e adolescentes, em todos os encontros, experimentarem a construção de narrativas próprias.
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
6
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade – é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. (Benjamin, 1987:205) Inspirados por Benjamin, valemo-nos do pressuposto em que o narrador retira da experiência o que ele conta. Ao narrar vivifica a experiência e transforma-se a si mesmo, à história e à própria experiência. Interessava-nos que crianças e adolescentes pudessem criar suas próprias mensagens, narrá-las de diferentes maneiras, para que, ao se apropriarem da linguagem da mídia, assumissem o papel de contadores de suas próprias histórias. 2.4. A expressão criadora.
A experiência de contato com a mídia influencia na construção das identidades e nos relacionamentos interpessoais que se estabelecem dentro dos grupos sociais. Na busca de uma prática mídia-educativa que caracterizasse crianças e adolescentes como narradores produtores de mídia, desde o início valorizamos a história audiovisual de cada um dos participantes. Uma atividade foi realizada para se chegar a estas histórias audiovisuais, fazendo com que fossem partilhadas, buscando evidenciar os programas, filmes, desenhos animados e personagens preferidos do grupo; bem como as razões destas escolhas, o lugar do audiovisual e da mídia em suas famílias, os seus modos de recepção e mediação (quando, como e com quem assistem tevê; com quem conversam sobre o que vêem na tevê; como percebem a tevê, seus sentidos e significados; as lembranças do que vêem na tevê e as relações dessas lembranças com suas vidas etc.). Ao aproximarmo-nos das relações e experiências afetivas que estes sujeitos têm com a linguagem audiovisual, conseguimos, pela primeira vez, sair da esfera de um “discurso” sobre a mídia que se origina no senso comum. Optamos por oficinas que não se limitassem apenas às discussões sobre produtos, propondo atividades para que os participantes pudessem, ao se expressar através de diversas linguagens da arte e da comunicação, experimentar novas maneiras de ser e de se relacionar, inclusive com os produtos de comunicação, valendo-se da linguagem audiovisual. Como a mídia tem se incumbido da mediação entre indivíduos, seus grupos sociais e o real, com conseqüências sendo apontadas, permanentemente, como maléficas, buscamos a educação do ser sensível, recompondo a possibilidade de uma percepção ampliada e acurada do real, alternativa àquela veiculada pelos produtos de mídia. A ludicidade foi a primeira ferramenta adotada na valorização do ser sensível. Atividades sensibilizadoras advindas do universo lúdico iniciavam todas as oficinas, como forma de
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
7
preparar o terreno para a criação. Uma destas atividades foi a Caça ao Tesouro. Ao chegarem para um dos encontros, crianças e adolescentes se depararam com uma mensagem do Pescador, que os desafiava a reconhecer as instalações da emissora, seu funcionamento e as etapas de produção de um audiovisual, podendo conversar com criadores, redatores, apresentadores e técnicos envolvidos nos diferentes momentos do fazer tevê. A certa altura a mensagem dizia: Preparei um mapa com os lugares que precisam visitar e umas pistas para vocês decifrarem. (...) Cada visita uma pista, cada resposta uma nova visita. (...) Se forem espertos, no final encontram o tesouro. (da carta do Pescador de Partes) De pista em pista — que lhes eram entregues por diferentes funcionários da emissora à medida que os participantes “passavam” por seus setores — meninos e meninas puderam descobrir por si mesmos como realizar audiovisuais. Com atividades, como essa Caça ao Tesouro, garantimos um espaço para brincar juntos. Através da brincadeira integramos o grupo, restabelecemos os laços afetivos, constituindo-nos como coletivo que aprende, descobre, se encontra e cria em conjunto. Outra ferramenta fundamental foi o imaginário, aproveitado como um fermento no processo criativo. Um bom exemplo é a vida imaginária atribuída ao Pescador. Esse personagem fictício representava o grupo e a cada encontro possibilitava que crianças e adolescentes dessem asas à sua imaginação. Para definir a história coletiva que o grupo contaria no Dia Internacional da Criança no Rádio e na TV, realizamos um “vôo da imaginação”. Deitados e de olhos fechados, crianças e adolescentes foram convidados a se transformarem no próprio Pescador de Partes, fazendo uma viagem imaginária onde puderam “pescar” as experiências que haviam vivido no decorrer do projeto. Na volta deste vôo da imaginação partilharam sua “pescaria” e construíram a primeira versão do roteiro do vídeo O Pescador de Partes. Ampliando e enriquecendo a percepção, o “vôo da imaginação” e outras atividades deste gênero — por exemplo, com os olhos vendados, dedicar-se a ouvir sons, ruídos e fragmentos musicais buscando, em seguida criar histórias sonoras —, tornaram-se fundamentais à expressão criadora em linguagem audiovisual. ...a criação se articula principalmente através da sensibilidade. (...) ...a sensibilidade não é peculiar somente a artistas ou alguns poucos privilegiados. Em si, ela é patrimônio de todos os seres humanos. (...) A sensibilidade é a porta de entrada das sensações. Representa uma abertura constante ao mundo e nos liga de modo imediato ao acontecer em torno de nós. (Ostrower, 1987:12) Trabalhamos na perspectiva da educação do ser sensível, partindo do pressuposto que a
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
8
realidade é mediada, em primeiro plano, pelo corpo, através dos sentidos e sensações. Neste território comum, fértil à expressão e à criação, possibilitamos que crianças e adolescentes desenvolvessem uma percepção “diferente” e coletiva do real e da comunicação, através de atividades de exploração dos sentidos, de integração e envolvimento do grupo, que facilitaram a fusão entre pensamento e sentimento, real e imaginário, fazer e pensar. 2.5. Construção coletiva de conhecimento.
A ubiqüidade das diferentes mídias, encapsulando os indivíduos desde o seu nascimento, propicia a crianças e adolescentes o desenvolvimento de uma empatia tecnológica (MartínBarbero, 2001), facilitando o emprego das tecnologias da comunicação na expressão dos desejos que lhe são próprios e na proposição de novas formas de representar o mundo. Nas oficinas, possibilitamos que crianças e adolescentes, ao se depararem com lentes do olhar — espelhos, lupas, óculos, binóculos — pudessem ver e ler imagens da vida, da mídia e do mundo através de diferentes recortes e perspectivas. Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção, vão também dirigindo suas ‘miradas’ a ‘percebidos’ que até então não se destacavam, não estavam postos por si. (Freire, 1987:71) Ao criarem histórias sobre suas maneiras de ver e se relacionar com o mundo, a partir desses objetos de mediação do olhar e em diálogo com os produtos de comunicação, passaram a ver o que não viam, a perceber além da superfície. O que será, o que será que vejo? Vi várias coisas com o auxílio da lupa. Reparei em detalhes que no cotidiano corrido nunca tive sensibilidade pra ver. Por exemplo aqueles mosquitos que ficam horas parados na parede, que suas asinhas juntas parecem um coração. Ele visto pela lupa é tão feio, chega a ser asqueroso. (...) O meu rádio é um emaranhado de pequenas peças sigilosas e vertiginosas. Percebi que perfumes saem da validade, o meu por exemplo, como há muitos anos não uso, está cheio de pequenas partículas brancas. (...) Pelo fato da lupa aumentar as imagens me pego na ilusão de sentir e ver as emoções maiores, mais acho que é por ver melhor os detalhes que penso assim. Mas o mundo não seria melhor se nós tivéssemos eternamente uma lupa imaginária sobre nossos olhos para termos diferentes pontos [de vista] sobre todas as ocasiões? (do Diário de Bordo de Caroline, 14 anos) O mesmo se deu na criação de histórias coletivas. Seguindo em sua apropriação da linguagem audiovisual e seus recursos de expressão, os participantes realizaram quatro vídeos: Nós na Mídia, Tvinstein, Herói da Banana e O Pescador de Partes. O vídeo Nós na Mídia contou sobre quem eram eles e o que estavam fazendo no projeto. Ao apreciar o resultado, verificamos que fazer nos mesmos padrões daquilo que estamos
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
9
acostumados a ver, parece ser a tendência dominante no primeiro momento. O vídeo replicou um formato conhecido da tv: com uma apresentadora que narrava e entrevistava cada um dos participantes. Também eles, ao assistir esse vídeo e avaliar o resultado, apontaram para uma “repetição” do que já viam ao ligar a tv. Isto, no entanto, não significou problema, estavam mais felizes com sua capacidade de realizar que preocupados com questões estéticas e de narrativa. A seguir, lançamos a eles o desafio de contar uma história sem utilizar a fala. Em resposta, realizaram seu segundo audiovisual. O vídeo Tvinstein tratou do tema das diferentes formas das pessoas se relacionarem com a mídia. A tv e o computador, protagonistas da história contada por eles, num primeiro momento, aparecem como monstros malvados e, em seguida, como algo que faz parte da vida, à medida em que as pessoas estabelecem relações mais equilibradas com os diferentes meios de comunicação e suas mensagens, tornando-se menos “dependentes” e “manipuláveis”. Na criação e produção dessa história a integração e autonomia do grupo ficaram claras. Assim como o quanto o tema da influência das mídias na vida das pessoas mobilizou-os a produzir. Foi a partir desta experiência que percebemos o quanto a experiência de fazer-ver-tornarfazer transforma o modo de se relacionar com a imagem-mensagem. Ao assistirem o vídeo Tvinstein, que haviam realizado, crianças e adolescentes passaram a se questionar sobre até que ponto as mensagens criadas por eles, através das suas histórias, seriam compreendidas pelos outros, por aqueles que não haviam participado da realização. “Se eu não tivesse feito não iria entender nada”, colocou um dos garotos para discussão no grupo. Ora, se a ênfase das oficinas estava na criação e contação de histórias, essa preocupação foi para nós um bom sinal e, para a alegria de crianças e adolescentes, alguns espectadores, convocados nos corredores da emissora para “tirar a prova” da compreensão, entenderam a história tintim por tintim. A seguir realizaram o vídeo de animação Herói da Banana. Inspirados no tema proposto pelo Unicef para o Dia Internacional da Criança no Rádio e na TV — Heróis e Modelos de Papéis Sociais —, conversamos sobre os nossos heróis na tevê, nas histórias em quadrinhos e na vida real. Trabalhando coletivamente na execução dos desenhos necessários, criaram uma história curta e direta, em seguida, fizeram a trilha sonora da animação, buscando uma narrativa sonora sem falas. O quarto e último produto audiovisual realizado pelas crianças e adolescentes, O Pescador de Partes — onde um pescador vai parar dentro da tv depois de entrar pela lente da câmera e lá trafega por diferentes situações, “boas” e “ruins”, da programação, terminando por deixar em
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
10
aberto um julgamento final sobre o valor do meio —, não só representa o grupo e sua identidade, mas, principalmente, trata do próprio processo de formação das crianças e adolescentes, evidenciando como foi significativa para eles a construção coletiva de conhecimentos sobre a linguagem audiovisual e a participação na Oficina TVE de Mídia.
3. Considerações finais.
Solange Jobim e Souza (2003) afirma que um dos desafios da contemporaneidade é o uso da tecnologia de maneira crítica e criativa. Não podemos perder a capacidade de criar com e através da tecnologia. A autora defende a idéia de que para criar novas maneiras de mediação crítica com o mundo é preciso que crianças, jovens e adultos tenham uma formação educacional que contemple as diferentes linguagens presentes no cotidiano da nossa época. Tomando como referência as idéias de Benjamin, Bakhtin e Vygotsky, Rita Ribes (2003) destaca a necessidade de recuperar a dimensão política que envolve o processo de criação e questiona nossas relações com as diversas produções culturais. Até que ponto apropriamo-nos das linguagens como sujeitos criadores, produtores de cultura? Em que medida elas nos cerceiam, limitam nossas possibilidades criadoras? Quais os limites entre o criar e o copiar? Como buscar uma reflexão que permita um olhar dialético para essas questões? Se, enquanto espaço físico e território para a expressão criadora, a Oficina TVE de Mídia situou-se no âmbito da TVE no Rio de Janeiro, enquanto campo de estudo e de intervenção, está inserida no que comumente de denomina como mídia-educação. No dizer de Maria Luiza Belloni, ...um campo teórico e prático que deve dar conta da convergência inédita na história da humanidade dos processos de comunicação e educação (Belloni, 2002). Ou, como indica, no mesmo sentido, Rivoltella, um ...campo disciplinare nella zona di intersezione tra la scienza dell’educazione e la scienza della cominicazione. (Rivoltella, 2001) Rivoltella evolui identificando três contextos específicos para as ações de mídia-educação. O contexto crítico, onde a mídia-educação aparece como uma educação para as mídias; o contexto tecnológico, a mídia-educação como uma educação com as mídias; e o contexto produtivo, em que a mídia-educação tem o sentido de uma educação por (ou dentro) as (das) mídias. Atuar em contexto crítico, para Rivoltella, significa concentrar-se sobre a capacidade das mídias transmitirem mensagens ao público e de influenciá-lo nos seus modos de pensar e de agir. Entram neste tipo de contexto todas as práticas educativas que enfocam os conteúdos da mídia. A finalidade da mídia-educação, nesta perspectiva, consiste em fornecer os
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
11
instrumentos necessários para que os indivíduos não sofram passivamente a influência da mídia, e sim para que se relacionem com ela em termos ativos e críticos. Ou seja, saber como receber, interpretar e avaliar os conteúdos das diversas mídias. Não há como deixar de mencionar as incontáveis ações de media literacy por todo o mundo, que podem ser situadas neste contexto crítico. Veja-se, por exemplo, Roger Silverstone e seu livro Por que estudar a mídia? (2002), para quem, aprender a ler a mídia de forma lúcida é tão importante para a cidadania no presente como o foi aprender a ler e escrever após o surgimento da imprensa. Continuando com Rivoltella, a partir do ponto de vista das tecnologias educativas — media centered —, a mídia é entendida como meio, como instrumento para reinventar a didática de modo a superar o esquema obsoleto de dar aulas. Trata-se da educação com uso das mídias — abordar a história através do cinema, ou geografia mediante documentários, por exemplo. Sendo que, na educação com os multimeios estaria a versão mais recente desta tendência. O que importa é substituir o suporte material do livro inserindo outros tipos de experiência que permitam “abrir” a didática. Mas, quando se pensa em educação para a mídia — social centered —, a mídia é entendida como um tema para intervenção didática, reservando uma atenção especial para o uso que é feito dos conteúdos da mídia por quem os recebe. No entanto, Rivoltella identifica ainda um outro viés, caracterizado por ele como de contexto produtivo. Neste caso, a mídia é entendida enquanto linguagem, passível de utilização crítica e criativa segundo três pedagogias: a funcional, na qual se aprende a técnica; a alfabética, na qual se aprende a identificar as diferentes “gramáticas” midiáticas; a expressiva, onde se faz uso criativo da mídia, tendo no manuseio da linguagem o cerne do processo educativo e o conhecimento como resultado de uma produção coletiva. Fazendo um aprofundamento da questão da linguagem, Jesus Martín-Barbero, em La educación desde la comunicación, afirma que a ...linguaje es la instancia en que emergen mundo y hombre a la vez. Y aprender a hablar es aprender a decir el mundo, a decirlo con otros, desde la experiencia de habitante de la tierra, una experiencia acumulada a través de los siglos (Martín-Barbero, 2002:31). O autor recorda que, partindo do processo de esvaziamento de sentido que sofre a linguagem nas técnicas de alfabetização, Paulo Freire desenvolveu um projeto em que os próprios educandos recriam o sentido da linguagem. Para Martín-Barbero, a linguagem, então, também pode ser entendida como mediação feita de signos e preenchida de símbolos. Pensando na comunicação a partir da cultura, como sugere o autor, também se percebeu, na
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
12
realização da Oficina TVE de Mídia, que é possível recriar, restabelecer o sentido da linguagem da mídia à medida que ela vai sendo apropriada. A oficina da TVE, como já tivemos oportunidade de indicar, não estabeleceu como prioridade a formação de jovens profissionais da mídia, nem concentrou suas atividades no que Cecília Von Feilitzen apresenta como sendo os pressupostos de trabalho presentes na mídia-educação: proteger as crianças de certos conteúdos da mídia, injetando nelas certos princípios e opiniões que lhes ensinem a dissociar do mau conteúdo da mídia e selecionar o de boa qualidade; ensinar as crianças a desconstruir mensagens, percebendo as relações de poder e compreendendo os interesses de quem faz e com quais objetivos as mensagens são transmitidas; ser uma tentativa de mudar a produção da mídia e a participação da criança na mesma (Feilitzen, 2002). Mais do que apenas “aprender a técnica” (pedagogia funcional) e produzir um vídeo para exibição no Dia Internacional da Criança no Rádio e na TV, ou conhecer criticamente as diferentes gramáticas (pedagogia alfabética), buscou-se delimitar um território para que crianças e adolescentes pudessem encontrar maneiras de se expressar e criar através da linguagem audiovisual (pedagogia expressiva). Mesmo tendo se realizado nas dependências de uma emissora de tv, o projeto incluiu a tecnologia como um meio e não como um fim. Seria compreensível se os profissionais envolvidos no processo buscassem apenas transmitir sua habilidade e conhecimento técnico. Porém, câmeras, ilha de edição e computadores, estiveram a serviço das histórias que foram criadas com a mínima interferência possível dos adultos. O domínio de determinados processos técnicos tornou-se importante à medida que se pretendia dar corpo e forma a um conteúdo narrativo e, estamos certos, a qualidade atingida pelos produtos realizados durante o projeto se deve, em muito, à adoção dos eixos de trabalho aqui expostos. Quando as atividades de mídia-educação se restringem a discussões e aulas teóricas, é mais fácil cair na armadilha da reprodução do discurso corrente que versa sobre a qualidade, ou a falta dela, nos meios de comunicação. Não raro, a propalada conscientização crítica se limita à reprodução de fórmulas do pensamento difundidas pelos próprios veículos de comunicação de massa. Crianças e adolescentes estão aptos a narrar suas histórias e a se expressar através das linguagens midiáticas. Geralmente mostram-se ansiosos em fazê-lo. Nossa tônica foi tornar os encontros produtivos, mas também muito afetivos, permitindo que os participantes colocassem a mão na massa, realizando pequenos produtos a cada oficina. Por fim, merece destaque a importância do envolvimento dos familiares e responsáveis, que
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
13
devem estar cientes das atividades desenvolvidas junto às crianças e adolescentes e seus objetivos. Quiçá possam participar de algumas delas, ou de outras, desenvolvidas especialmente para eles com os mesmos fins das que foram propostas aos seus filhos, como fizemos durante as oficinas. Certamente essas observações não esgotam o aprendizado que a Oficina TVE de Mídia ainda pode propiciar. Nossa intenção é afirmar a necessidade de uma discussão profunda das metodologias que vêm sendo empregadas na produção de mídia com crianças e adolescentes. Assim evitando que a mera realização de audiovisuais acabe tomando o lugar das propostas de expressão criadora e reflexão crítica, que podem ser viabilizadas num contexto produtivo e segundo uma pedagogia expressiva.
Histórias do Pescador de Partes, uma experiência mídia-educativa.
14
Bibliografia citada.
BELLONI, Maria Luiza. Mídia-educação ou comunicação educacional? Campo novo de teoria e de prática. In: BELLONI, Maria Luiza (org). A formação na sociedade do espetáculo. São Paulo, Edições Loyola, 2002. (Coleção Tendências) pp. 47-72. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1987 BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Descaminhos. In: Costa, Marisa Vorraber (org). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro, DP&A, 2002. CANDAU, Vera Maria. Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis, Vozes, 2002 CARMONA, Beth. Apresentação. In: O desafio da TV pública: uma reflexão sobre sustentabilidade e qualidade. Rio de janeiro, ACERP/TVE Rede Brasil, 2004. pp.9-13 COSTA, Marisa Vorraber. Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em educação. Rio de Janeiro, DP&A, 2002 FEILITZEN, Cecília Von. Educação para a mídia, participação infantil e democracia. In: Ulla Carlsson e Cecília Von Feilitzen (orgs.). A criança e a mídia: imagem, educação, participação. São Paulo, Cortez; Brasília, Unesco, 2002. pp. 19-35. FREIRE, Paulo e HORTON, Myles. O Caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17a edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987 HALL, Stuart. A identidade em questão. In: HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro, DP&A, 2000. JOBIM E SOUZA, Solange (org.). Educação@pós-modernidade: ficções cientificas e crônicas do cotidiano. Rio de Janeiro, 7letras, 2003 MARTÍN-BARBERO, Jesus. Esa excéntrica y móvil identidad joven. In: Al sur de la modernidad. Comunicación, globalización y multiculturalidad. Pittsburgh, Universidad de Pittsburgh, 2001. Serie Nuevo Siglo.(pp. 233-244) MARTÍN-BARBERO, Jesus. La educación desde la comunicación. Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2002. (Enciclop. Latinoamericana de Sociocultura y Comunicación) MASSONI, Sandra H. Estrategias de comunicación: una mirada comunicacional para la investigación sociocultural. In: OROZCO GÓMEZ, Guilermo (org). Recepción y mediaciones: casos de investigación en América Latina. Buenos Aires: Grupo editorial Norma, 2002 OSTROWER, Faiga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Vozes, 1987. RIBES, Rita. O que se cria. O que se copia. In: JOBIM E SOUZA, Solange. Educação@pósmodernidade: ficções cientificas e crônicas do cotidiano. Rio de Janeiro: 7letras, 2003 RIVOLTELLA, Pier Cesare. Media Education: modelli, esperienze, profilo disciplinare. Roma, Carocci editore, 2001. SILVA, Tomaz Tadeu da. Teoria cultural e educação - um vocabulário. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SILVERSTONE, Roger. Porque estudar a mídia? São Paulo, Edições Loyola, 2002 VIANNA, Hermano. Introdução. In: VIANNA, Hermano (org.). Galeras Cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997.