Cartografia Rumos Itaú Cultural Dança 2012-2014

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No Brasil – assim como em outros países da América Latina, da África e da Ásia –, as técnicas de balé clássico da Europa e da ex-União Soviética, da mesma forma que as de dança moderna dos Estados Unidos e da Alemanha, chegaram tardiamente. Por isso, constituíram-se de modo inevitavelmente hibridado nos diferentes contextos. Afinal, os corpos que dançavam fora do eixo de poder e saber não eram vazios como uma tábula rasa pronta para ser inscrita, mas já tinham suas especificidades. Em um primeiro momento, as técnicas importadas chegaram por meio de imigrantes que abriram academias e escolas que, mais tarde, foram disseminadas pelos próprios brasileiros que decidiram estudar no exterior e depois retornaram. Há inúmeros exemplos de combinações inusitadas que acionaram hibridações bem particulares como a inesperada aliança entre a dança de expressão alemã e as danças de candomblé da Bahia ou a curiosa versão do butô japonês em São Paulo, que congregava fragmentos de outras referências melodramáticas que se consolidaram como um método para dar visibilidade aos processos de criação e de percepção de cada artista. De maneira geral, nas cidades brasileiras que contavam com grandes academias, sempre foi habitual trabalhar várias técnicas de dança misturadas, algumas vezes sem qualquer especialização, como é o caso, até hoje, de muitas aulas de dança moderna e contemporânea ou mesmo de expressão e consciência corporal. Nos locais onde o fluxo de informações era quase inexistente, muitos artistas se “formaram” de maneira ainda maisWW fragmentada, com treinos irregulares em oficinas e workshops oferecidos apenas durante eventos específicos. A presença das universidades como ambiente supostamente formador de profissionais de dança é ainda bastante controversa e os objetivos variam muito, apontando para entendimentos nada homogêneos do que seria propriamente uma formação em dança e que tipo de profissional seria possível formar em uma universidade com todas as regras disciplinares que a caracterizam. Apesar de todas essas dificuldades, há, sem dúvida, muitos exemplos de criação e resistência testados durante a história da profissionalização da dança no Brasil. No entanto, é importante notar que alguns dispositivos de poder com traços fortemente coloniais (“o que vem de fora é sempre melhor”) aliados à falta de recursos (local de trabalho, dinheiro, acesso à informação) nem sempre permitiram que nossas experiências representassem a conquista de uma autonomia. Entre os pensadores brasileiros que refletiram sobre questões pedagógicas, Paulo Freire (19211997) destacou-se ao esclarecer que alfabetizar alguém não é apenas ensinar a juntar sílabas e palavras, mas, sobretudo, acionar pessoas a falar com a própria voz. Talvez a formação/criação em dança tenha alimentado, sobretudo nos últimos 20 anos, essa mesma prioridade: fertilizar a concepção de danças que não se constituem como decalques de outras. Mas nem sempre e, certamente, não de maneira generalizada, essa autonomia tem caracterizado nosso processo educacional. Um dos problemas mais graves é a falta de continuidade. Tempo e aprendizado sempre estiveram juntos. Para dar visibilidade a um pensamento é preciso criar hábitos corporais. Não se trata de estagnação, mas de fluxos de permanências que viabilizam o reconhecimento da pesquisa em processo, ou seja, tudo segue mudando mas, na continuidade, há uma inevitável e bem-vinda emergência de padrões, conforme a experiência amadurece. Se essa etapa é sempre interrompida e a pesquisa não consegue nunca chegar a esse momento, não é possível falar em formação propriamente dita, apenas em estudos e experiências pontuais. 159


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