Misery louca obsessao stephen king

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Amanhã. Ele passaria a escrever à mão amanhã. Escrever à mão porra nenhuma. Reclame com a gerência, Paul. Mas ele não faria isso. Annie tinha ficado muito esquisita. Ele ouviu o rosnar monótono do cortador de grama, viu a sombra de Annie e, como frequentemente acontecia ao ponderar o quão estranha ela estava ficando, sua mente trouxe à baila a imagem do machado se erguendo e então caindo. A imagem horrenda de seu rosto impassível salpicado com seu sangue. Era claro. Cada palavra que ela dissera, cada palavra que ele gritara, o guinchar do machado sendo puxado do osso, o sangue na parede. Tudo claro como cristal. E, como ele também sempre fazia, tentou bloquear a imagem, mas agiu tarde demais. A reviravolta crucial na trama de Carros Velozes dizia respeito ao acidente de carro quase fatal que Tony Bonasaro sofria em sua última tentativa desesperada de escapar da polícia (o que levava ao epílogo, que mostrava o violento interrogatório conduzido pelo parceiro do finado tenente Gray no quarto de hospital de Tony). Por isso Paul interrogara algumas vítimas de batidas de carro. Ele ouviu a mesma coisa repetidas vezes. Os detalhes mudavam, mas o ponto principal era: Eu me lembro de entrar no carro, e me lembro de acordar aqui. O resto é um apagão. Por que isso não podia ter acontecido com ele? Porque escritores se lembram de tudo, Paul. Especialmente o que dói. Tire toda a roupa de um escritor, aponte para as cicatrizes e ele vai contar a história de todas, até as menores. As maiores rendem romances, não amnésia. É bom ter algum talento se você quer ser escritor, mas o único requerimento real é a habilidade de lembrar da história de cada cicatriz. Arte é a persistência da memória. Quem dissera aquilo? Thomas Szasz? William Faulkner? Cyndi Lauper? Mas o último nome trouxe sua própria corrente de associações, uma infeliz e dolorosa diante das circunstâncias: uma lembrança de Cyndi Lauper soluçando alegremente em Girls Just Want to Have Fun, tão nítida que era quase audível: Oh daddy dear, you’re still number one / But girls, they wanna have fuh-un / Oh when the workin’ day is done / Girls just wanna have fun. Subitamente ele desejou uma dose de rock’n’roll mais ferrenhamente do que já desejara cigarros algum dia. Não precisava ser Cyndi Lauper. Qualquer um servia. Jesus Cristo, Ted Nugent já servia. O machado descendo. O sibilar do machado. Não pense a respeito. Mas aquilo era estúpido. Ele continuava dizendo a si mesmo para não pensar naquilo, sabendo todo o tempo que aquilo estava lá, como um osso encravado na garganta. Ele deixaria aquilo permanecer ali, ou seria homem e se forçaria a botar toda aquela merda pra fora? Outra memória surgiu: pelo jeito, aquele dia estava reservado para os Pedidos da Plateia para Paul Sheldon. Era uma lembrança de Oliver Reed como o cientista louco e melífluo do filme Os Filhos do Medo, de David Cronenberg, em que ele instava os pacientes no Instituto de Psicoplasmática (um nome que Paul achara deliciosamente divertido): “Até o fim! Vão até o fim!”


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