SAMIZDAT Especial 1 - Ficção Científica

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www.samizdat-pt.blogspot.com História Natural Max Mallmann Quando as outras moléculas começaram a se agrupar, avisei que não ia dar certo. Alguém me ouviu? Claro que não. Talvez o fato de que nenhum de nós possuísse ouvidos naquela época deva ser considerado atenuante para a presunçosa desatenção deles. Passado algum tempo, para que não me chamassem de antiquado, misantropo ou démodé, também me agrupei. E nos transformamos em células. A vida de célula não era má. Era até, na verdade, bastante agradável, embora tenha sido um pouco complicado, para mim, assimilar o conceito de dentro e fora. Mas a invenção das membranas acabou tornando mais fácil distinguir quem era eu e quem era o resto do mundo. A parte que eu mais gostava, nesses tempos de célula, era a divisão celular. Era um ato que começava solitário, quase masturbatório, até que, num orgiástico romper de membranas, eu me tornava dois. Então nós dois virávamos quatro. E, antes que nos déssemos conta, nós quatro já éramos quatrocentos trilhões. Uma festa. Só que daí alguém voltou com aquela velha conversa de se agrupar. Já não estávamos agrupados o suficiente? Avisei, de novo, que não ia dar certo. De novo, ninguém me ouviu. De novo, segui a maioria. E me tornei organismo multicelular. Vendo a coisa em retrospecto, não posso dizer que tenha sido mau negócio. Há um certo prazer lúbrico na vida multicelular. Meu principal passatempo, naquela época, era o cultivo de apêndices externos. Flagelos natatórios, tentáculos, barbatanas, uma infinitude de protuberâncias capazes de balançar para lá e para cá. Porém o apêndice externo mais divertido de todos, sem dúvida, era o pênis. Não ajudava nem um pouco na locomoção, mas era ótimo para penetrar nos orifícios dos outros organismos multicelulares. Sim, foi quando descobrimos o sexo. Ficamos durante milhões de anos trepando como loucos no fundo do mar, sem que ninguém nos incomodasse, até que um daqueles chatos cheios de opiniões sugeriu: “E se a gente fosse para a terra firme?”. Mais uma vez, avisei que não ia dar certo. Foi inútil. Ninguém me ouviu, apesar de quase todos nós já possuirmos ouvidos ou algo semelhante. Decidi acompanhar um bando de imprudentes nessa aventura maluca, só para ver a confusão que eles armariam. Acabei rastejando na areia quente, debaixo de um sol que me torrava as escamas. Que tolo fui, quando me condenei à eterna indecisão da vida de anfíbio. Nostalgia é uma palavra salgada, como o mar que me viu nascer. E foi num ímpeto de autodefinição, numa busca sôfrega por alguma identidade mais sólida, que acompanhei os outros rumo ao interior daquela imensidão de terra. Quando me dei conta, já era 17


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