Walnice Nogueira Galvão: Os sertões é uma obra
trou para expressar-se. A forma literária é a da narrativa, ou, como se diz em jargão especializado, um epos, porque tal matéria exige o épico. Então eu diria que substantivamente Os sertões é um epos, que adjetivamente, ou secundariamente, aceita contribuições do ensaísmo, do enciclopedismo e do gênero dramático. Por sua vez, o grande sintagma narrativo de Os sertões, que vai da primeira à última página, foi tomado da Bíblia, no sentido de que começa por um Gênesis ou origem dos tempos e termina por um Apocalipse ou fim dos tempos. E de onde vem o modelo bíblico, em princípio inadmissível para um ateu, cientificista e determinista? Vem dos canudenses, da absorção que Euclides faz do ponto de vista daqueles que se concentravam no Belo Monte para salvar suas almas, num mundo reencantado pela fé, à espera do Messias, que presidiria ao juízo final e à redenção dos justos. Euclides utiliza as imagens bíblicas também pelo avesso. Vai invertendo e demonizando – para adequá-las à concepção dos canudenses – as imagens positivas do Apocalipse. Assim, por exemplo, a cidade dos justos descrita no Apocalipse é uma edificação de ouro, amurada de ouro e de planta quadriculada – que é uma forma, por assim dizer, benquista pela razão humana –, atravessada pelo Rio da Vida, às margens do qual viceja a Árvore da Vida. Quem reina nessa cidade é o Cordeiro, figuração de Jesus Cristo. Pois bem, o que acontece em Canudos? A Nova Jerusalém não é de ouro mas de taipa, portanto feita de barro e da cor da terra. Compõe um labirinto, quer dizer, o oposto da planta quadriculada ideal. O rio – o Vaza-Barris – é seco, não tem água. A árvore é substituída pela vegetação atrofiada da caatinga; ou, numa imagem bíblica mais avançada, metamorfoseia-se no cadáver do coronel Tamarindo, pendurado nos galhos do angico. O Cordeiro assume os contornos de sua inversão demoníaca, o bode, predominante no sertão. Resumindo: o céu virou inferno. Bem, paro por aqui, tentando sintetizar numa frase tudo o que Euclides submete ao leitor: a meu ver, Os sertões é o epos da modernização capitalista focalizada em seu avesso, privilegiando não o progresso e seus supostos benefícios, mas o preço, de fato, pago pelos pobres.
de arte literária que aborda o avesso da modernização capitalista. Como vocês sabem, aqueles tempos assistiram a um processo similar na América Latina inteira, o que provocaria por toda parte revoltas dos pobres, sacrificados pelo conjunto das medidas. No caso do Contestado, por exemplo, a questão foi colocada pela abertura da ferrovia. O Contestado, só para lembrar, aconteceu alguns anos depois de Canudos – e no Sul do Brasil. A chegada do trem desapossou os posseiros e os transformou em nômades, isto é, em retirantes destituídos. Perdendo suas terras, viram-se excluídos do sistema produtivo no qual anteriormente se integravam. Poderíamos ir mais longe e lembrar os casos de construção de grandes represas na China, que, tal como no Brasil, expulsam as populações locais. Para não falar do que Stalin fez com os cúlaques, praticamente exterminando 10 milhões de pessoas quando coletivizou a produção no campo. Trata-se, portanto, de algo que acontece no mundo todo, embora no caso que ora nos ocupa fiquemos mais restritos ao que aconteceu na América Latina naquelas décadas. A modernização, então, quando sobrevém, leva de roldão cidades, agrupamentos, comunidades, plantações, florestas, meios de vida, laços de solidariedade etc., deixando a gente ao léu. É o que se pode ver hoje, pelo planeta afora; com a globalização, está-se intensificando de novo esse capítulo, nos nossos dias. Este é o primeiro ponto a reter. O segundo ponto seria o seguinte: Euclides opera a contrapelo, ou seja, em vez de fazer o panegírico da modernização a que estamos tão acostumados, vai escrever sobre o seu avesso. O que interessou a ele foi o preço que a modernização custou aos pobres e desvalidos, que se sublevaram em movimentos messiânicos e milenaristas. Essa guinada de Euclides da Cunha – olhar para a insurreição, e não para o avanço da tecnologia, olhar as coisas pelo avesso do costumeiro – é uma importante distorção. Vocês podem imaginar o que ela custou ao escritor, um militante republicano que acreditava no progresso e na ciência? Em resposta, vai expor sua consciência dilacerada, bradando aos céus que aquilo não estava certo. O último ponto a reter seria o que focaliza propriamente a forma literária que Euclides encon371