A gente já nasceu quilombola e não sabia
HISTóRIAS do MONTE RECôNCAVO
Este livro é uma coletânea de narrações orais de anciões e anciãs que aceitaram o convite para compartilhar com a gente suas histórias, causos e vivências nesse lugar chamado Comunidade Quilombola Monte Recôncavo (São Francisco do Conde, Bahia). No esforço de manter na escrita um pouco da singularidade e da beleza da oralidade dos anciões/ ãs, demos às transcrições das suas narrações a forma de relatos e poesias. É através desses contos e poemas que podemos ser levados neste livro a imaginar como era o Monte Recôncavo antigamente. Os/as moradores/as da comunidade (e aqueles/as que se disporem a sê-lo durante a leitura destes textos), quando degustarem a leitura, com certeza voltarão ao que chamamos de memória, às lembranças de infância, evocadas pelo conhecimento de mundo dos/as nossos/as mais velhos/as e mais sábios/as. Vamos em direção à memória: Bem-vindos a esta viagem!
A gente já nasceu quilombola e não sabia Histórias do Monte Recôncavo
Maricelia Conceição dos Santos Carlos Maroto Guerola
A gente já nasceu quilombola e não sabia Histórias do Monte Recôncavo poemas e relatos a partir de conversas com
Angélica dos Santos Celina dos Santos Gregório Eunice Honorina Mendes Eunice Maria Nerys dos Santos Ezequiel dos Santos Zé Bernardo Bahia, 2021
À memória de Seu Zé Bernardo (1932 - 2021)
O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e do Centro de Culturas Populares e Identitárias - CCPI (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal. 1a edição. 300 exemplares. © Maricelia Conceição dos Santos e Carlos Maroto Guerola Fotografias: Lucas Moreira Editoração, diagramação e revisão: Carlos Maroto Guerola Agradecimentos: Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira - UNILAB / Pró-Reitoria de Extensão, Arte e Cultura / Projeto de Extensão Histórias aos Montes / Projeto de Extensão RebelArte Malês Agradecimentos especiais a Dalva Conceição dos Santos e Jarilma Ferreira dos Santos.
Apresentação 13 Água dessa fonte
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Na casa de todo mundo
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Era animado, era bonito demais
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Ninguém descobre o fundamento
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O pessoal via mesmo
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A P R E S E N T A Ç Ã O
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urante minha infância, sempre ouvi que no Monte Recôncavo existia história mal assombrada. Era meus pais, tios e vizinhos todos falando sempre as mesmas coisas: que não se podia ficar ou brincar na rua até muito tarde, porque sempre iria aparecer algo mal assombrado como o bolo de carne, o cavaleiro, o lobisomem ou a mulher da trouxa. Em meio a todo esse contexto de contos, cantos e encantos, eu cresço e guardo comigo as memórias dessas vivências, vivências essas que senti a necessidade de partilhar com os meus e com os demais outros que queiram conhecer esses causos da minha Comunidade Quilombola Monte Recôncavo. E por que hoje eu trago esses relatos orais dos meus anciões aqui da comunidade com toda essa propriedade? Porque eu nasci quilombola e não sabia! E fiquei sabendo como? Devido a uma pesquisa feita junto aos nossos mais velhos por jovens de um grupo de teatro hoje conhecido como Companhia Cultural Mont’arte. Os anciões nos responderam sobre as nossas histórias vividas por ancestrais escravizados; por essas histórias nos foi dada a intitulação de Comunidade Quilombola. Mas e agora? O que é Quilombo? O que é ser Quilombola? Eis que surgem muitos questionamentos, e isso abre caminhos para o conhecimento. Anos depois, tenho a oportunidade de estudar na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), no Campus dos Malês em São Francisco do Conde, minha cidade, na Bahia. Durante uma conversa com meu professor Guerola, surgiu a ideia de um projeto de pesquisa para registrarmos essas histórias, causos, lendas, como se queira falar. A partir dessa conversa, começou a nossa caminhada para a preparação, desenvolvimento e publicação dessa pesquisa. Histórias do Monte Recôncavo
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Durante esse tempo, fizemos visitas a seis anciões: foram ouvidos seus relatos orais de vivência nos contando como era o Monte Recôncavo antigamente. Depois de ouvir todos os convidados, transformamos suas experiências em poesias e relatos para que, dessa forma, essas histórias possam ser vistas, lidas e recontadas por os posteriores a eles, aqueles que serão inspirações para os futuros estudantes da comunidade. As adaptações literárias dos relatos foram feitas de modo a respeitar a maneira original do jeito que foi contado por cada um deles. Buscamos refletir na escrita de algumas palavras a forma que eles falam: mesmo sabendo que a palavra é escrita de uma maneira, não quisemos descaracterizar a forma de falar de cada um pra não perder o sentido do falar daquele sujeito na sua essência. Deixo bem claro que não estou hostilizando e nem menosprezando o conhecimento deles e sim mantendo a minha vivência de ouvinte que me remete a minha infância e que me traz à tona uma rica memória, que me orgulho e agora partilho com todos vocês. PORQUE EU JÁ NASCI QUILOMBOLA E NÃO SABIA! Maricelia Conceição dos Santos Monte Recôncavo, 23 de fevereiro de 2021
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filha de Miguel dos Santos e Arcanja Pereira dos Santos, nasceu a 21 de outubro de 1939 no Monte Recôncavo, onde reside até hoje. Viúva há 40 anos, esta matriarca criou onze filhos de sangue e dois de criação; tornando-se depois avó de 46 netos e bisavó de 26 bisnetos. Trabalhou em roça e fazenda mas se considera “dona da maré”, por ter criado todos seus filhos e filhas através do sustento do mangue. Nossa entrevista com ela ocorreu no dia 03 de dezembro de 2019, ano em que completou 80 anos.
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nasceu a 17 de dezembro de 1946 no Monte Recôncavo, onde é por muitos conhecida como Tia Neném. Filha de Filipe Nerys e Maria Florência Nerys e viúva há 40 anos, é mãe de quatro filhos e avó de cinco netos. Teve como ofício assistente de enfermagem. Seu prestígio na comunidade se deve, dentre outros motivos, ao seu conhecimento para dar banho às crianças até o umbigo cair, por ser filha de mãe parteira, sendo lembrada também como aquela que dava injeção nas crianças e furava a orelha. Sua participação na igreja católica continua ativa até hoje, sendo ministra de eucaristia. É uma das principais referências da comunidade na contação de histórias. Nossa entrevista com ela, ao sossego dos seus 72 anos, ocorreu no dia 29 de outubro de 2019.
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é b ernar d o nasceu a 2 de dezembro de 1932 no Monte Recôncavo, particularmente no Monte de Baixo, onde cresceu (“no Tanque de Bó”). Filho de Manuel Bernardo e Maria Izabel Alves, tornou-se pai de três filhas, avô de cinco netos e bisavô de quatro bisnetos; está pra nascer seu primeiro tataraneto. Entre seus ofícios, já foi empregado em canavial e carpinteiro; já mariscou muito no mangue; começou a trabalhar como montador para o Conselho Nacional de Petróleo quando o mesmo se instalou na Usina Cinco Rios, em 1953; se aposentou na Petrobrás em 1978. Homenageado em fotografia na Câmara dos Vereadores do município de São Francisco do Conde, Seu Zé Bernardo é uma referência em conhecimento de história da comunidade do Monte Recôncavo, motivo pelo qual recebe muitos convites para palestrar nas escolas com jovens e crianças. Nossa entrevista com ele ocorreu no dia 03 de dezembro de 2019, quando recém tinha completado 87 anos. Faleceu, vítima de Covid-19, no dia 07 de março de 2021, pouco antes de receber em mãos este livro. Histórias do Monte Recôncavo
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nasceu a 10 de abril de 1936, no Monte Recôncavo, onde se criou e mora até a atualidade. Filho de Miguel dos Santos e Arcanja Pereira dos Santos, tornou-se pai de doze filhos de sangue conhecidos e três de criação; é hoje, ademais, avô de cinco netos. Serviços como pedreiro o levaram para diversos paradeiros na Bahia (Salvador, Feira de Santana, Jequié); também dedicou muito tempo e esforço à roça. Porém, em virtude do seu “dom de nascença”, se constituiu como referência de conhecimento foi no âmbito da cura através de chás e outros remédios da natureza. Por esse conhecimento, continua sendo muito procurado nos dias de hoje. Nossa entrevista com ele ocorreu no dia 18 de novembro de 2019, quando contava com 83 anos.
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nasceu a 21 de novembro de 1941 no Monte Recôncavo, filha de Juventino Mendes do Rosário e Leonor Gomes Mendes. Mãe de dois filhos de sangue e um de criação, avó de três netos e “mais um punhado” que também criou, é hoje aposentada, tendo tido como profissão assistente, técnica e auxiliar de enfermagem. É membro do Apostolado da Oração e do Terço Mariano da Igreja da Nossa Senhora do Monte. Gosta muito de cantar e sempre sonhou com tocar violão. É compositora, tendo composto, dentre outras músicas, sambas e cantos à Nossa Senhora. Nossa entrevista com ela ocorreu no dia 19 de novembro de 2019, brilhante e alegre aos seus 78 anos.
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nasceu a 27 de janeiro de 1953, no Monte Recôncavo, onde fez sua vida e permanece até hoje. Filha de Miguel dos Santos e Arcanja Pereira dos Santos, é mãe de cinco filhos, avó de quinze netos e bisavó de quatro bisnetos. Até hoje, é marisqueira e pescadora, especialista nos saberes do mangue. Nossa entrevista com ela, aos seus sorridentes 66 anos, ocorreu no dia 29 de outubro de 2019.
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Água dessa fonte
Três pé de genipapo Eu, menina ainda, podia tar com os meus quinze. Juninho, também menino; Julio podia tar também. Porque essa história que eu tô contando a você já vem do começo e eu também subindo a idade. O que vou lembrando tô contando. Eu, quando vim pra aqui mesmo, eu vim. Sempre a gente daqui nasceu aqui. Eu nasci aqui, nesse Monte de Baixo, onde tem uns três pé de genipapo. Eu nasci ali. Mas depois sabe como é: Avô foi se embora pra Caípe, que ele gostava muito de negócio de animal, de cavalo, das coisas foi se embora. Era meu avô que tomava conta de mim. Sabe como é essas coisas.
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A frente da igreja era pra lá realmente Os filho nascido e criado todo mundo aqui no Monte Recôncavo, todo mundo quilombola. Sem saber, mas era quilombola. Engraçado que a gente tinha — eles tinha — essas vivência toda, todas essas história e a gente não, nunca conseguiu atrelar essa situação, essas história. Alguns sabiam aquela história de que uns contava “a igreja foi construída pelos escravo” — disseram. “Como que a igreja foi construída? Pedra e óleo de baleia!”. A igreja, só quem sabia um pouquinho aqui contar alguma coisa dela era um senhor que a gente chamava de “Avô”. Ele morreu com cem anos. Já tem muito tempo de morte. A história da igreja poucas pessoas sabe de como começou, que não teve ninguém aqui assim daqueles antepassado pra contar. O povo fala que a frente da igreja é o fundo da igreja, mas na verdade não é o fundo, é a frente. Antes não tinha transporte terrestre, era marítimo. Tudo que vinha, vinha pelo mar. Aí, quando a embarcação vinha, tinha que se guiar pela frente da igreja. Tanto que só pintava ela antes de branco pra eles se guiarem pra aquela igreja pra poder vir por terra, pra não se perder no marzão. O centro era aqui, mas, pela dificuldade de subir com as mercadoria que vinha, foi que o centro ficou lá em São Francisco do Conde, porque lá o mar é mais perto pra pegar as coisa. A frente da igreja era pra lá realmente, porque o mar era pra lá e subiam por ali. Eles se guiavam pra não se perder. Os marinheiros quando vinha se guiava por ela. O porto era lá no lugar que chama “Horta”. Eles se guiavam pela igreja daqui, encostava lá; ancorava lá naquele porto. A Horta é lá no Madruga. Quantas cadeiras a gente já carregou na cabeça pra vir pra cá de lá do porto? O pessoal comprava as coisa lá ni Água de Menino, trazia pelo barco, a gente ia buscar lá. Quem tinha animal trazia as coisa no animal; quem não tinha, trazia na cabeça. Se a gente olhar daqui, todo mundo que vem daqui pra lá, a imagem é que você vai ver um lado da igreja. A gente vê o lado da igreja. Na verdade parece a frente, mas não é a frente, é o lado da igreja. A frente é onde tá o próprio crucifixo. Mas a gente fala assim: “Eu vou lá no fundo da igreja”.
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Isso tudo aqui era água Não era asfaltado não. Quando eu me lembro, era chão, chão a pique. Só tinha aquele pedaço daquela rua ali, só tinha aquela rua ali que era calçada, que sempre foi. Eu, quando nasci, já encontrei aquele pedaço. Quando eu me entendi, nasci não, quando eu me entendi como gente, já havia aquele pedaço ali calçado — você sabe onde eu tô falando? Era um pedacinho, naquela rua de baixo descendo. Não tem aquela calçada ali? É ali. Ali, eu já alcancei ali calçado. Isso tudo aqui era água, fonte. Hoje a gente não nada. Era mato que era fonte, tinha fonte por dentro do mato. Aí pra baixo era a Fonte da... — esqueci o nome, os nome vai fugindo da cabeça.
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Tinha essa fonte aí que a gente ia tomar banho. Tinha essa outra, a Daniel, tinha uma outra aqui do lado, que é a Fonte dos Pinheiro. Aquela fonte ali tinha uns mato, umas folhas de borboleta. Chamava “borboleta”, que era o formatozinho das borboletazinhas cheirosa. Era mato, era casa de taipa. Minha casa mesmo era taipa. Minha vó, a gente morava ali. Era taipa, uma pra lá, outra pra cá, uma pra dentro, outra pra fora. A gente tem que ser original. Eu corria esse mundo todo aqui, a gente andava aqui toda as menina, a gente vinha brincar ali nessa descida. Ali é um arenoso e o arenoso ele forma umas parede e as parede ele dá aquela rachadura. Eu que gostava de brincar de casamento fazia os casamento, fazia os batizado, e os brinquedos a gente fazia de barro.
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Que horas essa cobra...? Era tudo mato e o caminho nem era por aqui, o caminho era pelo Pé do Louco, a fonte. Não tinha isso aqui não, não tinha essa rua aqui não. O caminho era por lá. Naquele tempo, a gente não tinha, não é todo mundo que podia viajar de carro. Já cansei de ir pra Candeias a pé. No tempo de inverno — porque não existia muito saco plástico — pegava um pano mais grosso, dobrava a roupa bem dobrada, botava na cabeça, e marrava um torso e a gente ia com a roupa comum. Chegava dentro do trem, a gente aí mudava. Ia de trem, ia de saveiro. Era pra não molhar quando a chuva vinha, pra não molhar a roupa. Dentro do trem mudava, guardava a roupa, botava a roupa que a gente ia vestida. Pra vir, vinha ou de trem ou de saveiro. De saveiro vinha e saltava lá na Picuara, não tem o porto? A turma dava presente, tudo. Vinha pela Piquara, saltava na Piquara. Da Piquara pra cá, do Madruga pra cá, a gente vinha andando. Pela Caiera, a gente ia era pra Ilha das Fonte, Santo Estévão, Madre de Deus, de saveiro. Saveiro era uma canoa grande, mas tinha uma cobertura. Aquele barco grande e os homem remando. Naquele tempo, não tinha motor não. Era remando, nos braço! Lá não era uma pessoa só que ia remar. Era bastante pessoa que ia: quando um cansava, um aliviava, o outro puxava. A gente ia de manhã, chegava conforme as horas que chegava. Depois tinha que fazer o que fazer, aí vinha outra vez. Se o caminho escurecesse, o que fosse, nós vinha. Do porto pra cá, vinha a pé. Vinha andando no escuro. De lá do Madruga até aqui, tudo cheio de mato. Do Madruga ou da Piquara. Tinha um trilho. Vinha cantando, várias pessoas. A gente cansava de parar, esperar as cobra passar pra um lado e de outro. Dizia “Meu Deus do céu, que horas essa cobra...? Ó praí!” Demorava a passar. Ela vinha andando — se fosse jibóia, então! naquele devagar... — até entrar dentro do mato. Todo mundo aí dava uma carreirinha e atravessava. Levava comida. Água não levava não, que água nós tinha de fartura.
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Umas coisa inventada Tem um caminho descendo a Brasília: a estrada real do Madruga. Madruga, Picuara, Diarema: Essa é a estrada real. Essas outra aqui já é umas coisa inventada. É aquela ali: essa que vai por dentro, porque lá tinha o povo fonte pra poder tomar esse banho. A primeira fonte é aqui na frente, Fonte dos Pinheiro. É logo ali na frente. E a outra é la no Daniel. Agora, tem um tororó que é ali — Sabe o tororó? Todo mundo usava dessa água pra tomar banho pra cozinhar, tudo essa água dessa fonte. Tem uma fonte antiga que era dos barão, chama “Fonte da Cachiba”. Tem um tanque ali. Ali em baixo tem uma fonte que era toda de tijolo e sumiu. Do tempo do barão, Barão Viana. Tudo tinha fonte. Todo lugar tinha fonte. Todo lugar, tudo.
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Do jeito que você for, só tem a igreja Conta a história que, dessa estrela, dá pra a gente ouvir uma zuada de uma água. A água do tororó ela vem dali mesmo. Você não vê o fim da água do tororó. Quando a gente vai no tororó, nessa cachoeira aqui, que diz que é a bica de Roxinho, e até no próprio poço do Milagre, também não tem o final. Você não vê a nascente da água. Existe um lugar que eles chamam do “Milagre de Nossa Senhora do Monte”, que é uma pedra que, com o tempo, ela fez uma bacia e tem uma rocha enorme. Aí vem um córrego, enche essa bacia toda aqui, e desce. Ninguém vai mais não, porque o mato tomou conta. Também tem muitas cobra venenosa. Por não conhecer o lugar, pra não ser picada pelas cobra, ninguém vai mais. Tem a cachoeira que a gente chama da “bica de seu Roxinho”, que é também essas rochas enorme que cai um fiapinho — mas é bem fininho... — de água. E tem um tororó que é mais abaixo, lá no final da Brasília, que também é uma bica que o povo fez. Não lembro se construiu um tanque. Mas o final da nascente da água você não vê. Ninguém vê. Eu já vim até subindo; tem um pé de gameleira. Quando chega ali, a água não sabe de onde vem, tudo sequinho. As água todas elas são doce, tudo doce. Tem um tororó, tem a cachoeira que sai esse corregozinho de água, tem o Milagre. Mas onde é que a agua nasce? A gente não sabe. Quando você chega na Igreja, nessa parte, aquela parte da estrela, se você chegar e botar a cabeça, você ouve “shooo” e é agua mesmo. Já comprovaram que é agua; é agua descendo, só pode vir de lá. Porque esses lugares são lugares mais próximos da igreja — o milagre, a cachoeira e o tororó —, então a nascente tá em baixo da igreja. Ninguém vê a nascente da água. Se você seguir o Milagre, você tá seguindo o córrego da água; não tem “aqui é a nascente”. Se você seguir o córrego do Tororó, não tem a nascente; se você seguir o córrego da cachoeira, não tem. A impressão que dá, quando você olha assim pra cima, é que só tá a igreja. Do jeito que você for, só tem a igreja. No pé de gameleira, depois do pé de gameleira, não tem mais água. Não tá nem molhado nem nada. E não tem “ah! chegou o dia da água secar”. Não seca, por mais verão que teja, nem que seja uma linhazinha. Pode ficar mais fina, mas não seca. Ela não seca em nenhum dos três lugares. A água não seca, e é água doce, límpida. Disseram que o tororó foi mineral: examinaram e disseram que é mineral. Se você pegar um copo, você vai ver: não vem nem cisco, não vem nada. Mas ninguém sabe de onde nasce a água. Histórias do Monte Recôncavo
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Meu avô nem sonhava nascer Do lado do altar ali, diz que ali naquele sítio, em baixo, tem um mundo de uma cisterna: água que desce pro tororó. Botava o ouvido e ouvia zuada. Quando fez essa igreja aí, meu avô nem sonhava nascer. Foi no tempo da escravidão. Essa cachoeira mesmo de Zezito, a água desce forte, quando chega lá em baixo ninguém sabe pra onde essa água vai. Vem daqui de cima. Em todo pé de outeiro aqui
dá água.
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Foi tudo e foi verdade O povo que falecia aí nesse campo todo — Cravatu, Maracangalha... Maracangalha não tinha cemitério não, tinha não. Dom João, essa turma, ninguém: tudo era enterrado aqui. Eles vinham, bambu e pau. Vinha no pau o caixão. Pegava no ombro. Tinha dias que eles chegava já tarde, seis hora, daí não enterrava. Aí ficava ali, no pé do mulungu, pra enterrar no outro dia de manhã. Se você vê isso foi tudo e foi verdade. Isso tudo que tô contando a você foi verdade. Se você contar a alguém, eu to dizendo que é verdade. Tem um aqui que tem a minha idade também. Vinha no pau
tudo
esse campo todo aí tudo.
Tudo era enterrado aqui de acordo ao tempo. Histórias do Monte Recôncavo
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Quando o tempo dava pra enterrar, enterrava. Quando não dava, deixava aqui e outros ficava na ladeira da bomba. Tem o pé de gameleira grande e tem a cerca. Ficava amarrado na cerca. Eles deixava e voltava — pra São José, de São José pra São Genovo — o pessoal que não dava tempo. Porque era uma lama, rapaz! Era lama, tudo era lama, não tinha estrada nenhuma. Depois que foi melhorando. O pessoal não se assombrava muito não porque já tava acostumado já a saber que era assim.
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Estrada do Ji Aí é o barão, aí era o engenho, o engenho junto do canavial, canavial tudo aí. A Fazenda Monte são novecentas tarefa: novecentas tarefa quer dizer que ela pega tudo aí, vai lá, volta, vai lá encima, tudo é Fazenda Monte, com a metade daqui do Monte, aqui essas casas, metade, quase tudo. Ali tinha a estrada, era por ali, tinha um pé de mulungu e tinha a cerca. Tinha um bocado de árvore aqui, aqui na subida. Aqui tinha um caminho, um assim que a gente passava, chamava “Maemba”. Doutor Fred, quando comprou essa fazenda na mão de Carlos Viana, custou 900.000 real. Ele aí, pra tirar a estrada daí de dentro da fazenda, ele fez essa estrada aí. O homem que fez, não foi trator tudo assim não! Tudo foi feito nos braços do homem. Não teve máquina nenhuma. Ali só picareta e enxada. Aqui era rumo de Madruga com Monte: a Estrada do Ji — mas não foi na sua época não —, a beira do Ji. Tinha porteira, a porteira do rumo; tinha um pé de mulungu e tinha era porteira, a porteira do rumo. Aí que o pessoal passava. Aqui não tinha saída.
É o mato que descia,
mas não tinha estrada não.
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Pra pegar o suburbano Até hoje ainda tem uma dificuldade de ônibus aqui pro Monte. Quando a gente ia pra Salvador, botava um sapato aqui nas costa e descia essa estrada até Candeias. A pé. Chegava ali pra entrar ni Candeias, logo na entrada, onde tem o ferro velho ali, ali tinha uma ponte. Ali é que a gente lavava os pés pra calçar o sapato pra pegar o suburbano, que acabou o suburbano, não tem mais. Era o suburbano: esse é o transporte que tinha pra Salvador. Oito horas da noite ele retornava pra você vir de pé, oito horas até em Candeias pra chegar aqui uma hora, quase uma hora da madrugada. Não é eu não, não era eu somente não. Todo mundo, todo mundo que saia, ia a Salvador, era assim. São Francisco do Conde você tinha que fazer o quê? De carro, você não ia. Ia assim com uma bermuda. Aquela xiva que fazia de bambu — uma ponte, é quase uma ponte; antigamente tinha uma ponte, aí botaram o bambu e metia barro em cima dela pra você andar por ali por cima —, daqui até São Francisco do Conde, de você pisar no coisa assim a água espirrava que batia, quase batia no olho. De carro, você não podia ir. Lama, estrada não. Não tinha estrada não. Você quiser ir pra Madre de Deus, ou ia de canoa — quando tinha canoa, tinha canoa que você ia. Muribeca ia andando, ali no Caípe, aquele rio ali, quando nós chegava que a maré tava cheia, tinha que buscar uma canoa pra poder a gente ir lá, pra Madre de Deus. Quando a maré tava baixa, a gente saltava e ia andando. Não tinha estrada não. Em vez de existir estrada pra Madre de Deus, veio melhorar a situação daqui foi em 40... 47, que a Petrobrás veio pra cá. A Petrobrás não, o Conselho Nacional. A Petrobrás veio em 54, foi o Conselho Nacional do Petróleo. Veio primeiramente Lobato, foi o primeiro poço. A descoberta primeira foi em Lobato, segundo Candeias, terceiro Dom João, foi que veio melhorar a situação das estrada. Você mesma vê a dificuldade daquela época.
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Tava no Cabanga, tava no Madruga Nasci e criei ali do outro lado. Aquele pedacinho de terra ali, depois que esse doutor Fred veio, meu pai vendeu aquele pedacinho e comprou uma casa aqui encima. Tinha muito mato. Tudo era mato, não tinha nada. Eles não se encontrava pela questão da distância, por ser mato fechado. Não vinha muito aqui em cima. Eles morava tão perto mas não se conheciam. Eles não deixava. Vinha no Natal, que ia todo mundo pra missa... Dia dois de fevereiro, que vinha todo mundo... Eles não deixavam a gente vir sozinha aqui em cima. Aquela ladeira ali, que chama “ladeira do Ji”, o outeiro ali era mata; eles não confiava a gente vir ali sozinha. Ali é puro mato, essas casas aí do Monte de Baixo era tudo mato. Ali a gente ia fazer lenha. Tudo era mato, tudo que você via, aquele ginásio que você vê, aquelas casa lá pra dentro, tudo aquilo era mata fechada, mata virgem mesmo. “Ah, cadê seu pai?” Eu ouvia muito dizer assim “Cadê seu pai?” “Foi lá no Cabanga”. Eles iam tirar bambu pra poder ter dinheiro, tirar bambu braçal. “Tava no Cabanga, tava no Madruga”. Parecia que eles levava três dia andando. Eu pensava que era três dia andando. Muito mato, aqui antes não tinha, era tudo chão e não tinha luz elétrica, era tudo candeeiro. Ninguém tinha fogão, a gente ia ali, ali naqueles lado que se chama “Cabanga”. Era tudo mato. A gente ia pegar lenha ali e mais adiante. Pegava essa lenha no verão. Todo dia a gente botava lenha na cabeça pra botar no canto. O pai fazia um cordão, botava arame, enchia, pra usar essa lenha no inverno. Vinha molhada, aí cobria de sapé ou de telha mesmo, pra botar aquela lenha ali... Tá achando mole?
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Duas pedra preta desgraçuda Antigamente, aqui em baixo, tudo era mato. Esse Monte de Baixo tudo era mato e o outeiro era altão! Depois a Petrobrás tirou, fez a área da Petrobrás. Tinha muitos tanque brabo aí, depois acabou com tudo. Aí a turma invadiu e fez o Monte de Baixo. Lá de cima do cemitério, tinha duas pedra. Se você não fosse filho daqui, não conhecesse, você não passava na escada. Era duas véia escritozinho. Você tinha que passar pelo meio. Duas comadre. Era a cara da veia mesmo. Era duas pedra dessa altura: uma ali e outra aqui. Duas pedra preta desgraçuda. A turma chamava “as duas comadre que morreu no tempo da escravidão”.
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De tudo quanto é lugar fazer penitência Eu me lembro eu pequeno. Era lá em cima, só ia por lá, pela casa de Osinho. Chamava “o cruzeiro”: Tinha uma imagem do Senhor do Bonfim desse tamanho numa cruz. Vinha gente de tudo quanto é lugar fazer penitência. Foi a Petrobrás. Esse outeiro daqui não era assim esse buracão não. A Petrobrás que arrasou com tudo. Tirando arenoso, desmanchou o cruzeiro.
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Obra da natureza O milagre que eu sei é no porto da Madalena, aqui também no Monte. Tem um poço que recebe toda as águas que descem, mas a imundície aqui não fica. Esse pessoal da escravidão jogava presente pra dona das água nesse poço. É pedra assim, obra da natureza assim, e ele tá assim no meio. Quem vê já vê caranguejo andando, é guaiamum. Aí todo mundo só arriava presente ali dentro daquele poço. Ali o lugar principal é fundo mesmo, mas também ninguém não passa ali não. É muitas coisa antigo, minha filha, muitas coisa antigo que o pessoal tudo botou a perder. Que nem essa cachoeira mesmo, era um grande milagre aquela cachoeira de Zezito. Era uma pedra muito mais alta do que essa casa, mas em baixo a água tá caindo. E não sabe da onde é que essa água vem, uma pedra grandona, a água caindo por debaixo, era direto. Cercaram tudo, tem estaca que ninguém não pode passar nem abaixado, mas a água é gelada de uma forma! Eu acredito que ali é um milagre mesmo essa pedra. A água para direto, pode ter a seca que for, mas chega daqui pra aquela casa não sabe onde a água vem, some. Vai, desce cá em cima forte mesmo. Muitas coisa, minha filha, é muitas coisa. Muita gente que não alcançou nada disso diz que é mentira. Esse buracão dali não era ali assim não. Foi a Petrobrás, dando cada tiro enorme que até abateu tudo. As mulher subia ali, descia com feixe de lenha. Ali em cima era uma mata de birreira. Você sentava em qualquer lugar ali embaixo, era juriti, era tudo quanto é pássaro que tinha ali. Depois a Petrobrás deu tiro, começou a estrondar tudo, até falei “vocês não sabe que não pode mais dar tiro perto de cidade em lugar de barranco não?” Aí que o buracão foi ficando e hoje tá daquele jeito. Usaram esses tiro pra poder explodir os arenoso. Não era assim não. As mulher subia e descia. Era todo quanto vinha de careta que dava em cima da gente, a gente avoava ali pra dentro, caia ali dentro! Não tinha imundície, nem vidro, nem ninguém jogava lixo nem nada não. Mas depois as novas geração chegou arrasando com tudo. Chegou arrasando com tudo as novas geração.
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Eu alcancei a velha Bárbara Aqui tinha barão. Meu tio mais velho foi escravo. Eu alcancei escravo. Eu alcancei a velha Bárbara. A velha Bárbara foi escrava. Ela era aqui do Monte, do Monte de Baixo. O Monte de Baixo era um povoado que não era esse povoado aqui de cima não. O povoado de Monte de Baixo era muito maior do que esse povoado daqui de cima. É por isso que botou o nome “Monte de Baixo”. Tinha minha vó Bernadina, que essa eu alcancei. Agora, meu avô não alcancei não, que era escravo, e meu tio também. Meu tio ele tomava conta do sobrado do Monte. A maioria de nossos parente aqui nasceu no sobrado, na senzala do sobrado. Aqui no Monte tinha barão, Barão Viana. Aquele sobrado que você vê um bueirozinho, ali era a casa do Barão, Barão Viana. Aqui no Monte. Barão Viana, Carlos Viana. O pessoal de minha tia Inêz, todo mundo morou na senzala do sobrado. Aqui São Francisco do Conde é o lugar que teve mais barão. Foi São Francisco do Conde. Barão de Cajaíba foi um miserável, aquele foi perverso. Ainda tem hoje lá que vocês vão ver. Tem assim ó, é assim: de um lado e de outro, quando eles queriam matar o cara, eles metia aqui, soltava o cara, chegava ali, descia no saguão, e em baixo tinha três lanças! O cara aí caia estrepado ali. Aí tinha o quê? A maré, pela beira da maré, aí entrava, tinha três manilha de cem, a água ficava ali batendo batendo e destruía ali em baixo. Pode ir lá que vocês ainda vão ver. Isso vocês devia procurar ver, pegar uma canoa pra ir lá olhar, Cajaíba. Barão de Cajaíba, Barão de São Francisco, Barão do Monte, Barão do Madruga, Barão da Misericórdia, Barão do Vencimento, Barão de Paramirim, Barão do Engenho do Meio, Barão de Alma, Barão de Engenho do Tanque, Barão de São José, Barão de Caçarumbongo, Barão de Novo, Barão de Engenho de Baixo, Barão de Dom João, Barão do Marapé, tudo pertencia a São Francisco do Conde. Tudo pertence a São Francisco do Conde. Era tudo barão, tudo tudo. Tudo era cana, era canavial. Esse pessoal eles trazia nos fiado, pra vir trabalhar; era troca, vinha esses negão — a gente, no caso, meus avôs, minhas avós — tudo veio trabalhar nesses canaviais. Essa Bárbara, ela era bem escura. A cara dela, ela queimava do calor quente do mel da cana, o melaço. A cana aqui não era carro de boi não. O couro do boi, ele Histórias do Monte Recôncavo
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transformava num carro; aí botava, enchia de cana e fazia aquela canga aí de quatro ou cinco negro pra puxar pro engenho. Era assim, graças a Deus que não é mais assim. Mas hoje nós já tamo vendo, agora no final, nós tamo no coisa do princípio. Era usina, tinha uma usina. Eles aí, em algum lugar, eles chama de alambique. Tudo era cana, tudo, essa usina toda era cana, não tinha outra coisa a não ser cana não. Depois que o Doutor Vicente resolveu plantar cacau, mas era na fazenda dele. Aí o Doutor Fred também plantou cana, depois plantou cacau. Aí acabou, a usina Cinco Rio também foi embora, Dom João... aí parou. Ali onde tem um pé de pau pontudo, ali era a casa do meu avô, mais adiante era a casa dessa Bárbara que eu tô falando. O povoado do Monte de Baixo era um povoado maior do que o daqui do Monte. Existia uma guerra do povo de lá debaixo com o povo daqui. Não se davam não, por causa de cor. Até um certo tempo ainda tinha isso: o pessoal daqui dessa rua não pegava água no tororó e eles também não vinha pegar. O pessoal daqui da igreja era metido a importante.
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Os dois caroço não deixou Eu, quando eu conheci, eu me lembro que minha vó chamava “irmandade”. Eu já estudei ali. Quando não tinha professora, a pessoa mais sábia daqui da localidade, as pessoas mais velhas do que eu, digamos assim — eu com uns 16, 17, 18; ela já com 20. Às vezes não tinha idade pra estudar, cada meninãozão até atrasado na carta de tudo, de abc. Se sabia mais, ia ensinando a gente que sabia menos, porque era muito difícil pra professora vir. Ninguém queria vir, ninguém queria vir porque não tinha muito acesso a transporte, não tinha. Hoje ainda você vê a precariedade que é transporte, é difícil. Imagine! Eu tenho 77 anos. A minha professora aqui foi professora Noélia, professora Darcy. Quando a gente dava sorte — digamos assim, eu fiz o quarto ano, aí vem essa professora —, a gente aproveitava o máximo pra ficar com esses professores. Aí quando terminava e ia embora, ficava essas pessoas que sabia mais um pouquinho dando continuidade com a gente, mas aí atrasava muito. Eu também já tinha problema visual, desde pequena que eu tenho dificuldade e aí cheguei a estudar até o “quinto ano” que chamava, quinto ano, ginásio, quinto ano, era quinto ano, quinta série. Ainda cheguei fazer também o supletivo, eu queria avançar um cadinho, mas os dois caroço não deixou. Eu quis ser enfermeira, depois de muito. Aí já com os meus 19, 20 ano, voltei de novo pra Salvador porque tinha parente lá. Fiquei lá e consegui fazer no Senai meu cursinho de atendente de enfermagem. Em São Francisco, depois de muito, o primeiro hospital meu que eu fui trabalhar é no Vicente de Paula: é ali onde é o Correio, ali mesmo que era a cadeia — que a gente foi ver o rapaz preso que a gente nunca tinha visto —, depois que foi hospital. Aí tem a Delegacia, cá em cima, como tem até hoje, e ali passou a ser um hospitalzinho. Eles ampliaram, os político... muito dinheiro na mão! Vicente de Paula, que era doutor Vicente, depois do canavial — que eu falei que aqui tudo era canavial —, ele mandou tirar esses canaviais todo e mudou pra cacau. Ele foi na época o maior cacaueiro daqui de São Francisco, dessa região, Doutor Vicente. Isso tudo aí, esse pasto todo aí, Paramirim, tudo era cacau. Era Dom Vicente de Paula. Depois aí veio a eleição, ele perdeu, o doutor Vicente. Aí veio foi o Doutor... teve outros e outros. Depois veio Doutor Claudemiro, foi que deu a estradinha boa Histórias do Monte Recôncavo
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aí e criou aquele hospital que tem hoje ali. Mas antes dali, ali na residência — sabe onde é a residência, onde tem um barracão? —, ali também foi um hospital. Eu trabalhei ali nesse que eu falei, Vicente de Paula, e na residência dele, e o último vim trabalhar aqui. Depois... as vista, que eu já tinha problema, já sabia, não quis fazer a cirurgia, que o problema é transplante de córnea, cai fora, não quis não, mexer nos meus dois caroço?! Mas também iam pra Salvador, sempre teve ambulância, porque aqui corre dinheiro, corre dinheiro pra alguns. Eu nunca tive, mas tem: aí tem uma vaca com o peitão bom, a vaca mamadeira danada. Eu nunca achei, mas também, bom ou ruim, é o meu trabalho que eu tenho — hoje eu sou aposentada, a gente tem que reconhecer. Tinha muitos também que às vez tinha parente fora, ia, e tinha muitos também que não queria, como tem até hoje, que hoje tem carro que vem pegar, tem carro pra ir levar, tem carro e não querem, e antes a gente se esforçava. Eu mesmo me esforçava, mas as vista não me ajudou nada.
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Foi dinheiro pouco Eu ia de manhã. Essas hora eu nem sonhava em vir pra casa, com a enxada, oxe, eu não sei por que que eu tô viva e tô forte. Eu com 80 ano, fiz 80 ano agora. Eu cansei de chegar em cima da cama, meia noite, uma hora da madrugada, sentar em cima da cama, “Deus dá o frio conforme o cobertor...” Eu sei que ela cresceu, botei na escola, pouco ou muito se formou — não é burra. A outra também, a de Salvador também não é burra, também se formou. Eu sei que ela sabe entrar, sabe sair em qualquer lugar. Eu trabalhei na fazenda do doutor Fred quatro anos. A gente trabalhou, eu mesmo trabalhei com o doutor Fred quatro anos. Aí ele não pagou os tempo. Todo mundo saiu, não quis pagar os tempo. Pagou os tempo, mas foi dinheiro pouco. Aí foi pra Santo Amaro, depois ele viu que ele ia perder na questão. Ele aí arrastou pra Salvador. Os pessoal não tinha dinheiro pra ir, pra passagem. Os pessoal aqui não tinha conhecimento. Ele era fazendeiro, era rico. Aí pagou os tempo dos pessoal, ficou eu. Eu trabalhei quatro anos, foi de carteira assinada não, foi avulso. Eu fazia rodapé, enchia saco de cacau, colhia banana, limpava com a enxada. Essas hora nem sonhava em vir pra casa. Os menino ficavam com as outra, quando vinha da escola, umas estudava de tarde, cuidava de manhã e ficava. Aí eu trabalhei quatro ano, todo mundo botou ele no pau. Eu não botei não. “Você vai perder, você vai perder, que você trabalhou sem carteira assinada.” Aí eu sei que ele pagou todo mundo, ficou. Aí, depois ele chegou, telefonou pro escritório que tem aqui em baixo ainda. Ele chegou, telefonou, aí ele disse: “Você vê Celina?”. Ele disse “não, mas é fácil ver ela”. “Olhe, diga a ela pra ela se aprontar pra dez horas. Eu vou sair com ela pra Santo Amaro”. Aí chegou pra mim “O doutor Fred disse pra você se arrumar pra esperar ele no escritório dez horas, vai chegar dez horas”. Me aprontei, nove horas desci. Ele veio de carro, todo brancão, as roupa branca. Ele disse “Bom dia, Celina”. Eu disse “Bom dia, doutor. Doutor Fred, o senhor me chamou pra ir pra fazer o quê?” Ele disse “Eu vou fazer uma viagem com você lá ni Santo Amaro, vou levar você pro escritório”. O meu tava mais riscado, que eu trabalhei quatro ano numa fazenda sem carteira assinada. Histórias do Monte Recôncavo
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Ele chegou lá, conversou com os homem lá do escritório, aí fez a conta. Chegou, me chamou, disse: “Celina, vim pagar seus tempo.” Aí chegou, pagou meus tempo — nem me lembro quanto foi. Chegou, pagou meus tempo, botou no carro, ainda me deu o dinheiro da passagem pra eu não bulir naquele, pra poder o ladrão não me atacar. Mas ninguém sabia não: “Aqui é o dinheiro da passagem, você vai saltar, vou botar você em Santa Elisa, vou botar você em Santa Elisa. Você toma o ônibus e você vai pra São Francisco. De São Francisco, você vai pra casa” e cheguei e fiz isso. Ele teve consciência, a consciência doeu. Doeu. Me levou, ele mesmo que me levou, mas primeiro ele disse “Seu caso eu não vou resolver, porque você não trabalhou de carteira assinada”. “Tá certo”. Mas depois a consciência dele doeu. Não sei quem foi que falou com ele.
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Capim manteiga que o povo fala Andava quatro horas da manhã pra carregar água. Quatro horas da madrugada. Tinha vez da gente dormir pra esperar a água juntar. Tinha que esperar a fonte juntar água. Pegava um capim lá, fazia uma cruz e botava dentro da fonte. Dizia que a cruz ia ajudar pra dar força na dor. A finada Esperança, ela morreu. O nervo dela repuxou, porque ela botava uma lata na cabeça e um balde de cinco litro na mão. Didi subia, a mais cedo que ia pra fonte era Didi. Quando a gente chegava lá, Didi já tava com duas, três lata de gás, balde, cheio de água. Aí botava um pano encima. Ninguém bulia, ia carregando. A mais que enchia de água era Didi. Ela pegava os balde de água e lavava os pé. Depois que deu problema no nervo dela. Foi isso. O pé dela encolheu todo. Foi isso. Era frieza. Ela disse “é, eu ia pra fonte”. Foi a água que ela jogava no nervo, de noite, fora de hora. Pra fazer a cruz, era capim. “Capim manteiga” que o povo fala. Histórias do Monte Recôncavo
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A gente arriava de trabalhar quando paria Aquele tempo era bom, era tempo de vivença, mas pra trabalho e comestível... De comestível tudo que tinha era marisco desgraçado. Oxe! Quando não carregava na cabeça, eu tirava, deixava lá na maré mesmo, dentro da mata, aí a gente tirava era um saco, dois saco, desse saco grande de ostra, aí deixava lá. No outro dia, a gente ia, pegava bem lenha, fazia aquele fogo, levava a panela, cozinhava, catava pra trazer, pra vender. Tirava lá, vendia pra, com aquele dinheiro, a gente comprar um frango, comprar uma carcaça. Galinha não era frango não, frango que a gente come com tudo hoje graças a Deus. Era aquela carcaça: tira só a parte, deixa só os osso, as costela. Era daquela época. Deixava as asa, era a parte dos ossos, das costas, a gente chamava de “carcaça”, com pirão de água morna. Pra comida a gente não sofria não, sofria mais é por causa de roupa. Remédio não tinha nada. Não tinha nada, não tinha boas colcha, não tinha boas cama, não tinha fogão. Não era pra todo mundo ter fogão, não era todo mundo que tinha fogão a gás não. Depois que foi melhorando. Alguém disse: “Como é que a pessoa cria onze filho sem ter um fogão a gás?! Carregando lenha na cabeça?!” Eu disse “E a lonjura? E a ladeira?” Quando eu acabava de subir a ladeira, eu podia tar com barriga na boca! Grávida, a gente arriava de trabalhar quando paria.
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O búzio que tocava O meu marido, ele alugava canoa. Ele só tinha a rede. Só tinha rede. Às vezes eu ia, mas as vezes ele não ia não. Ná, ele vinha de canoa, saltava na Caiera, trazia o peixe. Ná botava no caixote, vinha, nós chegava em casa era três horas da madrugada, quatro horas da madrugada com esse peixe. Despejava no chão pra vender. Tocava um búzio. Até hoje ainda tenho o búzio que tocava. Ele tá aí ainda.
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Muita lenha na cabeça Só quem tinha uma vida melhorzinha mesmo era o pessoal que trabalhava na Petrobrás, tudo que era da Petrobrás. Esses pessoal trabalhava tudo na Petrobrás, era petroleiro, que era aqui embaixo, quando abriu logo aqui esse poço. Chegava o fim do mês, vinha aquelas compra de tudo. Pra mim mesmo, foi botar muita lenha na cabeça e ir pra maré. Eu não tinha gás, não tinha fogão, não tinha geladeira. Pra conservar as carne, nossas mãe abria ela toda, relava sal, pimenta do reino, estendia. O pai botava no telhado, botava os peixe tudo em cima do telhado: de manhã deixava tudo tomando esse sol; de tarde pegava, era pra ele secar. Pra fritar, a gente pegava aquela banha que a gente derreteu, que era pro cabelo, pra fritar aquele peixe pra gente comer. Era tudo farinha, com aquela farofa de café. E os azeite que fazia em casa? O “bambá”. A vida mais difícil que a gente achou mesmo foi o negócio de lenha. A gente ia pegar a lenha lá na beira do mar, lá na Caiera. Já levava as corda debaixo do braço, entrava dentro da mata, fazia os feixe de lenha, deixava as menina tudo do lado de fora. “Bote um pano aí! Sente aí vocês aí, não sai daí por causa de cobra, por causa de bicho!” Eles faziam aquele monte de lenha, chegava, pegava o facão, quebrava tudo, fazia aqueles feixe de lenha desse tamanho pra elas, botava tudo na cabeça. Meu marido mesmo quando morreu não deixou... Eu não tinha geladeira, não tinha fogão. Só me deixou com onze filhos: sete mulher e quatro homem. Foi bom o fogão que ele botou: uma estaca assim, uma assim, uma assim, envarou toda, tapou, ajeitou. Aí eu botava a panela encima.
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Muita gente aqui sofreu no Monte As menina já cansou de levar peixe assado num saco. Chegava aquela da escola se esconder pra poder comer, pra ninguém ver que não tinha merenda. Muita gente aqui sofreu no Monte, mas igual a mim não sofreu: meu marido morrer e deixar onze filho! Não deixou herança nenhuma. Onze filho não é brincadeira. Eu cansava de chorar, sentava em cima da cama, chorava. Ainda criei mais dois. Onze meu, doze, treze: treze menino aí dentro de casa, é boca dentro de casa. A metade dormia na cama, a metade tinha esteira: Eu botava duas esteira ni uma no chão, forrava, tinha travesseiro. E todo mundo, todo mundo passava bem: eu sei que todo mundo aprendeu, ninguém deu pra ruim: Nenhum deu pra ruim,
nenhum, graças a Deus.
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Da própria raspa da mandioca Vinha muita barraca, porque o pessoal aproveitava — quem não tinha nada pra fazer, pra vender, aí eles aproveitava. Quem tinha roça, fazia bolachinha de goma, fazia aqueles bolinho de carimã que chama “bolinho de estudante”, que faz da própria farinha de goma. Da própria farinha de tapioca faz aquele bolinho. Aí fazia a “buluinha” que chama, que era da própria raspa da mandioca, que raspava, botava pra secar, depois moía tudo numa pedra. Ninguém tinha liquidificador, não tinha nada. Aquelas pedra todo mundo tinha, aquelas pedra grande que pisava, larga assim, que ele parecia pedra de mármore, que era pra pisar essas coisas, pra fazer os doce. Aí ia, pisava, peneirava, fazia doce compridinho que chamava “buluinha”.
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E tinha bolachinha, que era da goma — da mandioca que fazia, ficava aquela goma. Secava pra fazer bolachinha que só molhava com leite de coco. Já a buluinha, eles molhava com a calda. Fazia aquela calda com açúcar, com cravo e canela, e massava a buluinha. A bolachinha era com o leite do coco puro; não botava água não. Aproveitava quando tinha uma festa pra todo mundo ir com seu tabuleirozinho vender, fazer um dinheirinho.
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Era botando no fumeiro Ninguém tinha. Quando a Petrobrás entrou aqui, alguém que foi trabalhar que começou-se a comprar fogão e ter fogão. Aí todo mundo, apareceu esse negócio de comprar a prestação e todo mundo foi tendo seus fogão. A parede da minha casa, a cozinha era toda preta, preta, preta. Era todo preto, eu não sabia, mas era a fumaça. Chamava “pucumã”. Pucumã é a teia de aranha do tempo lá com a fumaça. Aí você pegava, parecia aquela espuminha de algodão. Aí ficava, como a gente não limpava, porque não tinha o vassourão, ficava. Às vezes arrancava as vassoura do mato; aí fazia, botava no cabo. Antigamente, pra ter essas vassoura pra limpar o telhado, era vassoura de capim. Pegava esses matinho, vassourinha, e amarrava num cabo maior que os pais tirava. Era aqueles pedaço pra poder limpar o telhado, era como limpava o tal do “pucumã”. Geladeira, quem tinha geladeira? Aquelas carne ficavam pendurado naquele fogão pra não ficar ruim. Chamava “carne de fumeiro”. Era carne de fumeiro. E era mais saudável, sabia? E os peixinho tudo esfiado, tudo no telhado, peixe, vinha de maré, peixe que eles mesmo iam pescar. O pai botava esse peixe nesse telhado. O peixe ficava o dia todo numa bacia, o dia todo ele tomando esse sol. De noite, eles recolhia. De novo, no outro dia de manhã, botava, até eles ficar durinho, sequinho. Pegava muito peixe que eles mesmo pescavam. Lá em casa mesmo pegava, nunca ouvi dizer que vendesse um carangueijo, que vendesse um peixe. Era pra comer, era botando no fumeiro. Botava no sol, depois botava no fumeiro pra ir comendo. Ninguém passava fome, plantava roça, banana, nós não sentia falta de banana, inhame era muito, batata, abóbora, essas coisa, e era uma vida mais saudável do que hoje. Banana da terra, eu mesmo prefiro essas coisas. Prefiro raízes.
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Eu não quero conta com beiju Aipim tenho pavor. Eu tenho pavor de aipim, eu tenho pavor de beiju, banana. Eu não quero conta com aquele fruta pão. Eu não gosto de beiju, batata doce eu não quero. Eu não quero conta com fruta pão. Eu não quero conta com beiju. Beiju de coco ainda gosto, beiju de folha. Porque beiju de folha com coco ele é gostoso. Beiju de folha: Bota bem coco, goma, pega a massa, bota bem coco, bem coco, açúcar, bota na folha, dobra a folha bota pra assar. É gostoso sim!
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Todo mundo tinha Era muito mais saudável. Não tinha conserva, não tinha esse negócio de botar agrotóxico ni coisa pra crescer. Era tudo natural. Roça de tomate era natural, dá por ele mesmo. Ninguém ia botar nada pra crescer. As galinha era criada naturalmente, não botava nada pra ela crescer. E tudo tinha na casa de todo mundo: na casa de todo mundo tinha aipim, na casa de todo mundo tinha milho, todo mundo criava galinha. Na época de São João, ela tinha um forno, bendito forno de lenha! Forno pra assar o bolo de carimã, bolo de aipim. É bom mesmo no fogo a lenha. O bolo é bom assado no forno a lenha. Tinha fila pra poder assar o bolo: “Aí, Neném, a partir da sete horas”, “venha tal hora porque não-sei-quem tá saindo o dela agora”, fazia todos. Por isso que na casa de todo mundo tinha bolo, porque todo mundo tinha mandioca. Todo mundo tinha pé de coco. Quem não tinha, tinha mais coco, daí saia dividindo os coco. Lembro dos milho. Dona Zélia tinha muito coco. Zélia dava muito coco pra todo mundo pra poder botar no bolo. Enjoava porque todo mundo tinha: você ia na casa, era milho. Falei “Meu Deus do céu, só tem cuscuz, mingau, pamonha de milho”. Tipo de banana: banana maçã, banana pão, banana d’água, banana não-sei-quê, banana da terra, todos os tipo de banana, cuscuz, beiju. Por isso enjoou, porque todo mundo tinha.
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É muita história que a gente tinha A gente foi muito acostumado com essa questão do medo. Tudo pega, tudo não pode: “Não pode manga com leite. Não pode não, faz mal. Manga com leite faz mal.” “Não pode, a carne de porco você não pode comer quando você é criança; é muito remoso, só vou dar aos mais velhos.” “Não pode comer fígado e correr; você comeu fígado e fígado é muito fino; se você comer fígado e correr, você morre.” “Se chupar carambola, tomar o suco e soluçar, você morre”. Ficava com medo. Quando eu cresci, eu tinha perto de dezesseis, falei: “hoje vou chupar essa carambola e eu tô doida pra ficar com soluço pra ver se eu vou morrer.” Chupei umas três carambola, nada de soluço. Quando eu fiquei com soluço, não morri. Falei “tá vendo que não morria?” Era pra não chupar carambola... “você acaba tudo hoje, Era isso a história.
amanhã não tem, vou dar o quê a você?”
“Ah, criatura, goiaba com leite, nem pensar! Não pode! Não pode”, vai desperdiçar o leite do café do dia seguinte. É muita história que a gente tinha. Histórias do Monte Recôncavo
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Minha filha não sabe o que é um cacau Eu tenho Mayra, Mayra tem sete anos. Hoje eu tava falando com Mayra, ela falou assim: “minha mãe, o chocolate faz como?” “Chocolate faz do cacau, sai do cacau.” “Cacau? Que é cacau?” Aí eu tô na internet procurando que era o cacau... “mas sim... mas eu não tô conseguindo entender o cacau”. Eu falei “Mayra, embora ali agora que eu vou te mostrar o que é um cacau!” Antigamente, isso aqui tudo era fazenda de cacau. Tinha acesso a esses cacau todo, chupava o cacau, e hoje minha filha não sabe o que é um cacau. Era tudo fazenda de cacau e a gente tinha acesso ao cacau. Hoje você não tem. A gente ia pro mato, batia aqueles cacau todo e trazia na vasilha. Sentava pra botar açúcar pra chupar em casa. Depois devolvia, tinha que devolver os caroço, “tem que levar o caroço pra doutor Fred”. Tinha que secar. Botava pra secar e eles vendia pra fazer chocolate. Do caroço faz o chocolate. Minha filha não sabe o que é cacau hoje e aqui era roças e mais roças de cacau.
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Caju de compota Ela tinha uma delícia de um pé de goiaba nesse fundo de quintal dela! O pé de goiaba dela era a coisa mais linda desse mundo. Tanta goiaba, a gente roubava tanta goiaba! Roubava era doce. A gente confessou isso no outro dia. Ela tinha uma máquina de costurar e em baixo ficava sempre o doce. Quando, com meu outro amigo, fomos brincar de se esconder, quando ele meteu o pé na maquina, a bandeja de doce desceu. Rapaz, que sorte! Todo mundo tirou seu pedaço e brum! se escondeu de novo. Tia Neném como que não ia descobrir que a gente cortou esse doce? Tem três meses mais ou menos: “Tia Neném, a gente precisa confessar um negócio à senhora: a gente roubava a senhora quando era pequeno”. Ela já sabia. O pé de goiaba era coisa mais linda nesse quintal. Sabe o que é doce de goiaba de compota? Você descasca a goiaba, só os pedaço da goiaba; você bota com a calda dela com açúcar e cozinha só esses pedacinho e bota tudo dentro de um potinho. Aí leva uns três meses lá tampada. Quando você tira, tá lá, molenguinho; você vai comendo. Caju de compota... tanto vi caju na minha vida! Era muita castanha, era muito caju lá em casa: caju de compota, doce de caju, caju de não-sei-o-quê; suco de caju de manhã, de tarde, de noite. É igual manga: vai chegar aqui dezembro, vai ter de manhã, de tarde e de noite, só vê manga. É suco de manga de manhã, de tarde e de noite. Era caju: caju vermelho — esses caju desse tamanho assim —, caju amarelo. Tinha pé de caju ali embaixo, tanto que a festa era buscar caju. Você nunca viu, em lugar nenhum, doce de compota não? Só tem aqui no quilombo. Quando a gente gosta daquela goiaba bonita e madura, a gente descasca ele inteiro. Esse daí a gente peneira, pra fazer esse doce, que chama de “compota”, a gente faz ele inteiro, descasca ele, parte no meio, tira os caroços e bota pra cozinhar. “Compota de combuca” porque fica assim redondinha, parece uma cumbuquinha. Cada lugar tinha um pé de caju. Pé de caju e pé de goiaba. Aqui pra baixo era só goiaba. Tudo aí, naquele tudo ali, tudo ali era goiaba. Tudo era pé de goiaba. Histórias do Monte Recôncavo
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Como se fosse febre Aí tinha os cajus. Todo mundo ia buscar o caju e a briga era pela castanha. Era a sensação. Castanha era como se fosse febre: eu tinha o meu tanto, você tinha o seu tanto, a gente ia brincar pra eu ganhar suas castanhas. Quanto mais castanha a gente ganhava, melhor. Depois ia torrar tudo, e às vezes juntava até pra semana santa, que aqui tinha a tradição de buscar as castanhas pra fazer a comida da semana santa, da sexta-feira santa. Muitos não tinha liquidificador, era no pilão. Todo mundo fazia vatapá machucando no pilão. Precisava ver o pilão, tudo era machucado no pilão: a castanha, o amendoim, o camarão seco. Eles era pilado com farinha e cebola num pilão — cebola não, se você botar cebola no pilão... a cebola era depois no ralo. Anteriormente, bem antigamente, os óleo vinha de litro. O óleo era naquela lata. Aquela latinha que a gente pegava, eles conseguiam abrir a latinha no meio; aí furava a latinha ao contrário, tudo com prego. Ficava igual um ralo. O ralo era feito da latinha do óleo que era pra poder ralar o coco, ralar cebola pra essa semana santa. Quem não tinha pilão, ia emprestando o pilão. Quinta-feira fazia tudo. Ia guardando pra poder emprestar o pilão aos outros. Era uma sensação: nós, todo mundo tinha. Engraçado, a comida era a mesma e todo mundo queria comer na casa do outro a mesma comida. “Vou comer na casa de tia”. Um pouquinho na sua casa todo mundo ia comer. A castanha servia pra isso. A folia do caju.
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Um pé de algodão na porta Lampião tinha quem tinha dinheiro. Toda a vida teve aqueles que pôde menos. Há muitos que tinha muito frasco, frasco de remédio, tinha os frasquinho. Então elas lavava, fazia, tinha muito algodão também. Cada pessoa por aqui quase tinha um pé de algodão na porta. Minha vó tinha de algodão na porta e aí tirava, desfiava o algodão e fazia aquele paviozinho e aí era os candeeiro. Já tinha outros — eu mesmo, quando já fui crescendo, que ainda conheci aqui sem luz — já podia comprar um daqueles de manga. Lampião nunca comprei não. Candeeiro de manga é um que tem uma alcinha e tem aquele vidro. Era mais sofisticado: o suporte dele de sair o fogo é de vidro. Chamava “manga”, na época, “manga de vidro”. Hoje tem aqueles — não sei se ainda tem — que já era de gás, era o bujão do gás mesmo, do lampião. Todo mundo da Petrobrás, daquela época, tinha. Era gás, enchia de gas, era a garrafinha, e botava o pavio. Era bom, clareava mesmo a sala. O meu era também bonito. Ele era bojudo, de vidro, trabalhado, com a manga, feito uma cúpula, um negócio assim que encaixava nele, um globozinho. Agora, quando sujava, às vezes o gás ruim fumaçava... Oh, mas já foi uma vida também sofrida quando não tinha luz! Hoje eu não sei fazer nada, não consegue ficar uma hora sem energia. E antes a gente fazia tudo.
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A luz daqui era lampião A luz daqui era lampião. Era aqueles lampião. Era um aqui, outro lá adiante. Quando era seis horas da noite, saia um homem com a escada nas costas botando naqueles postes gás pra clarear.
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Homem de natureza ruim A gente fazia tudo, passava roupa no ferro a vapor. O ferro a vapor, a gente chamava “a vapor”: era aquele ferro que a gente botava o carvão dentro pra passar roupa. Esse ferro era barato. Eu também, minha vó também teve. Botava as brasa. Minha vó também tinha; meu tio, que era da Petrobrás. Alguns emprestavam: precisava passar roupa, aí ia pegar na casa de fulano emprestado, mas tinha que devolver no mesmo dia. Um sofrimento também pras mulher: os homem fogoso que saía todo montado de cavalo com aquelas roupa de linho e queria pras mulher passar aquelas roupa nesses ferro. Não podia assoprar porque, se caísse, sujava. Era um terno branco. E eles iam todo montado. Você sabe que tem homem da natureza ruim, aí picava no pau as bichinha, batia. A brasa não podia ficar muito grande, pra não queimar a roupa. Tinha que ter o cuidado pra não queimar, ficar amarela. Elas usavam a parafina pra poder dar aquele brilho no terno. Um pedaço mesmo, um pedacinho, como pode ser a parafina... o ferro não tá quente? Aí encostava, passava no fundo, só no fundo, pra limpar o ferro. Elas já tinha um pano ali que elas deixavam, passavam pra não sujar de meu ioiô, que se cair, sujou, meu ioiô... era porrada! Hoje já tem aquele que já vem com a água, ps! ps! maravilhoso, sofisticado, já vem com vaporzinho, já vem com a luzinha dizendo que tá quente, que não tá, pra não queimar roupa pra ioiô não bater hoje. Se não, ioiô bate.
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Ninguém viu a diferença A professora disse: “Ói, amanhã vai ter reunião da farda: de hoje em diante, ninguém vem pra escola sem farda”. Eu disse “Êta Jesus!”. Nesse dia, eu não dormi. Nesse dia, eu não dormi de noite. A professora disse: “Ói, amanhã vai ter reunião da farda, viu?! Não quero ninguém aqui sem farda.” Quem pôde comprar, comprou suas farda, tipo linhozinho azul. Quem não pôde disse “peraí”. Cheguei na padaria. Cheguei na padaria, comprei dois saco. Comprei dois saco, abri. Cheguei, abri, cortei, fiz duas saia, duas saia pras menina. Eu fiz duas saia, fiz a prega, cortei, comprei um tintol azul. Comprei um tintol, derreti o tintol na água, botei pra ferver, botei a saia. Eu tirei assim azul bonito. Aqui as menina comprou na loja os pano. E ó o que eu fiz: oxente, tava mais decente ainda, porque era um azul bonito! Tintol azul ficava dessa cor assim. Oxente, eu fiz saia, fechei. Fiz as prega bem bem funda mesmo. Fiz as prega, tinturei. Oxente, as menina ficou tudo “Comprou aonde?! Comprou essa farda aonde?!” Eu não tinha condições de comprar farda. Blusa não, blusa achava. “Eu vou fazer. Eu já vi minha mãe fazendo: vou comprar um saco, vou costurar, vou fechar, fazer uma saia, vou comprar tintol”, tinturei. Oxente, sete de setembro as menina ficou no meio também. Ninguém viu a diferença.
A gente já nasceu quilombola e não sabia
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E os cabelo todo era grande, bonito! As menina de Salvador, as conhecida de Candeias, de Maracangalha. Já veio até gente de Pouco Ponto, Nova America. Vinha todo mundo pra essa festa do dia dois de fevereiro, todo mundo. Vinha gente, não era brincadeira. Aí tinha a missa, a procissão e o baile. Oxente, a rua quase não dá na procissão. As roupa, quem podia ir com um paninho melhor, ia, quem não podia... A da missa era simples, mas a da festa, organizava o cabelo, pegava o cordão, fazia aqueles cocó, marrava, depois desmanchava o cabelo, duro, botava água, cacheava. Botava bem óleo e água, aí pegava o cabelo e enrolava, fazia aqueles cocozinho. Aí marrava o cabelo com torso, marrava o pano. Na hora da missa ou da procissão, tirava aquele cordão. O cabelo ficava tudo cacheadinho, mas depois ele vai desenrolando. Xoxô, do óleo do dendê era feito. Xoxô é o óleo do dendê: Tirava, cozinhava esse dendê, fazia o azeite. O dendê aproveitava, colocava no sol pra secar. Nesse secar, partia — sabe aquele dendezinho preto? —, aí colocava no fogo, ni uma lata, ni um vaso. Fazia aquele óleo, saia aquele óleo preto pra passar pras garrafinha pra gente usar no cabelo. Na época, a gente não tinha condições financeiramente de comprar um creme, era só esse dendê. Elas matava o boi nas fazenda, a mãe pegava o tutano, rapaz! Colocava na água pra sair aquele sangue, o tutano — não tem aquela gordura do osso do boi? Tirava aquelas massazinha, aquela gordura, colocava dentro da água pra ficar uns dois, três dia pra sair o sangue. Depois daquilo ali jogava no fogo, fritava pra sair aquela banha pra botar no nosso cabelo. A gente usava isso no cabelo, cheirava... Esses óleo que a gente usava no cabelo usava pra pentear nosso cabelo, pra fazer as transinha gordinha. Hoje tem o de coco, tem creme, não sei quê, não sei quê... era só o tutano e o óleo do xoxô. E os cabelo todo era grande, bonito! Saudades! Botava aqueles cocozinho, com aquele torso. Sabonete com óleo, o óleo pra passar o sabonete, nossa pele ia lustrosa! Pegava a folha, machucava pra colocar na água e fazer aquele perfume... patchuli! Patchuli, o amaciante da gente era essas folha. Eles pegava um molho de folha assim, aí machucava, machucava, botava na água. Ficava aquela água verde: enxague a roupa ali dentro pra ficar cheirosa! Histórias do Monte Recôncavo
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Tem as boneca bruxa Os brinquedo a gente fazia de barro, mas não sabia fazer direito não. Fazia na mão, argila, que tinha muito, aí mesmo nesses caminho tudo. A gente fazia um buraco assim, aí depois fazia o tipinho da... outro pedacinho, pregava dizendo que era a asa da panela, fazia a xicrinha, essas coisa assim. O bombu quarana você conhece? Quarana é o “bombu” que a gente chamava. A fruta dela, naquela época, era... a tinta dela era bem azulzinha e a gente tirava, esmagava, pra pintar dizendo que tava pintando as panela. E tinha também umas folha que chamava... — eu me esqueci —, uns espinho — não sei se você chegou a conhecer — que ele dava muito aqui. A gente tirava aqueles espinho pra brincar, dizia que a gente brincava de renda, que gostava de brincar de costurar, mas não era costurar, era furar a folha toda dizendo que tava fazendo renda. Eu gostava de brincar de fazer casamento — de igreja, desde pequena, minha vó — e gostava de brincar também de família. Gostava de ser a mãe. Boneca a gente fazia mesmo. Às vezes eu tinha bruxinha de pano, que minha vó me dava, chamava bruxinha de pano, bonequeinha de pano, tem as boneca bruxa. Aí pegava um cordão, marrava pelo meio, marrava, costurava — menino de onze anos, dez anos, não tem muito a coisa. Mas quando fui crescendo mais, aí ja ia saindo mais pra outros lugares — Maracangalha mesmo, Candeias —, aí ela comprava, mesmo que fosse de pano, mas já desenhadazinha a boquinha.
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Pra fazer aquela poesia É tanta brincadeira que até já me esqueci. A gente esqueceu. Hoje em dia não tem esse negócio de brincadeira. Eu até me esqueci,
cantiga de roda. Me esqueci mesmo. A gente brincava pra fazer aquela poesia. Hoje eu tenho saudade do meu tempo. Eu vou fazer 68 anos agora em janeiro. A gente podia viver. Tinha uns tipo de brincadeira que hoje em dia não tem mais. A gente podia ficar de short, sem camisa, a gente podia ficar um com outro, brincar sentado em algum lugar, e não tinha aquela maldade. Eu tive infância: brinquei de esconder de pegar, de baleou, de pula pula, de laço, de tudo. Eu já subia na árvore, já coisa, tudo já fiz nessa vida. Hoje em dia, não tem mais.
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Cada rua tinha uma brincadeira Hoje feriu muito a tradição: hoje só tem política. Perdeu muita coisa. A gente brincava todo dia de brincadeira de roda. Todo mundo brincava de roda. Cada rua tinha uma brincadeira. Tinha uma época, no mês de agosto, tinha brincadeira de roda, todo mundo tinha uma roda, uma roda de bicicleta. Pra fazer bambolê, não tinha dinheiro pra comprar aquela roda plástica. O pessoal arranjava era arame. Quantas vezes ia pro mato, pegava aquele cipó, fazia aquela roda pra poder ficar de bambolê? Era de cipó. A gente fazia bambolê de cipó, desse cipó que faz esses balaio, geralmente aqui tem esses pé de cipó. O elástico era tira de tapete de retalho. Como vende água sanitária naqueles bujãozinho plástico, aqueles bujão plástico servia pra fazer carro. As tampinha era a roda do carro, as tampinha de guaraná. O vaso de água sanitária, o bujãozinho, pega outro vaso, corta um pedacinho, coloca o pedacinho aqui por cima com o arame. Quando ele gira, aquela catraca fica fazendo zuada; aí puxava, botava um cordão aqui e outro aqui e puxava com carro de mão ou carrinho de areia. Aquela lata de sardinha, todo mundo brincava com aquilo. Tanto o pessoal comprava ou eles achava. Furava de um lado e de outro, botava aquele arame ou aquela roda de sandália havaiana, cortava como uma roda, enchia de areia, saia na rua brincando. Quando achava mais de três latinha de sardinha, emendava uma na outra, aí dizia que era caminhão a latinha de sardinha. Brincava com roda, pegava um cabo de vassoura; dentro vinha o pescoço da água sanitária, botava e guiava a roda com esse pedacinho de bujão pra poder equilibrar a roda. Quem conseguia chegar com a roda até lá embaixo na rua, quem conseguia chegar com a roda em pé sem virar... era a brincadeira deliciosa que a gente tinha!
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No cavalinho ou no jegue? Naquele tempo era tão gostoso! A gente brincava de picula: a “picula” quer dizer que era aquele grupo de amigos com amiga, tudo adolescente mesmo, de dez, doze, quinze ano e se esconder, pra que pegasse uns aos outros, a pessoa ia se esconder. O nome era “picula”. E outra brincadeirinha também que a gente tem era a gente pegar a corda, amarrar na grade de pau, ficar se balançando, a coisa de “gamgorra”. Era essas coisa. Aí ficava brincando de roda, a gente dizia assim: “Cataçó, cataçó”, aí o outro dizia “licuri tá no sol; Dona Maria mandou dizer se cavalinho quer vir”, aí pegava nas costas. Era tanta brincadeira que a gente tinha! A gente fazia assim “três três passará”: tinha um bocado de gente, aquela filinha de amiguinho cantava “três três passará, derradeiro ficará”. Vinha um, outro era o cavalinho e eu era — vamo supor — o jegue. Aí procurava saber “você quer no cavalinho ou no jegue?” Se dissesse que era no jegue, eu levava aquela pessoa nas costa, e se dissese que é no cavalinho já levava aquela pessoa pra lá, de um a um até terminar. Não tinha essa maldade de um brincar com o outro. Não tinha não. Teve uma vez mesmo que tinha faltado energia; aí Rosa, já mocinha “quer ver sair nua aqui?” A gente “bora, bora, vai Rosa!” Rosa tirou a roupa já mocinha, saiu nua nua onde tem a igreja. Ninguém viu, só a gente que sabia.
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A rosa vermelha Pra brincar de roda — oh menina! — esse terreiro ficava pequeno pra gente brincar de roda. Fazia uma roda ali no bar de Regi. Tomava aquele largo todo. Era menino, os menino batendo no pandeiro no tamborim no negócio e a gente cantando “a rosa vermelha”. Era bonito demais: “A rosa vermelha é meu bem querer. A rosa vermelha e branca hei de amar até morrer. A rosa vermelha e branca hei de amar até morrer. Minha mãe não quer que eu coma escaldado de aipim. Minha mãe não quer que eu namore com esses muleque daqui” E ia muito, montão de roda! Uma outra também: “O vapor de Cachoeira não navega mais no mar. Ribo o pano, toca o buzu, nós queremos vadiar. Oh iá iá nos queremos vadiar!” Menino! Já pensou? Até dez, onze hora e as vó e as mãe gritando. Essas música futucando assim eu lembro.
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Bumbum no prego O pessoal trazia muito essa tradição de brincadeiras e todo mundo tinha, todo mundo brincava: era o tempo só de brincar de roda, era o tempo só de brincar de escorregar... Porque aqui tem muita ladeira, então geralmente a gente conservava a água num desses tonéis. Aí como gira aquela tampa de cima ali, aquela tampa dava a gente pra brincar. Então a gente usava a tampa pra brincar de escorregar. “Vamo brincar de puxar com a corda aquela ladeira ali”. Tem aqui, tem a do outeiro, lá tem aqui a da Brasília. Você poderia ver que depois de umas três horas da tarde, quatro, quando o sol tava baixinho, tinha uma cacetada de menino, tudo nesses negócio escorregando. Tinha alguns que furavam, porque alguns apregavam pra poder ficar mais pesado. Quantos já furaram a bunda no prego?! “Ah minha bunda tá furada!”. Aí não levava pro médico não. Toda vez que a gente furava o bumbum no prego, pegava gordura da carne de sertão, tirava a gordura da carne de sertão, botava no fogo, deixava pingar. Deixava pingar ali mesmo, diz que era pra queimar — que loucura, não era? Queimava assim, o pingo quente, aí pingava ou no nosso dedo ou na nossa bunda. Aí pegava o prego, botava ali numa cebola e botava em algum lugar pra poder dizer, pra poder o prego não abotoar e não morrer. Aí botava na cebola o prego que furou a bunda, botava em algum lugar. E a gordura da carne do sertão, meu filho... ardia! O prego na bunda, a bunda inflamada do prego, esse cabo quente pra pingar na sua bunda. Dizia que era a gordura da carne de sertão que tirava a ferrugem do prego pra não dar tétano. Hoje é injeção: uma vacina resolve.
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Era animado, era bonito demais
Era primeiro do ano O primeiro do ano saía um bloco mesmo na rua, tudo cantando: “Vamo, vamo apreciar, enterrar o ano velho que o novo quer chegar! Oh boa noite, meu senhor, a borboleta vem dançar Sempre cada de ano eu vou a festa de Iemanjá, viemos dar.” Era inté de manhã cedo. Corria a rua toda, todo mundo com galho de folha, qualquer folha. Era muito muito decente mesmo, era muito bonito, aqui fazia gosto. Jogava lá dentro dum buraco enterrando o ano velho. Era salva de palmas e todo mundo pedia felicidade. “Leve tudo quanto é coisa!” aí passava a folha pro ano levar tudo de ruim. E o outro vem com o pé de banana na frente. Dizia que era o ano, para mandar o ano embora!
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Samba meu boi! Tinha o bomba boi. Bomba boi era bonito mesmo. Acho que era no dia primeiro de janeiro. Janeiro, perto do carnaval. Era janeiro o bomba boi. Fazia aquela armação de madeira, arranjava aquela caveira mesmo do boi mesmo. O chifre do boi eles botava; o olho, botava aquele papel de alumínio o olho. E pegava aquele chitão mesmo assim, aquele chitão bem colorido, bem estampado. Aí cobria como se fosse um boi. Aí o homem entrava lá dentro e o outro ia com a vara guiando o boi, e o boi atrás. Quem tava embaixo do boi não via não. Via através de bater: batia pro lado de cá, ele ia pro lado de cá, batia aqui.... “bora meu boi!” e o boi saia dançando. Enfiava o pé em cima de um, em cima de outro, corria atrás do pessoal... um negócio gostoso! Acho que tem lugar pra isso, tem lugar pra essas coisa ainda. A gente brincava com boi, a coisa mais normal do mundo. Era um boi de armadura de madeira, só que a cabeça era a carcaça do boi mesmo. Aí eles cuidava, envernizava. Aí esse boi batia então: com essa vara, batia pro lado de cá, batia pro lado de cá, batia. No fundo, era pra virar, “vira bomba boi! vira meu boi!”. Ele rodava, “samba meu boi!” Quem tava ali debaixo era uma pessoa, aí sambava, rodava. Botava o chifre em cima de um, outro corria, e um com a vara, dominando o boi! O rapaz que começou o boi era chamado João Barandi, que até já morreu, e era o ícone do carnaval aqui do Monte.
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De vez em quando tinha isso tudo Eu gostava também de sair de bomba boi. Botava a cara do boi mesmo, tinha as ponta mesmo, comprava não sei quantos metro de chitão bonito, fazia aquela vestimenta e as mulher... Era gente que acompanhava tudo dançando e cantando, saindo com bomba boi! Era um bloco mesmo, igual um bloco de carnaval. O bomba boi tinha na ressaca do carnaval e tinha vez que era antes. De vez em quando tinha isso tudo.
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Hoje chegou nesta casa A lavagem da igreja era uma lavagem que a gente mesmo fazia. Eu, com seis ano, que já me encontrei — quando cheguei, já encontrei, já existia essa festa. A gente ia com as latinha pro tororó. Quando não era pro tororó, vinha pra aqui, água à vontade por aí tinha. Em tempo de chuva, então! E no verão, era verão como é esse, mas muita fonte, muita fonte por aí: tinha o tororó, que ainda tem, a cachoeira. Água não faltava; agora, perna, perna pra ir buscar... ah! com seis ano. Aí tinha a lavagem. Era bonito demais. Os homem enfeitava a rua toda com aqueles aro de bambu, fazia aqueles arco de bambu assim. Eles ajeitando a rua, e a gente menina ia com os mais velho. Aí a gente ia pegar água, que não tinha, na época não tinha esse bujão: era vasilha, era latinha; as menorzinha levava baldinho, levava latinha. Latinha, até aquela lata de leite ninho, que era o que tinha na época — quem podia ter lata, até maiores; tinha a menorzinha, quem podia comprar seu leite. E a gente botava aqueles galho de gonçalinho dentro da vasilha e vinha cantando “Hoje chegou nesta casa...” E aí a gente descia, tantas mulher mais velha com a lata na cabeça! Quando não era lata, era pote, aquela que tinha a condição ou que queria comprar — tinha até pote, não era a festa de levar pote; mas quem tinha, levava, aqueles muringa. Aí vinha “Hoje chegou nesta casa...” Vinha cantando e subindo essa ladeirona aí, podia ser menino de seis, todo pra lavar a igreja. Quando chegava, a gente ia jogando água no tonel, botava no tonel os homem aí. Já viu a igreja? Ela é uma igreja velha, antiguíssima, já encontrei essa igreja velha. Aí a gente vinha com essa água, os homem na vassoura e a gente também ali no meio, dançando. Era animado, era bonito demais.
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A flor da borboleta De madrugadinha cedo, logo no começo, essa fonte dos pinheiro, a gente que já tava mocinha, meninotinha — assim como chama hoje a “pré-adolescência”, antes não tinha —, era onze anos, a gente já tava meninotinha. E a gente ia, essas meninota toda, pra dentro dessa fazenda. Era fazenda, mas não era com esse rigor que é hoje. A gente ia pra tirar a flor da borboleta pra trazer pra enfeitar a igreja. Tirava a borboleta, ia tirando. Aquela branca, ela cheira. A gente descia pra vir tomar banho. Bananeira braba trazia também, enfeitava, a gente botava em casa. A gente enfeitava com essa que eu tô falando, com a borboleta, porque ela era toda branca, mas o formato da flor parece uma borboleta. A gente arrumava casa de natal da gente. Era muito bonito, cheio de muita planta. Daí a gente descia pra tomar banho. À alvorada, a abertura da missa é seis horas da manhã, com os fogo, como ainda tem hoje. Mas agora já é diferente, agora os carro eles vêm buzinando chamando a gente. Antes era cantando. E a gente vinha tomar banho cedo pra se arrumar pra essa festa. Você não se lembra dessas flores que tinha aqui nessa fonte dos pinheiro, borboleta, a borboleta branca? Ela é da mesma família daquela bananeira braba, só que com um formato de flor diferente. Ela é branca, ela abre uma flor, ela é mais delicada também; parece com o lírio, mas não é. Essa borboleta só via mesmo aqui, em lugar de brejo que ela é fácil ter. Em lugar de brejo, talvez alguém que tentasse plantar também vai pegar, que ela só dá no brejo. Que cheirosa, menina!
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Minha vó chamava “irmandade” A festa mesmo era no dia dois. Dois era aqui no Monte. A festa do dia dois era aqui no Monte. Agora, no dia três já ia pro Madruga. A mesma festa foi dividida, porque houve uma época que os filho daqui ia pra a guerra. Aí ia ser chamado pra a guerra, era pra a guerra. “Era pra a guerra”, ela disse. Aí meu tio ia. Minha vó toda chorosa, todo mundo aqui, e aí o pessoal do Madruga pediu, fez essa promessa, pediu a Nossa Senhora, a Deus em primeiro lugar — porque quem faz a obra é o Deus, é Ele — que terminasse esse negócio dessa guerra, que muitos só tinham um filho, muitas tinha dois. Minha vó tinha três homem na época. O mais novo era meu tio. Meu pai já não poderia ir, meu outro também não ia, não tava nem aqui, tava trabalhando em outro lugar, em Salvador. Nessa época, não sei contar direito porque eu também tava novinha, mas já vejo falar: o choro de minha vó, de todo mundo, porque tinha que dar, era obrigado! Aí minha vó, todo mundo, elas fizeram essa promessa. Então fizeram a igreja lá — não sei se você chegou a conhecer a capelinha que tem lá no Madruga? Dona Isabel, Dona Cipriana: “Vamo juntar, vamo reunir aqui e vamo fazer nossa capelinha aqui”. Ela era uma escurinha assim, mais escurinha do que eu, mas danada, mulher danada! Ela chegava, pedia minha vó pra gente ir. Aí ela começou fazer o leilão, como a gente fazia aqui; porque a missa daqui, a festa também, a gente saia longe. A gente ia pra Acupe fazer a esmola. A gente ia pro Madruga, colhia muito dinheiro! A gente ia pro Acupe, ia pra aqui, pra aquele lugar que tem ali pra baixo também, São Braz. Dona Mera pedia minha vó pra deixar eu ir, eu e as menina toda da minha época. Confiava, e a gente também respeitava. Chegava junto: “Ói, você vai com Fulano. Se ela disser ‘é isso’, é tal hora.” E a gente respeitava, que se não o manguá comia! A gente respeitava. E também era assim os mais velho: fazia gosto você pegar um menino, uma menina, e levar. Dona Isabel começou. A gente ia pro leilão, do leilão ia pra Ilha das Fonte, ia pra um lugar que chama Pati — você conhece? —, ia pro Socorro.
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E aí lá vai, lá vai, lá vai, lá vai, lá vai, lá vai... e aí a gente conseguiu fazer a capelinha, a capelinha mesmo: a salinha, uma divisãozinha do lado que é o banheiro. Nossa igreja aqui não tem uns banheiro. Uma igreja tão grande da época e não tem um banheiro. É horrível, é critico. Não pode porque aquela igreja ali, ela é pedra, ela é toda de pedra. Foi feita na mão, nas costas dos negro. Isso aí eu ja não sei, eu vejo contar. Eu vou falar que os negro que faziam essa igreja, mas não tem um banheiro. Também a irmandade ali, ela faz parte da igreja a irmandade. Botaram agora “clube”, mas, na minha época, eu alcancei minha vó chamando “irmandade”. Porque essa igreja nossa, ela não era propriamente um convento, mas, quando vinha padre, tinha missões que vinha, se hospedava e ficava aí. Dava pra ficar, assim, uma freira, um padre. A irmandade não era nem ali como tá ali, era toda dividida que nós fazia a festa. A gente chamava “irmandade” porque ficava os padre. A gente não tinha, como tem hoje, um retiro. Hoje ainda tem a palavra “retiro”, e antes a gente me lembro de chamar “missão”. Vinha aqueles, digamos assim, cinco, seis, sete, oito padre. Eles ficava aí no Monte. Minha vó ia com sua mãe pra cozinhar pra esses padres que ficavam na missão três, quatro, cinco dia ou mais. Então a irmandade é assim. Não era ali como tá. Agora botaram “clube” pra festa. Quando eu conheci, eu me lembro que minha vó chamava “irmandade”.
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Brincadeira sempre animava Aqui tinha serviço de alto falante: tinha uma torre, uma boca de alto falante na torre da igreja; tinha uma ali onde eles chama “pau de rola”, outro na torre do cemitério. Tudo isso tinha aqui. A festa aqui fazia gosto mesmo! Na festa de dois de fevereiro, vinha banda de músico, veio o corpo de bombeiros de Salvador. Tudo isso vinha tocar aqui. A festa aqui era animação! Quando era tempo de festa, esse Monte nunca via de tanta gente que vinha de fora! A festa de dois de fevereiro era falada mesmo! Naquele largo da igreja, quando fazia essa festa, colhia muito dinheiro mesmo! Fazia um bocado de quarto, tudo de um metro quadrado, com corrente, com as corda, tudo aquilo tudo fechado. E tinha um bocado de moça. As moça se vestia tudo de soldado; a turma ia buscar farda e chapéu de policial. Ficava numa barraquinha daquelas. Ficava uma moça, dizia que era as “juíza” com o livro. Quem passar, tudo fazendo festa, aí a moça vinha, “Polícia!”, pegava ele pelo braço, “agora, o senhor tá preso!”. Diz ele “tá preso como?! Como que eu tô preso?!” “A juíza que vai julgar.” Depois que pagar que vai sair; aí ia nessa brincadeira, nessa brincadeira que ia, e eu sei que a brincadeira tinha gente que ia preso duas, três vez. No fim da festa, colhia muito dinheiro mesmo! Porque aqui, hoje em dia, hoje tá abandonado. Vinha procissão de Santo Amaro, tudo isso vinha por aqui. Seu Santo Amaro verdadeiro já teve aqui. Vinha procissão de Santo Amaro, de diversos lugar, muita banda de músico. A festa pegava no dia primeiro. Quando era no dia primeiro de fevereiro, quatro horas da madrugada, três hora, as banda de musica ja tava aí na rua já, fazia gosto! Então, quando tinha essas festa, era muito animada. Agora, não é como é hoje, porque, naquele tempo, as festa tinha luxo. As mulher trabalhava, os homem trabalhava a gosto só pra aquela festa. Fazia três terno: era um pra procissão, um pra festa e outro pro baile.
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Quando terminava aquela festa, no outro dia saía a Santa Mazorra. Santa Mazorra pegava aquela mulher, pegava uma mulher bem feia, enfeitava toda de vermelho, fazia de vermelho com a moringa d’água na cabeça, toda enfeitada. A banda de músico tocando e ela na frente dançando; e vinha uma mulher com balaião na cabeça com aquela rudia. Aí quando eles chegava nas porta, cantava — esqueci até: “Santa Mazorra chegou, com a cabeça de cuia, tirando a sua esmola pra comprar raspadura!”. Quem tinha dinheiro, dava. Aí tinha aqueles um que tinha nada, dava uma penca de banana; outro dava um presente; aquele que vinha com o balaio na cabeça, chegava aqui. Depois vinha outra, aquela animação, mas vai, é vai, é vai! Você não tinha dinheiro pra dar, tivesse uma penca de banana bonita, você dava. Qualquer coisa tinha que dar. Aí era a arrecadação da festa, tinha as brincadeira deles mesmo. Aí quando terminava aquela festa, quando era depois, tinha quebrapote. Tinha brincadeira do quebra-pote. O quebra-pote dava muita gente também. A festa aqui era demais. O quebra-pote era por derradeiro. Quando acabava as festa, aí tinha era a ressaca. O quebra-pote tinha dinheiro; botava trezento, quatrocento, tinha um bocado de coisa, lá encimão que é pra subir. Um pau de sebo, era uma fila um encima do outro. Pensava que não, terminava... e a brincadeira sempre animava! Brincadeira sempre animava!
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Esmola cantada Antes não tinha, ninguém tinha dinheiro pra fazer, pra ter, pra dar dízimo. Quase ninguém trabalhava. O trabalho era roça, era tirar caranguejo pra vender na feira de Maracangalha no sábado, no domingo, e outro que fazia suas farinha pra vender. Então, por conta disso, saía esmola cantada, pra poder angariar fundo pra a festa do dia dois. Aí saía esmola por aqui mesmo; uma se saia pra fora, saia pra Socorro, saia pra Saubara, pra Acupe. Mas é por não ter, ninguém tinha condições de dar dízimo. Aí quando começou todo mundo trabalhando, tendo, aí também foi morrendo essa tradição: nem vem de fora pra aqui, nem vai mais daqui pra fora. Esmola cantada. Eles pediam esmola cantando: chegava na porta, cantava a esmola, aí a pessoa dava o dinheiro, aí ia juntando. Era com a imagem da Santa, com uma coroa, com uma caixinha assim com a coroa da Santa. Ia juntando esse dinheiro, tinha o tesoureiro que juntava. Quando chegava da festa, comprava o que necessitava. A gente perguntava “vai cantar ou não vai cantar?” Aí você poderia pagar e não cantar a música ou, então, você podia pagar e cantar a musica. Aí cantava a música, depois terminava e ia pra outra casa. E a gente ficava na expectativa: “A esmola tá onde?!” “Tá na casa de fulano.” “Daqui a pouco chega aqui, deixa o dinheiro separado!” É igual o dia dois de fevereiro, que tinha o chale — o chale acho que ainda sai, ainda sai depois da missa. Tem a missa no dia dois de fevereiro pela manhã e à tarde sai a procissão. Após a missa, quando termina às onze e meia — se começa às dez, vai até mais ou menos por aí; se começar mais cedo... depende do horário que ela começa, depende do horário da missa. Quando termina a missa da manhã, eles pega uma toalha da mesa da igreja, aí vem cada um segurando uma ponta, com a fanfarra atrás. Vinha atrás, nesse sol quente a fanfarra. A fanfarra já vem cantando pra sua porta, então ela, o chale, vai passando e encosta na sua porta, você pega o dinheiro e joga. Você joga o dinheiro pra cair na toalha. Aí vão passando. No final de tudo, volta pra igreja e recolhe pra poder guardar pra igreja. À tarde é a procissão. A comissão era uma equipe que era responsável pela festa do ano seguinte. Saia o ramo pra entregar na casa do presidente. Aí, vamo supor, a equipe desse ano decidiu que você seria presidente do ano que vem. Na hora da tarde, depois de terminar a procissão, saia de novo uma fanfarra com esse ramo e vai na sua porta,
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bate e te entrega o ramo. Ai você é o presidente da comissão do festejo do ano que vem. Você é o responsável, você monta sua nova equipe — se você quiser ficar com a mesma, pegar alguém da mesma que tava... Se não, você monta sua equipe. No ano seguinte, você vai entregando o ramo a outro presidente. Depois também acabou isso, porque teve pessoas aí que, em vez de trabalhar mesmo pra igreja, ficava tirando aquele dinheiro pra si. Sumiu pia da igreja, quando um presidente tomava conta; sumiu freezer por causa do presidente que tomava conta. Aí não adiantava; quer dizer, uma equipe de um ano comprava, outro que entrava doutro ano destruía. Aqui tinha um Senhor dos Passos bonito na entrada da igreja. Quando o presidente disse, mentindo, que ia restaurar, ele levou pra vender. Aí ficava mentindo “tal tempo vem, tal tempo vem”. Nunca chegou aqui esse santo! Roubou pia batismal, roubou uma peça de jacarandá que tinha na igreja — tinha duas, só tem uma — aquela coisa que guardava as tolha. Até hoje não sabe, ninguém sabe. Ninguém sabe: todo mundo viu sair, ele ficava mentindo que levou pra restaurar, que ia trazer, que ia trazer... nunca! Não foi política não, foi isso aí, porque uns — quem tinha mesmo, quem tinha aquela consciência — trabalhava, o dinheiro que sobrava comprava alguma coisa pra igreja; vinha outro, tirava aquilo que comprou pra vender pra si.
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De careta mesmo Aqui no Monte, no carnaval, sempre saia careta. Barandi, ele é o ícone da careta aqui do Monte. Em cada rua, tinha um grupo de careta, assim: nessa rua aqui, só saia só mulher de careta. Ele era magro, era tão magrinho! Não importava, você sabia que era ele que tava vestido de careta, todo mundo fazia “vem João Barandi!” “Vem Barandi!” Ele se vestia de vaqueiro, que era com uma corda na mão, aí corria atrás dos outros e laçava. Por mais que todos se vestissem, só tinha graça quando ele saía. Todos sabiam que era Barandi vestido. E tinha uma tradição assim ó: toda vez que tinha novela, que tinha uma personagem que fazia sucesso — vamo supor: na sua novela, quem faz sucesso é Maria da Paz, aí quando saía “oh, Maria da Paz! Maria da Paz!” —, chamava ele do nome do momento. “Oh, cu de pinto! Oh, cu de pinto! Cu de pinto!” — só pra ele correr atrás, porque era magrelo — “cu de pinto! cu de pinto!” Ele dava distância, mas se ele te pegasse dava surra de corda, te batia mesmo de corda, deixava você marcado mesmo. Ele era magrinho, mas quando metia o pé, oxi! Ele tinha vezes que ele dava uma distância assim... às vezes ele, quando ele metia a corda, puxava; se ele te laçava, se ele te pegar... oh, não tinha como! Ele laçava as pessoas, amarrava no poste, deixava amarrado, dava de surra. Depois soltava. Todo mundo respeitava João. Tinha a ver com carnaval. Esse muro aqui tava cheio, falava assim “vem Barandi!” e o muro evacuava. Se fizesse assim, onde ele tivesse, ele voltava e te batia. Pegava a corda, batia mesmo. Ele considerava tia nem ninguém, batia! Abusou, batia! Era uma tradição, todo mundo fazia questão. Os mascarados abusava barão; os próprio careta abusava. Carnaval já não é como era antes: aqui não tinha banda, não tinha nada, o movimento só era de careta, o povo mesmo que fazia. O povo que fazia de careta mesmo. Fazia roupa de lençol, era máscara da fronha do travesseiro, muitas pessoas furavam pra ter o olho. Era mandú. Uma vez eu saí de mandú. Até meus próprios filho me surrou porque não me conheceu, que eu saí escondido, sem saber quem era: “o que faz eu com as menina? Vou sair de mandú!” Aí achei de pegar um lençol grandão, peguei aquele balaio
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que a gente mariscava, que a gente ia pra maré. Botei o balaio na cabeça, aí botou aquele lençol grandão até o pé, e o cabo de vassoura amarrado aqui ó, pra ficar assim aberto. Aí botava o palitó ou a camisa. Aí ninguém conhecia, ninguém, ninguém conhecia. Ficava aquela coberta só assim pra gente ver o caminho, os braços da gente tava dentro. Você já viu essa careta? É mais de São Francisco do Conde que daqui mesmo. Você pega um balaio, desse balaio de cipó, igual àquela peneira — geralmente vende aquelas peneira grande. Aí bota a peneira na cabeça, botava rodilha pra poder aguentar um tempo. Botava a rodilha e botava a peneira e amarrava. Aí dessa peneira, cobria você com um lençol todo por cima dessa peneira. Fica só a cabeçona. Amarrava você aqui no meio pra você ter um cabeção. Pega um cabo de vassoura, bota, mas teu braço tá em baixo que é pra você segurar a peneira e ficar olhando o caminho. O braço, parece que seu braço tá na cintura. Por isso chama de “mandú”, porque parecia um mandú, fica se mexendo. Todo mundo tinha medo dessas caretas: “o mandú vai te pegar, vai te levar!” Ela me batia, o mandú. Aqui é muita tradição. O povo fala assim “mas tá parecendo um mandú fulano hoje com essa roupa!” se a roupa tiver feia, porque mandú é feio demais. “Vai sair assim com essa roupa? Parece um mandú!”, que a roupa tá mal arranjada, a roupa tá feia, aí fala “parece um mandú” porque mandú é feio, é uma careta feia. E não tinha banda, não tinha prefeitura se metendo ni festa. Era um movimento danado. O carnaval começava na quinta. O sábado, o domingo e a segunda era desesperado, todo mundo sentava na porta, quem se vestia de careta se vestia. Vinha pessoas até de São Francisco pra ficar aqui no Monte, pra ficar olhando. Porque não tinha violência, não tinha nada, só pra ver as careta. Hoje não, hoje a gente não vai brincar mais não. Porque hoje no carnaval, hoje a brincadeira é jogar farinha de trigo. É tradição também, porque todo mundo releva. Aí tem os menino de preto, que eles se veste de preto. Se eles te ver em algum lugar, eles te abraça só pra se sujar de carvão. Eles passam, joga farinha. Quando você vai ver, tem um bolo de farinha de trigo em você, cai tudo de farinha de trigo. Teve um carro jogando glitter, um carro que jogava brilho assim, pá! Agora aqui no Monte tem isso aí. Acontece isso na ressaca, chama da “ressaca de carnaval”, que virou uma ressaca política, virou mais questão política. Tudo se acaba por política. Histórias do Monte Recôncavo
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Aqueles pessoal mesmo de respeito Festa, tinha festa. Agora, eu não ia, minhas menina também não gostava de festa. Ficava tudo no alto da igreja, tudo apreciando. E não tinha briga, não tinha essas violência não. E criança também na festa não entrava, criança nesse tempo não entrava não. Só mesmo as idosa, os idoso, gente de juízo, as moça também. Mas a gente ficava, as mãe de família, ficava tudo no alto da igreja sentado ali no banco ali. Nós botava um pano, sentava, mas só quem ia mesmo, dançar mesmo, é aqueles pessoal mesmo de respeito. Agora, tempo de carnaval, todo mundo entrava, podia dar sua dançazinha. Mas negócio de valsa, esses negócio elas não sabia. Naquele tempo, não tinha bagunça não. Naquele tempo, também não tinha nem energia direito. Ficava na rua até tarde mas não tinha essa violência, esses roubo, essas baixaria não.
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É muita comida pra um dia só De sexta-feira santa não, que eu sempre fui contra. Quando a minha mãe fazia aquele monte de comida — era vatapá, caruru, essas coisa toda —, eu ficava pensando “oxe, se morreu uma pessoa da família, a gente não vai ter coragem de fazer comida; porque Jesus morreu por nós a gente vai fazer essa comida toda?”, eu fiquei nisso. Sexta-feira santa eu não faço. Posso fazer outro dia qualquer, mas sextafeira santa não faço não, essas comida não faço não. Sexta-feira fazia muita comida. Só não era de carne; agora, de peixe.... Ninguém tinha nada, mas ia pra maré a semana toda pra quando era dia de sexta-feira não sei quantas frigideira de moquecas diferente: era de sururu, era de ostra, era de catado de siri, catado de caranguejo, siri mole... Você tinha várias “frigideiras” que eles chamam, que era tipo de moqueca, pra você acompanhar com arroz, feijão fradinho, vatapá e caruru ou feijão de leite. Todas as casa tinham, todas as casa tinha esses tipo de moqueca. Se não tinha dois, tinha três. Tinha que ter o peixe. Aconteceu de um tempo — hoje não, que hoje só ganha quem tem um benefício social — mas tinha ano que a prefeitura dava, dava peixe, dava aquelas mínima cesta básica pra Páscoa. O peixe era por conta da prefeitura: Todos os moradores do município, todos os bairros, eles recebiam peixe. Agora recebe só quem tem benefício social. Todo ano tem, o carro vem, você tem um benefício — tem o PAS ou um bolsa família — aí você recebe. Cada um recebe dois quilo de cada peixe. Antes eram todas as casas, você tinha um tíquete, então o peixe você não se preocupava em comprar, porque a prefeitura daria. Como todos aqui iam pra maré, aí ia buscar ostra, sururu, caranguejo. Aí tinha caranguejo, a ostra e o sururu, os três tipos de moqueca mais o peixe, aí todo mundo comia — sem contar os bacalhau, que o bacalhau é o mais barato, todo mundo tinha sua moqueca de bacalhau sextafeira santa. E outros tipos também de peixe salgado. Era muita coisa. Aí por isso que eu falo assim: É muita comida prum dia só.
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Com as garganta rouca Todo mundo rezava Santo Antônio. Eu mesmo ficava com as garganta rouca dia de Santo Antônio. Quando era o mês de Santo Antônio, junho, era as casa quase toda. A sua mãe mesmo rezava São Pedro, rezava. A gente ia rezar lá. Eu rezava com minha vó. Seu avô rezava, não sei se era duas ou três noite Santo Antônio. Meu tio Antônio Batista rezava as treze noite, as trezena todinha. Eu rezava com a minha vó, Ave Maria, gostava! Ainda mais eu, era menina ainda e quando eu ia na minha vó pra rezar, eu ganhava gasosa, que chamava na época “gasosa”, que era umas gasosa de limão gostosa. Refrigerante. Oxe! Ganhava bolo, meu pratinho de bolo, oxe! Aí as menina ficava com inveja, as vizinha. Naquele tempo achava a popularidade melhor, eu achava assim. Porque chamava, a gente ia. Se ela chamasse minha vó, minha vó ia. Agora, não ia se não chamasse, sempre teve isso. Eles convidavam. Agora, se eles chamasse, minha vó ia. E era simples, era o povão mesmo da época e chamava todo mundo: aqueles que queriam ir ia. E era mais comunicativo, a gente ajudava uns aos outros assim, em comunhão assim. Aí ia. A reza do meu tio Antonio era treze noite. Tinha hora que eu, danada, digo “ah minha vó, me leve não, me leve não.” Agora, quando era pra ir pra longe, a gente ia pra aqui, a São José, conhece? Agora não tem mais nada. Minha vó rezava. Eu gostava. Aí também elas convidavam aqui pessoas daqui, e ia homem, ia mulher, um bocado de menina por esses mato. E era mato! A gente passava esse caminho todo, essa baixada aí pra ir rezar lá em São José. Era um bocado de gente, os pessoal de lá chamava os daqui. E só vivia assim. Vivia em união.
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Tinha tudo na mesa Quando era São João, a gente acordava de manhã e tinha tudo na mesa: era de pamonha a mingau. Tinha pamonha, tinha mingau, tinha lelê, tinha milho cozido. E na casa de todo mundo era isso: você vai na sua casa, na sua casa tinha milho cozido, mingau; na casa de fulano também é mingau, mingau de milho, pamonha de milho, cuscuz de carimã. Descasca, bota a mandioca de molho ela inteira. Depois, quando tá mole — três ou quatro dias tá mole — a gente peneira com um saco em baixo. Depois vai, lava esse saco, que ela fica com aquele cheirinho, mas quando você bota um bocado de água, sai o fedor todo. Daí se faz pamonha, daí se faz cuscuz. O cuscuz, a gente ainda espreme ela toda pra depois peneirar pra fazer o cuzcuz. Chamava de “arupemba” uma peneira de ferro que elas fazem com aquela tela de ferro bem fininha. Tem daquela de palha também. De palha ainda tem uma aqui. Nós comprava em Maracangalha, que tinha feira por lá. Você passa uma mandioca por vez até a mandioca se diluir toda na peneira, vai vir tipo uma gominha. Ela tá toda mole, você vai amassando ela, aí ela vai passando na peneira; só passa só fécula. A parte grossa que tiver da mandioca, ela fica. Era a medida certinha da boca do saco. Embaixo dela fica um saco. Vem botando a mandioca, vem passando a mandioca. Tudo que tiver — se sobrou algum pedaço de casca, alguma coisa — fica tudo na peneira, vai jogando fora. Pensa agora num saco de farinha: vai lavando essa goma, vai lavando, lavando e espremendo, lavando e espremendo, lavando e espremendo pra poder sair esse cheiro todo dessa goma. Vai lavando e espremendo. Quando lava, que espreme tudo, fica parecendo uma areia molhada. Aí bota esse saco de areia mole pra secar no sol. Tira esse cheiro todo. Aí seca tudo. Igual àquele processo: o dia todo tomando sol; não enxugou ainda, amanhã bota de novo. Aí quando secar toda, volta de novo, penera pra poder ficar fininho pra fazer o cuscuz, fazer a pamonha. “Massa puba”, eles chamam de “massa puba”. Era saudável. Cuscuz nós fazia ele com coco, ainda deixa o leitinho do coco pra ir molhando, ele é uma delícia! Você rala. Não serve coco ralado no liquidificador. Você tem que ralar o coco no ralo mesmo, pra misturar. Ou então você bota o coco na massa do cuscuz. Eu ralo o coco no cuscuz. Histórias do Monte Recôncavo
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Aquela pamonha que você come é dessa massa, dessa mesma massa. Já a pamonha você faz... a pamonha é um pouco mais trabalhosa: marra na folha de banana e depois bota pra cozinhar. É tipo uma massinha molinha, um mingauzinho, tipo um cremezinho. Você faz esse cremezinho, bota todos os ingredientes, o coco; você bota na folha da banana pra assar ela no fogo, que ela vai ficar de uma outra cor. Vê se consegue amarrar de uma ponta na outra e bota pra cozinhar. Essa pamonha que você compra em qualquer lugar e que você vê é feita com esse processo. Só que agora, como já tem a massa puba industrializada, eles não têm mais o trabalho na questão manual. Mas esse menino que vende, que a gente chama ele de “Tapioca”, o que ele vende é original.
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São João passou por aí? São João aqui era muito badalado. O São João daqui era falado. Era bom demais São João! “São João passou por aí?” “Passou! Venha, meu filho!” Aí era aquela bandeja de milho, você pegava um. Era laranja, era amendoim, bolo de carimã, pamonha. “São João passou por aí, tia?” “Passou! Entra, meu filho!” Aí ela dizia “tu não vai beber licor não”, “um só”, “não, pra sua mãe não brigar comigo!” Quando tinha o restinho lá no copo, nós pegava o restinhozinho. Eu já bebi um bocado desse restinho. Eu já bebi muito restinho. Pivetinha ainda, doze ano, “minha mãe, deixa eu beber!” Quando via aquele restinho ali, ficava quieta. Quando via, “tchau não-sei-quem! Vou na sua casa! São João passou por aí?”
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A gente diz que é de folha No dia mesmo que alguém me chamou pra fazer a apresentação da Cabocla, aí Jemima chegou em casa, falou: “Minha vó! oh minha vó! Ai meu Deus! Que dor no coração, minha vó!” “É o quê, Jemima? Sente aí, Jemima.” “Eu quero água, minha vó! Água! Água! oh minha vó Angélica!” “Oh meu Deus! Aconteceu o que com a minha tia?! Jemima, fala!” “Ah minha vó, deixa eu descansar, minha vó! O caboclo! O caboclo!” Jemima chegou naquilo assim, o tempo da menina dar até um infarte, cair, demorou da menina falar. A gente preocupada pra ela dizer logo o que era, e ela: “oh minha vó, me dê água ligeiro” e sentou e ficou toda baratinada. Ela agora já sabe. Essa história foi assim: teve um dia... — tava eu, Patinha, Vaninha e Roque — no dia dois de julho. Tava assim com uma vontade de sair o negócio de cabocla! Eu digo: se o caboclo é do mato, e a gente diz que é de folha... Eu sei que juntou, a gente pegou um bocado de palha, a gente chegou aqui no Milagre e pegou aquelas folha de licuri. A gente pegou a ponta da faca, fiapou tudo ali. Aí as menina “tá boa aqui a saia”; eu digo “tá”. A gente fez um penacho. Eu sei que Roque achou pena de galinha, fez o penacho. Quando é de noite, a gente saiu naquela surpresa com o diabo de um jegue! Foi com jegue. Mas teve jegue, teve carrinho de mão, teve foi tudo! Cada ano foi diferenciando! Depois eu também parei. Teve um tempo que parou. É, eu parei. Minha filha ficava chorando: “mainha, não saia não!”. Eu digo “Que bobagem!”. “Não saia não, mãe!” Ficava com vergonha. “Isso é uma brincadeira que a gente tá fazendo!”. Se acabava de chorar. A gente pediu fanfarra com vô Alfredo; naquele tempo, a gente saiu de jegue, eu e aquela fanfarra! Saiu arruaça aqui na rua: “Ê cabocla! Ê cabocla! Olé olé olé!” Era tão gostoso naquele tempo! A gente que teve aquela atitude assim ali, de repente.
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O índio também já passou por aqui O índio também já passou por aqui, deixou até uma plantação: é a cortiça, aquela cortiça que a gente corta e faz a rolha. Lá pro lado da Caieira tem, mas é bem pra lá, quem vai pro rochedo. Diz que os índio — minha vó falava — que aqui morou índio: tinha oca.
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Sua vó tem uma história no Monte É tradição, sua história. Sua vó tem uma história no Monte: se vestia de cabocla pra poder alegrar. É tanto que ela deixou de sair uns tempo, outras tentaram, mas não foi igual a ela, não pegou. Não tem igual não. O jeito é retornar mesmo, porque eu acho assim ó: a gente é quilombo, a gente nasceu quilombola e não sabia. A gente tem que resgatar essa cultura da gente mesmo.
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Não é São Roque no meio de agosto? O dia de bater, tinha um pai de santo que era daqui de Cinco Rio, que vinha também fazer. Daqui mesmo, do local mesmo, não tinha — que eu conhecesse não. Diziam que tinham, mas não mais na minha época, não conheci nenhum. Agora, conheci seu Taurino, que era entendido, também fazia afoxé. Fazia e levantava muito dinheiro. Tinha também o afoxé. O afoxé é assim, por exemplo, São Roque — não é São Roque no meio de agosto? Aí vinha aquelas pessoa, aquelas baiana vestida, com tabuleiro, vestidas de baiana e cantando “afoxé leri cei cí ariojó afoxé lori ceici” — eu já não lembro mais, mas era assim. Era muito bonito. Vinha gente de Maracangalha também. Era muito bonita a festa. Botava barraca, fazia movimentar dinheirinho da época, porque a festa, a gente fazia. Mas, eu menina, minha vó não gostava, não deixava. Ela não ia. Histórias do Monte Recôncavo
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A ciência do Candomblé era finíssima Foi no tempo de Carlos Viana. Quando tinha o negócio do candomblé aqui no Monte, a ciência de candomblé era finíssima. Tinha acompanhamento, a procissão rezando na rua, pra poder pegar o negócio do candomblé, o acompanhamento de São Roque. O Pé do Louco era um pé de árvore, pé de leite mesmo, chamava Pé de Louco. As fruta que ele botava era vermelha. Desde no tempo antigo, onde batia o candomblé era aí. Pra a festa de São Roque vinha muita pessoa de fora, demais mesmo, vinha muita gente mesmo! Era três dias. Quando tava chovendo, os prefeito liberava esse prédio, a escolinha, ficava batendo três dia de festa pra São Roque. Era três dia de macumba, três dia fechado. Todo mundo vinha, fazia igual a festa do dois de fevereiro. Vinha de tudo quanto é lugar, se unia tudo, embaixo desse pé de árvore. Chamava o “Pé do Louco”. Era em agosto, 16 de agosto. Fechava tudo. Tinha cada pé de birreiro, cada pé de leite, chama “Pé do Louco”. Embaixo tinha um salão, tinha um salão enorme. Era três dia, dia e noite o pau quebrando! Seu Carlos Viana morreu e quem ficou tomando conta foi o finado Martim. Depois acabaram tudo. Isso aí acabou tudo. Os homem vinha, sempre fazia as devoção, mas depois acabou que botaram tonel de lixo, depósito de lixo, é bosta de cachorro, é tudo que joga ali pra dentro. Acabou tudo. Acabaram tudo. Os crente também foi tomando conta aqui. Diz que lá ainda tem o pé da raiz do pau. Diz que ninguém consegue construir lá. Diz que tinha uma cobra enorme. De vez em quando, ela aparecia nesse Pé do Louco. Quando Martim ainda era vivo, quando vinha bater candomblé, vinha o finado Faustino, de São José, de Jabequara, era pai de santo de tudo quanto é lugar que vinha aqui nesse candomblé. Era três dia: sexta, sábado e domingo. Terminava segunda. Segunda era o dia de terminar. Segunda dava flor, as pipoca. Dava na rua. Agora não, agora acabou tudo e ninguém quer mais saber disso. Daquele pessoal tudo, aqueles preceito tudo, já foi tudo se acabando.
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Um pé de birreiro, um pé de gameleira e um pé de leite No dia da matança, a gente subia até no pé do birreiro, lá em cima, pra assistir a matança, pra poder ver as mulher gritar, porque ali tinha um pé de birreiro grande. Tinha um pé de birreiro enorme, enorme mesmo, cheio de galho, que birreiro lindo! Nós da matança, os pessoal subia pra assistir. Só se via era mulher gritando. Vinha muita gente de Candeias, Salvador, Maracangalha, São Francisco, Santa Elisa, tudo por causa do candomblé no dia da matança. O povo fala que aí esse ponto, diz que, nesse ponto, pessoas velha via muito índio. Diz que aqui tinha índio também. Aí em baixo, o povo diz que vê mesmo os índio mesmo, tudo coisa mesmo aí. Naquela época o povo falava. Aquele pé do louco era um pé de louco bonito, um pé de birreiro. Tinha um pé de birreiro, um pé de gameleira e um pé de leite. O pé de birreiro era no meio. O pé do leite era na beira da cerca. O pé do leite da gameleira era onde fazia a matança. O povo cortou. Quando acabou esse candomblé todo, quando acabou isso tudo, cercou o Pé do Louco. Mas ali não era pra cercar. A matança era ali no pé de leite, tinha um pé de leite bonito bonito. Quando ele carregava de flor, ficava todo alvo. Ali fazia matança, enfeitou tudo de pano branco, pano vermelho, aquelas tocha de fogo, as mulher que levava presente, aqueles jarro. Ficava parecendo que era um presépio o chão de jarro, todo esse pessoal levava pra presente. Ficava uma coisa linda aquele Pé do Louco!
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Só podia sete menino Aqui no Monte, tinha a tradição que todo 27 de setembro, todas as casa, podia ser católica ou não, todas as casa dava caruru. Tinha vez que tinha cinco ou seis casa, dava caruru, rezava. Tinha uma reza toda, tinha uma reza católica toda pra depois dividir o caruru. Primeiro dava o caruru às crianças. Tinha aquela reza de São Cosme pra depois, quando terminava aquela reza, aí o pessoal dava era caruru, era vatapá, todo mundo comia. Mas primeiro botava aquela bacia cheia de caruru, aí botava sete menino pra comer, os sete menino ia comer tudo. Só podia sete menino. Sete menino. Toda casa tinha, não tinha essa besteira que é hoje. Às vezes tinha duas, três casa. Uma história muito marcante que tinha era o caruru de Seu Chiquinho, Seu Chiquinho e Dona Raimunda. Ele era muito rígido, era retado. O caruru era rígido, ele às vezes tava com o cipó na mão, porque se não ficasse certo na fila, ele dava uma cipoada em você, não podia empurrar... Aí dava a cada um. Tinha também Dona Maria e Seu Cândido. Eu lembro de Seu Cândido. Seu Cândido era também muito ríspido: “Fica quieto aí na fila, menina!”. E não tinha “ah, caruru de não sei quem!” Caruru, todo mundo comia.
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Quem não tinha gêmeos também dava Tinha uma época que todo mundo dava caruru, que todas as casas dava. A mãe de Marcinho mesmo era viciada. A mãe de Marcinho mesmo todo ano dava caruru de sete menino. Nosso vizinho ali, era por causa dos gêmeos: todo mundo que tinha gêmeos era obrigado, e quem não tinha gêmeos também dava, também fazia promessa. Eu já saí da escola pra comer caruru. Era sete menino, aquela bacia com tudo do caruru. Caruru de promessa já comi muito. Eu comi muito. Saia da escola e Dona Mundinha “venha fia, venha!” — pivete, eu, sete anos, uma bacia assim. Era sete crianças, sete. Já comi na casa de Dona Zélia, na casa de Sofia, na casa de dona Mundinha, na casa de dona Joaninha, na casa de dona Nega, na casa de dona Mera, na casa de dona Maria, Seu Cândido...
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Ninguém descobre o fundamento
Das flores nasceu a cura A palavra de Deus é muito finíssima. Uma coisa finíssima a pessoa tomar um banho de folha. Todo mundo sabe tomar banho? Não é não! A pessoa tomar um banho de folha, pôr a folha, pedir licença, pegar aquela folha, saber tomar aquele remédio. E não é botar no fogo pra cozinhar não: bota água no fogo e esfrega; depois toma aquele banho rezando! pedindo a Deus! Porque Deus, quando fez o mundo Deus, existia o mundo, existia o paraíso de Jesus. Ele, quando desceu pra fazer o mundo, as primeiras três coisa que Jesus escolheu foi terra, mar e céu: A terra que deu apoio a água, a água veio por cima. Pela ventação das água na terra, nasceu as ervas, das ervas nasceu as flor, das flores nasceu a cura!
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Diz que é coisa do diabo Os porco, que pegava muito dos porco era a doença chamada “bate bate”: os porco se entortava, ficava tremendo. Qual o remédio que minha vó fazia? Me lembro que nem hoje: dava caiçara depressa, pra moer a folha da caiçara, torrava, torrava, dava na comida, o porco levantava. Sei que põe a caiçara com a maçã do algodão ou a folha do algodão, toma o chá da caiçara: se o infarte vem, só vem fraco. Quando dava derrame, também tinha que rezar. A gente reza, rapaz, tem a reza tudo pra isso. E tem o remédio: quando acabava isso tudo, tomava um purgante de aguardente da Alemanha. Catapóra, rubéola, sarampo, era muito respeitado e as pessoas tinham muito cuidado. Vai fazer um ano agora: Ele tava doente, o medico foi atestar, descobriu que tava de aids. Quando suspendeu, uma roda aqui ói, aquele beiço grosso já comendo aquilo. Quando ele me mostrou, eu disse: “isso é fogo selvagem do brabo!”. Mas ele não me disse o que era. Ela vai começando com a roda; isso vai crescendo, vai comendo, tem quando vira aquela ferida, fica por baixo da perna. Cheguei e disse: “vá ali na venda, compre isso, depressa, isso, isso, isso.” Misturei tudo. Pensou que não, rezei. Disse “tome, leve esse remédio, mas só bote cruzando!” No outro dia, ele veio já tudo seco, as pele já arriando seco. Ele disse “pois agora, que vou dizer? O médico atestou que era aids, que tava de aids sem ser.” O fogo selvagem do brabo é uma reza tão besta. Essa reza de fogo selvagem é uma reza tão besta. Chamava: “Três casa de palha esteira rota cobreiro brabo moço excitado tu há de morrer esturricado com os poder de Deus da Virgem Maria, assim como a folha seca que Deus deixou caldo do pé do pau não tem nascimento não chame ele...”
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Vai rezando, eu quero ver ele aumentar. Eu quero ver! A papera também reza. De primeiro, a gente pegava pra papera era lama do pé do pote, trazia lama do pé do pote, como se fosse um mingau com limão verdadeiro. Passava ali e rezava. No mês de agosto, todo mês de agosto era essa doença. A cortiça, aquilo é muito bom pra diabete, bebendo água direto da cortiça, o chá. Ela parece pinha, na Caiera dá. Tem monte de pé dela na Caiera, parece uma pinha. Tem muito remédio. As pessoas hoje em dia não quer saber, tudo é médico. Tudo é médico: não quer saber mais de reza. Não querem mais rezar, diz que é coisa do diabo. O povo tinha muito cobreiro. Aquele negócio rezava tudo. As pessoas tudo rezava aqui: era olhado, rezava; se nascia... Sei rezar olhado, sei rezar vento caído, sei rezar tudo. Tudo isso eu sei rezar. Peito aberto, peito aberto também é um nada, mas mata a pessoa peito aberto. O pessoal aqui parece que não entendeu mais não: tudo não acredita. O povo não acredita e muitos não sabe nem curar. Não sabe nenhum chá, nenhum Ave Maria não sabe rezar. O fundamento disso é tão finíssimo que ninguém descobre o fundamento.
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Tudo era a passagem do vento O povo aqui antigamente, quando era mês de agosto as pessoas diziam que passava um vento. Um dia tava dentro de casa; ela tava desse tamaínho. Quando pensou que não, ela se entortou toda: a boca veio pras costa. “Minha filha morreu!” Deitou na cama. Aí “o que é?” Vai três pessoa rezando. O derradeiro que reza, diz que é bom o pai ou a mãe, o pé de chinelo esquerdo do pai guardar, o pé do chinelo esquerdo pra quando for rezar a derradeira. A última são três pessoas que reza. Aí três pessoas rezou e eu rezei de radiação, duas pessoas não sabia da radiação do tempo. Porque a radiação do vento isso é uma reza tão forte! Porque tem que chamar as perna das encruzilhada, as perna das escada, o sul nascente por eixo, a passagem do vento, daonde vem, daonde não vem.
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Aí quando empeçou todo mundo rezando, quando foi rezar a derradeira vez, ela se espichou toda. O pessoal “traz a vela depressa!” Quando acabou de rezar, demorou cinco minutos, deu aquele pinote: “O que foi mãe que eu tive?! o que foi mãe que eu tive?!” Isso aí porque, de primeiro, menina, esse negócio dessas doença tudo era a passagem do vento Se rezava. Hoje em dia tudo é medico.
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Água de embaúba branca O povo nunca mais viu pé de gameleira branca. A folha de gamaleira branca foi dessa largura. Tem a branca e tem a preta; o povo meteu facão, machado, cortou tudo. A embaúba branca é pra essa doença que chama “paralesia”, que a pessoa vai secando, diminuindo. Panhou a raiz num vaso de barro, uma panela; cortou a raiz dela, botou nimbaixo, bota um guardanapo em cima, um pano pra coar. Pega, bebe a água — água de embaúba branca. Cortou tudo. Aqui nesse buracão, tinha um pé enorme de embaúba branca. É muita doença. Deus deixou toda as cura; agora, não foi descoberta. Aqui era tudo, tudo curava o povo rezando. No mês de agosto, tinha doença de pele. Hoje em dia não se fala mais nisso aqui não, mas se quiser tá matando! Tinha um bocado de “cobreiro”, que a gente chamava. Nascia um bocado de caroço aqui assim, aí coçava. Quanto mais ele ia dando, ia espalhando pelo corpo todo. Aí levava pra médico, o medico não sabia o que era, aí rezava. Quando rezava, secava. O cobreiro seco pegava aqui aquela roda, parecia aquele fubá branco. É o cobreiro seco. Quando acabava de rezar, botava o sumo da Santa Maria; botava o sumo por cima, aí pronto. Tinha uns que botava vinagre, vernizava com vinagre, molhava o vinagre na gente, aí rezava. Tudo tinha que ser três dias. Hoje em dia, ninguém quer saber mais nada disso não, tudo é medico. O povo diz “Ezequiel, você não morre mais não!” Fui desenganado do médico umas cinco vez, já fiz cinco operação, a cobra me mordeu. Eu fui fazer na roça trabalhando, quando eu subi a rua, aquela serpente presa aqui ói. Eu fiquei todo inchado. Quando eu saí da roça, que fui chegando dentro de casa, olha a grossura que eu já tava. Cai, buf! Eu so fazia “água! água!” O pessoal tudo chorando “o que é minha mãe? o que é? o que é?” “Tá todo inchado, ninguém sabe o que foi!” Aí depois o finado Taurino, o negócio dele pegou e disse: “foi a bicha do chão, a bicha mordeu”. Aí saiu pro mato, trouxe o remédio lá, botou encima e botou dentro da minha boca. Eu bebi. Eu tava com 18 anos; eu tô com 82. Mordeu aqui, aí vai subindo o veneno.
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Depois mordeu aqui de novo, mordeu aqui. Meu pai na moita do capim, quando ele garrou aqui, sacudi, o sangue ja vai saindo. Eu não fumo, não quero coisa de fumo, mas comprei uma capa de fumo logo com dente de alho. Mastiguei o sumo, chupei, joguei fora, abri ele, matei. Abri, tirei um pedacinho da banha, engoli qual sumo, um pedacinho do sumo do alho, o sumo do coisa. Não tive nada não. A mão so fica formigando. Vai fazer um ano agora essa facunzada que tomei na cabeça. Não soube não? Eu tava internado vai fazer um ano agora. Zé Carlos veio com um colega pra tirar jaca aí no pé. O cachorro pegou a latir. Quando ele tá no meio da jaca, o facão de dezoito polegada escapuliu da mão dele, veio, bateu aqui. Quando fui gritar “ah!”, quando eu gritei assim, o sangue tava entrando dentro da boca! Tomei quatro soro solto, sem pingar. O médico “abra depressa! abra depressa!” Foi sangue! O facão escapuliu da mão dele! Eu, doente, tinha vindo sexta-feira, que eu tava internado. Quando foi no domingo, aconteceu. Tem que ter fé em Deus, irmão. Olhe, a pessoa que chama por Jesus tem que passar por uma provação: ou boa ou ruim. Mas sempre chame por Jesus. Um inimigo seu passou lhe xingando, não responda que aquele nome é ele nem ela não. Deixa ele só com aquela imundície na boca: “Vou orar pro anjo de guarda dele, pedindo o dobro que ele fizer pra você de bem ou mal de novo para ele, para ela”. Não tem coisa melhor. Quando xingar, nunca responda “assim assim é você!”. Se concentre, chame por Deus. Reze um Pai Nosso, um Ave Maria pro seu anjo de guarda primeiro, pedindo proteção. Depois, você reza pro anjo de guarda dele ou dela, pedindo que o bem ou mal que ele lhe fizesse, ele desse em dobro para ele ou para ela. Se ele fizer o mal a você, vai em dobro para ele; se fizer o bem, vai em dobro também. Só tem que pedir.
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No tempo de parir Minha vó era chamada e eu também ia com ela benzer uma mulher no tempo de parir. No tempo de parir, mandava chamar minha vó pra ajudar porque não tinha médico naquela época. Era as parteira. Era as parteira e minha vó ia, me levava porque ela já tava com problemazinho e eu que ia apontando. Eu aprendi a ler cedo, logo com oito anos, aí apontava. Ela me levava. Eu me lembro que eu já tava com oito anos. A mulher tava pra ter esse menino já ha dias sem nada, nada, nada e minha vó rezando Salve Rainha. Mudou de outra parteira, a parteira que tava descansou. Já tinha mais de um dia se batendo. Minha vó é curiosa, ajudava em reza mas pra meter mão assim pra coisa não. Minha vó ajoelhada e eu também cresci nisso. Daqui a pouco, a menina nasceu. As pessoas tinham muita crença, muita fé, muita fé, que Maria ajudava na hora do parto.
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Fogo selvagem demora de sarar No mês de agosto, eu lembro que minha mãe botava em mim uma bolsinha com alho no meu pescoço, o mês de agosto todo. Quando tomava banho, não podia tirar. Era cabecinha de alho macho. É o mês que mais morre gente. Não podia tirar por causa do vento, “se o vento passar, vai ficar torto; se alguém mandar algum mal, aquele alho já combate.” Era o mês de agosto todo com esse negócio no pescoço. Pegava papera, catapóra, sarampo, vovó, bixiga, fogo selvagem. Tá voltando um bocado de coisa. O mais perigoso, que meu pai falava e minha mãe falava, o mais perigoso é o sarampo. Quem tiver sarampo, não podia encostar, deixava isolado. É o perigoso mesmo. É uns caroço bem miudinho, mas coça! Tinha que tomar banho com álcool. Quanto mais tomar banho, botar bem álcool na água, melhor. Queimadura era fogo selvagem. Fogo selvagem demora de sarar. Não podia comer nada, não podia tomar vento, não tomava banho frio, não podia comer nada com coentro. Tinha que rezar todos os dias pra poder o negócio secar. O rezador aqui desses negocio era Taurino. Ele tinha um encantado: ele curava, esse mundo todo ele ia a pé, mas não era ele sozinho. Era guiando Taurino. A vestimenta dele era um short de elástico daqui até aqui, uma blusa toda cheia de pedacinho de cruz e toda cheia de espelho: um espelho aqui, um aqui, um aqui, um aqui, e atrás nas costas, tinha um boné, um espelho assim e outro assim. Ele saía com o facão. Quando roncava a trovoada e ele aí ó... visitando esses pessoal todo, ia pro Madruga, pro Corado, pra Paramirim. Roda esse mundo todo aí, todo mundo conheceu ele! Quem acompanhava ele falava; falava, mas ninguém compreendia. Ele bebia; um litro de cachaça por dia não dava pra ele beber. Ele pegava um litro de cachaça e bebia assim: quando era de tardinha, tomava, bebia outro litro, pra poder curar as catapóra, porque ela puxava mesmo pra beber, e também tomava banho. Ele vinha com espinho de laranja, furava bolinha por bolinha, bolinha por bolinha, bolinha por bolinha. Ele tinha uma frasqueira deste tamanho, com algodão; ele aí ensopava aquele algodão no alcanfor e álcool. Aí ensopava bolinha por bolinha, bolinha por bolinha. Enxugava pra poder secar. O mais perigoso, o mais desgraçado, é sarampo. Quem tiver sarampo, se cuide. Se cuide mesmo. Histórias do Monte Recôncavo
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É macumba! As pessoas não quer nem saber. Se você ver, você pega uma folha, já tá dizendo logo “é macumba!” Tudo quanto é coisa “é macumba!”. Se ver a pessoa fazendo, tudo “é macumba!” “É macumba!”. Se o povo ver você lavando sua cara com uma folha, “é macumba!”
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O pessoal via mesmo
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Esses africano, o pessoal tudo Você sabe que o dia virou noite? Salvador, todo mundo. São Francisco, todo mundo. Em 46, 09h45, o dia virou noite. Eu tava aprendendo a arte com o Chiquinho no Engenho de Água. Eu tinha 15 ano. Foi um negócio sério! Os urubu... o galo pegou a cantar. O pessoal tava dentro do mangue, nas praia de cá. O pessoal começou a passar pra essa igreja aqui, Ave Maria! “O mundo tá se acabando! O mundo tá se acabando!” E aí vai vela, rapaz, foi um negócio, rapaz! Virou, obscureceu mesmo, ficou tudo escuro, tudo escuro, três a quatro minutos assim. 46. Eu tinha 15 ano. Antigamente tinha esse negócio de assombração: essa mulher de branco, diz que tinha mula sem cabeça. Sempre eles contavam isso. Acontecia. Tinha esse tipo de coisa. Tinha muita gente naquele tempo, esses africano, o pessoal tudo. O pessoal via tudo... dizem que fazia um bocado de coisa, um bocado de coisa aí que fazia... Eu não ficava com medo porque a gente novo assim não tinha medo de nada não, mas os pai, as mãe, ficava reclamando que não podia ficar na rua até tarde, que tinha um cavaleiro que andava aqui na rua, tinha outro que virava lobisomem... Hoje que a pessoa não vê as coisa, vê as coisa assim ligeiramente. Mas antigamente via muito, via muito mesmo. Esse pessoal africano é um pessoal muito ligado a essas coisa.
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Só via o meio dela Eu já vi uma cobra dessa. Foi eu e sua mãe pro mangue pegar caramuru. Quando a gente tava voltando, tinha uma cobra que eles chamava de “encantada”. A gente não viu nem a cabeça e nem o rabo, só via o meio dela. Tirei o chapéu, joguei em cima dela e ela nem saiu. A gente teve que voltar por outro lugar. Era uma cobra que nunca tinha visto. Era cobra encantada. No Milagre, eu vi aquela cobra. A cobra tinha uma crista. Naquele tempo, o pessoal via mesmo.
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Esse balaio só tinha um ovo Uma vez chegou uma mulher na casa da mãe de Marcinho, com um balaio deste tamanho assim. Ela tirou da cabeça dela, botou no passeio e pediu água. A finada Emídia chegou — ela era costureira, na sala; quem passava tava vendo ela costurando. Aí ela tirou o balaio, um balaio deste tamanho assim, e esse balaio só tinha um ovo. Ela tirou o balaio da cabeça dela, botou assim, aí pediu um pouco de água a Emídia. A finada Emídia: “Oh minha filha, me dê um copo de água!” A finada Emídia levantou, pegou um copo de água, deu a ela. Ela pegou uma cabaça deste tamanho. Despejou a água na cabaça, bebeu na cabaça e deu o copo à finada Mira. Tirou o balaio e dentro do balaio so tinha um ovo de galinha. Ela tirou da cabeça, botou no chão, aí pediu à finada Emídia “me ajude aqui, minha filha”. A finada Emídia levantou, pelejou mesmo pra suspender. Ela disse “deixe minha filha, deixe que eu pego, deixe que eu pego.” Aí pegou o balaio, botou na cabeça. E a finada Emídia não aguentou. A finada Emídia não aguentou o peso do balaio. O balaio foi deste tamanho, assim desse tamanho, com um ovo dentro. Ela tirou da cabeça e botou no passeio, que tinha um passeio grande; e a finada Emídia era costureira, tava costurando na maquina. Lembro como hoje. A mulher, cada casa ela descansava um bocadinho. Cada casa descansava um bocadinho, com o balaio na cabeça. Só foi na casa da finada Emídia que ela bebeu a água. A finada Emídia pegou o balaio e ela “pega, pega, minha filha!”. Aí pegou, “pega direito”. A finada Emídia, “não aguento não”. “Deixe, minha filha, deixe, você não aguenta não, você tá fraca, você tá fraca.” Ela mesmo pegou o balaio, botou na cabeça, aí desceu pra rua da igreja, com aquela paciência, arrastando o pé, arrastando o pé, arrastando o pé. Quando chegou ali naquela esquina — não tem ali o pau de rola? na esquina que desce, na calçada, ali naquela encruzilhada — ela chegou e sumiu. Do nada, sumiu.
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Os mais velhos mesmo contava Diz que tinha um bolo de carne. Diz que descia embolado. Eu vou contar daonde é que começava: não tem a venda de Aurelino? Começava a descer dali. Saía embolando dali e entrava naquele beco da finada Das Virgens, minha cunhada. Aí descia. Era ali a rua do fogo. Ali chamava “Rua do Fogo”. Tinha esse bolo de carne, oxente, tinha sim. Parecido com um tonel, tinha sim, oxe tinha sim. Tinha sim, tinha sim! Os mais velho mesmo contava: “Olhe, aquela rua ali vocês não fique muito naquela rua!” Aquela rua era toda diferente, todas as briga só corria pra ali. Era briga todo dia, botou o nome “Rua do Fogo”.
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Num cavalo sem cabeça Eu vi. Lobisomem tinha sim. Tinha sim, oxente, tinha lobisomem sim. E tinha São João, o cavalo sem cabeça. Tava meia noite na fogueira. Os pai, as mãe: “vocês fecha essa porta, já deu meia noite!” “A gente tá aqui.” “Não sai daí não!” Quando ali, na esquina, ele dobrou, que tava tudo na fogueira, aí vinha um homem montado num cavalo sem cabeça. Aí os menino gritando, os pai e as mãe se assustou: “O que é?! o que é?!” Nada de dizer “o cavalo sem cabeça, eu vi um homem montado num cavalo sem cabeça!” Pra eles dizer deu trabalho. O vizinho nem acertou a entrar dentro de casa, quando o lobisomem se jogou no chão, ele também se jogou. Ali tinha casa de farinha, aí a turma fazia farinha: “Que nada, tem gente aqui pegando essa crueira.” Os homem disse assim, os homem disse assim, os pai: “Não, mas aqui foi bicho que comeu essa crueira” — crueira é quando a gente peneira a massa da mandioca pra sair aquele pozinho, daquela que a gente penerou que faz a farinha; a crueira é a parte grossa, que não vai servir, que joga pra animal; a mandioca, quando vai peneirar, fica a parte grossa que joga fora, e a fina que faz a farinha. Os homem disse assim: “Eu pego, isso é lobisomem que tá comendo essa crueira, eu pego! Já sei que vou fazer.” O lobisomem é o homem que vira lobisomem. Eu vi depois que ele devirou. A turma chegou na casa de farinha, aqui era o forno, fazia a farinha, fazia o beiju. Deixou a crueira. Pra não queimar, tirou o fogo de baixo; ficou quente, aí botou a crueira: “A gente vai pegar esse lobisomem.” Fez isso: marrou, pegou a corda; marrou, marrou um prego; marrou um prego e marrou a corda; marrou a corda; quando chegou ali, naquela outra parede, furou pra corda passar. Oxente, quando o lobisomem entrou, a turma puxou a corda. A porta veio, aí puxou; puxou, ficou até de manhã preso. Quando a turma chegou de manhã cedo, que ele foi pegar a crueira, tava ele com a cara aqui assim, todo vomitado de crueira, casca de caranguejo... A família desse daí não morreu ainda. Histórias do Monte Recôncavo
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Não teve nem muito choro Ele sabia o dia e a hora que ia morrer. Meu pai tinha um livro de São Cipriano. O pai tinha. O pai disse assim “olhe, essa roupa aqui, essa calça branca, essa camisa branca, vai ficar por vida aqui na mala, ninguém pegue” — o pai não, meu avô. Disse “olha, aqui ninguém vai bulir nessa roupa aí” Que foi que ele fez? Ele disse que ele sabia o dia e a hora que ele ia morrer. A gente dizia “oxe, sabia o quê, pai? Ele é adivinhão?” “Sabe, minha filha, sabe. Ele vai saber o dia que ele vai morrer. Ele diz que, no dia que ele for morrer, ele vai vestir aquela roupa branca.” Foi. Ele tava doente, mas tava de pé, andando. Aí ele disse assim: “olhe, amanhã vou tomar um banho tais hora, e eu vou vestir aquela roupa.” No outro dia, tomou banho, vestiu a roupa. Aí se deitou. Ele diz que leva um ano rezando, sem parar. Sem parar um dia. É um ano, todo dia tem que rezar, mas não reza dentro de casa não. Meu avô rezava ou na rua, assim sentado assim, ou lá viajando, pra roça, pra qualquer lugar, diz que rezava. Ele rezou um ano. Quando foi um ano, ele mostrou a data. Falou “vou tomar um banho, vou tomar um banho que eu vou me arrumar. Eu vou vestir minha roupa branca hoje, vou dormir.” Ele tomou banho, vestiu a roupa, pegou talco. Pegou talco, botou embaixo do braço, botou no pescoço; aí abotoou aqui. Ia de manga comprida, abotoou, se deitou. Aí puxou a porta. Na base de uma hora assim, quando foi espiar, oxente, o velho tava durinho. Não teve nem muito choro, porque ele sabia, ele falou.
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Era um cordão do lado de fora Aqui era bom que não tinha essa violência. Porta dormia aberta. Lá em casa mesmo não tinha chave: era um cordão do lado de fora. Eu saia em qualquer lugar, era só amarrar o cordão no prego e saia. Não tinha nada de roubo. Não tinha nada de entrar na casa dos outros. Só entrava ali era quando dizia: “Vizinha, vou sair! Cuida o feijão ali ói! Cuide o fogo ali!” Não tinha essa esperteza e viciação como agora não.
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A gente tomava bênção do mais velho Naquele tempo, tinha educação mesmo: A gente tomava bênção do mais velho, que era uma ordem que nosso pai dava pra a gente tomar bênção do mais velho. Aquela época tinha respeito. A gente respeitava, existia respeito. Era “o senhor”, “a senhora”, “meu tio”, “minha tia”. Mas hoje não: Hoje nem olha pra cara da gente, dá o dedo, pinta o diabo, manda pra esse, manda pra aquele. Hoje você tá vendo aí morrendo esses menino novo, tudo morrendo, rapaz, é droga, se metendo em besteira... Vocês hoje, que é educador, ficar com medo, ter medo? Naquele tempo, o ensino era rígido. Hoje acabou, a tabuada acabou; lição de cor não tem mais. Hoje é tudo no dedo, na maquinazinha. Tô dizendo o que eu vejo aí: Robô tá tomando conta. Robô tá tomando conta da gente.
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É no fundo meu do olho O que é que eu faço, minha filha? O dia todo deitada. Quando não é deitada, é aqui sentadinha na cadeira velha. Eu quero ir uma horinha lá pra conversar, que lá eu converso um bocado, aí distrai a cabeça. Porque a minha filha trabalha e fico só. Não faço nada, a filha não deixa eu fazer nada que eu não enxergo direito. Tem hora que a cabeça rende direitinho, tem hora que eu largo o fogo... — tem medo que abra o bujão e o fogo, o gás, saiu... A filha, quando vai ver, fica meio cismada. Eu tenho aquela doença. É na retina, é no fundo meu do olho, na menina. Era transplante de córnea, tirar uma córnea de pessoa que morra — de acidente, essas coisa assim, que ainda esteja ali com a córnea. Eu não fiz não, não acreditei não. Eu preferi confiar em Deus. Eu saio assim com os menino, mas eu subo aí. Essa ladeira que você desceu aí, eu subo sozinha com a minha bengalinha. Histórias do Monte Recôncavo
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Subo, passo aqui, atravesso um passeio daquele ali, vou, vou, vou, vou. Quando chega lá adiante, sempre tem alguém que me olha. Os menino não pode me ver: “Pra onde vai?!” Aí pronto, me pega, me bota dentro do carro. Meus irmão da igreja vêm, me pega aqui dia de domingo pra ir pra igreja; outro vem. É assim, não pode me ver, aí reclama. Eu, às vezes, deixo de ir por isso. Porque quando eles me veem “oxe, eu vou lá em cima, vou ver meu filho, vou ver minha neta, vou ver minha nora.”
eu digo:
A gente não pode ficar sentada demais não.
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Até o infinito Ontem fiz 87 anos. 87 anos. Só tem eu hoje nessa idade aqui de 87. Chegar à velhice não é muito bom não. Não é muito bom não. Não. Não é bom porque ele acha um bocado de maltrato. É, maltrato. Que hoje, um velho que tiver um filho uma filha que bota ele aqui porque o resto... abrigo, quer botar no abrigo. Eu acho que o filho tem que aproveitar o pai até o Infinito.
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M E M Ó R I A é P O E S I A
M
aricelia e eu nos conhecemos na nossa primeira aula: ela, caloura do curso de Licenciatura em Letras - Língua Portuguesa, na sua primeira aula no Instituto de Humanidades e Letras do Campus dos Malês da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB, em São Francisco do Conde; eu, professor recém chegado à Bahia e recém empossado, na minha primeira aula, particularmente, de Leitura e Produção de Texto I. Era julho de 2018. Naquele mesmo semestre, pouco depois, tive a sorte de participar de um evento organizado por outra estudante da UNILAB, também pertencente à comunidade quilombola do Monte Recôncavo, no qual vários anciões e anciãs compartilharam com estudantes universitárias/os suas memórias e seu regozijo por tê-las, por terem tido uma vida tão diferente à de hoje e poderem relembrá-la e contar histórias a partir dela. Esse regozijo soava proporcional às mágoas e aflições por transformações sofridas no dia a dia e na cultura da comunidade ao longo do tempo, assim como pela falta de interesse e escuta das novas gerações em relação a conhecimentos que estão se indo junto às pessoas que falecem sendo suas últimas sabedoras. Os últimos sábios e sábias estão se indo, e isso nos afunda, de modo mais radical ainda, no doentio oceano de ignorância em que estamos sumidos. É por isso que aqueles que realmente almejam conhecimento, aqueles que o desejam com devoção (não porque vão ganhar mais ou menos, nem ficar mais ou menos prestigiados ou poderosos, e sim porque almejam sabedoria, abrir caminhos para outros e contribuir para o bem de todos, pois é bom para todos que todos tenham conhecimento), esses se reconhecem entre si. Tem gente que tem vontade de saber saltitando nos olhos e eu sempre vi essa vontade de saber (vejo até hoje, cada dia mais forte) saltitando nos olhos de Maricelia. Foi por isso que, na nossa primeira aula depois daquela minha primeira visita ao Monte, fui logo conversar com ela sobre quanto tinha gostado de escutar aqueles sábios/as da comunidade (e quanta alegria e tristeza tinha ouvido delas!). Ela já veio logo me dizendo que esse era o projeto que ela mesma desejava fazer na Histórias do Monte Recôncavo
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universidade: escrever livros com as histórias do Monte para que jovens e crianças de hoje e jovens e crianças que virão amanhã possam ter consciência de como era o Monte no tempo dos antigos; no tempo em que os avós de hoje eram crianças, e cresciam junto aos seus avós e pais e mães entre ladeiras, pés de árvore, festividades, rezas, histórias e fontes. Maricelia já tinha feito pesquisas junto aos anciãs/es. Essas pesquisas, feitas em parceria com outras lideranças da comunidade, contribuíram significativamente para o reconhecimento da comunidade enquanto Quilombo. Ela já tinha experiência como professora e também na área de teatro. Eu carregava comigo oito anos de experiência junto às comunidades indígenas de Santa Catarina, junto às quais elaborei minha dissertação e minha tese e participei em programas de formação de professores e na elaboração e publicação de materiais didáticos. Tinha tudo pra dar certo. Após a nossa conversa, começamos a elaborar o projeto Sábios/as e mais velhos/ as com a palavra: Estudando línguas na comunidade quilombola do Monte Recôncavo (São Francisco do Conde/BA), projeto de pesquisa que desenvolvemos entre agosto de 2019 e dezembro de 2020. Nele, realizamos entrevistas com as quatro mais velhas e dois mais velhos que são narradores das histórias deste livro: com Dona Angélica e Tia Neném, no dia 29 de outubro; com Seu Ezequiel, no dia 18 de novembro; com Dona Periquita, no dia 19 do mesmo mês; com Dona Celina e Seu Zé, no dia 03 de dezembro. Durante as conversas, nas residências de cada um deles, o engajamento e espontaneidade de Maricelia, que ia colocando suas perguntas — muitas vezes também respondendo-as com suas próprias memórias — para futucar nas lembranças dos seus interlocutores — das quais ela também faz parte —, fez com que ela se tornasse mais uma narradoras, acrescentando formas de expressão, histórias e lembranças. As 8 horas, 20 minutos e 13 segundos resultantes da gravação em áudio das conversas junto aos anciões e anciãs renderam meses de transcrição que envolveram inúmeras revisões para adaptar ao texto escrito conversações orais que seguem convenções muito diferentes e que envolveram interlocutores com formas de falar sublimes e particulares. Esse trabalho foi árduo e concentrou a maior parte do esforço produzido para a pesquisa. A transmodalização é uma atividade muito desafiante, pois é muito difícil expressar algo já dito anteriormente em um modo diferente: traduzir uma música para uma imagem; traduzir uma imagem para um filme; traduzir conversas descontraídas para um livro de história em linguagem de literatura. Os resultados e as intenções são muito diferentes e, portanto, a linguagem em que se manifestam, também. Como transformar as ricas memórias e oralidades desses anciões do Monte em textos escritos e para quê? No âmbito da pesquisa acadêmica hoje, se pesquisadores quiserem publicar as palavras das pessoas junto às quais pesquisam para que outros possam ouvi-las e
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aprendê-las, eles devem se colocar por cima delas, falar sobre elas e tornar aquilo que eles dizem sobre elas (a “teoria”) mais importante do que as pessoas e suas palavras (os “dados”) em si mesmas. O que os pesquisadores dizem sobre a vida, atos e palavras das pessoas junto às quais desenvolvem seus trabalhos é mais importante, para a academia e para as ciências, do que aquilo que as próprias pessoas têm a dizer sobre suas próprias existências. Aliás, os pesquisadores são obrigados a providenciar uma “fundamentação teórica” para aquilo que eles ouvem das pessoas junto às quais investigam: É como se as palavras das pessoas que não são pesquisadoras não se sustentassem por si mesmas; como se elas carecessem de “fundamentação” e tivéssemos que procurá-la alhures, nas palavras dos pesquisadores, as quais seriam mais firmes e, portanto, capazes de “fundamentar” aquilo que não se sustenta por si mesmo. Por que nós faríamos isso? Devíamos procurar uma “fundamentação teórica” para as palavras e memórias dos anciões e anciãs da comunidade quilombola do Monte Recôncavo? Por que, se o importante é que jovens e crianças leiam (e ouçam) essas palavras e conhecimentos, deveríamos publicá-los como “resultados de pesquisa” no meio acadêmico, onde apenas pesquisadores os procurariam para suas pesquisas e não para realmente deixar se afetar profundamente por eles? No final da primeira fase do nosso trabalho, portanto, apenas identificamos categorias — principalmente geografia, práticas econômicas (trabalho, alimentação, brinquedos e brincadeiras), calendário de festividades, práticas de cura e de saúde, e valores e outros causos. A partir delas, poderíamos fragmentar e organizar as transcrições e produzir uma narrativa a partir de tudo que nos foi contado. Depois, rumamos para a extensão. Na extensão, é possível e esperado desenvolver trabalhos para comunidades externas à universidade e também em outras linguagens. Decidimos então traduzir os “dados” de nossa pesquisa (que carregam toda uma “fundamentação teórica” dentro) para um livro de histórias em gêneros literários (poemas e relatos). Acreditamos que esses gêneros serão mais acessíveis à própria comunidade do Monte Recôncavo e ao público em geral. Por outro lado, entendemos que eles honram em maior medida a poesia que costura as memórias dos anciões e anciãs narradores. Muitos acreditam que a poesia é algo que se lê nos livros, mas poucos sabem que a poesia é um deus que tudo permeia. A poesia é algo que falamos todo dia; qualquer fala e sua transcrição sempre podem ser traduzidas para (e são, de fato) um poema. Isso se revela absurdamente verdadeiro quando transformamos conversas espontâneas entre parentes e vizinhos em monólogos. Em cada um dos textos deste livro, muitas vozes se concentram. Não há como não reproduzir em poemas e relatos algo que é relatado com tamanha espontaneidade, polifonia, poesia e sinceridade. Para honrar os anciões/ãs, suas palavras e memórias, a poesia é, sem dúvida, a melhor estratégia. Histórias do Monte Recôncavo
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Por isso fomos transformando segmentos das transcrições das falas dos anciões em poemas e relatos; dando-lhes a formatação e a pontuação necessárias para que, na escrita, tivessem tanta força e tanta beleza como oralmente tiveram nos encontros em que tivemos o privilégio de ouvi-las. Tentamos respeitar ao máximo as palavras e formas gramaticais e expressivas dos anciões, mas com liberdade, sem nos apegarmos excessivamente a elas: transcrições tal qual ocorreram de fato as conversas tornariam a leitura do texto muito técnica e inviável para a maioria de leitores e leitoras possíveis; embora complementares, oralidade e escrita são modos distintos. A reprodução que aqui se oferece é uma reprodução sofisticadamente fiel, e por isso ela não é exata, não busca sê-lo, não tem como ser: é uma representação que almeja tanta fidelidade como literatura; tanta poesia e tanta história como memória, verdade e identidade. Pela variedade dos temas abordados e pela sua singularidade, acreditamos que este livro é uma semente: uma semente para mais histórias aos montes, muitos outros livros e muitas outras pesquisas desenvolvidas por outras pessoas (as crianças, jovens e adultos a que nos dirigimos), a partir de cada um dos 81 textos deste livro. Esperamos, portanto, que este possa ser o livro-semente de uma árvore de livros sobre o Monte e sobre comunidades quilombolas, com monte de histórias e palavras de outros e outras anciões e anciãs, registrada a poesia que emana aos montes das suas línguas. Dona Angélica, Dona Celina, Dona Periquita, Tia Neném, Seu Ezequiel e Maricelia, parceiros nesta caminhada, pela poesia que aprendi junto com vocês, muito obrigado! Seu Zé Bernardo, o brilho dos seus olhos ao contar suas histórias vai nos iluminar até a velhice, na qual contaremos suas e nossas histórias e nossos olhos brilharão tanto quanto os seus. Queríamos muito que o senhor pudesse receber de nossas mãos este livro. Suas histórias estão aqui e estarão em nós até o Infinito. Carlos Maroto Guerola Salvador, 10 de março de 2021
A gente já nasceu quilombola e não sabia
Maricélia Conceição dos Santos é mulher negra quilombola, professora, candomblecista, bacharel em Pedagogia, estudante de letras na UNILAB, mãe, e filha de dois seres humanos incríveis, Mauro dos Santos e Maria de São Pedro Conceição de Jesus, moradora de um lugar maravilhoso da cidade de São Francisco do Conde, seu lugar de existência Monte Recôncavo.
Carlos Maroto Guerola é poeta, linguista, professor e pesquisador universitário, compositor, migrante residente, natural de Valdepeñas, crente fervoroso na poesia, na imaginação e no talento dos seres humanos, principalmente daqueles que sentem e seguem uma vontade sincera de estudar e de aprender.
“É tradição sua história. Sua vó tem uma história no Monte. Não tem igual não. O jeito é retornar mesmo, porque eu acho assim ó: a gente é quilombo, a gente nasceu quilombola e não sabia. A gente tem que resgatar essa cultura da gente mesmo.”
Poemas e relatos a partir de conversas com
Angélica dos Santos Celina dos Santos Gregório Eunice Honorina Mendes Eunice Maria Nerys dos Santos Ezequiel dos Santos Zé Bernardo