Revista Gotaz #02

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texto: Flavya Mutran ilustração: brisa máxima

Pensar na rede mundial de computadores como um lugar que é muito mais que um espaço virtual tem sido um desafio para diversos campos do saber. Teóricos, críticos e artistas têm se ocupado em conceituar ou materializar a diversidade das comunidades em rede associando-as a utopias, heterotopias ou distopias, sem, no entanto, dimensionar conclusivamente a amplitude desses espaços nas atuais relações sociais. Mas eu quase sempre gosto de pensar na web, e principalmente nas redes sociais, como um território de atravessamentos, deslocamentos. Acho irresistível relacionar esse lugar de trânsito com o País de Espelhos de Alice Lidell, de Lewis Carroll, pois ambos são territórios interconectados e contraditórios que mesclam realidade e ficção. Em ciberespaços a imaginação opera de forma potente e, como no mundo de Alice, é possível experimentar (re) construir ou (re) inventar palavras, a imagem do outro e de nós mesmos. Janelas, portas e escadas podem ser cegas, pés e mãos são às vezes acéfalos, e mesmo diante da imensidão de rostos, o que mais se vê são sombras - quase sempre do próprio internauta, que parece não resistir à tentação de se autoinserir no mundo digital a partir do seu próprio vulto. Então, é para as sombras que prefiro olhar. Na psicologia analítica a sombra refere-se ao arquétipo que é o nosso ego mais obscuro, nosso duplo interior. E tão obscura quanto sua pouca exatidão histórica, a origem de todos os processos de representação estaria literalmente ligada à sombra, e para Philippe Dubois é no gesto inaugural de delimitar o contorno da forma humana em uma superfície que se reportam não só à alegoria da “Caverna de Platão”, como também a origem do desenho e da pintura no mito de Plínio, o Velho. Foi também a partir dos perfis de sombras que artistas do século XVIII decalcavam a imagem de alguém a fixando pelo desenho no anverso de seu verso, do outro lado da tela. Tal método, precursor de tantas mudanças na forma de representar a natureza, evoluiu para algo mais radical ainda com a impressão de sombras sem o auxílio das mãos de artistas, graças aos processos fotoquímicos para fixação da imagem pela ação da luz que deram origem à Fotografia no Século XIX. Em última instância, a história da Fotografia é também uma história feita de sombras, e não é de se estranhar que na internet, território onde a fotografia impera 22

como a linguagem mais poderosa, o mundo das sombras venha construindo a visualidade do nosso tempo. Sombras, espelhos, portas, janelas e escadas aparecem recorrentemente nas Redes Sociais remetendo-nos aos temas clássicos das representações e, mesmo fora do circuito da arte, demonstram que são muito mais que ícones mentais, ou índices autorreferentes, confirmando-se como símbolos do poder da imagem no mundo contemporâneo. O universo de Alice - em suas brincadeiras de entrar em buracos, perder-se por entre vultos da floresta mudando de tamanho e entrando em espelhos -, existe para nos lembrar da criança que guardamos ou perdemos dentro de nós. Curioso que é também na infância que Lacan identificou sua teoria sobre a “fase do espelho”, como sendo a propulsora das dificuldades que se enfrenta na construção da identidade e na relação com a alteridade, presentes em todas as fases da vida. Não é à toa que esse mundo mágico das personagens infantis tenha tanto a dizer de nós, e para nós. Nem sei se importa saber se a web é um desses lugares utópicos como o país das maravilhas ou o país dos espelhos, se é um heterotópico Foucaultiano ou um não-lugar da pós-modernidade, mas sei que são territórios que se projetam de dentro para fora da imaginação humana. Tornaram-se portais mediadores entre realidade e ficção, onde se é permitido o sonho e o (auto) conhecimento, onde se liberam condutas reprimidas ou normas culturais, e pode-se conviver entre “bichos” falantes das mais diferentes espécies. Ao final, das nossas entradas nesses territórios virtuais resta-nos a lembrança de passeios invisíveis, fragmentos da nossa passagem pelo país do espelho fotográfico, e como diria Roland Barthes, só existe para simular a “reminiscência feliz e/ou dolorosa de um objeto, de um gesto, de uma cena, ligados ao ser amado, e marcada pela inclusão do imperfeito na gramática do discurso amoroso”.

Ao final, das nossas entradas nesses territórios virtuais resta-nos a lembrança de passeios invisíveis


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