Editorial
Por uma política global
Quando lançamos o número zero da GLOB(AL), durante o III Fórum Social Mundial de Porto Alegre, enfatizamos que a mudança trazida pela vitória de Lula nas eleições deveria enfrentar positivamente o desafio de não ter modelo algum para seguir. A mudança estava justamente na ausência de um "modelo pronto para o uso" e na abertura que isso indicava em direção a algo de novo. Agora, quando estamos lançando o número um, achamos que essa avaliação política estava correta. Nos acertos, bem como nos desacertos, desses primeiros dez meses de governo podemos ver uma clara confirmação do que antecipamos: não há modelo e a crise do Estado não parece ser conseqüência das políticas neoliberais. Sendo assim, sair da crise em que nos encontramos só será possível se forem construídas as bases materiais para uma nova política. Contrariamente a vários intelectuais de "esquerda", que rapidamente passaram da adulação do candidato à condenação do presidente, achamos que o caminho ainda está completamente aberto e que é preciso conquistá-lo em três níveis: construção de políticas públicas de universalização dos direitos, atenção à capacidade dos movimentos sociais de materializar esse processo para além dos limites da representação e de suas mediações, consolidação dos esforços de democratização do processo de globalização. Pensar as condições materiais de uma política que seja global depende, assim, da capacidade dos movimentos sociais de dar um conteúdo democrático às reformas (como a da Previdência). Isso acontece dentro das universidades pela afirmação de uma nova clivagem entre o corporativismo reativo e o esforço para abri-las aos movimentos sociais, como o dos pré-vestibulares para negros e carentes. Do mesmo modo, nas favelas, para além do impasse paralisante entre narcotráfico e Estado, há grupos e cooperativas que organizam a produção cultural (através de música, teatro, rádio, vídeo), apontando saídas e afirmando a vida, num cenário de violência e pobreza, abrindo os guetos às dinâmicas dos movimentos locais e globais. A possibilidade da critica à "soberania imperial", ou seja, aos constrangimentos impostos pelas políticas do FMI, do G8 ou da OMC, passa essencialmente pelo caminho de uma política global. Depois de Seattle e Gênova, os movimentos globais se mostraram capazes de enfrentar a efetividade do poder imperial e de abrir brechas, cada vez mais consistentes, em sua legitimidade. Foi o que vimos na ocasião das manifestações oceânicas contra a guerra do Iraque que tiveram lugar em quase todas as cidades do mundo. Esse processo é de extrema importância para a América Latina. A inovação política que está se constituindo com o governo do Presidente Kirchner na Argentina (com o apoio do Brasil de Lula) mostra o quanto o trabalho da multidão (a insurreição de 19 e 20 de dezembro de 2001) indica um sujeito adequado ao desafio de constituir instâncias de democracia dentro da globalização. É nesse horizonte inovador que devemos encarar o governo Lula: não pelo seu agir como mais um governo nacional, mas pelo seu constituir-se no espaço (o da política global) de um novo tempo (o do trabalho da multidão). 01 GLOB(A.L.)
Jornalista responsável Fábio Luiz Malini de Lima Coordencão Editorial e Executiva GLOB(AL) Alexandre do Nascimento Ecio de Salles Ericson Pires Fábio Malini Gerardo Silva Giuseppe Cocco Graciela Hopstein Ivana Bentes Maria José Barbosa Peter Pal Pelbart Tatiana Roque Conexões Globais Antonio Negri (Itália), F. Ingrassia (Argentina), Javier Toret (Espanha), Luca Casarini (Itália), Marco Bascetta (Itália), Michael Hardt (Estados Unidos), Nicolás Sguiglia (Espanha), Raul Sanchez (Espanha), Ruben Espinosa (Argentina). Comitê Editorial Alexandre Vogler André Basseres Charles Feitosa Fernando Santoro Jorge Davidson Kiko Neto Leonora Corsini Luiz Andrade Patricia Fagundes Daros Ronald Duarte Conselho Editorial e Cadernos Especiais Adriano Pilatti Ana Monteiro André Urani Caio Márcio Silveira Emanuele Landi Eugênio Fonseca Francisco Guimarães Hermano Viana João Almeida Sobrinho Joel Birman Jô Gondar Leonardo Palma Liane Freire Lorenzo Macagno Luiz Camillo Osório Márcio Calvão Marta Pinheiro Marta Porto Mauro Sá Rego Costa Simone Sampaio Suely Rolnik Revisão dos Textos Fábio Goveia Fábio Malini Projeto Gráfico/Diagramação Do Lar Design Ltda Barbara Szaniecki Bitty Nascimento Silva Isabela Lira dolar.rj@terra.com.br Pesquisa de Imagem Ronald Duarte
GLOB(A.L.) 02
Imagens Aliedo Antônio Manuel Arthur Omar Barbara Szaniecki Bel Pedrosa Bernardo Damasceno Brígida Rodrigues Chang Chi Chai Claudio Cambra Coletivo Comungos Elisa Colpicolo Eloar Guazzelli Felipe Barbosa Fernando Rabelo Giuseppe Cocco Luis Andrade Marcos Cardoso Marcos Carrasquer Marta Niklaus Paulo Innocêncio Raimundo Rodrigues Rodrigo Lopes (capa) Ronald Duarte
Trânsitos
Quadrinhos Eloar Guazzelli (indicação: Emanuele Landi) GLOB(AL) é uma publicação da Rede Universidade Nômade e do CIEC/UFRJ. Avenida Pasteur, 250 - 3o Andar - Prédio Anexo ao CFCH - 22290-240 - Urca RJ Tel 55 21 3873 5216/17/18/19 global.al@terra.com.br GLOB(AL) é a edição brasileira associada ao GLOBAL PROJECT ao qual pertencem também GLOBAL edición en espanhol enespanol@yahoo.com.ar e GLOBAL magazine/Itália www.globalmagazine.org Participaram deste número Alexandre do Nascimento Antonio Negri Caio Márcio Silveira Carlo Vercellone Celso Athayde Cesar Altamira Charles Feitosa Coletivo Comungos Eloar Guazzelli Felipe Coelho Fernando Santoro Gerardo Silva Giuseppe Cocco Ivana Bentes Jailson de Souza e Silva Joel Birman Liliane da Costa Reis Marco Aurélio Garcia Martin Bergel Mauro Sá Rego Costa Mulheres do MST MV Bill Ricardo Sapia Roberto Zanini Tatiana Roque Thomas Schaffroth Valter Rodrigues
Universidade Nômade
Conexões Globais
Quadrinhos
Maquinações
G L OB(A L)
(01)
Editorial
(04)
A política global do governo Lula - Entrevista com Marco Aurélio Garcia por Antonio Negri
(10)
Lula: governo nacional ou política global? Giuseppe Cocco
(14)
Traição? Pode ser, e daí? Tatiana Roque
(16)
Tortura e memória Tatiana Roque
(17)
Palavras, palavras e palavras Alexandre do Nascimento
(18)
Carta a Senhora Juíza Ellen Mulheres Sem Terra
(20)
Crônica da conjuração baiana Coletivo Comungos, Projeto Esquizomídia
(22)
A favela imaginária da classe média Jailson de Souza e Silva
(24)
A paz sem voz não é paz, é medo Giuseppe Cocco
(25)
A invasão de São Bernardo: a luta dos "sem" e o Estado de Direito Ricardo Sapia e Giuseppe Cocco
(26)
Espaço e diferença: quando morar é um ato de resistir Charles Feitosa
(28)
Por uma Universidade Nômade Manifesto
(30)
O superior e o inferior Fernando Santoro
(31)
A universidade fora da sala de espelhos Felipe Coelho
(32)
Democracia na universidade passa pela internet e pelo rádio Mauro Sá Rego Costa
(34)
Trabalho sem medida - Entrevista com André Gorz por Thomas Schaffroth
(39)
Sangue brasileiro no cemitério iraquiano Roberto Zanini
(40)
A Argentina na era K Alejandro Suero
(42)
Ares de justiça Gerardo Silva
(43)
Argentina: entre a política do controle e a organização dos movimentos César Altamira
(44)
Balanço sobre movimentos na Argentina Martin Bergel
(46)
Não vão conseguir destruir um povo Eloar Guazzelli
(50)
“A solução vai vir de nós para nós” - Entrevista com MV Bill por Ivana Bentes
(54)
Efeito Cufa, comunicando a favela Celso Athayde
(56)
A esquerda e o susto do cavalo do dragão Valter A. Rodrigues
(58)
A política no psicanalisar Joel Birman
américa latina
(59)( A Expo Brasil Desenvolvimento Local e a potência dos territórios Caio M. Silveira e Liliane da C. Reis 22)
0 3 GLOB(A.L.)
A
GLOB(A.L.) 4 Tr창nsitos
política global do governo
Lula
Entrevista com Por
Assessor de relações internacionais do presidente Lula, o intelectual Marco Aurélio Garcia faz uma releitura sobre o sentido de ser esquerda no país, relata as estratégias brasileiras na economia global e é contundente ao afirmar que organismos internacionais, como o FMI, não podem morrer.
Marco Aurélio Garcia Antonio Negri, Giuseppe Cocco e Tatiana Roque “As organizações internacionais devem ser profundamente reformadas”
Global - Depois de usurpar o poder republicano, a administração Bush tenta agora hegemonizar a função imperial, isto é, monopolizar o comando sobre o mercado global. Na Europa, com apoio da Rússia e da China, algumas forças estatais se opõem a esse desenho, além de importantes forças religiosas que se colocaram do lado justo desse confronto. Qual é a posição dos governos da América Latina? Marco Aurélio Garcia - É impossível falar sobre uma posição comum da América Latina, ou até mesmo da América do Sul, sobre o atual quadro mundial. Basta ver as distintas posições adotadas no que se refere às grandes negociações comerciais internacionais e, em especial, no âmbito continental. Algumas generalizações podem ser feitas e, mesmo assim, com cuidado. É evidente que as assimetrias econômicas internacionais são sentidas no continente como um grave problema. Mais grave ainda são os efeitos do protecionismo aberto ou disfarçado que as grandes economias praticam vis-à-vis dos países da região, prejudicando sobretudo aqueles produtos nos quais somos competitivos. Mas as respostas diante dos constrangimentos têm sido diferen-
ciadas. Obtivemos um relativo consenso para defender uma posição comum na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún. A apresentação de uma agenda positiva em matéria agrícola pelo denominado G22, em resposta ao pacto entre Estados Unidos e União Européia, é sem dúvida um grande avanço. No âmbito das negociações regionais, o consenso
tem sido mais difícil. Há países que têm mostrado forte propensão para aceitar a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) sem grandes exigências, porque consideram que essa aliança lhes trará benefícios. O Chile, por exemplo, aceitou basicamente a proposta da ALCA no tratado de Livre Comércio que firmou com os Estados Unidos. Já os países do Mercosul, que foram singularizados nas ofertas feitas pelos Estados Unidos para a ALCA, têm apresentado contrapropostas que serão dificilmente aceitas se Washington mantiver suas posições atuais. No âmbito político, há fenômenos positivos. Muitos países têm demonstrado insatisfação com o quadro mundial atual, marcado pelo unilateralismo. É sabido que, antes do início da guerra do Iraque, Chile e México recusaram apoiar a resolução dos EUA, Reino Unido e Espanha que autorizaria aquele país a atacar. Governos das mais distintas origens político-ideológicas estão se reunindo, debatendo temas bi e multilaterais, avançando medidas que podem contribuir para a construção de uma articulação mais sólida, pelo menos no âmbito sul-americano, o que já seria algo extraordinário. É evidente que as atuais relações de força têm que ser alteradas se quisermos viver em um mundo mais justo, equilibrado e democrático. A construção de uma alternativa é, e será, um trabalho complexo. A Europa está muito dividida, como se pôde ver na crise do Iraque. Ela não tem sido capaz de apresentar uma posição sólida, apesar de esforços isolados. Optamos por não buscar confrontos. Trânsitos 5 GLOB(A.L.)
Global - Por quê? Marco Aurélio Garcia - Preferimos consolidar uma posição regional com base em um programa que nos permita abrir um novo ciclo de crescimento no qual o atendimento às demandas sociais dos excluídos e dos pobres tenham um caráter estruturante no novo modelo econômico. Esse novo desenvolvimento deverá ser acompanhado por uma radicalização do processo democrático, que nos permita reformar e fortalecer instituições e ampliar um espaço público onde possam ser criados novos direitos. Finalmente, a nova proposta exige uma presença mais soberana da região no mundo, uma das condições para mudar a atual (des)ordem internacional. Global - O que significa a democracia global na América Latina? O governo democrático de Lula tem a oportunidade e a vontade de estabelecer relações com os movimentos “noglobal” sobre um programa global de democracia? Marco Aurélio Garcia - Dada a difícil situação internacional atual e a pesada herança social e política, não só recente, que recebemos, o governo Lula está diante de desafios complexos. A transição para a democracia, iniciada nos anos 80, em certo sentido ainda está inconclusa. As instituições do Estado democrático de direito têm que sofrer, ainda, uma considerável evolução. Por outro lado, como antecipei anteriormente, temos que aprofundar outros mecanismos democráticos que permitam a conformação de um poderoso espaço público, espaço de geração de novos direitos e de controle do Estado. Necessitamos realizar uma reflexão sobre as experiências democráticas dos últimos 25 anos no Brasil para avaliar que peso elas podem ter na configuração de uma proposta para revigorar a democracia no país e no mundo. Não pode passar despercebido o fato de que foi para Porto Alegre, cidade marcada por um forte experimentalismo democrático nos últimos anos, que confluíram movimentos sociais, políticos e culturais do mundo inteiro, a fim de afirmar a convicção de que um outro mundo GLOB(A.L.) 6 Trânsitos
era possível. Lula, que havia estado nos foros de 2001 e 2002, na condição de líder político de oposição, compareceu em 2003 como presidente da república. Nas três ocasiões reiterou substantivamente as mesmas posições em defesa de uma nova ordem mundial, justa e democrática. Um programa global de democracia deve ser entendido como uma complexa, mas necessária, construção. O governo brasileiro demonstra estar participando dessa construção.
“Optamos por não buscar confrontos. Preferimos consolidar uma posição regional com base em um programa que nos permita abrir um novo ciclo de crescimento no qual o atendimento às demandas sociais dos excluídos e dos pobres tenham um caráter estruturante no novo modelo econômico”
obviamente, estão ultrapassadas. Isso é particularmente grave tendo em vista as transformações por que passou a economia internacional nas duas últimas décadas, após o esgotamento dos “trinta gloriosos”, com profundas repercussões sociais e políticas, inclusive na cultura política até então dominante. A globalização produtiva, comercial e, sobretudo, financeira, introduziu uma relação profundamente instável entre nações, grupos empresariais e organizações multilaterais. Tentativas como a do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) expressam a gravidade da situação. Há quem defenda o fim de organizações internacionais como o FMI, o BIRD ou a OMC, responsabilizando-as, com justiça, por políticas que tiveram conseqüências econômicas e sociais nefastas para muitos países. Essas instituições devem ser profundamente reformadas, mas nunca eliminadas. Seria a barbárie completa. Ruim com elas, pior sem elas. Global - A ONU precisa ser consolidada, por exemplo, pela inserção do Brasil e da Índia no Conselho de Segurança, ou precisa ser reinventada?
Global - As perspectivas econômicas em escala global são obscuras. À crise financeira que acompanhou a bolha da new economy, e aos escândalos financeiros inaugurados em 9 de setembro de 2002, somam-se os custos da guerra do Iraque (e da ocupação). A administração Bush não possui os meios para pagar a guerra e a retomada do crescimento. Além disso, muitos economistas duvidam que as atuais elites capitalistas desejem o ‘new deal’ global: elas preferem se financiar e se legitimar por meio da guerra. Na América Latina, há uma vontade das forças democráticas, estejam onde estiverem no governo, de inventar, de organizar e/ou apoiar iniciativas do tipo “new deal” em escala mundial, que não sejam a Wall Street de Bush e a Londres de Blair? Será possível sair da crise atual experimentando as políticas e as instituições econômicas globais?
Global - Como os movimentos globais poderão obter representação no mundo?
Marco Aurélio Garcia - A ordem econômica mundial, e suas instituições, surgidas em Bretton Woods,
Marco Aurélio Garcia - Nos últimos três anos, sobretudo, temos assistido a grandes mobilizações internacionais
Marco Aurélio Garcia - O que disse sobre os organismos econômicos e financeiros internacionais pode ser dito, em boa medida, sobre a ONU. As Nações Unidas nasceram e se desenvolveram em um contexto internacional que se modificou profundamente. É possível que seja necessário “reinventar radicalmente” a ONU. Mas talvez possa vir a ser possível e viável avançar uma reforma consistente da Organização, da sua Assembléia Geral, de seus organismos, em especial do Conselho de Segurança. O Brasil, assim como Índia, África do Sul e outros países, podem e devem integrar de forma permanente o Conselho de Segurança. Mas é fundamental que sejam profundamente reformadas as políticas e os mecanismos de segurança coletiva.
Austrália
América do Sul África
América do Norte
em torno de problemáticas econômicas, sociais, políticas e culturais que configuram o surgimento de uma “sociedade civil global” ou de uma “opinião pública internacional”. Esses movimentos têm sido a grande novidade política mundial e me parece claro que deverão ter cada vez mais importância. Global - Como se pode imaginar – porque é isso que devemos construir – que exista um governo global que represente democraticamente a vontade de paz e justiça das multidões? Marco Aurélio Garcia - Há organismos internacionais - inclusive da ONU - em que organizações da sociedade civil começam a ter assento, assim como tem sido grande a participação de organizações não-governamentais em foros oficiais da ONU. É necessário que possam perfilar-se propostas concretas de participação desse movimento global nas instâncias decisórias dos organismos internacionais multilaterais. A partir dessas experiências será possível pensar de forma mais concreta os temas de um governo global.
Ásia
“Muitos intelectuais já eram oposição antes do governo Lula se iniciar, ou mesmo antes das eleições. Diziam que Lula não poderia governar com o programa que o elegeu e que, se tivesse apresentado um mais radical, não venceria. Alguns têm uma posição extremamente pessimista sobre as possibilidades da esquerda no mundo de hoje” Global - Passando às tensões internas, muitos intelectuais que apoiaram a eleição de Lula estão se mostrando cada vez mais críticos em relação a esse governo. Sem falar daqueles que já se consideram “oposição”, dos quais grande parte reivindica a implementação de um outro “modelo” econômico e um certo tipo de ruptura com relação aos constrangimentos
Europa
internacionais (FMI, etc.), citando freqüentemente as atitudes de Chávez e Kirchner. O que você acha dessas críticas e, sobretudo, das trajetórias internacionais invocadas como alternativas? Marco Aurélio Garcia - Cabe aos intelectuais uma função eminentemente crítica, e essa crítica é benéfica para o governo e, sobretudo, para o país. Mas os intelectuais vêem as grandes questões nacionais e internacionais de uma perspectiva distinta daquela dos governantes. A percepção que eles têm pode ser muito importante para o governo corrigir posições ou realizar mudanças políticas subs-tanciais. Suas teses não podem ficar, no entanto, ao abrigo da crítica. Muitos intelectuais já eram oposição antes do governo Lula se iniciar, ou mesmo antes das eleições. Diziam que Lula não poderia governar com o programa que o elegeu e que, se tivesse apresentado um mais radical, não venceria. Alguns têm uma posição extremamente pessimista sobre as possibilidades da esquerda no mundo de hoje. Afirmam a impossibilidade de reforTrânsitos 7 GLOB(A.L.)
mas na periferia do capitalismo mundial. Há uma dose de economicismo em muitas dessas posições. Nelas, não há lugar para as lutas sociais e para a política, que aparecem ferreamente condicionadas pela economia. O atual governo não só reivindica um outro modelo econômico, como vai implementá-lo, e deu os primeiros passos, por certo insuficientes, para eliminar os constrangimentos internacionais que pesam sobre o país. Fazer cair o dólar de 4 reais para 2,90, ajudou a combater uma inflação que se anunciava ameaçadora, além de atenuar as dificuldades de muitas empresas cujo endividamento se apresentava como sem solução, projetando uma grave crise econômica e social em caso de quebra. Reduzir o risco-país de 2400 pontos para menos de 650 não é apenas uma operação que busca prestígio, mas uma iniciativa que tem conseqüências decisivas no custo do dinheiro. Aumentar enormemente o superávit comercial, em um período de retração do comércio mundial, foi fundamental para inverter a situação das contas externas, altamente deficitárias há apenas oito meses. O esforço para diminuir crescentemente a parte dolarizada de nossa dívida interna, também ajuda a reduzir os constrangimentos macroeconômicos. Foram essas e outras medidas utilizadas pelo governo, nessa fase de transição, que permitiram enfrentar os organismos internacionais de forma soberana. O governo pode prescindir de novas negociações GLOB(A.L.) 8 Trânsitos
“O atual governo não só reivindica um outro modelo econômico, como vai implementá-lo, e deu os primeiros passos, por certo insuficientes, para eliminar os constrangimentos internacionais que pesam sobre o país”
com o FMI, porém, se resolver por prudência firmar um novo acordo, o fará em condições muito mais favoráveis. As posições que defendemos na reunião da Organização Mundial do Comércio, liderando uma ofensiva anti-protecionista contra os grandes blocos, se inscrevem nesse esforço de eliminar constrangimentos internacionais. Alguém pode ter dúvida de que a atual política externa, especialmente o esforço de criar um comunidade sul-americana de nações a partir de um Mercosul reconstruído, ou a aproximação com Índia, África do Sul, China e Rússia, dentre outros países, terá profunda repercussão na redução da vulnerabilidade externa? A posição do presidente Kirchner me parece absolutamente correta. Ela corresponde às particularidades da situação argentina, bastante distinta da nossa, como é diferente a situação da Venezuela. O Brasil tem demonstrado absoluta solidariedade com os dois governos e vem dando passos conjuntos no processo de integração regional.
Global - É evidente que, se o país não conseguir reduzir os constrangimentos externos, baixar expressivamente a taxa de juros e crescer, todo tipo de política será insustentável. No entanto, não é difícil ver que muitos esperam que o próprio crescimento crie as condições da distribuição de riqueza. Em termos mais otimistas e abertos, quais seriam as bases de um novo pacto, de um “newdealismo” brasileiro (e até latino-americano)? Marco Aurélio Garcia - A história do Brasil no pós-1930 mostra que o país tem gigantescas possibilidades de crescimento, mas que esse crescimento pode ter aspectos extremamente perversos quando concentra renda e poder, como ocorreu, ou quando se vê confrontado recorrentemente com a impossibilidade de construir mecanismos sólidos de seu financiamento e, portanto, de ser sustentável. O novo ciclo de desenvolvimento que queremos inaugurar tem no atendimento de grandes demandas sociais o seu elemento estruturante. Reiteramos que se trata de constituir um amplo mercado de bens de consumo de massa, que retire mais de 40 milhões de homens e mulheres da exclusão em que se encontram, reduza a pobreza e, ao mesmo tempo, tenha um forte impacto sobre o conjunto das cadeias produtivas do país. Respeitando a autonomia política de cada país, é óbvio que isso pode ser válido para toda a América do Sul. De nossa parte, está claro que queremos associar o
nacional; e, pelo vulto das obras a serem realizadas, dará um choque na economia, criando milhões de empregos diretos e indiretos. As mudanças que ocorrerão na geografia econômica do país e do continente serão acompanhadas de transformações qualitativas também no mundo do trabalho. Global - Para finalizar, e resumir, o tom de nossas perguntas assume um novo horizonte político, expresso em nosso primeiro editorial pela seguinte frase: “a falta (aparente) de alternativa é a (verdadeira) alternativa”. Não há
No plano político conjuntural, é evidente que a eleição de Lula, e tantas outras transformações progressistas na América do Sul, expressam uma nova percepção das amplas possibilidades de mudança que se estão abrindo. Ainda que sobre bases dadas, a história é essencialmente construção humana. A racionalidade das alternativas é inseparável das lutas sociais, sejam as que se dão nos grandes cenários, sejam aquelas que ocorrem nos pequenos espaços. Mesmo que não estejam nítidas grandes alternativas econômicas de
desenvolvimento do Brasil ao do continente. É claro, igualmente, que este novo ciclo de desenvolvimento tem que ir, simultaneamente, construindo seus mecanismos de financiamento para escapar, assim, das crises inflacionárias, da dependência externa ou da alternância entre espasmos de crescimento e períodos recessivos. Global - O governo está trabalhando muito, e de maneira bastante interessante, no planejamento de eixos de investimento para o desenvolvimento das infra-estruturas no Brasil e, também, no continente. Como já dissemos, é evidente que sem infra-estrutura o país não pode crescer, mas, por outro lado, não é um problema pensar em infra-estrutura sem pensar o papel distinto que elas possuem hoje, em um regime de acumulação baseado nos serviços, numa circulação que é cada vez mais agregadora de valor, tudo isso funcionando sobre uma nova qualidade do trabalho? Marco Aurélio Garcia - As políticas econômicas seguidas nos últimos anos, aqui e no continente, negligenciaram criminosamente a manutenção e a expansão da infra-estrutura do país e da região. Um novo ciclo expansivo pode ser frustrado por esse terrível déficit. A expansão da infra-estrutura permitirá uma real integração do país e do continente; beneficiará regiões hoje relegadas e produzirá um desenvolvimento mais harmônico; tornará nossas mercadorias mais baratas em nosso mercado interno e mais competitivas no mercado inter-
modelo pré-concebido e sua invenção não pode ser separada de seu processo de constituição. Cremos que será esse o verdadeiro desafio do governo Lula, que é também a sua potência. Será que estamos exagerando? Marco Aurélio Garcia - Nem a História chegou a seu fim, transformando-se em um eterno presente, nem ela marcha inexoravelmente em uma direção precisa, conduzida por um sujeito eleito, muitas vezes apresentado como não sendo sequer “consciente” de sua missão. A longa crise das grandes alternativas de esquerda do século XX nos libertou de uma pesada hipoteca. A rápida crise do neo-conservadorismo, ainda não de todo encerrada, começa a devolver a esperança àqueles que a haviam perdido e a instigar os que acreditam no caráter transitório do capitalismo a buscar caminhos para sua superação.
esquerda para superar a crise estrutural do capitalismo, é importante que os socialistas não desprezem as soluções que estão hoje a seu alcance e, sobretudo, que não percam de vista que o socialismo passa também e, talvez principalmente, pela socialização da política e do poder. Em um país sem plena cidadania, como o nosso, é necessário que ela seja assegurada. Que se constitua um amplo espaço público que permita a expressão de todos e a criação de novos direitos. Ao lado das transformações materiais que nosso país e nosso continente necessitam e exigem, há outras tantas - aparentemente imateriais - mas cuja força transformadora é enorme, porque cria dinâmicas históricas dificilmente reversíveis. O governo Lula se constituiu a partir dessas expectativas e tem como missão atendê-las.
Trânsitos 9 GLOB(A.L.)
Lula:
gove ou p Para mudar o país, o governo petista vai precisar decidir entre nacionalistas decepcionados e a multidão de sujeitos "sem". Os primeiros querem moratória e emprego na grande indústria. Os outros, direitos universalizados para não mais depender da relação assalariada e da disciplina fabril
Fotos Elisa Colpicolo / Museu da República
Bandeiras do Brasil
GLOB(A.L.) 10 Trânsitos
Fotos das obras Exposição Bandeiras do Brasil 7 de setembro a 23 de novembro de 2003 Museu da República Rua do Catete, 153 Catete, Rio de Janeiro Nesta página: Cláudio Cambra, 2003 Martha Niklaus, 1993 Marcos Cardoso, 2002 Pag 7: Chang Chi Chai, Risco Brasil, 2003
rno nacional olítica global
?
Giuseppe Cocco
O governo do presidente Lula se aproxima da marca de um ano de gestão. Já temos elementos para esboçar uma avaliação parcial. Esta pode se basear em uma grande constatação: com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo não houve nem ruptura do processo de globalização e ainda menos implementação de uma política econômica alternativa. Uma oposição forte surgiu de dentro do próprio PT, sobretudo, de sua base "intelectual", ao passo que a política atual do governo Lula constitui uma desmentida cabal do discurso que atribuía a crise do Estado às políticas neoliberais. Será que a "mudança" prometida passa por um governo nacional em nome do povo ou por uma política global? A oposição interna à base do PT se divide em dois blocos distintos: por um lado, os que rumam para a construção de uma força de esquerda alternativa. Por outro, os que, de dentro do governo, apostam na inflexão "desenvolvimentista" das políticas econômicas. Para os que já estão fazendo oposição aberta ao governo Lula, são os "mercados" e os "bancos" que impõem as políticas de cunho neoliberal. O governo não seria nada mais que um instrumento desses interesses. Para esses, Palocci é "o" inimigo. Para os que fazem oposição de dentro do governo, os altos juros e as reformas constituem uma fase passageira, herdada do governo FHC, de construção da confiança necessária à verdadeira mudança de "modelo". Para esses, o inimigo não é Palocci, mas "a turma dele", ou seja, os técnicos que representam a continuidade das políticas neoliberais além do "necessário". Nos dois casos, a mudança está no
rumo "econômico" do governo. Para mudar, o governo Lula deveria ser um verdadeiro "Governo Nacional" - em nome do povo e não dos bancos, do FMI e dos credores. "A tradicional crítica de
esquerda ficou presa por mais de duas décadas ao viés economicista, segundo o qual o único sujeito capaz de 'combater' o mercado é o Estado" Esses dois blocos de "decepcionados" têm em comum um viés teórico economicista. A mudança seria antes de mais nada uma mudança de modelo econômico. O "dinheiro", e sua gestão, é a variável estratégica numa seqüência mecânica que iria do crescimento à distribuição da riqueza, da economia para o social. Para eles, sem mudança de rumo econômico a política social (tipo o "Fome Zero") seria mera embromação. Acredita-se que, automaticamente, o não pagamento dos juros (da dívida) se transformaria em aumento de poupança e investimentos públicos e privados. O investimento industrial, em incremento dos salários. As grandes obras, em estruturação produtiva dos territórios. O aumento das despesas com médicos e professores, em expansão de saúde pública e ensino universal. O economicismo se sustenta no erro político de considerar as políticas neoliberais como causas da crise do Estado e como condição permissiva de uma globalização considerada como "nefasta". Menospreza-se a profundidade da crise do Estado, a correlação que liga a crise do Estado à crise da relação salarial moldada no chão
fabril e as contradições sociais (e o trabalho) de tipo novo que atravessam um capitalismo cada vez mais baseado no conhecimento e na informação. Cegueira desenvolvimentista Em suma, Cegos pela ideologização excessiva do debate e pela fé no papel "progressivo" do Estado, esses teóricos não viram que o neoliberalismo se constituiu (tanto nos países centrais, quanto - se não mais - nas economias periféricas) numa resposta, reacinária, mas pertinente, a uma crise do Estado cuja origem está na crise da grande indústria e no tipo de trabalho (de sociedade) que ela precisa e gera ao mesmo tempo. O fato é que, ao longo dos anos 80, quando ocorreu a primeira onda da ofensiva neoliberal nos países centrais, e nos anos 90, quando o período neoliberal se instalou no Brasil, a oposição de esquerda e as organizações sindicais se juntavam, paradoxalmente e mecanicamente, às tradicionais defesas do Estado para, no fundo, defender o futuro do trabalho em função de uma impossível sobrevivência do emprego industrial "formal", o que alimentava, nas economias centrais do segundo pós-guerra, o pleno "emprego" e a dinâmica dos salários reais. A tradicional crítica de esquerda ficou presa por mais de duas décadas (e ainda não dá para dizer se esta armadilha está sendo superada) ao viés economicista segundo o qual o único sujeito capaz de "combater" o mercado é o Estado. A oposição "interna" à base do PT torna mais visíveis alguns paradoxos dessa postura políticoteórica. O primeiro tem a ver com a "defesa do emprego" como emprego Trânsitos 11 GLOB(A.L.)
assalariado da grande indústria. A "maldição do trabalho assalariado" é desta maneira transformada, na melhor das hipóteses, num mal necessário, na pior das hipóteses, em uma "virtude". O segundo é a defesa da grande indústria, no caso, a nacional. O terceiro apareceu nas mobilizações (de sindicatos e intelectuais) em defesa dos privilégios corporativos de uma previdência pública que, nas economias periféricas e no Brasil em particular, nem chegou a ser objeto de um processo de universalização negociada.
"A questão que se coloca não é, pois, a de se saber se o governo Lula representa os interesses do 'Povo' ouos do FMI, os da ALCA, os dos banqueiros etc., mas quanto suas reformas podem ser apropriadas, materializadas por um processo de universalização dos direitos para enfrentar realmente o FMI em bases diferentes"
Ora, a crise do Estado é determinada pela incapacidade da relação salarial em reproduzir as grandes proporções que garantem a reprodução do Estado (seja ele democrático-redestributivo ou autoritário-desenvolvimentista) e, com ele, da acumulação capitalista. As transformações do trabalho, nas economias centrais bem como nas periféricas, fazem com que não haja mais o mesmo coeficiente multiplicador entre crescimento econômico e dinâmica do emprego (formal da grande industria). Uma economia pode voltar a crescer (como foi o caso dos Estados Unidos ao longo do segundo meado dos anos 1990) e ver o fenômeno de precarização do emprego. Ainda mais, na maioria das cadeias produtivas industriais, o aumento dos investimentos pode se traduzir em reduções "relativas" do emprego industrial ao passo que a tendência será multiplicar o emprego no setor de serviços. A expansão do setor terciário implica, por um lado, a multiplicação GLOB(A.L.) 12 Trânsitos
dos tipos de contratos de trabalho (com a ampliação estrutural da "informalidade" - não mais como resíduo do subdesenvolvimento) e, por outro, a mobilização das qualidades cognitivas das forças de trabalho. A relação salarial se "desmancha no ar". Ela não consegue mais funcionar como um processo de inclusão social que fazia com que (nas reais economias fordistaskeynesianas - nas periféricas foi apenas uma "miragem") à sua universalização correspondesse uma certa universalização do bem estar social. Razões da crise A chamada crise fiscal do Estado não é uma crise de contabilidade mas uma crise de compatibilidade. Crise das "proporções" que a relação salarial conseguia produzir entre dinâmica da acumulação e expansão do bem-estar social. A conseqüência é um deslocamento do conflito social: do âmbito da grande indústria para a sociedade como um todo. Do lado do capital, isso significou, desde o início dos anos 1980, tentar reconstituir o comando pela multiplicação dos tipos de contratos de trabalho (inclusive dos "sem-contrato": imigrados, desempregados etc.) e propor o mercado (as privatizações) como mecanismo de universalização mais eficaz do que o Estado. Do lado do trabalho (que dessa vez corresponde a uma multidão de figuras não mais homogeneizadas pela disciplina fabril), colocou-se a questão de constituir novos mecanismos de universalização dos direitos como condições necessárias a uma integração produtiva que não depende mais da subordinação à relação salarial (e, pois, da organização corporativa e neocorporativa da sociedade que ela determina). Isso significa que o conflito entre capital e trabalho fugiu, no bem e no mal, da relação salarial. Contudo, longe de desaparecer, esse conflito se generaliza e atravessa a sociedade como um todo. É por não ter mais condições de manter (ou, no caso do Brasil, de visar) a compatibilidade do conflito entre capital e trabalho que o Estado está "quebrado" econômica e politicamente: suas dívidas se acumulam de maneira insustentável, ao passo que as tradicionais formas de
representação política não param de se decompor (lembremos a "(não) eleição" de Bush Jr., a passagem para o segundo turno de Le Pen, na França a não realização do segundo turno na Argentina). Nessa perspectiva, afirmar que é preciso "romper com o FMI" é, ao mesmo tempo, uma afirmação correta e demagógica, pois na realidade é preciso romper com a dinâmica que faz com que o país tenha que recorrer ao FMI a cada dois ou três anos. Trata-se de desmontar a falsa alternativa entre "alta inflação" e "juros altíssimos" na qual a economia brasileira está presa há mais de 20 anos. A "falsidade" dessa alternativa está na sua dimensão monetária. Com efeito, ela representa duas configurações diferentes de uma mesma situação cujas correlações de força estruturais na distribuição da riqueza e na produção de direitos universais não são modificadas. Crescimento econômico e monetarização da distribuição fragmentada de "direitos" se transformariam imediatamente em um ritmo inflacionista descontrolado. E o controle da inflação precisaria disparar as taxas de juros num nível que estrangularia toda possibilidade de crescimento. A moeda aparece então pelo que ela é: não o espelho neutro de quantidades econômicas, mas o resultado e o instrumento político de uma sociedade profundamente marcada pela fragmentação social, segregação espacial e racismo. Nesse horizonte, não se trata de privilegiar nem o "social", nem o "econômico", mas sim uma política que articule os dois ao mesmo tempo. É na perspectiva que esse caminho desenha que devemos encarar o governo Lula. Não devemos pensá-lo em termos de governo nacional em nome do Povo. A questão que se coloca não é, pois, a de se saber se o governo Lula representa os interesses do "Povo" ou os do FMI, os da ALCA, os dos banqueiros etc, mas quanto suas reformas podem ser apropriadas, materializadas por um processo de universalização dos direitos para enfrentar o FMI em bases diferentes. Esse enfrentamento significa construir a democracia e apreender esse desafio como um problema global, como uma política global.
Tr창nsitos 13 GLOB(A.L.)
Pode ser, e daí? Ao denunciarem que Lula "esqueceu o que pregou", oposicionistas mantêm-se fiéis à defesa de ideologias moralistas incapazes de vislumbrar o óbvio: o governo Lula é real. Tatiana Roque "Traição!",diz-se. "O Lula é um traidor!" É preciso reconhecer, e louvar, aqueles que, ao se oporem, estão sendo coerentes com suas posições de sempre. É preciso prezar a coerência!” Não entendo esses slogans que parecem ganhar espaço em nosso cotidiano. Por que um elogio genérico à coerência? A coerência em si não é boa nem má, aliás, é preciso bastante incoerência para criar algo de novo; bem como é preciso bastante coerência com certos ideais para chegar a ponto de torturar alguém em nome deles. O mesmo vale para se pensar a traição: será que não teria sido mais interessante que o algoz, neste momento, tivesse traído seus ideais? Coerência e traição são, pois, nomes vazios aos quais se atribui um valor e,
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como tal, não passam de moralismo, às vezes vão, às vezes de má-fé. O que está em jogo então por trás dessas denominações dissuasivas? A defesa da ideologia. Façamos, portanto, a sua crítica e coloquemos, claramente, a sua discussão. Para falar de ideologia precisamos falar de história. Podemos pensar que as coisas que acontecem - as revoluções, as mudanças, as inovações - provêm da história? É claro que elas têm uma história, mas esta só pode ser escrita depois. No momento da inovação, a história fornece apenas o conjunto das condições das quais nos desviamos para criar algo de novo. A criação é, portanto, um certo tipo de traição. Não pretendo, com essas considerações, cair na simplificação oposta e
dizer que o governo Lula é revolucionário. Gostaria apenas de retirar as fumaças de ideologias e indefinições para analisá-lo sem hipocrisias: o governo Lula é real! Sendo assim, se por um lado ele está sujeito a constrangimentos reais, por outro lado, é a suposição de um real aberto que pode garantir as suas possibilidades de realização. A aceitação do real como constrição está funcionando de modo positivo, mas as possibilidades do real como inovação, nem tanto. Mas não é um problema de falta de ideologia, ao contrário! A ideologia está sempre sujeita a uma transcendência qualquer: "um outro mundo". Onde reinará a justiça, a paz, a liberdade.....mais slogans! Vamos cair na real: só há um mundo, este! E
não sabemos qual a saída para a sua terrível injustiça, mas deve haver alguma. “E não é com moralismos, nem com ideologia, que vamos encontrála. Até porque, não se trata de encontrá-la, mas de construí-la. E para construí-la é preciso saber com quem? Quais são os sujeitos da mudança, quais serão os sujeitos dessa revolução, ou dessas múltiplas revoluções realistas? A vanguarda? A intelligentzia nacional? Os partidos? Sinto, mas acho que não. Um governo nunca fará a revolução, mas pode ajudar no fortalecimento dos sujeitos da revolução, seja ela o que for. Para isso é preciso que essas pessoas comam, tenham renda, estudem, urgente! Neste sentido, os programas de transferência de renda são bemvindos. E o melhor seria mesmo uma renda universal garantida para todos.
"A ideologia está sempre sujeita a uma transcendência qualquer: 'um outro mundo'. Onde reinará a justiça, a paz, a liberdade... mais slogans! Vamos cair na real: só há um mundo, este!" Mas, por outro lado, para que estas não sejam apenas melhorias individuais, a radicalização da democracia é fundamental. Com este fim, poderia se começar por democratizar a máquina estatal, tornando-a mais ágil, mais igualitária, mais participativa. Não reproduzindo, por outros meios, o
aparelhamento secular e o vício estamentário do Estado brasileiro. É nesse ponto que o governo Lula está falhando. Não é preciso fazer acordos com a Unesco, nem chamar grandes especialistas. Ao contrário, há inúmeros núcleos de pesquisa e de ação que agem e trabalham há anos sobre temas que são extremamente úteis ao governo e que precisam ser valorizados. Mas democraticamente, sem novos lobbies que têm a mesma estrutura dos da direita, só que com atores de esquerda. Sem reproduzir os vícios do Estado, para conseguir se impor, um pouco mais, em relação ao mercado. Não precisa de ideologia pra isso, mas de um rompimento produtivo e positivo com a história do Brasil, rompimento do qual a eleição de um torneiro mecânico foi, sem dúvida, o primeiro passo.
Bernardo Damasceno Santinho / Eleitoral Milagre / Brasileiro
Trânsitos 15 GLOB(A.L.)
Tortura e memória Tatiana Roque
Mostrando, na prática, que o artigo anterior sobre traição não é ideológico, e que é preciso falar sobre casos concretos, proponho uma outra face do que foi dito ali. Se antes falava de quando romper com a história é inovar, defendo agora, analisando um outro exemplo, algo que pode parecer o inverso: quando esquecer a história é conservar. É completamente absurdo que o governo tenha recorrido da sentença que obrigava o Exército a abrir seus arquivos sobre o Araguaia. Anistia não é amnésia, e para superar um episódio histórico com a gravidade do que foi a repressão realizada pela ditadura militar é preciso conhecê-lo. Sim, a história é o meio no qual o novo se produz virando as costas para ela. Logo, para que se vire a página, é preciso que a história exista e seja conhecida, ou seja, apagar a história pode servir para impedir que o novo se produza. Por outro lado, é completamente absurda a insinuação contra o José Genoíno (presidente do PT) de que ele não teria interesse na abertura dos arquivos por motivos incriminatórios contra sua pessoa. Qualquer um que tenha sido preso, torturado ou assassinado por motivos políticos durante a ditadura é vítima! E é um crime bár-
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Governo recorre e impede a abertura dos arquivos da guerrilha do Araguaia, transformando, por enquanto, a memória viva em arquivo morto
baro ter "obrigado" o Genoíno a se defender de tal insinuação. Sem me ater ao episódio do Genoíno, que já explicitou publicamente suas posições (inclusive algumas defendendo a abertura dos arquivos), gostaria de dizer o seguinte: quando se fala de tortura, não há os que foram mais vítimas e os que foram menos vítimas. Todos eles passaram por uma das mais perversas formas de aniquilação da dignidade humana: foram vítimas do terrorismo de Estado; e nós devemos zelar para que isso não se prolongue nem por um instante sob o regime democrático. Primo Levi que, após sua experiência em um campo de concentração, foi o grande mestre a este respeito, já dizia: não nos obrigarão a tomar as vítimas por algozes. O que os horrores nazistas, e a terrível experiência da tortura no Brasil, nos inspiram é, como afirmou Levi, a vergonha de ser um homem. Porque mesmo os sobreviventes foram obrigados a se comprometer, e aqui estou falando de todos nós, porque cada um de nós é afetado por esses crimes. Não somos todos culpados, mas somos todos responsáveis diante das vítimas. E aqueles que se eximem, ou tomam vítimas por algozes, se aproximam dos algozes, e não das vítimas.
Palavras, Palavras e Palavras Governo usa linguagem baseada na experiência e apavora elite acadêmica esquerdista
Alexandre do Nascimento Há alguns dias recebi de um professor de uma universidade federal através do correio eletrônico um texto do professor César Benjamin, um reconhecido "intelectual de esquerda", que tinha como objetivo fazer uma análise da "lógica argumentativa do governo federal" – baseada, de acordo com Benjamin, em "analogias como argumentos, em tautologias, platitudes e generalidades". A conclusão do texto é que o modo de discursar do governo explicita um sintoma da crise de pensamento oriunda do abandono, por parte do PT, do "esforço, penoso e meritório, de constituir um espaço político socialista, democrático e de massas". Até aí nada de surpreendente, pois a política é o lugar do debate e das divergências. Li o texto e, em discordância com seus fundamentos e alguns de seus argumentos, resolvi abrir um debate com o professor, pois outros elementos explicitaram-se. Respondi a mensagem, dizendo, entre outras coisas, que o autor cometeu um deslize preconceituoso ao fazer crítica a frase "apressado come cru", dita pelo presidente da República ao ministro Cristóvão Buarque - que reclamara da falta de verbas para a educação. Benjamin tratou a frase dita por Lula como "a versão mais vulgar dessa maneira de argumentar apela à linguagem de botequim, indigna de um presidente". Aproveitei essa indignação de Benjamin para questionar o que me parece puro elitismo e conservadorismo de um certo pensamento de esquerda. Vejam, por exemplo, o caso do debate sobre políticas de ação afirmativa nas universidades estatais. Brotam pérolas como: "a luta brasileira contemporânea é social, não racial"; "a cota desvia o foco para a discussão de quem deve beneficiar-se dos poucos espaços disponíveis, abandonando a luta por mais e melhores vagas"; "o Brasil é um país mestiço que conceitua o preconceito racial como crime hediondo"; e, com destaque, "não somos nem brancos, nem negros, somos mestiços.
Biológica e culturalmente mestiços (...) A tentativa de construir uma identidade baseada na raça é especialmente reacionária". Esta última pérola foi escrita por Benjamin, na revista Caros Amigos. Ele exalta a mestiçagem negando a sua riqueza: a multiplicidade de raças, culturas, linguagens etc. Trata o anti-racismo diferencialista do movimento negro como especialmente reacionário, negando o racismo como constitutivo da sociedade brasileira e de suas instituições, entre elas a universidade estatal elitista e as desigualdades sociais. Da mesma forma que é elitista, esse pensamento é conservador, porque parece não desejar o desmonte do Estado de privilégios que é o Estado brasileiro. Ao final da mensagem, afirmei que, para classes populares, essa esquerda que quer do governo um discurso peremptório é tão ruim quanto a direita, pois é, também, reacionária. A política das classes populares é constituinte, faz-se na democratização permanente das instituições a partir e na própria luta social. E não uma busca da forma ideal-transcendente de democracia que devemos, apenas, conquistar. O que mais surpreendeu, entretanto, foi que o professor que me enviou o referido texto respondeu às minhas críticas dizendo que "como disse o líder da revolução lulista, o ministro José Dirceu, palavras, palavras, palavras. Em respeito a sua discordância, não lhe enviarei mais mensagens com este teor. Nos encontramos (sic) em lados opostos, está claro". Ora, se um intelectual dessa esquerda peremptória encerra o debate respondendo que estamos em lados opostos, o que nós, educadores e estudantes que lutamos para romper as cercas e transformar a universidade (em) pública, indígenas, negros, mulheres, homossexuais e adeptos de uma linguagem de botequim, integrantes de fato das classes populares, podemos concluir? Será que os discursos de certos intelectuais e ativistas de esquerda são apenas palavras, palavras e palavras?
Luis Andrade, Em Arte Trame, 2002
EM ARTE TRAME EMART ETRA ME EM ARTE TRAME Trânsitos 17 GLOB(A.L.)
Carta N ós da marcha da dignidade somos mulheres, crianças, jovens, adultos, idosos e homens que lutamos por trabalho, justiça e vida digna. Somos mães e ao mesmo tempo mulheres como a senhora1. A diferença é que nós estamos em uma marcha que se iniciou justamente para chamar atenção da senhora, dos governos e da sociedade, para o quanto é grave a questão que tem em mãos para decidir. Sabe a senhora o que é ser mãe debaixo de uma lona preta, com nossos filhos, sentindo frio, tomando chuva? Há anos vestimos as beiras das estradas de luto, arriscamos nossas vidas, tudo porque a Reforma Agrária nunca sai das gavetas, mofa nas prateleiras das instituições responsáveis para que ela aconteça, perde-se na burocracia da Justiça e no emaranhado das leis. Marchamos diariamente cerca de 20 quilômetros por dia. A chuva e o frio provocam as doenças respiratórias acentuadas pela desnutrição, vemos os filhos passarem as mesmas dificuldades que nós, porque esta foi a alternativa que a sociedade nos deixou. Não há outra escolha para nós. Estamos em plena realidade e sabemos que não tem outra saída que não seja a luta e a organização para que nossos filhos e nós mesmas não necessitemos buscar as cidades, mendigando um serviço ou estudo. Somos todas originárias do campo, trabalhadores da terra, safristas, bóiasfrias, agricultoras expulsas da terra e executadas pelos bancos, diferentemente do Sr. Southall2 que permanece devendo mais de R$ 21 milhões aos cofres públicos e nunca é cobrado ou executado pela Justiça. Dinheiro que nos falta na pequena agricultura, na saúde, na educação... Assim, fomos encurraladas a procurar as cidades. Mas nas cidades não existe mais trabalho e não há mais espaço para os pobres. Queremos retornar ao campo para produzir nosso próprio alimento e ter uma vida saudável para os nossos filhos. Pediríamos que se colocasse, Raimundo Rodrigues Sem titulo, técnica mista, 2000 GLOB(A.L.) 18 Trânsitos
à Senhora Juíza Ellen Na nossa marcha, não andamos a cavalo, nem ostentamos máquinas e carros, nem ofendemos ninguém. Marchamos por apenas um minuto, no nosso lugar. Talvez assim a sea pé, queremos estar bem próximos do chão para poder nhora entenderia por que marchamos. Lutamos porque não olhar nos olhos dos moradores, apertar as mãos dos que se há outra saída senão resistir. solidarizam a nós, abraçar as crianças e saudar a popuNós entendemos que as nossas mãos destinam-se a produzir lação. Sabemos que estamos no caminho certo porque a a terra, o alimento, e, neste momento, precisamos da genecada lugar que chegamos, apesar do cansaço, da roupa rosidade das suas mãos para que as nossas voltem à terra. molhada, das dificuldades, podemos contar com a ajuda e Não sabemos, doutora, se a senhora tem filhos. Sabemos generosidade das gentes humildes que nos acolhem, que criamos os nossos filhos para o mundo e queremos um daqueles que não possuem nada, como nós, mas que ofemundo melhor para todos. Queremos acolher os filhos e recem ajuda mesmo assim. Perdemos as contas dos que filhas de todas as trabalhadoras. Vivenciamos na luta a quiseram se integrar à marcha, dos que nos visitaram, dos experiência de ser mãe e parir uma nova geração de hoque nos alcançaram agasalho, calçados, alimentos. mens e mulheres que não somente entenderão de leis, mas Sentimos emoção e alegria, ao passar em cada localidade, que continuarão lutando para com os que rezam por nós, com que essas leis sejam expressão de os que cantam, dançam e celeuma sociedade liberta da opresbram conosco. são e concentração de riquezas. Às vezes achamos que não vamos Não queremos violência, mas suportar, que vamos fraquejar, "Sabe a senhora sim a Reforma Agrária para vivermas Deus nos ampara e nos ajuda o que é ser mãe mos com um pouco mais de diga lembrar que toda essa gigannidade e, independente da sua tesca propriedade, que atualdebaixo de uma lona decisão, não vamos desistir. mente gera fome, desemprego, preta, com nossos filhos, Marcharemos quantas vezes for escravidão, violência e morte, preciso. E se não formos nós, pode gerar um enorme assentasentindo frio, serão outros que marcharão. mento, centenas de lares, alimentomando chuva? Seguramente 13.200 hectares de tos, mulheres e homens cheios de terra não se consegue trabadignidade, crianças felizes, jovens Há anos vestimos lhando. A senhora acha justo que livres da humilhação do trabalho as beiras das estradas apenas uma pessoa possua tanta escravo, autonomia. terra enquanto nós, e tantos ouEntão, do latifúndio infértil, da de luto, arriscamos tros, continuem vivendo embaixo terra triste que só gera morte, frunossas vidas, tudo de uma lona preta, sofrendo com tificará a vida. Da propriedade nossas crianças? Sabe, senhora arrogante gerar-se-á comunidades porque a Reforma juíza, quantas crianças nos acomde respeito mútuo, de acolhimento Agrária nunca sai das panham nesta vida, embaixo de e afeto, e isso nos dá coragem uma lona? para enfrentar o frio, a chuva, a gavetas, mofa nas Olhamos para os nossos filhos e fome e secar do rosto das crianças prateleiras das reconquistamos a força para seguir e dos idosos as lágrimas do lutando. Nós aqui, por mais que cansaço. Sofremos sim, mas isso instituições " nos neguem o direito de existir, não nos faz desistir da luta. por mais que nos retirem os Lutaremos até conquistar nossos meios de sobrevivência, temos objetivos. Somos mulheres que uma coisa que vocês não podem nos tirar: queremos justiça neste país. os nossos princípios e os nossos sonhos de termos mais dignidade. A cada reação agressiva do latifúndio, da polícia, dos fazendeiros, nós temos mais e mais certeza do quanto Mulheres Sem-terra na marcha somos fortes, do quanto incomodamos o poder com o nosso sonho, com nossa resistência. rumo a São Gabriel (RS)
1. Ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal. 2. Proprietário do complexo Southall, chamado vale do Southall, que compreende uma propriedade de 13.200 ha. É o maior devedor do INSS, o valor venal das terras só cobriria uma parte da dívida que o Sr. Southall mantém com o INSS.
Trânsitos 19 GLOB(A.L.)
Crônica da
conjur
m bela us e e r e ônib os s e n d a i ba rifa estação s a t e t dan o da rece anif Estu aument uma m desapa ação tra o ntam con perime present ex a re e u q em
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Coletivo Comungos, Projeto Esquizomídia
[15h35min] O medo da barbárie está sendo acionado em alguns comentários de políticos e meios de comunicação. O que não é reconhecido pela democracia representativa como forma legítima de expressão é tido como desorganização e barbárie. Não estaríamos talvez vivendo um aprofundamento da democracia, para além de seu caráter meramente representativo?.
De Salvador [Quarta-feira, 3 de setembro] Desde a última sexta-feira, os estudantes secundaristas de Salvador estão se colocando na frente dos ônibus e os fazendo parar por conta do aumento na tarifa. A estratégia é se espalhar pela cidade, em vários focos de resistência nas principais vias de circulação de transporte coletivo. Há uma movimentação diferente, vitalizante, pois não se sabe onde o trânsito poderá estar interrompido. O serviço de engenharia de tráfego é, finalmente, forçado a pensar. Vê-se e ouve-se o tempo todo que os estudantes estão atrapalhando o fluxo normal das coisas (ir ao trabalho, produzir, produzir...). Policiais, gover-
nantes, pais, lideranças políticas, pedem para que eles voltem para as aulas, mas os estudantes insistem. As manifestações mostravam como era fácil tomar uma cidade. Onde está o centro das manifestações? Não havia. [14h05min] Os estudantes estão chamando as ações governamentais de "vandalismo político". [14h20min] Há muitos depoimentos emocionados no rádio, as pessoas se posicionando a favor das manifestações. Nos rostos dos alunos, uma certa alegria em notar que é possível parar (ou desacelerar) o movimento da cidade. É como se percebessem um certo poder de ação.
GLOB(A.L.) 20 Trânsitos
[17h] Passeatas pipocam na capital e com elas cenas de um cotidiano inusitado. Sentados ou deitados em vários pontoschave, os estudantes não deixavam os ônibus passarem. Carros pequenos? "É um de cada vez, tio...", - regulavam, em um movimento que surpreendeu pela rapidez e estratégia acertada. O
Fotos: Coletivo comungos
ação BAHIANA
prefeito da capital, Imbassahy, teve que cancelar uma viagem. Acostumados com suas agendas repetitivas, buscaram as infiltrações (políticopartidárias), que acreditavam estar mais coladas ao movimento. Nada! Poucos rastros. "A negociação vai ter
que ser com os estudantes". Os estudantes são chamados para conversar. Eles vão, acompanhados de grupos manifestantes que ficam na porta. Tentaram fazer com que os estudantes recuassem, com todos os "bons conselhos”, prometendo meia passagem nos domingos e feriados! Nada. "Vamos continuar nas ruas. Queremos a redução da tarifa", responderam os alunos. Chama atenção o discurso sintomático e uma "curiosa". "E cadê a UNE que não está lá na frente representando tudo?" Que tal essa? Os estudantes em coro: "E eu me organizando posso desorganizar e desorga-
[Sexta-feira, 5 de setembro] O cotidiano de Salvador está transformado. As pessoas se falam mais, dão carona, andam a pé, discutem suas posições acerca das manifestações. Fala-se que não há liderança. Mas talvez não haja mesmo fórmula para lidar com esse funcionamento "esquizo" do movimento, diga-se, de um número cada vez maior dos novos movimentos da atualidade, que se insurgem contra (ou ignoram) o modelo representativo de negociação. Perde-se o centro, não se sabe quem é o indivíduo-líder, logo, fica tudo mais difícil, a depender do lado que se está no momento. Mas aí é que está a novidade e o desafio.
nizando posso me organizar". "Cadê os universitários?", alguns perguntavam. Pensamos, pra quê? [17 e pouco. No ônibus] Segundo a motorista do ônibus, a concentração está na praça do Campo Grande. O ônibus só irá até o Politeama. "Mas carro pequeno passa, com certeza", disse a motorista a um outro. [Quinta-feira, 4 de setembro] Focos de liderança emergiram em situações precisas de negociação, mas sem se localizar num indivíduo que daria a palavra final. Quem era o líder do movimento? Ainda assim esboçou-se uma "figura decisória". O rádio mostrou-se um veículo de informação bem ágil na cobertura dos acontecimentos. Durante todo o dia foram ao ar "inserts" sobre os acontecimentos. Já a televisão permaneceu com suas caixas de programação, se resumindo a veicular informações nos seus horários prefixados, enclausurada em sua própria lógica de funcionamento, longe de um mundo hiperreal. Trânsitos 21 GLOB(A.L.)
A favela imaginária da classe média Jailson de Souza e Silva
Melhoria na segurança pública passa por romper o discurso dos setores médios que identifica a favela como local em que falta tudo e onde o cidadão é potencialmente marginal O professor Luiz Eduardo Soares expôs em artigo recente na Folha de São Paulo um conjunto de proposições sobre o papel a ser cumprido pela Secretaria Nacional de Segurança, órgão do qual é titular, usando como referência a comunidade de Cidade de Deus, do Rio de Janeiro. Destaca-se, em sua fala, a necessidade de se articular as ações de repressão focalizadas ao tráfico de drogas com iniciativas preventivas, que ampliem as possibilidades sociais dos jovens das comunidades populares e dificultem o seu recrutamento para a atividade criminosa. A construção de uma política nos termos defendidos pelo secretário Luiz Eduardo é indispensável. Ela exige, todavia, a superação de alguns pressupostos que sustentam os olhares dirigidos às favelas pela maioria da população e, portanto, por boa parte das autoridades públicas. Os parâmetros tradicionalmente utilizados na definição e na relação com as comunidades populares e seus moradores estão centrados em referências de outros setores sociais, em particular os setores médios. Com isso, vai se constituindo em relação àqueles territórios o que pode ser chamado de "discurso da ausência". Nele, a favela é definida, paradoxalmente, pelo que não teria: "favela é aquele lugar que não tem acesso a serviços básicos, asfalto, escolas, postos de saúde, creches, educação, não tem regras, não tem leis, não tem cidadania!", diz o senso comum. GLOB(A.L.) 22 Trânsitos
Identidade negativa A afirmação desse "discurso da ausência" em relação aos espaços populares revela uma representação, muito comum, de que a favela não seria constituinte da cidade. Existe o bairro, local típico para as vivências legais e formais, e existe a favela como a não-cidade, como espaço onde não ocorreria o efetivo exercício da cidadania. A partir desse pressuposto é elaborada uma nova série de discursos. O principal deles é o "criminalizante", segundo o qual todo morador da favela é um criminoso em potencial. Assim, tornou-se comum inferir que qualquer jovem das favelas estaria em atividades criminosas se não estivesse em um movimento de cultura, de educação ou atividades similares. Como se não buscassem, através de suas próprias iniciativas, outras formas de inserir-se no mercado de trabalho e como se a única rede social da favela fosse a constituída pelo tráfico. Uma segunda noção decorrente do "discurso da ausência" é a paternalista, existente, inclusive, em vários setores da esquerda. Nela, considera-se que o morador dos espaços populares seria uma vítima passiva de um sistema injusto e, diante disso, algumas estratégias ilegais afirmadas por indivíduos determinados seriam, em tese, corretas: o não pagamento de taxas e impostos, a ocupação de espaços públicos, a receptação de objetos roubados. Resgate da cidadania? Na verdade, esses raciocínios sustentam, muitas vezes, a produção de formulações e intervenções públicas limitadas e sem consistência. Um exemplo é o lugar-comum chamado "resgate da cidadania". Ora, na formulação está implícita a idéia que a pessoa assim identificada já foi cidadã e não é mais ou, ainda, não é cidadã. O raciocínio, entretanto, deveria ser invertido: exatamente pelo fato de ser cidadã é que ela deve ter os seus direitos preservados e as suas obrigações coletivas exigidas. A partir do momento que ela
Ronald Duarte Guerra é Guerra Traçantes , laser infra- vermelho, Interferencia visual realizada durante o evento Alfandega, que aconteceu no Cais do Porto RJ Armazem do Rio Rio ARTE em Janeiro de 2003.
nasce e ingressa no sistema social, deve ser reconhecida em seus direitos à saúde, à segurança, à educação, ao trabalho, enfim, à humanidade. A cidadania é uma condição a priori e não a posteriori. Diante disso, a construção de políticas preventivas nos espaços favelados deve, antes de tudo, prevenir-se de escorregar em lógicas sociocêntricas, que ignoram a riqueza das práticas cotidianas dos seus moradores. Devem, também, ser integradas, abrangentes e de longo prazo. Felizmente, Luiz Eduardo Soares e sua equipe têm todas essas referências e, por isso, as condições de realizar um trabalho de alta qualidade e compromisso social. Os moradores da Cidade de Deus, assim como os de outras comunidades populares do Rio de Janeiro e do Brasil, precisam disso, e podem confiar que o terão.
"a favela é definida, paradoxalmente, pelo que não teria: 'favela é aquele lugar que não tem acesso a serviços básicos, asfalto, escolas, postos de saúde, creches, educação, não tem regras, não tem leis, não têm cidadania!', diz o senso comum" Trânsitos 23 GLOB(A.L.)
A paz sem voz não é paz é medo Giuseppe Cocco(*)
O filósofo Baruch de Espinosa relata os paradoxos da violência e dos temas da segurança nas grandes cidades brasileiras Uma violência cada vez mais assustadora se alastra nas imensas vastidões das periferias, nas vielas dos morros e nas ruas das cidades brasileiras. Inteiras gerações de jovens negros e mulatos pobres são diariamente massacradas. As macabras estatísticas sobre a diminuição do impacto das políticas de saúde pública na esperança de vida dos jovens, por causa dos altíssimos índices de mortes violentas, acompanham a inexorável banalização da verdadeira guerra social que estraçalha a nossas cidades. A contagem dos assassinatos e torturas perpetrados nas batalhas travadas entre as quadrilhas rivaliza com a contabilidade sinistra das balas perdidas, ao mesmo tempo que e a "justiça" sumária aplicada pelos pistoleiros e as próprias forças da "ordem" fecha o horizonte trágico de uma sociedade onde vigora a lei do mais forte. A lei do mais forte tem na norma da impunidade seu principal fundamento. Assim, dez anos depois da chacina de 19 moradores perpetrada por policiais, um novo massacre de pelo menos 11 jovens traficantes (dessa vez perpetrado por uma quadrilha de uma favela próxima) na favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro desenha o pano de fundo sinistro da decisão do Tribunal de Justiça de absolver mais um grupo de policiais acusados pela chacina de há dez anos. Em suas rachaduras sangrentas, a cidade se mostra cada vez menos "partida" e sempre mais submetida a uma única relação de poder, a regida pela lei do mais forte. O drama dessa situação não deixa de mostrar suas implicações paradoxais. Como combater a "lei do mais forte" sem afirmar a "força da lei" ? Se não fosse por suas trágicas conseqüências, o paradoxo seria até irônico: em face de um estado de arbítrio generalizado, a única saída seria reforçar
(*) Com base em citações de Antonio Negri e Baruch Espinosa.
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o Estado. O discurso da ordem se reproduz estupidamente. Não é raro, num país onde a justiça sumária não é rara e raramente é sancionada pela "justiça", ouvir um prefeito municipal ou um secretário de segurança estadual falar abertamente na necessidade de a Polícia intervir para "matar" e enfrentar o "poder paralelo" do crime. Diante desses impasses, perguntamos ao filosofo da Ética, Baruch de Espinosa, qual é a opinião dele. Global - Mas, que situação é essa, em que a violência seria o fato da "ausência" do Estado (em particular entre os pobres, nas favelas) ao mesmo tempo em que os próprios agentes do Estado se encontram no cerne, por um lado, de um poder arbitrário e, por outro, de uma corrupção tanto difusa quanto impune? Espinosa - Quando um soberano mata os súditos, rapta os jovens, (desvia para o exterior as receitas fiscais, faz justiça sumária) a sujeição torna-se indignação e, pois, o estado civil converte se em estado de hostilidade. Global - O Senhor quer dizer que o nível de violência social é determinado pela violência do Poder, ou seja que a inexistência de uma norma consensual coloca em ato a guerra? Espinosa - Exatamente. A ruptura do direito civil é por ela mesma um ato de direito de guerra. Ou seja, há um limite muito fino que separa o direito civil do direito de guerra: o horizonte do Estado é um horizonte de guerra! Global - Mas isso significa que o conceito de sociedade civil vai por água a baixo, que estado civil e estado político são a mesma coisa ? Espinosa - Sim. Nenhum dos dois elementos pode subsistir separadamente, sociedade civil e Estado se entrecruzam completamente, como momentos inseparáveis da associação e do antagonismo que se produzem na constituição. O Estado não pode ser concebido sem a simultaneidade do social, nem reciprocamente a sociedade civil. Global - Mas então, como isso funciona para responder a nosso paradoxo, de uma violência que justificaria as políti-
Ronald Duarte, A sangue Frio, gelo e pigmento vermelho, da série Guerra é Guerra, interferencia urbana realizada em outubro de 2002, fazendo parte do evento Açucar Invertido que aconteceu no Palacio Gustavo Capanema, MEC RJ. Foto Fernando Rabelo
cas que visam reforçar o Estado numa sociedade como a brasileira em que o aparelho estatal sempre foi um instrumento nas mãos dos poderosos para excluir a maioria da população ? Ou seja, como responder ao paradoxo de um combate à violência da desigualdade provocada pela ausência de liberdade por uma posterior diminuição desta ? Espinosa - Trata-se de saber como podemos apreender qual é a melhor constituição de um governo civil. E, qual é a melhor constituição de um governo civil, se não a paz e segurança do viver?!.
"um estado civil que vive no medo contínuo da guerra e é objeto de freqüentes violações das leis não difere muito do estado de natureza em que cada um vive em um perigo de vida permanente" Global - Mas justamente, como alcançar essa paz e essa segurança ? Espinosa - Sabemos que as guerras, o desrespeito ou a violação das leis não são atribuíveis à malvadez dos súditos mas à má constituição do governo. Os homens não nascem, mas se tornam civilizados. Além do mais, suas paixões naturais são as mesmas em todos os lugares. E se em um Estado reina mais do que num outro a malvadez, e perpetram-se mais crimes do que num outro, isso é devido com certeza ao fato de que esse Estado não procurou o suficiente a concórdia e não ordenou com sagacidade os direi-
tos e, por conseqüência, nem controla bem os freios do governo. Com efeito, um estado civil que vive no medo contínuo da guerra e é objeto de freqüentes violações das leis não difere muito do estado de natureza em que cada um vive em um perigo de vida permanente. Global - Mas essa é justamente a situação das grandes cidades brasileiras. Como podemos mudar, como alcançar a paz? Espinosa - De um Estado cujos súditos não insurgem em armas porque controlados pelo medo, temos que dizer que ele é sem guerra mais do que em paz. Com efeito, a paz não é ausência de guerra, mas virtu que nasce da força da alma (ânimo). Global - Ah, então, só a liberdade funda a paz e, com ela, o melhor governo. E a liberdade não é apenas liberdade de pensamento. É também expansividade do corpo, sua forma de conservação e reprodução. Isso significa que a paz não é apenas segurança, mas a situação na qual o consenso se organiza em república. Com essas declarações, o senhor se afasta completamente das abordagens mais tradicionais sobre esses temas ? Espinosa - Essa nossa doutrina pode ser acolhida com um sorriso por parte daqueles que, reservando à massa do povo os vícios próprios de todos os mortais, dizem que o vulgo é completamente desregrado, que dá medo quando não tem medo, dizem que a plebe ou serve como escrava ou domina como patroa, que não é feita para a verdade. Ao contrário, a natureza é uma só e ela é comum a todos. Trânsitos 25 GLOB(A.L.)
Ricardo Sapia e Giuseppe Cocco
A invasão de São Bernardo: a luta dos "sem" e o Estado de Direito O tempo todo chega gente a pé, de carro ou bicicleta. Há quem traga uns poucos pertences, outros cruzam o portão de entrada com as mãos abanando. Quem passou pela movimentada Avenida José Fornari, no coração de São Bernardo do Campo, no dia 20 de julho, se impressionou com o que viu. Na noite anterior, mais de 300 pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), ocuparam um terreno de 170 mil metros quadrados da fábrica da Volkswagen. Em menos de duas semanas o número chegou a 7 mil. No mesmo período, bem no centro da cidade de São Paulo, um outro grupo de pessoas ligadas ao Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), ao Movimento Sem Teto da Região Central (MSTRC), ao Movimento Sem-Teto de Heliópolis, à Associação Morar e Preservar Chácara do Conde, e ao Movimento Luta por Moradia Campo Forte ocupava outros quatro prédios particulares. A maioria dos integrantes destes "movimentos dos sem" (sem-teto, sem-escola, sem-saúde, sem-transportes, sem-propriedade) é composta de migrantes vindos de diferentes regiões do país. Eles percorrem o mesmo trajeto feito anos atrás por um filho ilustre do Nordeste, o presidente da República Luís Inácio Lula da Silva. O tempo todo chega gente a pé, de carro ou bicicleta. Há quem traga uns poucos pertences e utensílios, outros cruzam o portão de entrada com as
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mãos abanando. Qualquer pedaço de pau, plástico ou sucata é aproveitado para construção de moradias improvisadas. No terreno baldio da Volks de São Bernardo uma multidão de "sem" furou as cercas e se constituiu como sujeito de produção de direitos. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo cadastrou todos os membros do movimento no local ocupado. Uma forma de controle e vigilância que facilitaria a ação da polícia no dia seguinte. A ordem de reintegração de posse, executada por 800 policiais armados, mais de 70 homens da cavalaria e cães treinados para matar, restabeleceu as "cercas". Os aparelhos do poder desmancharam o acampamento e, com ele, a multidão voltou aos fragmentos da exclusão. A ordem da propriedade voltou a reinar soberana. Sem radicalismo O Governo federal do presidente Lula se pronunciou solenemente contra a "radicalização" social e pelo "respeito do Estado de direito". O Ministro da Justiça evocou a prerrogativa do monopólio estatal do uso da força. Uma evocação que não deixa de ecoar um certo sinistro, cinismo: o que é esse monopólio diante do emaranhado de violência privada e tortura estatal que
violenta diariamente a vida pública em nosso país? Podemos dar crédito à moderação da política econômica do Governo federal por visar constituir um ambiente estável. Mas essa segurança não deve deixar de ter como objetivo uma mudança ainda mais segura, certa e urgente! Se nada se "muda na marra", é porque "na marra" se corre o risco de não mudar nada: é porque pretendemos mudar pra valer! No modo de lidar com os "movimentos dos sem" devemos ser inflexíveis. O que está em jogo nessas lutas e nesses conflitos é a própria constituição da democracia. Se o "Estado de direito" continuará a se resumir aos direitos absolutos dos proprietários e da propriedade, a lei dos homens (a lei dos mais fortes, dos mais ricos) continuará a prevalecer violentamente sobre a força da lei e o estado de direito continuará a erguerse paradoxalmente contra os direitos dos cidadãos: os direitos (privilégios) de poucos contra os direitos dos muitos. O único modo de conter a "radicalização social" está na radicalização democrática: só a democracia pode opor à corrupção do poder a virtú da lei: direito universal. Fotos Bel Pedrosa
Charles Feitosa
Espaço e diferença: quando morar é um ato de resistir Moradia digna é um direito assegurado pela constituição brasileira de 1988 (artigo 6º) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV), da qual o Brasil é signatário. O direito fundamental a um território, a um espaço próprio, a um teto, é negado a uma parcela substancial da população urbana brasileira. O movimento dos sem-teto não é uma invenção brasileira. Na Europa há diversos grupos engajados por um reassentamento urbano mais justo. Um dos principais berços do moderno movimento de ocupação de casas foi a Alemanha. Durante a década de 80 diversos grupos ocuparam casas, prédios e fábricas abandonadas em Berlin, Hamburg e Freiburg como um protesto contra a especulação imobiliária e o déficit de moradia. Lá como aqui a repressão do governo foi violenta, verdadeiras batalhas eram travadas entre a polícia e os manifestantes. Mas ao contrário do cenário brasileiro, onde os participantes são em sua esmagadora maioria trabalhadores de baixa-renda ou desempregados, os integrantes do movimento de ocupação de casas (Besetzser Häuser Bewegung) incluem também punks, estudantes, artesões, profissionais liberais, artistas, professores e ativistas das mais variadas áreas, todos movidos por uma motivação política em comum: afirmar a
própria diferença através da construção de territórios alternativos contra as organizações sociais impostas na vida cotidiana. A idéia de uma comunidade ativa, mas descentralizada, era a prioridade na Alemanha. Eu mesmo, na época em que fazia meus estudos de Doutorado em Filosofia na cidade de Freiburg i.B., tive a oportunidade de participar de algumas ações de ocupação de prédios abandonados. Também pude colaborar durante vários anos (19901996) na Rádio Dreieckland (102.9FM), uma emissora livre que agregava diferentes vozes, desde asilados políticos, estrangeiros de diversas regiões do mundo, detentos, homossexuais, ecologistas e outros. O estúdio da emissora funcionava na área de uma antiga fábrica desocupada, junto de diversas oficinas de artes e grupos de ação não-governamentais. A Alemanha, dizem, é terra de poetas e filósofos. A questão da moradia foi pensada pelo famoso filósofo Martin Heidegger (1889-1976) como uma das mais centrais da filosofia. Ser humano significa: "existir como um mortal na terra, quer dizer: morar", diz ele em famosa conferência intitulada Construir, Morar, Pensar (1951). Isso quer dizer que mesmo aquele que não tem casa ou teto habita o mundo, ainda que de maneira deficiente. O verbo "morar" em português deriva do latim morari,
que quer dizer "demorar-se em algum lugar", mas também "viver com". Isso quer dizer que para residir não basta apenas ocupar um espaço já dado. A casa só passa a existir quando alguém se relaciona como morador com o lugar. Por isso diz-se que o turista não habita os lugares que freqüenta. Na idéia de morar já vem implícita a presença dos comoradores, os vizinhos, aqueles que compartilham o lugar, que habitam nas proximidades. Entre o morador, seus vizinhos e a moradia constróise uma relação de interdependência: um não é sem o outro. Se a casa é frágil, não há proteção suficiente para aquele que nela habita; se o morador é desatento e descuidado, a casa desmorona; se os vizinhos são distantes e desinteressados, morador e casa se tornam presas fáceis de interesses econômicos ou são reduzidos a meras estatísticas dos jornais. Diga-me como habitas o mundo e eu te direi quem és. Eis aí talvez a base filosófica para uma ética ou para uma política do futuro. O Brasil, dizem, é uma terra de sambistas e de jogadores de futebol. Está na hora de se tornar também uma terra de vizinhos, quer dizer, de se construir um espaço em comum que sirva de abrigo a quem quiser, através da sua diferença, resistir.
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Seção 1 GLOB(A.L.)
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Rede de movimentos une segmentos sociais para universalizar direitos e acesso aos meios de produção do conhecimento, principalmente o ensino superior público
GLOB(A.L.) 28 Universidade Nômade
MANIFESTO
Universidade N ômade A rede de movimentos que denominamos Universidade Nômade é uma "rede de redes" composta por núcleos e grupos de pesquisa, militantes de pré-vestibulares populares, movimentos culturais, filósofos, artistas, entre outros. Pretendemos constituir uma pauta comum de discussão e debate em torno dos grandes temas ligados aos desafios da mudança que marcam esse início de década no Brasil, em particular os relativos à universalização dos direitos e do acesso aos meios para a produção do conhecimento. Sabemos que é em torno da produção e da difusão do saber que se organizam, hoje, as redes de cooperação social produtiva que desafiam os antigos e os novos dispositivos através dos quais o poder perpetua a exploração. Diante disso, a Universidade Nômade almeja a produção de conhecimento de maneira transversal: em relação com o fora, rompendo as cercas que separam o trabalho intelectual (acadêmico) do trabalho em geral (manual, subordinado). Socialização do conhecimento O nômade, com efeito, desenha um outro espaço, um espaço aberto, sem cercas nem propriedade. O nômade produz um outro tipo de conhecimento, um contra-saber adequado ao seguinte desafio, extremamente atual: como encontrar uma unidade pontual das lutas sem com isso cair em uma organização despótica e burocrática, como a do partido ou a do aparelho de Estado? Nesse sentido, o nomadismo de que se trata aqui pode ser desmembrado em duas direções. De dentro para fora, a Universidade pode refundar sua dimensão pública, abrindo brechas nas cercas que produzem e reproduzem as velhas e as novas formas de subordinação. No mesmo movimento transversal, mas de fora para dentro, a Universidade Nômade visa colocar a produção do conhecimento em ligação direta com o trabalho da resistência: o dos movimentos sociais múltiplos que
"As condições injustas de acesso ao ensino superior constituem mecanismos fundamentais de perpetuação e de naturalização da desigualdade e do racismo que assolam o país e que devem ser desmontados aqui e agora”
constróem máquinas de produção contra os aparelhos estatais e corporativos de perpetuação da desigualdade social e racial. Nas questões do ensino, em geral, e do ensino superior, em particular, a crítica à ideologia do mercado, e de seu simulacro de espaço público, deve ligar-se, com urgência, aos movimentos que lutam contra a abusiva identificação entre o "público" e o "estatal", identificação esta que o corporativismo de todos os tipos cultiva cuidadosamente. Nômades, como o movimento dos pré-vestibulares para negros e carentes ou os movimentos culturais dos jovens oriundos da segregação urbana, são os que produzem o sentido do público. As políticas afirmativas constituem, portanto, um instrumento fundamental para abrir o espaço cercado do poder (acadêmico) ao território público do saber (universal).
da qualidade (para poucos) é antidemocrático e desmentido pela força dos fatos. A produção científica e a inovação são também fenômenos sociais, que dependem inteiramente da capacidade do sistema democrático de mobilizar massivamente seus recursos cognitivos. Universalizar o direito à Universidade significa, hoje, repensar e refundar suas bases públicas (a universitas, a comunidade) de fora para dentro, isto é, a partir da multidão dos excluídos que lutam para furar a cerca. Mas, ao mesmo tempo, refundar as bases sociais da Universidade, ou seja, torná-la efetivamente pública, implica em transformar a natureza dos processos de produção e de difusão do conhecimento, em produzir um saber nômade, um contra-saber de lutas que, unificando-se, potencializam suas múltiplas possibilidades de ação. Produzir e difundir o conhecimento são momentos que se misturam de maneira irreversível. Universalizar os direitos, enfim, significa também produzi-los!
Combate ao racismo As condições injustas de acesso ao ensino superior constituem mecanismos fundamentais de perpetuação e de naturalização da desigualdade e do racismo que assolam o país e que devem ser desmontados aqui e agora. A não-democratização do ensino superior é um dos limites fundamentais ao seu próprio desenvolvimento. Contrariamente aos que defendem uma Universidade elitista da qualidade contra a quantidade, afirmamos o princípio de que, em termos de conhecimento, é a quantidade o que gera a qualidade. E consideramos que todo discurso que oponha a abertura do acesso (a quantidade) à manutenção Universidade Nômade 29 GLOB(A.L.)
s O uperior e o inferior Fernando Santoro
Fracasso da última greve das universidades revelou que comando sindical, à deriva, defendia privilégios e práticas corporativas
Chamamos as universidades estaduais e federais no Brasil de universidades públicas pelo simples fato de que são autarquias custeadas pelo Estado e subordinadas ao Ministério e às Secretarias de Educação. Associamos às universidades públicas também o fato de serem gratuitas. Assim, a defesa da universidade pública é uma bandeira de todos aqueles que querem conservar as universidades estaduais e federais, melhorá-las e ampliá-las. Sabemos que, depois que o governo Collor duplicou por decreto o ingresso de alunos por vestibular, o número de estudantes nas instituições federais não tem sido ampliado, e o quadro docente tem sido sistematicamente reduzido pela insuficiência de concursos para repor os professores aposentados. Em contrapartida, nunca tantas instituições privadas de ensino superior foram credenciadas como nos últimos anos. Por isso, fala-se, e com razão, que está em curso um processo relativo de privatização do ensino superior. Tão grave quanto a proliferação de faculdades privadas é o quanto a própria universidade estadual ou federal tem de caráter privado. A defesa lúcida da universidade pública não deve restringir-se à conservação e ampliação das universidades estaduais e federais e ao controle e supervisão da proliferação mercantil das faculdades privadas. A defesa da universidade pública passa também necessariamente pela reflexão sobre o que é a coisa pública. Mercantilização A partir da reflexão sobre a coisa pública e contra a defesa corporativa de privilégios e interesses privados dentro das universidades federais, tem crescido um movimento de professores que ousa repensar o movimento sindical docente e sua prática indiscriminada de greves corporativas. Professores que pensam a política de ampliação do acesso ao terceiro grau público, envolvendo a prepa-
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ração (pré-vestibulares para carentes), os requisitos (criatividade e expressão contra conteúdos rígidos) e as ações afirmativas (como cotas para egressos de escolas públicas). Estes professores (inicialmente da UFRJ, da UFF e da UNI-RIO) congregaram-se em ações contrárias à ultima greve nas universidades federais mobilizada pelos sindicatos de servidores para barrar a reforma da Previdência. O entendimento que os uniu em abaixo-assinados e assembléias era de que a greve visava a conservação de privilégios corporativos e que se tornara ineficaz para as reivindicações docentes, prejudicando muito mais os professores, os estudantes, a sociedade e a própria idéia de universidade pública que se brada defender.
“Tão grave quanto a proliferação de faculdades privadas é o quanto a própria universidade estadual ou federal tem de caráter privado” Esses professores querem pensar o que é a coisa pública na universidade pública e querem defender com os meios mais eficazes a democratização e a “desprivatização” das instituições do Estado e o alargamento de seus benefícios para os cidadãos. Neste sentido está sendo criado o fórum para a universidade aberta, com pauta de assuntos provenientes dos agentes diretamente envolvidos – professores, pesquisadores, estudantes, administradores, como também da sociedade a quem a universidade deve servir. Trata-se de uma iniciativa informal e aberta a buscar e criar as novas formas possíveis e eficazes de transformar a educação superior num verdadeiro bem de todos e que já começa por derrubar os tabus de uma pauta sindical que não saiu das práticas e ideais do século retrasado.
A universidade fora da sala de ESPELHOS Felipe Coelho “Caminhante, É inegável que a universidade pública brasileira possui hoje recursos materiais e humanos: seus numerosos cursos de graduação e de pós-graduação de alta qualidade e seus grupos de pesquisa de excelência nas mais diversas áreas de conhecimento assim o mostram. Por outro lado, é evidente também que ela encontra obstáculos para executar suas funções de ensino e de pesquisa de forma competente e dinâmica, os quais a tornam muito menos relevante socialmente do que poderia ser. Até problemas simples, como a escolha de seus dirigentes, a organização de vestibulares, o estabelecimento de calendário acadêmico único dentro de uma instituição, a criação de cursos noturnos e até mesmo a divulgação de suas atividades para o público, ou não são enfrentados ou sua superação leva a dolorosas crises internas. Problemas mais complexos como a necessidade de aumentar o número de vagas, de repensar o ensino expositivo e teórico, de avaliar os serviços que presta ou de criar outros, esses problemas então a paralisam totalmente. Entre os obstáculos que levam a essa paralisia, que são em parte associados à relativa juventude das instituições universitárias, temos a qualidade bastante desigual de suas atividades de ensino e de pesquisa, a falta e a má alocação de verbas de ensino e de pesquisa, a precária infra-estrutura técnica e administrativa e a inexistência de uma real integração universitária. Por outro lado, essas instituições não conseguem enfrentar esses obstáculos pois, mesmo sendo jovens, apresentam rigidez burocrática associada ao poder das corporações, à estrutura administrativa interna, à endogenia e às leis federais. Tanto o sucesso da sua recente criação como a sua crise atual estão asso-
são tuas passadas o caminho, e nada mais; Caminhante, não há caminho se faz caminho ao andar" Provérbios y Cantares XXIX Antonio Machado poeta espanhol
ciados respectivamente ao sucesso e ao recente esgotamento do papel centralizador do Estado Nacional. Este Estado é o administrador do sistema universitário federal e das agências federais de apoio à pesquisa, que tem feito a participação brasileira na produção científica mundial passar de 0,25% nos anos 70 para 1,0% nos anos 90, um grande sucesso evidente no desenvolvimento de sementes, na exploração de petróleo em águas profundas e na construção de aviões. Esse Estado é o regulamentador das reservas de mercado das profissões liberais, tornando os pontos de contato das unidades gestoras de cada curso em pontos de atrito e impedindo a integração universitária. Esse Estado regulamentava os currículos mínimos, o que restringia fortemente a autonomia dessas unidades, mas agora tenta lhes dar mais liberdade com as diretrizes curriculares. Sem essa centralização não teríamos quer universidades quer pesquisa, mas agora o sistema universitário é grande demais para ser administrado de Brasília. Exemplos recentes indicam a importância desse debate porque, paralelamente à autonomia ampla para as universidades prevista na recente-
mente aprovada Lei de Diretrizes e Bases, vemos um domínio do discurso centralizador nas agências de fomento federais (são elas que definem o que deve ser pesquisado e até o tamanho dos projetos). Contraditoriamente a esse discurso centralizador vemos um alto grau de autonomia das unidades que as formam, e até dos cursos de graduação e dos programas de pós-graduação, levando a que pontos de contato tornem-se pontos de atrito e de disputa. Em resumo, hoje a centralização federal e a descentralização interna impede que as universidades enfrentem de forma eficiente os obstáculos ao seu funcionamento como geradoras eficientes de ensino e de pesquisa. Esta redefinição do papel do Estado Nacional como promotor da universidade brasileira transcende em muito quer à universidade quer ao Brasil. Ela é o centro da atual discussão política no Brasil e em muitas outras regiões do mundo, como no Japão, na Coréia do Sul ou na Rússia. Essa redefinição é difícil, pois a necessidade de revisão do papel do Estado se origina em seu próprio sucesso, criando economias e instituições de complexidade crescente. No caso específico do Brasil, um país que, por um lado, foi criado pelo mais velho Estado Nacional europeu mas que, por outro, passou a maior parte de sua vida independente sob a égide do federalismo, não há um espelho onde possamos nos mirar.
Universidade Nômade 31 GLOB(A.L.)
Democracia na universidade Mauro Sá Rego Costa
Por que diabos as rádios universitárias não são divulgadoras sistemáticas das pesquisas feitas na Universidade?
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As discussões sobre a vida e a política universitárias ganham espaço no Rio de Janeiro, finalmente. E assumem a forma de ação direta, com o movimento dos professores da UFRJ e da Uni-Rio contra a greve declarada pelas organizações sindicais dos docentes; e o Uerj XXI, na Uerj, uma lista de discussão na internet. Não há pauta para a discussão no Uerj XXI, nem censuras ou limites de espaço para intervenções, nem partidos ou "grupelhos" monitorando. Uerj XXI é um exemplo do que pode a internet como meio para a democracia direta. Já o conhecíamos desde o movimento de apoio à luta zapatista, no México. Informações do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), de organizações nãogovernamentais (ONGs) e grupos locais, canalizadas pelo site da Universidade de Austin, no Texas, evitaram o massacre programado pelo Exército Mexicano após o levante de janeiro de 94. Entre os participantes do movimento entraram até as páginas do hip hop Brasil afora: boca-daforte, hiphopativo, realhiphop, entre outros. A garotada das periferias das grandes cidades, dos morros, das favelas, dos guetos, no mundo todo, sabe muito bem debater e se organizar via rede mundial de computadores no movimento hip hop. A experiência do Uerj XXI é curiosa. Você se vê, de repente, intolerante com questões "idiotas" - no seu ponto de vista - que circulam dias seguidos, com dezenas de intervenções. Dá trabalho selecionar o que ler e o que deletar da sua caixa de correio diariamente atulhada de mensagens. Mas é isso, uma experiência nova. No nosso caso, não há nenhuma questão central e urgente, como a da greve para os docentes das universidades federais. Estamos, agora em plena campanha eleitoral (para reitoria e direções de unidades e centros). Com isso já começaram a pipocar mensagens de defesas de chapas. Mas, felizmente, esse tema não se sobrepôs ao espaço de outras discussões, como a da Reforma da Previdência; das cotas para negros/pardos/estudantes de
escolas públicas nas universidades; da melhoria das bibliotecas; da luta pela manutenção do Portal de Periódicos da Capes; dos critérios do Banco de Produção Científica; da falta de comunicação interna na Uerj, fato que inviabiliza uma maior participação interespecialidades e, por conseqüência, a extinção dos "guetos de saber", que caracterizam o ambiente universitário.
Multiplicação de rádios Estamos fazendo uma pesquisa sobre as rádios educativas brasileiras pertencentes às universidades (já são mais de 300, sendo que temos acesso fácil e direto a umas 60 que mantêm sites na internet). A maioria tem programação só de música clássica, como a Rádio MEC, ou só de música brasileira. Ou ainda misturando as duas, com espaço para composições regionais. E mantém pequenos programas jornalísticos com maior ou menor espaço para o noticiário especificamente universitário, ou local. Um exemplo é a estação emissora da UFRGS, a mais antiga das rádios universitárias do Brasil. Fundada em 1950, transmite em AM e suas ondas atingem todo o estado do Rio Grande do Sul. A programação segue a mesma linha da rádio do Ministério da Educação Bach, Beethoven, Mozart, Dvörak são nomes certos para os ouvintes - com intervalos de cinco minutos para os noticiários. Aos sábados, esses espaços para notícias são transformados no programa "Universidade é notícia"; ao meio-dia o público tem uma hora de "Conversa de jornalista", além de uma hora de jazz, às 19 horas.
“É um absurdo as rádios não-comerciais continuarem a veicular o lixo ou o mais fácil, que a indústria fonográfica entrega pronto” O que isso nos mostra? Primeiro, que ninguém anda pensando a respeito de rádio. Ninguém pensa sobre o que o
passa pela internet e pelo rádio rádio pode oferecer. Mesmo na área musical, tanto a música erudita - dos compositores que viram professores universitários, por falta de outro meio de sobrevivência - como a música feita nas ruas, a música verdadeiramente popular, com as facilidades das técnicas atuais de gravação, é um absurdo as rádios não-comerciais continuarem a veicular o lixo ou o mais fácil, que a indústria fonográfica entrega pronto.
Excesso midiático O caso do jornalismo ainda é pior. Universidades são fantásticos espaços onde circulam todas (ou quase todas) as áreas de saber, de ciência e tecnologia, físicas e biológicas, às humanidades: ciências sociais, literaturas, artes, filosofia. E música. As universidades públicas e algumas confessionais (PUCs, Metodistas etc.), onde estão a maioria das rádios, são o espaço em que se dá a pesquisa e a produção científica no país; diferente das instituições privadas, "escolões" para mera reprodução de profissionais. Todos reclamam da falta de apoio à pesquisa - ou da mínima parcela dos orçamentos estaduais e federal para a pesquisa. E quando essa parcela diminui (o que não é raro) há uma gritaria que não passa, em geral, dos muros acadêmicos. Por que diabos as rádios universitárias não são divulgadoras sistemáticas das pesquisas feitas na Universidade? Esse devia ser, aliás, o principal tema do jornalismo universitário - e ocupar mais tempo dos que os noticiários de cinco, dez minutos entre um bloco musical (inútil) e o próximo. O filósofo francês Gilles Deleuze disse, uma vez, que a única maneira de vencer os excessos da comunicação midiática, os excessos da besteira montante, era o silêncio. Acho que não é mais. O silêncio não afetará nada. Precisamos, ao contrário, ocupar os espaços ou inventar espaços de mais-comunicação, ou usar a mídia (o espetáculo) contra a mídia (o espetáculo), como propunha Guy Debord. Universidade Nômade 33 GLOB(A.L.)
Trabalho s em m e d i d a Entrevista com Tradução Leonora Corsini
GLOB(A.L.) 34 Conexões Globais
An dré Gorz
por Thomas Schaffroth
O saber e o conhecimento transformaram-se nos principais ingredientes da economia imaterial, cujo melhor exemplo é a indústria cultural e de publicidade, bem como o marketing e a informática
O teórico social André Gorz publicou na França seu último livro intitulado L'immatériel. Connaissance, valeur et capital (Éditions Galilée, Paris, 2003). Dando seqüência a seu último trabalho publicado, Miséria do presente, riqueza do possível, em L'immatériel o filósofo octogenário desenvolve ainda mais suas reflexões sobre o trabalho imaterial, cuja importância já teria suplantado a do trabalho material. Mas, no sistema capitalista, o capital cognitivo só tem função quando é privatizado: esse processo acaba por acentuar os aspectos contraditórios de atribuir um valor ao saber, bem como de sua utilização e transformação em capital.
Global - Em seu novo livro o senhor questiona a sociedade capitalista do saber, chegando mesmo a colocar em dúvida a existência de tal sociedade. Na sua opinião, economia cognitiva e capitalismo são inconciliáveis. Por que motivo? Gorz - Porque na assim chamada economia cognitiva, os parâmetros econômicos tradicionais não são válidos. A principal força produtiva o saber - não é quantificável: a atividade laborativa fundada no saber já não pode ser medida por horas de trabalho. E, apesar de todos os possíveis artifícios, a transformação do saber em capital - capital monetário encontra alguns obstáculos insuperáveis. Dentro em breve, as três categorias fundamentais da economia política - o trabalho, o valor e o capital - não mais poderão ser definidas em termos aritméticos, nem medidas por parâmetros unitários. Além do mais, justamente em função dessa característica de não mensurabilidade, fica cada vez mais difícil aplicar conceitos como mais-valia, sobre-trabalho, valor de troca, produto social bruto. Quando Conexões Globais 35 GLOB(A.L.)
os especialistas em macroeconomia procuram quantificar com os instrumentos tradicionais os resultados econômicos e os padrões de desenvolvimento estão, na realidade, tateando no escuro. A economia cognitiva representa de fato uma crise de fundo do capitalismo e antecipa uma outra economia, de tipo novo e ainda a ser fundada. E é a esse respeito que se desenvolve o debate mundial sobre o que é de fato a riqueza, e a que critérios deve corresponder. A economia tem sempre mais necessidade de parâmetros qualitativos que quantitativos. Global - O estudioso americano Jeremy Rifkin sustenta, em seu livro A era do acesso, que o capital cognitivo imaterial desempenha um papel central na criação de valor e representa o componente mais importante do capital empresarial. Importantes empresas no mundo todo terceirizam seu capital material e vendem apenas saber e serviços. Gorz - Com efeito é assim. Mas a palavra saber vem sendo usada para definir coisas muito diversas, para as quais não dispomos de um
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parâmetro unitário. Consideremos a capacidade artística, a imaginação e a criatividade requisitos muito demandados no âmbito publicitário, no marketing, no design, na inovação, uma vez que são necessários para conferir às mercadorias - mesmo àquelas mais banais - um valor simbólico e incomparável. A publicidade e o marketing constituem uma das maiores, ou talvez mesmo a maior indústria cognitiva: quando conferem a essas mercadorias qualidades únicas e incomparáveis, as empresas podem vender seus produtos, pelo menos por algum tempo, a preços mais elevados. Detêm uma espécie de monopólio e buscam assim uma renda monopolista, contornando temporariamente a lei do valor. Em outras palavras, freiam a baixa do valor de troca das mercadorias ainda que seu custo de produção seja cada vez menor em termos de horas de trabalho e de pessoal alocado.
"As empresas já vêm trabalhando em boa medida no âmbito de redes, unindo-se nos momentos de tomada de decisão"
Global - Neste processo, qual é a relação entre saber e conhecimento? Gorz - Os saberes, no sentido de competência e procedimentos técnicos e científicos, podem ter um papel similar, mas, em termos do alcance de seus efeitos e de seu valor de uso têm uma importância bem mais direta. Diferentemente da capacidade artística e de inovação, as competências e os procedimentos podem ser transmitidos ou formalizados também separadamente por quem quer que faça uso deles. Podem ser transcritos em formato digital e informatizados para fins produtivos sem a necessidade de se agregar qualquer outro aporte humano. Deste ponto de vista, o saber é capital fixo, é meio de produção. Mas apresenta uma diferença fundamental com relação aos meios de produção do passado: é reprodutível, praticamente a custo zero, em quantidades ilimitadas. Por mais que tenham sido dispendiosas as pesquisas que lhe deram origem, o saber digitalizável tende a tornar-se acessível e utilizável a custo zero. Por ser reproduzido e utilizado em milhões de cópias, seus custos originais tornam-se praticamente irrelevantes. Isto vale para todos os programas de software, bem como para o conteúdo de saber embutido
nos medicamentos. Para que funcione como capital fixo e admita a extração de mais-valia, o saber deve necessariamente converter-se em propriedade monopolista, tutelada por uma patente que assegure a seu possuidor uma renda por esse monopólio. A cotação em bolsa de capital constituído por saber dependerá das expectativas de renda futura. Sobre esta base podem ser criadas gigantescas bolhas financeiras que, um belo dia, estouram de repente. O crack do mercado de capitais, prenunciado desde a metade dos anos 90, mostra bem o quanto é difícil transformar o saber em capital financeiro e fazê-lo funcionar como capital cognitivo.
"As três categorias fundamentais da economia política - o trabalho, o valor e o capital não mais poderão ser definidas em termos aritméticos, nem medidas por parâmetros unitários" Global - O senhor disse, em mais de uma ocasião, que a economia cogni-
tiva antecipa a necessidade de uma outra economia, de outra sociedade, cuja possibilidade prática já está se delineando. Gorz - Sim: o saber não é uma mercadoria qualquer e não se presta a ser tratado como propriedade privada. Aqueles que possuem o saber não se privam de continuar transmitindo-o indefinidamente. Quanto mais se difunde o saber, mais rica se torna uma sociedade. Por sua própria natureza, o saber necessita ser tratado como um bem comum, precisa ser considerado, antes de mais nada, como o resultado de um trabalho social e coletivo. Privatizá-lo quer dizer limitar sua acessibilidade, seu valor de uso social. Nos últimos dez ou 20 anos isto tem se tornado cada vez mais evidente, tanto que se formou uma frente anticapitalista mundial de luta contra a indústria cognitiva: podemos dar como exemplo a indústria química e farmacêutica e também a do software, em particular a Microsoft. Na verdade, o capitalismo cognitivo não se limita a apoderar-se do saber no qual teve origem, quer também privatizar aquilo que é incontestavelmente bem comum, como o genoma de plantas, animais e o humano. E se apropria a custo zero do patrimônio
cultural comum para utilizá-lo como capital cultural ou capital humano. O termo capital humano designa principalmente as capacidades humanas e as formas de saber não-formalizáveis que os indivíduos desenvolvem diariamente em suas relações interpessoais. São instrumentalizadas e exploradas no capitalismo cognitivo como o definem na França os teóricos próximos a Toni Negri - não apenas as horas de trabalho prestadas, mas também o tempo invisível dedicado ao próprio crescimento cultural e humano. Todas as atividades individuais desenvolvidas fora do tempo de trabalho e dedicadas à realização pessoal podem ser, portanto, consideradas atividades produtivas. Essas atividades tornam-se então uma das principais fontes de produtividade e criação de valor. Em uma verdadeira sociedade cognitiva, a economia deveria estar a serviço da cultura e da realização de si e não o contrário, como ocorre hoje. De resto, este conceito já o encontramos em Marx, quando escreve que a verdadeira riqueza é "o desenvolvimento de todas as energias humanas enquanto tais, não mensuradas por um parâmetro constituído a priori". É sobre esse princípio que se baseia a reivindicação de uma renda de vida garantida.
Conexões Globais 37 GLOB(A.L.)
Global - O senhor disse que também no plano prático já está se delineando uma outra economia, a do capitalismo. Gorz - Sim, por exemplo, nos freenets e na cultura do software livre, ou de livre acesso aos códigos e fontes pelos usuários da internet. De resto, as empresas já vêm trabalhando em boa medida no âmbito de redes, unindo-se nos momentos de tomada de decisão. A auto-organização, a auto-coordenação e a livre troca estão hoje na base da produção social. E são realizados sem a necessidade de um planejamento central nem da intermediação do mercado. Os produtores, que se relacionam entre si em redes, colocam-se em comum acordo preventivamente e de maneira pactuada para produzir em função das necessidades, desenvolvendo sua função produtiva como um complexo de atividades essencialmente coletivas, promovendo um intercâmbio de bens e serviços sem que tenha sido previamente acertado o caráter dessas mercadorias. O dinheiro torna-se então supérfluo, e o capital teria assim sua própria base capturada. Ainda que não subestimando os obstáculos implícitos em um desenvolvimento deste gênero. Global - A sociedade cognitiva que o senhor descreve seria uma sociedade comunista. Gorz - Exatamente. Global - O senhor vem criticando os "abre-alas" da inteligência artificial e da vida artificial que preparam não mais uma sociedade do saber mas uma civilização pós-humana.. Gorz - Este é para mim um ponto de suma importância. O filósofo alemão Erich Hörl demonstrou, por exemplo, em uma tese realmente magistral, que, no curso dos últimos 150 anos, a ciência tem-se distanciado cada vez mais da realidade perceptível através dos sentidos, da realidade sensorial: no mundo real, um pensamento mais matematizante privilegia somente as estruturas que podem ser enquadradas em termos matemáticos. Por exemplo, a linguagem matemática GLOB(A.L.) 38 Conexões Globais
dos cálculos informatizáveis tem contribuído para alienar não apenas a ciência mas também o capitalismo dos aspectos do sentido e das interações sociais, excluindo como não real tudo o que não seja calculável. À custa de processos de pensamento não sensoriais e matemáticos, têm-se chegado a uma condição ambiental e a um tipo de vida que já não é, física e mentalmente, a medida do homem. Por isso os detentores do poder têm tido a necessidade de criar seres humanos mais eficientes. A loucura do poder econômico e militar e a obsessão eficientista criaram a necessidade de inteligência artificial, de máquinas humanas artificiais. Só poderemos efetivamente falar de uma sociedade do saber quando a ciência e a economia não estiverem mais sujeitas aos imperativos do capital, quando perseguirem objetivos políticos sociais, ecológicos e culturais. Idéias como essa são hoje compartilhadas por um número ainda reduzido, mas em constante ascensão, de expoentes do mundo científico.
Fotos Barbara Szaniecki
Economia do conhecimento e capitalismo cognitivo não são a mesma coisa! A maioria das abordagens em termos de Economia do conhecimento caracterizam-se, de fato, por uma visão a-histórica, positivista e não conflitual da ciência e da tecnologia, o que acaba por neutralizar as contradições sociais, éticas e culturais que o próprio desenvolvimento da economia do saber engendra. De certa maneira, este tipo de abordagem, notadamente na literatura proveniente da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), esvazia a dimensão capitalista que enquadra, correndo também o risco de asfixiar as competências e o dinamismo de uma economia baseada no conhecimento. A abordagem em termos de capitalismo cognitivo, pelo contrário, opõe-se a essa démarche reducionista, colocando a ênfase na historicidade das economias e nos conflitos de saber e de poder que acompanham o desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento. Essa é a razão pela qual insistimos tanto sobre os dois termos que compõem o conceito: capitalismo + cognitivo. Carlo Vercellone
Sangue brasileiro As Nações Unidas não foram criadas para levar a gente para o paraíso, mas salvar-nos do inferno, dizia Churchill. E isso foi verdade ao longo de muito tempo. Hoje em dia aquele inferno engoliu as Nações Unidas também. O caminhão-bomba lançado contra o quartel-general da ONU em Bagdá celebrou, no sangue, um funeral. O enviado especial das Nações Unidas, o diplomata brasileiro Sergio Vieira de Mello, é a vitima de um ato de terror e de uma guerra. O atentando que o matou, e com ele dezenas de pessoas, foi um ato de barbárie como o são todos os atos de guerra. Para os que são golpeados, uma auto-bomba ou um míssil não são diferentes. O terror e a chamada "guerra ao terror" são misturados e não podia ser diferentemente. A ONU deveria tê-la impedido. E ao longo de meses o fez, com gigantescas manifestações no mundo todo participando desse esforço. Depois, a guerra no Iraque começou e a ONU acabou. Quando Vieira de Mello chegou em Bagdá ele não era o representante da única instituição "terceira" no mundo, o lugar onde os países vão praticar a política na tentativa de não continuála com outros meios. Ele era o enviado especial de uma organização que acabava de cancelar o embargo e tornado o petróleo iraquiano interditado um petróleo americano permitido. Uma organização que tinha declarado "bem-vindo" o governo instalado e vigiado pela potência ocupante. Não era a ONU de "antes", era a ONU irremediavelmente de "depois".
no cemitério iraquiano Roberto Zanini Para os que são assassinados numa guerra, não há diferença entre um míssil ou um caminhão-bomba
Felipe Barbosa Homem-Bomba
Seção 39 GLOB(A.L.)
A Argentina Alejandro Suero Tradução Leonora Corsini
O presidente Néstor Kirchner chega ao poder com o menor índice de votos da história do país
GLOB(A.L.) 40 Conexões Globais
K
na era
K Os acontecimentos que vêm se sucedendo desde a rebelião popular e cidadã de 19 e 20 de dezembro de 2001 na Argentina e as mobilizações subseqüentes parecem dar razão ao grande número de pessoas que questionam das mais diversas maneiras o sistema de representação política. O novo presidente, Néstor Kirchner, chega ao poder com o mais baixo índice de votos da história nacional e, ao não contar com a tradicional legitimidade da representatividade eleitoral, busca novas formas de legitimação. Apela aos trabalhadores precários, aos desempregados (categorias sem a cobertura social tradicional conseguida com o peronismo) e aos empregados do Estado. Todos estes setores – atualmente os setores da economia que representam a maior parte da massa assalariada – são conclamados, pelo esquema do partido e pelo governo, a retomarem aquelas velhas concepções socialistas que colocam em primeiro lugar a necessidade da autoridade ou
de um partido que planifique o futuro, ou seja, uma forma de governo que acaba por tornar-se status quo quando o que se busca é apenas fazer uma mediação da relação capitalista. Neste contexto, o programa econômico do governo assenta-se numa tentativa de redistribuição de renda por meio da administração dos fundos do Estado. Um programa que, a bem da verdade, vem sendo implementado já desde antes de Kirchner, como atestam por exemplo, os inúmeros planos para homens e mulheres chefes de família que crescem sem cessar. Mas o que aqui aparece como distribuição de renda não é a pretendida assistência social e sim a expressão de novas formas de trabalho, não necessariamente assalariadas. A questão que se coloca então é: nas mãos de quem encontra-se agora a gestão do trabalho, ou quem fica com a renda e o produto deste trabalho? Atualmente, nas condições mundiais de deflação, o trabalhador fica com-
pletamente desprotegido em suas relações com o poder, e o único intercâmbio possível é o do dinheiro. Na relação que se estabelece entre o distribuidor de dinheiro – não de riqueza – e o trabalhador, o único que está atualmente em condições de distribuir ou de empregar com responsabilidade social é o Estado. Mas, surge outra pergunta: quem tem agora a autoridade do Estado? Para mim, fica cada vez mais evidente a impossibilidade da representatividade nas democracias eleitorais, o que cria uma necessidade mistificada de ter que se recorrer a todos os subterfúgios para sustentar uma “autoridade” que, por sua vez, “distribui” e perpetua a relação salarial, mas que surge, na verdade, de um ato eleitoral que conta com cada vez menor respaldo da população. A discussão central, portanto, gira em torno da democracia. Haveria que insistir de todas as maneiras na necessidade da deserção! Conexões Globais 41 GLOB(A.L.)
Ares de Justiça Gerardo Silva Gerardo Silva
A indicação do constituicionalista Eugenio Zaffaroni para a Suprema Corte de Justiça é uma boa notícia para a população argentina
Nunca ficou tão evidente na Argentina, ao longo dos dois períodos do governo de Carlos Menem (1989-1995 e 19951999) a incestuosa relação entre o Judiciário e o Executivo argentinos – juntamente com seus representantes no Legislativo. Dito em outras palavras, a Corte Suprema de Justiça – e a justiça em geral – nunca foi tão subserviente ao poder como nesses períodos de obscurantismo menemista. Juízes designados arbitrariamente – e, por vezes, com méritos duvidosos – de acordo com as necessidades peremptórias do governo e dos principais grupos econômicos do país, não podia dar outro resultado que uma instituição corrupta, como foi, em termos gerais, a denominada“ corte menemista”. Nesse sentido, a indicação por parte do presidente Néstor Kirchner do advogado, professor e constitucionalista Eugenio Raul Zaffaroni para ocupar uma das vagas da Suprema Corte de Justiça deve ser vista como uma das mais efetivas ações do atual go-verno, que se revela, até agora, particularmente sensível às questões sociais e às feridas ainda abertas do genocíGLOB(A.L.) 42 Conexões Globais
Arthur Omar, A aspiração do relâmpago da série fotográfica A pele mecânica, 2003
dio perpetrado pela última ditadura militar (1976-1982). Eugenio Zaffaroni vem de uma longa militância pelos direitos humanos no âmbito do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), uma organização nãogovernamental fundada em 1979 para tentar ajudar as vítimas do terrorismo de Estado na Argentina. O valor da indicação, entretanto, não se restringe a essa convergência. O mais importante é que a trajetória do candidato nos permite assinalar que um passo, apenas um passo, está sendo dado no sentido da indispensável independência dos
poderes republicanos. Nada nos habilita supor ou suspeitar qualquer tipo de conivência entre Eugenio Zaffaroni e Néstor Kirchner ou entre aquilo que eles representam. Além do mais, a objeção reacionária de “garantista”, isto é, a de ser um defensor ferrenho das garantias constitucionais dos cidadãos frente ao poder do Estado, proferida contra ele por quase todos os representantes do establishment que, de uma forma ou de outra, tiveram que recuar após a rebelião de 19 e 20 de dezembro de 2001, também nos permite dimensionar a enorme significação desta escolha.
Argentina entre a política do controle e a organização dos
movimentos A dinâmica dos ciclos de luta depende da particular composição de classe e da modalidade de exploração e de dominação adotada pelo poder constituído. Uma primeira leitura sobre a insurreição das massas na Argentina ocorrida em dezembro de 2001 leva a pensar que os dias 19 e 20 daquele mês significaram o final de um grande ciclo de lutas de resistência à ordem capitalista dos anos 90, mais do que o início de um ciclo de novo tipo. Com efeito, aquele mês significou o fim de uma modalidade específica de controle capitalista do trabalho: aquela exercida a partir da política monetária da convertibilidade e que vem se expressando na política social dos últimos dez anos. Gestão monetária que acompanhou as mudanças da natureza do trabalho que se refletiram na precariedade laboral e no desemprego maciço. Os dias 19 e 20 de dezembro significaram a passagem ao ato da forma radical e participativa que adota a democracia das multidões, entendida como a associação livre de forças sociais que se manifestaram e se constituíram por fora do poder constituído do Estado e de seus mecanismos de representação. A resistência não se limitou a ser uma derivação reativa ao poder, mas foi capaz de instaurar uma diferença para além da alteridade; pura positividade. Poder constituinte emergente de uma práxis política direta. Contudo, as tempestades que esses dias anunciavam finalmente se acalmaram. Como explicar essas mudanças bruscas? Ressaltamos duas possíveis razões a serem consideradas. Em primeiro lugar estão as relativas às políticas públicas destinadas à contenção social; e em segundo a dificuldade do movimento em encontrar espaços adequados de organização política e constituição da auto-valorização. Ninguém pode negar os novos ventos que acompanham a política do governo Néstor Kirchner e seus feitos na geografia sócio-econômica nacional. Todavia, a política governamental dos
César Altamira
A insurreição das massas em 2001 significou a passagem ao ato da forma radical e participativa que adota a democracia das multidões Direitos Humanos assentada nas palavras de ordem “acabou a impunidade”, assim como o distanciamento e a confrontação com as empresas concessionárias dos serviços públicos privatizados, as tentativas de recompor e limpar o tecido político institucional (como por exemplo, no enfrentamento com a Corte Suprema da Justiça, de clara influência menemista) e os esforços do tipo redistributivo-
Tradução Patricia F. Daros keynesiano no campo salarial, devem ser analisados como a resposta que o poder constituído vem articulando diante da profunda crise de representatividade política originada em dezembro. O governo de Kirchner busca cobrir o enorme vazio de poder que se gestou a partir do desmoronamento dos mecanismos de integração nacional: dissolução dos nexos entre uma reprodução capitalista colocada agora em escala global e a imediata desvinculação estatal de seus próprios fundamentos econômicos. Entretanto, os movimentos, em suas tentativas de organização e desenho de políticas de auto-valorização, ou seja, de constituição de uma subjetividade coletiva alternativa e autônoma, tropeçam numa constante: as políticas dos partidos tradicionais de esquerda. Esses partidos continuam promovendo um tipo de organização política seguindo modelos e normas que pouco têm a ver com a nova composição de classe. Assim, buscam subordinar a estratégia dos movimentos a uma política estatalista que delimita o espaço de confrontação social a uma política que conduza à conquista do Estado enquanto órgão representativo por excelência do exercício da política. Os tempos futuros seguramente testemunharão a enorme tensão política a que será submetido o governo Kirchner em suas tentativas de aplicação de políticas keynesianas, assim como a urgente necessidade do movimento em encontrar algum caminho de organização política de acordo com seu novo perfil de classe, de maneira a reafirmar o potencial criativo interno de sua capacidade prática. Trata-se não somente de resistir ao poder sobre a vida, mas também de recriar a potência da vida: indissociabilidade do poder e da resistência. Conexões Globais 43 GLOB(A.L.)
Balanço sobre movimentos Martin Bergel
Tradução Ericson Pires e Jorge Davidson
Ao contrário dos zapatistas, os movimentos argentinos desenvolveram parcas relações de cooperação internacional, apesar das condições favoráveis existentes A chegada de Néstor Kirchner ao poder na Argentina parece haver marcado o final de um ciclo para os movimentos surgidos em dezembro de 2001, assim como um convite para um balanço do que ocorreu desde aquela data. A rigor, o segundo parece mais certo do que o primeiro: nos últimos meses surgiram abundantes olhares retrospectivos, mas alguns deles estão buscando precisamente desmentir que as eleições e seus resultados supuseram um rito significativo no trajeto dos movimentos. Com efeito, esquematicamente podemos dividir em dois grandes campos os balanços realizados. De um lado, estão aqueles que destacam a função normatizadora das eleições, a sutura de uma ferida aberta em 19 e 20 de dezembro de 2001 e a incapacidade dos movimentos de traduzir politicamente a mobilização social. Antes de deixar Buenos Aires, cidade que habitou por sete meses quando realizava um documentário sobre as fábricas recuperadas, Naomi Klein pintava um panorama com esta cor. GLOB(A.L.) 44 Conexões Globais
No outro caminho, existem aqueles que põem um acento na continuidade mais profunda das energias criadoras dos movimentos e na persistência de dinâmicas de construção efetivas de contra-poder. O Coletivo Situaciones é um dos principais defensores desta tecitura, chegando a zombar do tom de réquiem em respeito a saúde dos movimentos que é presidida pela a análise das visões como as de Klein. Mais recentemente, outra postura veio a intervir no assunto, ao vincular certas surpreendentes iniciativas políticas de cunho esquerdizante de Kirchner com o influxo causado pelos movimentos. Segundo esta visão, o presidente argentino seria, ao menos em parte, um produto indireto e próximo da mobilização política que surgiu desde os fins de 2001. Evidentemente, uma aproximação equilibrada sobre este debate deve considerar o argumento das diferentes perspectivas: não é o mesmo o que se pode dizer da Asamblea del Cid Campeador, que ocupa acintosamente há mais de um ano, nada mais nada
menos que um edifício de um exbanco no centro geográfico de Buenos Aires, desenvolvendo numerosas atividades. Isso o destaca de um panorama mais geral marcado, por exemplo, pela relativa facilidade com que outras ocupações realizadas pelos movimentos fossem desalojadas. Não é propósito desta nota, sem dúvida, fazer uma espécie de balanço dos balanços realizados, mas apenas chamar a atenção sobre um aspecto que tem estado ausente neles. Contaminação global Durante pouco mais de um ano a Argentina esteve como poucas vezes em sua história no centro da opinião pública mundial. No mundo inteiro percebeu-se que na rebelião argentina, produziam-se novas experiências de radicalidade que alimentavam a imaginação política dos movimentos. Muitas das diversas realidades, quase todas envolvidas de uma ou outra maneira no movimento global dos movimentos, vieram a desejar se contaminarem pelo que ocorria nas ruas e
na Argentina
nos bairros. Concomitantemente, de modo similar como havia ocorrido em Chiapas, através do levante zapatista, centenas de militantes em todo mundo buscaram entrar em contato. Muitos visitaram o país e embarcaram em diversos projetos. Outros muitos manifestaram simpatia e inspiração pelos movimentos argentinos em suas próprias realidades, fazendo com que eles pudessem se manifestar pelas ações de celebração do primeiro aniversário da rebelião argentina que se realizou em dezenas de cidades do mundo no 20 de dezembro de 2002. Toda essa história é bem conhecida. O que não quer dizer que foi suficientemente pensada. Passado o pico de atenção e expectativa, o saldo deste intenso trânsito de militantes dos movimentos de todo mundo por acaso não é de todo produtivo como a magnitude dos intercâmbios realizados prometia. O resultado destes intercâmbios parece ser relativamente fraco. Evidentemente, há muito que se investigar sobre a constituição efetiva das redes globais. O encontro de realidades diversas, a composição de tramas políticas entre as alteridades,
abre um campo de reflexão vasto de acréscimos não só políticos como também antropológicos. Neste caso, sem dúvida, o pobre balanço que se pode estabelecer obedece a uma razão muito precisa: o desinteresse relativo dos movimentos argentinos por entrar em contato com realidades diversas. Desde o dezembro de 2001, a Argentina é tema global; o global, em troca, é apenas o tema argentino. A oportunidade excepcional de cruzar aprendizagem, contaminação e fortalecimento político recíproco vem sendo em boa parte desperdiçada. Cidadania mundial Que o desenvolvimento de uma dimensão global não é uma questão menor se evidencia se ensaiarmos uma breve comparação com o zapatismo. Desde o momento de sua aparição na cena pública, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) pôs especial atenção em interpelar a cidadania mundial. Ao largo dos anos foram feitas intervenções no espaço público global que muitas vezes serviram para revitalizar a luta
zapatista. Talvez não seja exagero falar que a incapacidade dos governos mexicanos para se desfazerem de um movimento militarmente muito inferior encontre explicação na força dos laços trasnacionais construídos pelo zapatismo. Ao contrário, os movimentos argentinos desenvolveram parcas relações de cooperação internacional, apesar das condições favoráveis existentes. Num quadro de refluxo, como o atual, os laços internacionais muito serviriam para manter as conquistas alcançadas. Aprofundar as razões destas insuficiências é uma tarefa que agora nos ultrapassa. Pode-se apontar simplesmente que, se em alguns aspectos as lutas argentinas significaram um caminho de inovação e radicalidade, em outros permaneceram atadas a um horizonte muito mais tradicional. A ausência relativa de uma perspectiva global nas lutas na era do Império é um dos problemas que um balanço razoável da experiência dos movimentos argentinos não pode deixar de mencionar.
Conexões Globais 45 GLOB(A.L.)
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Eloar Guazzelli
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“A Solução vai vir
de nós para nós” Entrevista com MV Bill por Ivana Bentes Fotos Bel Pedrosa
A militância midiática do rapper MV Bill que trafica cultura, pensa os desafios da sociedade brasileira e aponta caminhos que passam pelas favelas. GLOB(A.L.) 50 Maquinações
”
Seção 51 GLOB(A.L.)
V Bil
Videoclipe avaliado pela polícia “Quando fiz o videoclipe Soldados do morro recebi uma série de represálias. Quando alguém de dentro da favela tenta mostrar de forma crua, dura, sem maquiagem o que a gente vê acaba sendo taxado de marginal ou de incentivar o crime organizado. Quando espalhou o rumor de que, em vez de atores, o clipe só mostrava os ‘soldados’, os garotos envolvidos com o crime, começou a rolar investigação, processo, ameaça de morte, só porque eu estava retratando aquilo. Eu perguntei para o delegado que me interrogou na época o que teria acontecido se fosse eu que tivesse escrito aquele livro Comando Vermelho, do Carlos Amorim. Será que continuaria valendo como literatura? Ele não soube me responder. Videoclipe, filme, não foi feito para ser avaliado pela Justiça nem pela polícia. Para muitos, morar dentro de uma comunidade é fazer parte de uma faculdade de marginal, de uma escola de bandido, mas quem vive lá dentro sabe que apenas 4% ou 2% de uma comunidade é realmente bandido. Não é aquela coisa que está no filme Cidade de Deus. Dentro da favela tem muita carteira assinada, tem muita carteira de estudante que às vezes é confundida com fuzil, com pistola, com granada.”
GLOB(A.L.) 52 Maquinações
Fotos Bel Pedrosa
Novos sujeitos do discurso “As pessoas não esperaram que um preto da favela com segundo grau incompleto venha levantar essas questões. As pessoas estão condicionadas a enxergar um cara preto, favelado fazendo samba, fazendo pagode, funk e em nenhum momento tendo algum tipo de questionamento social. E quando isso acontece eu sinto que as pessoas acabam ficando chocadas, ‘não era para esse cara estar falando disso’. Teve caso de falarem ‘o discurso do Bill é alguém que fala pra ele, não pode ser ele que cria essas coisas da cabeça dele’ ou em algumas entrevistas ‘o Bill é um preto muito inteligente’, olha que frase carregada de racismo.”
Ser preto e pobre não é coincidência “Eu pensava que era coincidência mas não é. Eu fiquei decepcionado com os movimentos negros. Movimentos em que acreditei a minha vida inteirinha, que apoiei, já participei e que não tiveram sequer a sensibilidade de perceber que 90% dos soldados do tráfico são garotos, jovens, crianças e adolescentes. E desses, 90%, 95% são pretos. E os movimentos negros sequer tiveram a sensibilidade de detectar as pessoas que eles acham que representam. Foi uma decepção muito grande ver o movimento negro se transformar em movimento neutro. Às vezes, me consideram neurótico, complexado, que não tem auto-estima, porque eu tento levantar a todo momento a questão racial que, na minha opinião, é uma forma de violência. Durante séculos a gente se escondeu atrás de uma democracia racial que não existe. A gente vive num país que tem um racismo covarde, e as pessoas acham que o racismo dos Estados Unidos é melhor porque é às claras. Não existe racismo melhor, racismo é racismo e é pra ser repudiado de qualquer maneira.”
É muito fácil identificar criminoso “No Brasil, só é criminoso o favelado, preto, só os ladrões de galinha são presos. Em todo debate sobre violência, sempre tem um caboclo defendendo a pena de morte. O que me preocupa é saber que só as pessoas que vivem na mesma realidade que eu, só os excluídos, é que irão morrer, que irão para a cadeira elétrica ou seja lá o que for. Será que não está na hora de mudar esse negócio de quem tem nível superior ter cadeia especial? Criminoso é criminoso em qualquer circunstância, não existe o criminoso mais ou menos perigoso para a sociedade. A realidade é que aqui no Brasil só vai preso quem rouba pouco, quem rouba muito tem direito à liberdade, tem direito a um bom advogado. Se o Fernandinho Beira-mar tiver problemas de saúde, você acha que a Justiça vai deixar ele ter prisão domiciliar? Só o juiz Lalau que tem, o Hildebrando Pascoal.” A favela precisa de exército de médicos, de agentes sociais, de professores “Não adianta encher a favela de mais polícia, mais armas que só vão trazer mais violência. E, se o papel da polícia for matar, ela não é eficaz porque eles matam e também morrem. O que a gente precisa é de um exército de médicos, de agentes sociais, de professores, de pessoas que possam levar coisas boas para dentro da favela porque violência a gente já tem demais e não é só a violência do tiro, não é só a violência do gatilho, é a da agressão social.”
Qual o outro jeito pra incluir? “Minha opinião sobre a Ação Afirmativa e as cotas para negros vem de quando tentaram colocar atores negros no teatro, cinema, novela e eu vi alguns diretores de novela falando que ‘aceitar isso é simplesmente tirar bons atores brancos e botar atores negros ruins’. Ele já está prejulgando. Ter que estabelecer um número de negros dentro da Universidade, dentro de filme, não é o ideal, fica uma coisa forçada, mas se não for dessa forma, infelizmente, qual o jeito para incluir? O ideal seria ter melhor educação, fortalecer as escolas nas comunidades. Se você for na Uerj, na UFRJ, não vai ver a favela representada lá. As universidades gratuitas, do governo, deveriam servir para pessoas de baixa renda, para os excluídos, estudarem. Para mim, isso é uma tristeza muito grande, ter que criar uma cota, separar um número de vagas para essas pessoas quando na realidade elas deveriam ser a maioria dentro dessas universidades.” Viver menos, viver pouco, e alguma sensação de poder “É pesado você só se sentir importante quando você se forma na bocade-fumo, que é onde você tem um poder, mesmo que ilusório, um respeito fictício, porque não é respeito, é medo. Tem vários jovens que entraram para o crime na Cidade de Deus para poder entrar de graça no baile, ter roupa boa, ter dinheiro no bolso e ter várias garotas, porque as garotas também se sentem fascinadas em olhar um jovem com fuzil na mão, maior do que eles. Os moleques se sentem valorizados, todos têm a consciência que o preço daquilo ali é a própria vida, mas eles preferem viver menos, viver pouco, viver sob risco, mas ter um poder e se sentir alguém em algum momento.”
Eu preciso de um partido inteiro “Sobre esse negócio de a gente ter criado um partido político. É o PPPomar, Partido Popular Poder para a maioria. Estou cansado de ir em qualquer outro partido político e falar dos meus problemas e da minha comunidade, das pessoas que são iguais a mim. A gente é sempre direcionado para uma outra ala do partido que trata dessas questões. Eu não preciso de uma ala, eu preciso de um partido inteiro. Afinal de contas, nós somos 70% da população, os afrodescendentes, embora muitos não saibam que são pretos ou que são afrodescendentes. Nada mais justo que a gente ter pelo menos um partido que represente os nossos interesses. Ser representado na televisão é perigoso, no rádio é perigoso, mas ser representado na política por uma pessoa que pode ser nosso inimigo é uma tragédia.” Moreno, Mulato, Marrom, Chocolate “Essa coisa de moreno, mulato, marrom, chocolate, escurinho, neguinho é uma forma de disfarçar o nosso racismo, e a discriminação aqui não é por raça, é por pele, ou seja, quanto mais escura a sua pele, maior a discriminação em cima de você. Isso faz com que a pessoa preta mas de pele mais clara se sinta superior a outra mais escura e assim vai... Imagina o cara que é o último tom, que é duas mãos de tinta... é o mais discriminado de todos. Isso gera confusão na cabeça de vários moleques. Ninguém quer ser preto, ser preto, sozinho, por quê? A televisão nunca me mostrou as coisas boas que o preto construiu. Porque o processo de racismo aqui não foi só a escravidão. Escravidão física e mental. As pessoas, além de trabalhar de uma forma escrava, também tiveram o pensamento deteriorado, retardado a ponto de não sentir orgulho de ser preto, de ter vergonha disso.” Com o microfone na mão “Eu conheci vários pretos, jogadores, e vários músicos de pagode antes do sucesso. E todos eles tinham o mesmo discurso: ‘Quando chegar lá na televisão, quando estiver com o microfone na mão, vou falar da nossa reali-
dade, do sofrimento que a gente teve para chegar aqui’. Só que, quando ele tem um microfone na mão, ele já tem um carro maneiro, já não está mais morando na favela, já arrumou o troféu dele, que é uma loira – não tenho nada contra as loiras, mas é assim. Ele já acha que aquilo não é mais problema dele: ‘Eu já não estou sofrendo tanto assim, vou deixar para outro que está vindo atrás falar’. Não penso assim. Eu martelo dizendo que a solução vai vir de nós para nós. Não vai ser olhando para o céu, esperando a ajuda vir de cima para baixo. A ajuda vai ser de nós para o lado, de nós para frente, para trás. Da gente pra gente.” MV Bill é o símbolo de um discurso político renovado que faz da crônica musical das guerras nas favelas brasileiras o ponto de partida de uma fala urgente sobre racismo, violência, cidadania. Negro, morador da favela carioca Cidade de Deus, personagem midiático, Bill se define como rapper e militante, um MV, mensageiro da verdade, podendo se apresentar nos shows encarnando uma espécie de traficante-pensador. Como fez no polêmico videoclip Soldado do Morro, proibido pela policia, acusado de fazer apologia ao crime, mas premiado pela MTV em 2001 e exibido pelas favelas do Brasil, universidades e Ongs. Para além do discurso, MV Bill intervem nos territórios da pobreza traficando informação e organizando a produção cultural da favela. Junto com Celso Athayde criou a CUFA, Central Única das Favelas, onde jovens das comunidades realizam clips, documentários, shows, numa produção contínua que abre caminhos. Essa conversa começou no ambiente pomposo de um Centro Cultural carioca e acabou numa ida à Cidade de Deus. Lá, MV Bill e Celso Atahyde cruzam uma zona de combates cotidianos, na fronteira perigosa entre o Estado e o narcotráfico, criando uma terceira margem. Como? Bill responde com a música Declaração de Guerra: “Não aceito ser chamado de artista/ Sou favelado, Incendiário, um terrorista/ A luta é o coração de um guerreiro ativista”. Maquinações 53 GLOB(A.L.)
Efeito
Cufa,
Foto Bel Pedrosa GLOB(A.L.) 54 Maquinações
comunicando a favela................ Celso Athayde A Cufa http://www.cufa.com.br é uma organização de loucos que querem mudar a ordem do mundo, ou pelo menos tentam "obrigar" parte do mundo a ver o outro lado sob uma nova ótica. A Cufa foi criada por jovens de todas as idades, se baseia nos conceitos da cultura hip hop, apesar de que nem todos lá são adeptos dessa cultura. O tempo foi passando e a Cufa foi ganhando outros espaços e assumindo outras responsabilidades sociais e politicas. Hoje, atuamos na área do audiovisual, fazemos filmes, vídeos, comerciais, campanhas publicitárias, pesquisas, livros... A cultura hip hop não se limita a subir num palco e rimar, a sua atuação principal se dá exatamente fora dele: é no dia-a-dia dessa organização que vivemos nossos maiores desafios e contradições. Muitas vezes somos confundidos com marginais, muitas vezes somos confundidos com mocinhos... No fundo somos um pouco de tudo isso. A Cufa se mantém com a contribuição de seus membros ou doações de profissionais que atuam na
linha de frente das suas lutas. Pessoas que de alguma maneira tiveram sucesso por causa da atuação de muitos outros anôminos, assim ela acaba sendo também uma cooperativa! Hoje, estamos produzindo a semana Hutus 2003. Que inclui uma mostra de cinema de filmes de Hip Hop, um prêmio para os melhores do ano em hip hop do Brasil inteiro, desfile de moda da cultura hip hop, batalha de B. Boys, exposição de grafitti, basquete de rua, debate... Essa semana acontece entre os dias 3 e 9 de novembro http://www.hutus.com.br Estamos produzindo neste momento 30 vídeos de rap dos grupos da Cufa, cinco estão prontos. Acabamos de criar o site que está dando visibilidade para um outro público ao trabalho desses jovens que produzem um cem número de atividades informais, abrindo para eles um leque de possibilidades, inclusive no exterior. A abertura dessas atividades acabam obrigando a constituir novas áreas, como a de comunicação que passa a dar suporte aos site, ao programa "Hip
hop Cufa ", na rádio FM 94, aos artistas da Cufa etc. Estamos nesse momento com a segunda turma do curso de audiovisual, que acontece na nossa base de Madureira aos sábados, com frequência de 50 alunos ! Sei o quanto é dificil mudar preconceitos de anos. Mas não temos como proposta ser aceitos por essas pessoas, nossa proposta é meter o pé na porta e entrar. Isso não pode ser visto como radicalismo, mas avanço lógico e consequência do que está sendo produzido, o reflexo óbvio de tudo que foi plantado. Não propomos a violência, apenas não queremos e não vamos reproduzir o formato escravo ao qual nossos pais se submeteram. Entre viver e morrer, escolhemos a vida. Entre matar e morrer escolhemos vida Entre sonhar e sofrer escolhemos a luta ! (depoimento para Ivana Bentes) Maquinações 55 GLOB(A.L.)
e o susto do cavalo do Dragão
esquerda GLOB(A.L.) 50 Maquinações
No dia da posse do presidente Lula, a multidão, por permanecer em plena alegria, desarticulou a ordem estabelecida Valter A. Rodrigues Depois de muitas lutas e fracassos, e pela primeira vez na história deste país, chegou ao posto máximo do governo da nação um representante que emergiu do anonimato dessa multidão que somos. No dia da posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva, vindos de todos os lugares e por todos os meios, criando uma colorida, alegre, irreverente e esperançosa massa humana em movimento, os múltiplos fizeram uma grande festa nas ruas não desenhadas para eles. Foi um dia belo, no qual o cavalo que se empina assustado narinas dilatadas e dentes à mostra e que derruba seu cavaleiro engalanado é emblemático: essa guarda tem uma função de marcar simbolicamente a distância entre representante e representados. Por essa posição simbólica, quando ela passa, encabeçando a marcha solene, a multidão recua, respeitosa, e aceita que é assim mesmo, que por maior que seja seu entusiasmo, ela e aquele que a representa são diversos, não pertencem à mesma carne, ao mesmo corpo. Nesse dia, entretanto, a multidão não se afastou respeitosa e assustada, obediente à designação de seu lugar. Ao contrário, por permanecer em sua plena alegria, foi a própria ordem que se assustou, foi ela que se desarticulou com o susto do cavalo quando a multidão não se afastou para lhe dar passagem. Passados já mais de seis meses desse acontecimento, há algo que permanece vivo em nós: a força e a alegria da multidão plena de esperança. Uma esperança que, longe de estar associada ao medo, manifesta-se como expressão de uma potência que é a única capaz de mudar o mundo. Foto Brígida Rodrigues
Maquinações 57 GLOB(A.L.)
A política no
psicanalisar
Desenhos de Marcos Carrasquer
II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise vai ser realizado no Brasil
Joel Birman
GLOB(A.L.) 58 Maquinações
O II Encontro Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise será realizado no Rio de Janeiro entre 30 de outubro e 2 de novembro deste ano. Os diversos temas desta reunião foram escolhidos tendo sempre a política em pauta. Os conferencistas convidados vêm de fora da psicanálise. Tarik Ali (Inglaterra) vai teorizar sobre os conflitos presentes nos fundamentalismos na política da atualidade. Sérgio Rouanet (Brasil) vai articular as relações entre psicanálise e cultura. E Antonio Negri (Itália) vai pensar as relações tensas da subjetividade e da política na contemporaneidade.
Na programação, as relações complexas entre a psicanálise e o Estado constituem o eixo inicial de preocupação. Pretende-se debater desde os aspectos de regulamentação legal e médica das práticas analíticas até as articulações destas com os movimentos sociais e as instituições públicas. Haverá ainda debates sobre: as relações de psicanálise com as neurociências, a ação da mídia na construção de subjetividades, as novas formas de conjugalidade e de parentesco e a questão do estatuto da estrutura edipiana no psiquismo. A primeira edição do evento foi realizada em Paris, em 2000. O seu cata-
A Expo Brasil Desenvolvimento Local e a potência dos territórios Caio Márcio Silveira e Liliane da Costa Reis Coordenadores da Rede Dlis e da Expo Brasil Desenvolvimento Local
lisador foi o efeito produzido, no movimento psicanalítico internacional, pelas denúncias empreendidas por Helena Besserman Viana sobre a participação de um analista em formação em práticas de tortura, no contexto da ditadura militar no Brasil. Isso porque este grave acontecimento ético contou com o acobertamento da instituição analítica a que pertencia o tal analista e com o silêncio inquietante da Associação Internacional de Psicanálise. No I Encontro Mundial, a psicanálise, como prática, saber e institucionalidade, foi devidamente passada em pente-fino, que contou com a participação de pessoas provenientes dos quatro cantos do mundo. No seu final foi proposto, pela assembléia geral, que a próxima reunião deveria se realizar no Brasil, em reconhecimento da massiva participação de latino-americanos e principalmente de brasileiros naquele encontro. História Os Estados Gerais é um signo eloqüente que permeia indubitavelmente a história política francesa. Desde o final da Idade Média, com efeito, eram convocados pelo poder para que a população pudesse debater e decidir algo que concernia ao interesse de todos no espaço social. Daí porque tais Estados eram literalmente considerados Gerais. Na aurora da revolução francesa o rei os convocou e o seu resultado foi a obra revolucionária propriamente dita, na qual a decisão fugiu ao controle efetivo do soberano. Constituiu-se, assim, a soberania popular e a modernidade política. Os Estados Gerais, portanto, é uma convocação feita a uma dada comunidade para que examine e decida sobre certas questões que a todos preocupa e que afeta o seu destino.
Cerca de 2 mil pessoas vão discutir em novembro, em Belo Horizonte, formas alternativas de melhoria da qualidade de vida em territórios brasileiros
Estamos em um ambiente histórico de deslocamento de paradigmas que gera oportunidades para a produção de novos referenciais de desenvolvimento, para além dos parâmetros mercadocêntricos (neoliberais) ou estadocêntricos (como nas variantes de políticas industriais de tipo desenvolvimentista). O retorno ao modelo desenvolvimentista parece simplesmente irrealizável - caso fosse buscado, levaria certamente a outro lugar. Perceber isto não é apenas constatar que o crescimento, mesmo acompanhado de ações redistributivas, não garante inclusão social ou redução das desigualdades. Diferentemente, é preciso distribuir para desenvolver. E distribuir não apenas renda, mas conhecimento e poder - o que não se faz de cima para baixo ou de fora para dentro. É aí que reside a aposta no potencial de mobilização sociopolítica e produtiva dos territórios, como uma via de transformação social. Alternativas transformadoras de desenvolvimento local traduzem a congruência entre cultura de redes, formação de capital social, radicalização da democracia e protagonismo local - recompondo, em um único processo, aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais. Não se trata do desenvolvimento clássico, reduzido a
uma "escala local". Na verdade, não se trata de uma questão de escala. O desenvolvimento local inscreve-se, tipicamente, na busca de um outro desenvolvimento, indissociável da emersão de novos sujeitos políticos. Inscrição no evento No Brasil de hoje, isto é algo que faz por acontecer. Ao final de 2002, foi realizada a primeira Expo Brasil Desenvolvimento Local, promovida pela Rede Dlis. O evento contribuiu para revelar a vitalidade dos temas e das experiências que hoje vicejam nos mais distintos e distantes lugares do país. Estamos agora às vésperas da segunda edição. Ela ocorrerá em Belo Horizonte, no Minascentro, de 5 a 8 de novembro. Cerca de 2 mil pessoas vão participar. Combinando idéias e experiências concretas, a Expo Brasil Desenvolvimento Local 2003 é uma extraordinária oportunidade de tornar visível e debater alternativas de desenvolvimento baseadas na participação democrática e no protagonismo local. Não deixe de reservar a data.
Maquinações 59 GLOB(A.L.)
As multidões e o Império Giuseppe Cocco e Graciela Hopstein (org.)
O poder constituinte Antonio Negri
www.dpa.com.br dpa@dpa.com.br
O capitalismo cognitivo Alexander Patez Galvão, Gerardo Silva e Giuseppe Cocco (org.)
A cidade região Jeroen Johannes Klink
Trabalho imaterial Maurizio Lazzarato e Antonio Negri
Empresários e empregos nos novos territórios produtivos Giuseppe Cocco, André Urani e Alexander Patez Galvão (org.)
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