Silêncios e Sons - Davi Roque

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SILÊNCIOS E SONS

DAVI ROQUE


Roque, Davi Silêncios e Sons — imagens na madrugada paulistana São Paulo: FATO Editorial, 2013 ISBN 978­85­66706­00­0

Edição e ensaio crítico Flávio Tonnetti


SILĂŠNCIOS E SONS

DAVI ROQUE imagens na madrugada paulistana


Silêncios e Sons – imagens da madrugada paulistana Davi Roque

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A fotografia entre Silêncios e Sons por Flávio Tonnetti

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A P Ó S A L G U M A S toneladas de discussão semiótica ficamos convencidos, e estamos fartos de saber, que a fotografia não é um documento no sentido de representar algo que verdadeiramente é. Como discurso, a fotografia reapresenta uma realidade vista e que só é real enquanto visão. O real não é o objeto fotografado, mas a visão que fizemos dele. Assim, não representamos algo que existe, mas representamos algo que damos a existir através do nosso olhar. Um olhar que, por sua vez, será também visto pelos olhos de outro. Afotografia, então, não existe no momento em que é produzida: só existe fotografia quando ela é vista por um olho, que não o primeiro que a produziu, mas um segundo que a receba. Fotografia, como prática discursiva, é necessariamente um processo de comunicação.


—O papel que a fotografia tem, portanto, não é o de repor a realidade, mas de criá­la – ou ‘recriá­la’, numa visão mais reformista que possamos ter em relação à representação da realidade fotografada como algo realmente existente. Talvez nem sequer exista aquilo que vemos através da fotografia; e nisso podemos aproximar um certo tipo de se fazer fotografia de um certo tipo de se fazer pintura. —Não se trata de questionar a existência de um real visto por aquele que tira (e revela!) uma fotografia, mas de insistir em retomá­la como algo visto, algo que se vê, e que, por ser do domínio da visão, é algo construído por nossos sistemas neurais em ação e movimento. A neurofisiologia da visão ensina que aquilo que se vê é em grande parte uma construção do cérebro – e que nada ou pouco tem a ver com uma recepção passiva de uma realidade externa. O ato de olhar é um ato criador; aproximar a fotografia do olhar é propor também que seja a fotografia um ato criador, no nível mais visceral que possamos fazê­lo. —A fotografia intimista de Davi Roque repõe algumas destas questões ao mostrar uma realidade criada como realidade vivida. Algum fotógrafo célebre disse que a fotografia não serve para revelar o mundo, mas para revelar ao mundo o modo

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como vemos o mundo – e a nós mesmos. A construção discursiva dessa série de fotografias de Silêncios e Sons problematiza a fotografia como prática discursiva quando nos faz ver que a única coisa que resta é o silêncio – e um imenso espaço vazio. Por meio das imagens temos acesso ao olhar de quem as produziu e nos colocamos imediatamente inseridos numa espécie de outra vida que não é a nossa – e que julgamos ser a de quem a fotografou. —É provável que seja. Para alguém que ganha a vida como técnico de som ou musicista, uma vida silenciosa talvez possa revelar a solidão através de seus ruídos. Numa região metropolitana de vinte milhões de habitantes como São Paulo, a visão de uma plataforma de trens vazia é uma visão aterradora, indício de peste ou ataque nuclear. Mas resta um ente vivo: mais incômodo que longos planos vazios é o silêncio da solidão materializado numa presença humana. Colocadas em primeira pessoa, as fotos de seus próprios pés inserem a solidão do corpo nesses cenários de vazios e silêncios, o que traz um clima de dramaticidade à experiência humana. Fossem fotos captadas com equipamento fotográfico disposto em tripé, poderíamos supor que estas criações foram previamente desenhadas para


gerarem imagens vazias em ambientes cheios com o recurso da exposição prolongada. Mas tratando­se de fotografias feitas com o uso muitas vezes precário de uma câmera embutida em um dispositivo de telefonia móvel, o vazio «autêntico» desta fotografia ganha em expressão poética ao retratar uma vida «verdadeiramente solitária». Essas «visões de si» dialogam profundamente com a tradição do autorretrato, com a ressalva de que nesta série não há retratos num sentido estrito, posto que não há rostos, mas apenas os pés do artista. Curiosamente, os únicos rostos existentes neste conjunto de fotografias não ocupam exatamente o lugar de rostos humanos, porque aparecem como coberturas de objetos nas capas de discos. —É importante lembrar que na única imagem que se aproximaria daquilo que chamaríamos classicamente de retrato – ou seja, a apresentação clara do rosto de uma figura humana posando para uma foto – o rosto aparece encoberto pelo dispositivo fotográfico. De frente ao espelho, o artista tira seu autorretrato com uma câmera no lugar do rosto. Dá a ver que o rosto – ou a face do artista – é determinado pelo olhar. Aquilo que é visto é mais importante que aquele que vê

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– maximizando a retração da condição de indivíduo para antes do corpo, para antes da externalidade do corpo. Externalidade esta que poderia nos confundir com a materialidade do mundo; algo que fatalmente nos conduziria a uma interpretação da fotografia como fato e não como experiência. —Tal retração do indivíduo aparece ao longo de toda a série de fotografias, seja pela presença tímida dos pés, como parte diminuta do corpo em relação à imensidão da cidade, seja pela espera intuída dos vazios das plataformas de trem ou ainda pela indefinição de lugares e objetos nessa cidade fantasma. Curiosamente, esta diminuição não torna por anular o indivíduo, mas sim por maximizar sua experiência intraperceptual, como se pudéssemos viver aquilo que vemos, ocupando os lugares vazios deixados por esta vida a partir da coexistência com ela própria. —Ainda que desconheçamos a face da vida que acumulamos e vivemos enquanto vamos vagarosamente folheando as páginas deste livro sem rosto – não é isso que fazemos quando folheamos todo livro? – percebemos que outros elementos produzem eco no autorretrato solitário de banheiro. A própria escolha de retratar­ se numa espelunca qualquer da trajetória noturna, e usando uma camiseta em


que vemos uma obra de Banksy estampada, não deve passar despercebida quando analisamos a imagem em seu contexto. O autorretrato, no curso desta experiência noturna pela madrugada da região metropolitana, traz para dentro de si grafites urbanos, placas dispersas, avisos noturnos, frases a esmo e carros destruídos. Todos reunidos, estes elementos fazem parte da experiência mental desta cabeça­câmera. Compõem um perfil e vão criando, aos poucos, retratos e cenas de um submundo particular que vai do centro à periferia e que encontra no interior do centro resquícios da periferia abandonada. Encoberto pelo dispositivo fotográfico é por meio dele que se revela e revela aquilo que vê. Os únicos rostos estão às coisas reservados. Aparecem faces nas superfícies do objeto disco, nas projeções do videogame ou da tevê: objetos das mídias de comunicação em massa aqui tratados como expressão da singularidade, milagre conseguido pelo olhar solitário de tornar particular aquilo que é do âmbito público. Como tratados aqui, música, televisão e videogame, encontram sua potência na dimensão da vida privada e funcionam como marcadores do tempo da existência – assim como marcam também o tempo da experiência alguns elementos indicadores de fluxo,

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tais como os pés e as plataformas de trem, o relógio da madrugada e a própria iluminação das cenas noturnas; isso sem contar as placas urbanas que retomam a ideia de movimentar­se no tempo. —Os discos com faces ou nomes de bandas e compositores compõem uma espécie de trilha sonora desta odisseia urbana, funcionam como resquícios da presença humana gravada em cada tipo de mídia. —Mas outras presenças humanas corporificadas são notadas em outras duas fotografias muito diversas. Numa delas vemos pessoas aparecerem como uma massa indiscernível de gente, frequentadores de um espetáculo musical num dos bares da cidade. Outra revela, também no bar, a figura solitária de um boêmio numa brincadeira de equilibrar cigarros e copos cujo tom emocional retoma a solidão das primeiras fotografias, a presença humana novamente reforçando os vazios, como os pés das plataformas ou dos caminhos. Lembramos que estamos acompanhando existências que são tão reais de tanto que se mostram vivas. Estamos profundamente imersos na narrativa. Confundimo­nos com a massa de anônimos na noite, mas estamos na experiência de viver sempre solitários, como


bêbados boêmios se divertindo às custas de banais brincadeiras até que amanheça o dia. —Se a fotografia é um percorrer de olhares e um reconhecimento da experiência através dos rostos, percebemos quão pouco glamourosa pode ser a vida de um músico. Essa solidão das imagens de Davi Roque dialoga com as imagens produzidas por um músico bastante popular que fotografava a si mesmo nos reflexos de torneiras, pias e maçanetas dos hotéis em que ficava quando viajava em turnê. Uma solidão do mesmo tipo, toda silenciosa, ainda que os equipamentos seriados e os botões repetitivos da mesa de edição de som nos lembrem que a vida é cheia de ruídos – mesmo quando retornamos para casa após um dia de trabalho renhido e desejamos apenas colocar os pés para cima e aquecer nossos corpos tímidos com um copo de café solúvel para então, e finalmente, querer ousar acreditar que na vida «tudo vai dar super certo».Talvez disso nos valha a fotografia: fazer­nos perceber que é possível preencher com cheios os nossos vazios; converter silêncio em som e sons em silêncios.

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TÍTULO AUTOR ENSAIO E PROJETO GRÁFICO FORMATO NÚMERO DE PÁGINAS TIPOS

Silêncios e Sons Davi Roque Flávio Tonnetti 21 cm x 14 cm 87 Berlin Sans e Arial


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