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PARTE
from Sobre muros, empinando pipas: Narrativas do resistir e sobreviver na Cruzada de São Sebastião RJ
SUMÁRIO
9 introdução
Advertisement
19 método
PARTE 01:
29 muro-terra:
o direito à terra e o contexto político e religioso que engendrou a existência da Cruzada
41 pipa-vento:
a pipa como a possibilidade da brincadeira, leveza e transgressão
PARTE 02:
53 muro-matéria:
os diferentes elementos físicos que segregam o espaço da Cruzada
67 pipa-lugar:
os espaços que ressignificam a Cruzada
PARTE 03:
81 muro-pele:
ao que é preciso sobreviver; o racismo estrutural e as sutilezas domesticadoras
105 pipa-gente:
os atores desta história e a síntese de todas as pipas
113 wagner 125 jeferson. kelvin. caique.vitória. jp 135 jeferson 147 kelvin 157 caique 167 vitória 177 jp 187 vera lúcia
199 considerações finais
202 notas bibliográficas
203 bibliografia
205 agradecimentos
introdução
A escova
Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora.
Manoel de Barros
Com uma escova em mãos tento fazer o que Manoel de Barros diz nesse poema - escovar - não só as palavras, mas a memória enterrada que vive por debaixo da história que nos contam sobre quem somos e sobre a cidade em que vivemos. Desta forma, este trabalho se inicia a partir do desejo de pensar a memória daqueles que geralmente tem seu passado obliterado, dos que não aparecem nos livros de história, daqueles em que a luta dos antepassados é escondida, para assim, ver a memória que sobrevive.
Sobrevivência é uma palavra que me instiga no sentido em que evoca a vida em si, mas ao mesmo tempo é relativa àquele que permanece vivo “apesar de”, que insiste em viver, que resiste à morte. Resistência, palavra que é cada vez mais clamada pela população, sobretudo pelas minorias que precisam insistentemente lutar pela permanência de seus direitos, entre eles, o de existir. Do ponto de vista político, não é incomum em nossa história momentos como o atual; de perda de direitos adquiridos ao longo de anos de luta. Por isso, estas duas palavras norteiam este trabalho que busca encontrá-las nas relações, nos territórios e nas pessoas através da memória, do contato e da imagem que me permitem ver e ouvir essa outra cidade que sobrevive e sobreviveu e os lugares, relações e pessoas que manifestam esta resistência.
A Cruzada de São Sebastião do Rio de Janeiro é um desses espaços que teimam em existir. Situada entre os bairros Leblon e Ipanema em uma região conhecida como Jardim de Alah, o conjunto habitacional construído nos anos 50 evidencia os rastros deixados por aqueles que construíram a Zona Sul e, que com a valorização do solo, foram continuamente expulsos daquele território. Até os anos 70 é possível enumerar pelo menos nove favelas que estavam nas redondezas do conjunto, entre os bairros Gávea, Leblon, Ipanema e Lagoa. Entretanto, estas favelas foram removidas dando lugar a parques, shoppings e condomínios de classe média, como no caso da Favela da Praia do Pinto que ocupava o terreno onde hoje está instalado o condomínio popularmente conhecido como Selva de Pedra. A Cruzada foi o único conjunto habitacional que se estabeleceu nesta região e teve como objetivo receber os moradores destas extintas favelas e, portanto, corresponde ao que sobreviveu às inúmeras tentativas de apagamento dos indícios da existência destas populações. A maior parte dos moradores advindos das favelas mencionadas foram removidos e alocados em conjuntos habitacionais apartados da malha urbana consolidada, como os conjuntos habitacionais Cidade de Deus, em Jacarepaguá e Cidade Alta, em Cordovil. Em bairros afastados, estas pessoas ficaram à beira da inexistência ou à existência servil e segregada.
Me encontro neste momento procurando explicar que o conjunto habitacional Cruzada de São sebastião do Rio de Janeiro é o objeto de pesquisa deste trabalho. Objeto. Palavra que se refere a seres inanimados, sem vida. Objetos não sobrevivem, a Cruzada sim. O que é a Cruzada para esta pesquisa então? É a experiência dos moradores, é sua relação com os bairros que a circunda, é a memória das populações que moravam nas favelas removidas daquela região, memória daqueles que permaneceram, é a insistência em existir no bairro com o metro quadrado mais caro do Brasil e é, por fim, um conjunto habitacional de 10 blocos com 7 pavimentos, 965 apartamentos com uma população de 2.957 habitantes constituída majoritariamente por jovens negros.¹
A história da Cruzada e até mesmo de algumas favelas que existiam na região, como a Favela da Praia do Pinto e Catabumba, já foi tema de estudo de diversos trabalhos, como o de Augusto Ivan e Eliane Canedo de Freitas Pinheiro; Lícia do Prado Valladares e Soraya Silveira Simões, autores que estão presentes em minha pesquisa e que contribuem no entendimento do contexto político e territorial em que a Cruzada se insere. Sendo assim, não tenho como objetivo fazer um profundo levantamento histórico. Minha intenção é construir coletivamente através de encontros com os moradores do conjunto memória e relações. Para assim, conseguir olhar para a história que não é contada e ver o bairro por trás do Bairro.
O texto se organiza através de duas palavras-chave; muro e pipa, que ao longo de toda a investigação emergiram continuamente, apresentando-se de maneiras diferentes, mas evidenciando os mesmos conceitos. Muro é o que segrega e delimita. Pipa é o que voa, encontra brecha e colore. O muro é fixo, a pipa é movimento. As tensões geradas pelo encontro destas duas palavras é sintetizado nas montagens feitas para cada um dos binômios criados - muro-terra, pipa-vento, etc -. Montagem é o agrupamento de imagens que quando relacionadas adquirem um novo sentido. Este processo foi conduzido pela leitura do que o filósofo francês Didi-Huberman apresenta sobre o trabalho do historiador da arte, Aby Warburg. Além disso, esta pesquisa se divide em três momentos, sendo que cada um deles possui dois capítulos, um que apresenta um muro e outro uma pipa.
Parte 1:
O primeiro momento aborda o que chamo Muro-Terra e Pipa-Vento. O capítulo intitulado Muro-Terra foi conduzido por uma abordagem sobre a questão do direito à terra e o contexto político e religioso que engendrou a existência da Cruzada, para isso, foi de extrema importância o diálogo com os livros “A invenção da favela: Do mito de origem a favela.com” e “Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro.” de Licia do Prado Valladares, “Lagoa” de Augusto Ivan e Eliane Canedo de Freitas Pinheiro e “Cruzada São Sebastião do leblon: Uma etnografia da moradia e do cotidiano dos habitantes de um conjunto habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro” de Soraya Silveira Simões. Já o segundo capítulo, denominado Pipa-Vento, aborda como uma fotografia específica traçou a minha abordagem e foi o que me instigou a pensar a pipa como a possibilidade da brincadeira, da leveza e transgressão. Assim, a palavra terra tem a intenção de trazer a ideia da casa, do chão, do lar, da posse. Enquanto, a palavra vento traz a liberdade do ar, a brincadeira fluida e sem dono.
Parte 2:
O segundo momento agrega os capítulos 3 e 4, denominados Muro-Matéria e Pipa-Lugar, respectivamente. O primeiro trata dos diferentes elementos físicos que segregam o espaço da Cruzada, como os muros dos clubes, o Shopping Leblon e os gradis da rua Humberto Campos. Já o capítulo intitulado Pipa-Lugar, apresenta alguns locais que ressignificam a Cruzada por serem ocupados de formas que causam dissenso ou por permitem a existência da brincadeira.
As observações feitas neste capítulo se dão através das fotografias que fiz olhando para a Cruzada sobre as janelas do Shopping Leblon, das minhas caminhadas pelas ruas ao redor do conjunto e das reflexões sobre minhas visitas e encontro com os moradores.
Parte 3:
O terceiro e último momento tensiona o que chamo Muro-Pele e Pipa-Gente. O capítulo Muro-Pele foi o desenvolvimento mais recente desta pesquisa e o que mais a reestruturou através da percepção de que muitas questões que se colocam sobre a comunidade da Cruzada transcende ao contexto do conjunto e trata sobre a condição do negro brasileiro, tema de muita complexidade e desafiador para esta pesquisa. A princípio, estudar sobre um conjunto que sobrevive no Leblon não seria necessariamente falar sobre a questão da marginalização e do genocídio negro no Brasil. Porém, sim, é mais do que necessário, é urgente e, por isso, me permiti, mesmo com minhas limitações, abordar estes temas.A verdade é que só podemos falar de territórios marginalizados quando olhamos para o processo que marginaliza e ele é escravocrata, antidemocrático e genocida.
Dessa forma, encaro este trabalho-processo como uma escuta que se dá através do contato com a comunidade da Cruzada e com os autores que abordam a questão do negro brasileiro, sendo eles; Abdias Nascimento que foi poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras; Aza Njeri e Katiúscia Ribeiro que são pesquisadoras de Filosofia Africana e abordam especialmente uma vertente de um novo pensamento negro no Brasil denominado Mulherismo Africana. Por meio destas leituras e deste enfrentamento pessoal em entender a minha posição ao contar esta história, o meu lugar de fala, assim como, a abordagem que considero mais urgente em ser discutida, procuro relacionar as sobrevivências que tornaram possível a existência do negro brasileiro o que agrega a população da Cruzada.²
O capítulo de nome Pipa-Gente ao contrário da rigidez que o capítulo anterior possui, se dá através da aproximação com os moradores, por meio de seus relatos, dos encontros informais e das fotografias que fizemos coletivamente. O objetivo destas aproximações é entender o olhar dos moradores sobre o conjunto, a história, a memória e as tensões que permeiam este território e suas histórias pessoais.
A partir da leitura do trabalho “Pedregulho: Residência artística no Minhocão”, organizado por Beatriz Lemos e Cristina Ribas, defini que minha abordagem para as aproximações com os moradores seria através do diálogo a da imagem. A ação proposta por Lemos e Ribas teve como objetivo ocupar o apartamento 613 do Conjunto Residencial Pref. Mendes de Moraes, popularmente conhecido como Pedregulho, com o intuito de provocar uma intensa interação entre artistas e moradores. Assim, o contato com a comunidade gera a arte, que pode ser o registro fotográfico experimentado por Luiza Baldan ou as rodas de conversa feitas pelo coletivo Frente 3 de Fevereiro. Dois trabalhos que são referências para a minha investigação.
Em suma, este capítulo final fala com os atores desta história
que são a verdadeira possibilidade da existência da pipa, são a síntese de todas as pipas. Ao longo de todo o texto menciono ou dialogo com algumas dessas pessoas que me apresentaram a Cruzada. São elas; Wagner, que é responsável pelo projeto Basquete Cruzada e foi um grande parceiro em todo trabalho, foi a ponte para que eu conhecesse outros moradores e foi quem me ajudou a pensar as conversas, a prática fotográfica e com quem pude dividir uns sonhos e sonhar junto também. Jow é o atual presidente da Associação de Moradores, foi também um grande interlocutor para pensar a memória da Cruzada, me ajudou em cada detalhe, desde a colagem dos cartazes convidado para as ações, até para caminhar pelo conjunto me apresentando moradores e lugares. Dona Vera, a secretária do bloco 06, de 74 anos e leveza de menina, me foi apresentada por Wagner, Vera dividiu comigo sua vida enquanto eu observava sua rotina, ela é a síntese do que entendo por mulher forte que sem ter a menor dimensão do quanto é incrível, conta sua vidaluta com grande humildade. JP, Kelvin, Caique, Vitória e Jeferson são as crianças que ficaram por mais tempo comigo no dia da prática fotográfica e me apresentaram a Cruzada através de seus olhares curiosos sobre o conjunto e sobre a vida. Deles ganhei abraços, intermediei conflitos. Com eles corri, torci e brinquei, enquanto eles me mostravam as “pipas” pelo caminho.
Por fim, a soma de todos estes muros e pipas visam mostrar as forças pelas quais é preciso resistir, mas principalmente as sobrevivências. A Cruzada me apresentou alguns muros e pipas, mas, muitos deles não são exclusivos da situação em que esse conjunto específico está inserido, nossas cidades repetem os mesmos padrões continuamente. Assim, esse texto mais do que uma abordagem especificista ou uma tentativa de responder às questões pertinentes à Cruzada de São Sebastião do Rio de Janeiro é um convite, um momento de nos colocarmos sobre estes muros tentando empinar pipas.
método
Duas abordagens metodológicas conduziram as aproximações feitas nesta investigação. A primeira delas é o uso da montagem enquanto propulsora de sentidos, que é apresentada por Didi-Huberman através da produção de Aby Warburg. A partir da investigação sobre a imagem que é operada por estes autores tive o desejo de usá-la como forma de aproximação. Assim, tanto as fotos autorais que fiz sobre as janelas do Shopping Leblon e dos arredores do conjunto, quanto o resgaste e pesquisa por fotos da Cruzada de São Sebastião e do contexto que de uma maneira geral ela se insere, fez parte deste processo.
A outra abordagem que orienta esta pesquisa é a residência artística realizada por Beatriz Lemos e Cristina Ribas. Através dela, não apenas a imagem surge como potência para compreender a história da Cruzada, mas também o contato com os moradores emergem como ponto crucial para este entendimento.
Sendo assim, é através do diálogo e das fotografias - tanto dos arquivos, quanto aquelas feitas por mim e pelos próprios moradores - que procuro encontrar as questões presentes neste território e tensioná-las através das montagens.
Imagem-Montagem
A leitura do trabalho de Aby Warburg pelas palavras de Georges Didi-Huberman trazem a esta pesquisa importantes noções sobre memória, imagem e montagem. Nestes estudiosos, a imagem é apresentada através das montagens e aparece como o fio condutor da história, atravessando diferentes tempos e tendo a potência de reapresentar e reinterpretar a própria história.
A montagem escapa às teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renúncia a contar “uma história” mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino. DIDI-HUBERMAN:2012:212)
A imagem é tema de muitos dos trabalhos de DidiHuberman. E, mais do que isso, a imagem como fonte de desvelar sentidos, especialmente quando agrupadas, como no caso das montagens. Aby Warburg é referência neste método e seu exemplo aparece em muitos textos de Didi-Huberman. Warburg (1866-1929) foi historiador da arte, nascido em Hamburgo, sua pesquisa sobre história da arte se dava através da reunião de imagens de períodos temporais, lugares e culturas diferentes que apontavam para um mesmo tema.
Geralmente encaramos a história como um dado, fato imóvel que devemos tomar o máximo de cuidado para que o arquivo estudado seja o mais fiel possível à verdade que se acredita estar analisando. Contudo, é ingênuo pensar em uma memória imparcial, em que os agentes do presente não invadam a leitura dos acontecimentos passados e sentemse à mesa para debater. Didi-Huberman incita que “não há imagem sem imaginação”, ou seja, que o papel do historiador não é de apenas coletar registros, mas também reinterpretálos, ressignificá-los. Assim, a metodologia de Warburg e Didi-Huberman é usada nesta pesquisa tanto com o interesse de aproximar diferentes tempos e temas que transmitem um certo conceito, como também, para encontrar as questões que estas imagens revelam, especialmente quando agrupadas. A partir das tensões que as montagens apresentam foram formados os binômios que intitulam os capítulos deste trabalho, o que também gerou a organização textual em três partes, onde cada uma é constituída pela tensão entre um muro e uma pipa.
Imagem-Contato
Buscando encontrar uma forma de aproximação com os moradores do conjunto, o trabalho “Pedregulho: Residência Artística do Minhocão” contribui com minha pesquisa no sentido em que traz uma abordagem sensível para a realização deste contato.
A ação realizou quatro residências de artistas durante 5 meses, acompanhados por arquitetos,urbanistas, historiadores e pensadores da cidade, com o intuito de estabelecer diálogos entre as artes visuais e o patrimônio histórico nacional, que no caso, foi o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, mais conhecido como Pedregulho.
Duas destas residências se mostram mais relevantes para minha abordagem. A da artista visual Luiza Baldan, onde o trabalho foi basicamente fotografar lugares de afeto entre os moradores e o conjunto, assim como, de pedir para que eles mesmos registrassem esses momentos e lugares. E a estadia do coletivo Frente 3 de fevereiro, que realizou debates e conversas que incitavam a questão sobre o racismo no Rio
de Janeiro, com a pergunta “O rio é negro?” e intervenções em outras áreas da cidade como a praia de Ipanema e o Favela Santa Marta.
O trabalho de Luiza Baldan capta a intimidade dividida temporariamente entre a artista e os moradores do conjunto, o gesto acolhedor que permitiu à artista participar de suas vidas e fazer de suas casas a dela também, grande parte das fotos mostram nada mais do que a simples cotidianidade - mulheres deitadas em suas camas, crianças brincando, torcedores comemorando a vitória de seu time. - Quando não era seu corpo a estar presente e vivenciar estes momentos, a imagem que os moradores tiraram com a câmera fotográfica que ela os entregou, a possibilitou entrar em suas casas. Os registos da vida suburbana, da vida de vila dentro de um prédio, de um marco histórico e arquitetônico a se deteriorar. Imagens do corredor-varanda e das plantas que o enfeitam. Registros da intimidade.
O trabalho da Frente 3 de fevereiro não se restringiu ao espaço do conjunto. Fizeram ações em outros pontos do Rio, como na praia de Ipanema e no Carnaval. Um dos trabalhos que mais me chamou atenção foi a pintura de um buraco que o coletivo fez em um muro que delimita a favela Santa Marta. Um buraco que incita o desejo de atravessar barreiras, desexistir fronteiras e ao mesmo tempo que evidencia a existência do muro através de um gesto simples. Esses muros que me lembram os muros do Shopping Leblon, os muros dos clubes que sufocam a Cruzada.
Me parece que o muro se apresenta como a materialização das segregações existentes, mais do que o objeto que segrega, ele é o que concretiza o desejo latente pela separação. Vivemos em sociedades cercadas por muros, alguns são demolidos, como de Berlin, outros construídos como o muro entre EUA e México.
Por meio da leitura e interpretação destes trabalhos me propus a conversar com a Cruzada, como fez a Frente 3 de Fevereiro, através de encontros simples que me proporcionaram conhecer os moradores, rir com eles, dividir histórias e registrar a intimidade, como fez Luiza Baldan, do conjunto através de uma prática fotográfica feita com crianças da Cruzada, que foi uma forma delas me apresentarem a Cruzada, onde pude acompanhar seus olhares sobre o lugar que vivem. Assim, através do diálogo e das imagens é possível olhar e experienciar as relações latentes no conjunto. Criando contato, aguçando a curiosidade e sendo parte.
parte um
muro terra
Vivemos em terras de donos privados, terras emaranhadas de desejos políticos, terras inférteis, terras apartadas. Pousamos nossos pés neste solo que já não se lembra o que esteve sobre ele, camadas de solo e tempo esquecidos, enterramos nossas histórias.
O direito que constitucionalmente temos à terra - e a casa, por assim dizer - é negado para muitos de nós, negado por meio de diferentes movimentos; alguns de tomada, outros de segregação espacial, social e racial. Exclusões que marcam a terra em que vivemos ou que deveriam marcar. Nossas terras têm sobrenomes, poucos, mas são deles o nosso solo.
O texto presente neste capítulo trata sobre a relação com a terra que atravessa a história da nossa cidade. Com um viés mais territorial e político, esta parte da pesquisa se aprofunda nas questões pertinentes ao território da Zona Sul, mais especificamente, Leblon e Ipanema, abordando sobre as transformações bruscas que ocorreram neste trecho da cidade, especialmente quando falamos sobre as mudanças do perfil das populações que ocupavam e ocupam este solo. Assim, é possível perceber que com as remoções das diversas favelas existentes nestes bairros, a Cruzada de São Sebastião do Rio de Janeiro permaneceu como único assentamento de população majoritariamente negra e de baixo poder aquisitivo, a única que segue nesta terra e que marca o chão com a lembrança das favelas, dos incêndios, das remoções e do direito que todos deveríamos ter à terra.






Compreender quais relações levaram à construção da Cruzada, nos abre portas para entender sua existência e sobrevivência ao longo do tempo. E assim, como os conceitos que a engendraram vivem hoje. O presente capítulo discorre especialmente sobre o contexto político e territorial em que a construção da Cruzada está inserida, o que agrega os interesses do Estado sobre este projeto e a condição da Igreja enquanto fundadora e executora dele.
O papel da Arquidiocese do Rio de Janeiro é particularmente relevante para entender como um projeto tão disruptivo como a instalação de um conjunto popular em um bairro rico carioca foi possível. A Cruzada de São Sebastião do Rio de Janeiro foi um projeto de Dom Hélder Câmara que tinha como objetivo construir moradias e equipamentos de infraestrutura para a população favelizada. No entanto, a primeira questão que se coloca é: qual o interesse da Igreja Católica nesta ação?
Valladares³em “A invenção da Favela” conta um pouco sobre o contexto onde a Igreja passa a desempenhar um papel ativo dentro das favelas cariocas a partir dos anos 40. Um dos motivos apresentados pela autora seria a presença e influência do Partido Comunista nestes territórios, onde nos morros do Borel e do Turano, por exemplo, faziam um trabalho de assistência com médicos e professores.4
Com o temor de que os comunistas se estabelecessem nas favelas do Rio de Janeiro, a Igreja Católica através da Fundação Leão XIII buscava substituir sua presença em assentamentos precários através de assistência social. A Fundação, criada em 1947, mesmo ano em que o Partido Comunista tornou-se ilegal no Brasil, era uma parceria entre o arcebispado do Rio de Janeiro e o Distrito Federal.
Segundo os Estatutos da Fundação, seu objetivo era de assegurar “assistência material e moral aos habitantes do morros e favelas do Rio de Janeiro”, fornecendo “escolas, dispensários, creches, maternidades, cantinas e conjuntos habitacionais populares”.5
A Fundação Leão XIII desenvolveu, em especial, a assistência material e moral às populações através de ações favoráveis à educação e à saúde (creches e ambulatórios), e da criação de muitos centros de ação social em diferentes favelas. Por outro lado, a Cruzada de São Sebastião desenvolveu uma atividade de grande amplitude voltada para a produção de moradias novas e equipamentos de infraestrutura, o que hoje se chama urbanização em favelas. (VALLADARES: 2005:77)
Valladares (2005) também afirma que uma das maiores novidades na forma de enxergar a favela proposta pela Cruzada, foi a mudança na ideia de que a favela é algo puramente mal, que deveria ser erradicado e que sua população não deveria ter o mínimo poder de decisão em continuar no bairro em que vivia antes da remoção.
Lembremos que a Cruzada de São Sebastião constituiu uma virada na representação política da favela. O reconhecimento e a promoção dos moradores das favelas ao estatuto de comunidade e, por conseguinte, a sujeito político potencialmente autônomo, tanto rompia com a visão puramente negativa do mal a ser erradicado quanto com a política de assistência caritativa