Sobre muros, empinando pipas: Narrativas do resistir e sobreviver na Cruzada de São Sebastião RJ

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SOBRE MUROS, EMPINANDO PIPAS

e clientelista do período anterior. A Cruzada foi também a primeira intervenção a produzir uma ação quantitativamente significativa de produção de moradias permanentes em um terreno bem próximo, para favelados removidos, ao contrário dos parques proletários concebidos como transitórios. (VALLADARES: 2005:77) Assim, ao invés de serem retirados do local em que já tinham relação e uma dinâmica de vida como aconteceu com os removidos das favelas da Zona Sul que foram transferidos para a Cidade Alta, em Cordovil, ou Cidade de Deus, em Jacarepaguá, dois conjuntos habitacionais contemporâneos à Cruzada, os moradores do conjunto ficaram a poucos metros da extinta Favela da Praia do Pinto. Entretanto, mesmo com o direito a uma moradia considerada mais adequada e perto do trabalho, os moradores da Cruzada seguiram como uma população divergente dentro do bairro. Por isso, é possível afirmar que o direito à terra não foi alcançado de maneira plena, pois a segregação espacial foi transposta, mas as segregações sociais e raciais não. Um dos discursos de Dom Hélder mostra a clara cisão que há entre o nós - moradores do Leblon, classe média - e eles operários, pobres -. Esta fala descreve o que há até hoje, uma clara separação entre os moradores da Cruzada e demais moradores do Leblon. Por eles e por nós. Por eles, porque são em sua maioria domésticas, lavadeiras e operários do bairro. Homens e mulheres que ganham o pão de cada dia nas vizinhanças de suas casas. Como iríamos jogá-los em Vicente de Carvalho ou Parada de Lucas, numa cidade que não tem transportes coletivos adequados? Por que haveríamos de querer afastar de nosso 38

PARTE UM: MURO-TERRA

convívio os trabalhadores? Por que criar nossos filhos longe deles? A sociedade de hoje precisa combater esse aburguesamento, evitando esse perigoso abismo com a classe operária.6 Um dos meus objetivos neste trabalho é tratar dessa segregação latente que impera sobre o existir do conjunto no contexto do Leblon e também dos confrontos com esta ideia através de seus dispositivos, tanto aqueles que são a favor dessa força de segregação - o que interpreto como os muros de maneira literal e metafórica-, quanto aqueles que resistem à ela - o que chamo de pipas nesta mesma interpretação por vezes literal e em outras metafórica-. O livro “Lagoa”, organizado por Augusto Ivan de Freitas e Eliane Canedo de Freitas Pinheiro, conta a história da Lagoa Rodrigo de Freitas fazendo algumas considerações sobre as favelas que a rodeavam e alertando para o rápido esquecimento delas. Os autores falam ainda do andar inconsciente sobre os escombros destes assentamentos e de sua memória que se perdeu e que segue desaparecendo. A convivência das favelas com a Lagoa durou apenas uma geração. E foi esquecida em menos de uma geração. Tão esquecida que hoje um jovem pode caminhar sobre os vestígios de uma delas sem se dar conta que ali existe uma riquíssima memória arqueológica das relações sociais e da questão urbana do Brasil. Poco a pouco, porém, isso também ficará perdido no tempo e nas lembranças, como se parte a história houvesse sido apagada do espaço. O incêndio da Praia do Pinto permanecerá para sempre como símbolo de um passado literalmente sepultado e quase esquecido, sob as cinzas da favela.7 39


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Sobre muros, empinando pipas: Narrativas do resistir e sobreviver na Cruzada de São Sebastião RJ by flaviana vieira - Issuu