Comunidades Tradicionais
da AYAHUASCA Construindo Políticas Públicas para o Acre - Seminário
Organização Marcos Vínicius Neves Maria Leudes da Silva Souza
Organização Marcos Vínicius Neves Maria Leudes da Silva Souza
Comunidades Tradicionais
da AYAHUASCA Construindo Políticas Públicas para o Acre - Seminário
1ª Edição
Rio Branco Assembléia Legislativa do Estado do Acre Fundação Garibaldi Brasil 2010
Apresentação
A
s Comunidades Tradicionais da Ayahuasca realizaram um seminário notável, entre 12 e 15 de abril de 2010, em Rio BrancoAcre. Centenas de cidadãos, de diversas procedências, reunidos, determinados e organizados, comunicaram-se, ouviram-se, expressaram-se, somaram esforços e buscaram consenso em prol de um único – e muito vasto – objetivo comum: consolidar socialmente o direito ao exercício de suas práticas espirituais e manifestações culturais, o que significa, certamente, tornar o mundo um lugar melhor para se viver. A reunião contou com a presença atenciosa de representantes das três esferas do poder público, e foi concluída com a elaboração de uma Carta de Propostas das comunidades em questão, a ser entregue às autoridades competentes. No decorrer do encontro, muitos participantes, agradavelmente surpresos, viram emergir em si o questionamento: o que produzia um evento tão bem sucedido? Consideramos, portanto, algumas hipóteses, surgidas a partir da observação da trajetória e do procedimento dos envolvidos: 1. TRABALHO - Desde a elaboração da Carta de Princípios das Entidades Religiosas do Chá Ayahuasca, assinada em 1991, passando pela construção do Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco, nos idos de 2006, e, a partir deste, pela criação da Câmara Temática da Ayahuasca do Conselho Municipal de Politicas Culturais (CMPC), os conselheiros das Comunidades Tradicionais têm se dedicado, sinceramente, à sua causa; 2. UNIÃO - Representantes das três Comunidades Ayahuasqueiras Tradicionais – Alto Santo, Barquinha e União do Vegetal (UDV) – há algum tempo estão aprendendo a se olhar e a se respeitar mutuamente, o que tem acrescentado maturidade e benefícios para todos; 3. FÉ - Trata-se de pessoas que exercitam o aprendizado espiritual constantemente, seja em seus cultos, seja em sua vida cotidiana. A resposta positiva que repercute desse modo de viver confirma e estimula sua persistência. Num mundo dominado pela negatividade, o ayahuasqueiro idôneo é sempre mais alegre, saudável e equilibrado. A cada dia, sua vida tem mais significado. E a gratificação decorrente de tal constatação, traduz-se em seus atos.
Honra, reconhecimento e respeito às comunidades Tradicionais da ayahuasca Assim, visamos registrar, nesta edição, os anseios, dificuldades, contradições, desafios e vitórias vividas pelas Comunidades Tradicionais Ayahuasqueiras nos últimos anos. É composta pelo relatório de todo o Seminário, pelas relatorias das sessões, pela Carta de Propostas, já mencionada, e pela Carta de Princípios, de 1991. Além disso, traz homenagens a valorosos companheiros de caminhada, bem como depoimentos de membros e de simpatizantes do universo ayahuasqueiro, abordado na ocasião. O Seminário foi coroado, ainda, com a entrega dos títulos de Cidadão Acreano, pela Assembleia Legislativa do Estado do Acre, aos fundadores das três missões: Raimundo Irineu Serra, do Alto Santo; Daniel Pereira de Mattos, da Barquinha, e José Gabriel da Costa, da União do Vegetal. O estado começa a reconhecer, portanto, o que, há muito, o discipulado desses mestres já sabia: pelos serviços prestados à sociedade acreana e à humanidade em geral, os homenageados merecem todo o crédito e honra. Que esta publicação possa servir para cultivar a memória, fazer refletir, fortalecer e inspirar as Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, na longa viagem de retorno que empreendem em direção à própria essência. Boa leitura!
A
Assembleia Legislativa do Estado do Acre sentiu-se honrada e, portanto, não mediu esforços para tornar possível a realização do Seminário da Ayahuasca, organizado e realizado pelas Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, bem como a realização de Sessão Solene para a entrega do Título de Cidadão Acreano aos Mestres Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Matos e José Gabriel da Costa, três grandes lideranças de nosso povo, três grandes construtores de nossa história e, também, da nossa identidade acreana e amazônida. Não se aprova um título de Cidadão Acreano sem o voto concorde de dois terços dos Deputados. Todavia, esta justa homenagem da Assembleia Legislativa a estes três grandes homens, foi aprovada por unanimidade de votos dos Deputados e Deputadas Estaduais, que têm assento nesta Casa. É grande a importância destes homens, que souberam receber de Deus a missão e ser fiéis a ela, sem titubear, sem desistir, sem desanimar, apesar de todas as adversidades que enfrentaram. Mestre Irineu, Mestre Daniel e Mestre Gabriel se destacam na história da Amazônia, pois deram visibilidade à cultura da Paz, deram uma nova forma à religiosidade popular, e abriram as portas dos mistérios divinos aos homens de boa vontade, que se dispõem a conhecer os encantos da Natureza e se entregam, de coração aberto, à força que se manifesta no poderoso e misterioso Chá Hoasca. São homens destemidos que vieram inaugurar uma nova era na caminhada da humanidade, visto que desenvolveram uma trilha que permite a entrada de todos aqueles que não estão satisfeitos com a mesmice deste mundo, de todos aqueles que querem ir além e conhecer algo mais daquilo que o Criador reservou a cada um de seus filhos. O reconhecimento ao importante trabalho desenvolvido por eles passa, justamente, pelo reconhecimento de que eles são homens que renovaram a esperança e contribuem, por conseguinte, para um caminho novo, aberto a todos aqueles que sonham e acreditam neste novo mundo. A doutrina desenvolvida pelos Mestres, hoje difundida pelo Alto Santo, pela Barquinha e pela União do Vegetal, renova os princípios que modificaram a história da humanidade e são o marco de transição entre o velho e o novo mundo inaugurado por Jesus, um mundo onde pode reinar a paz, o perdão e o amor. É neste sentido que a Assembleia Legislativa faz esta justa homenagem, tornando oficial este reconhecimento, pois entende que obras desta envergadura merecem um destaque especial, pois não dizem respeito apenas a um pequeno grupo de pessoas, mas são obras que estão abertas e à disposição de toda a humanidade. Nosso reconhecimento aos Mestres Fundadores, Irineu, Daniel e Gabriel. Nosso respeito e incentivo a todos os seus seguidores. Edvaldo Magalhães Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Acre Discurso Proferido na Assembléia Legislativa em 15 de abril de 2010
Comunidades Ayahuasqueiras: respeito à diversidade cultural e religiosa
A
s comunidades Ayahuasqueiras, no Acre, deram uma demonstração de grandeza e maturidade quando resolveram promover um seminário que unisse os pontos que lhes são comuns e amadurecessem os entendimentos de como aprofundar o respeito naquilo que lhes é particular. As propostas de políticas públicas, alinhavadas durante o encontro, simbolizam um rico momento em que o Acre, em particular, e o Brasil vivem: o convívio com a diversidade cultural e religiosa, de forma respeitosa e incentivadora, para que os pontos de vista diferentes se unam em um grande consenso. É dessa forma que as comunidades tradicionais ayahuasqueiras se apresentam ao público: unidas nos seus objetivos, respeitadas na sociedade, e comprometidas em preservar a doutrina dos seus líderes espirituais. Infelizmente, alguns não fazem o bom uso dessa bebida sagrada, nascida no seio da floresta amazônica e, trazida para o uso urbano, por senhores respeitados na comunidade em que conviveram. Vinda dos povos indígenas, o chá ayahuasca entra pela porta da frente em vários países, e um constante trabalho de afirmação é feito pelos reais dirigentes do Alto Santo, Barquinha e União do Vegetal que, ao respeitarem as outras organizações religiosas, é justo que o respeito lhes seja garantido. Os Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, quando homenageados pela Assembleia Legislativa do Acre, receberam o reconhecimento da sociedade acreana, numa conjuntura em que o Brasil voltava às atenções para o uso indevido da ayahuasca. Essa ação afirmativa, altaneira do poder legislativo acreano, consolida que reconheçamos o quanto é sério e responsável o uso correto, dentro de rituais religiosos doutrinários, a consagração de um chá, oriundo de um cipó e de uma folha, nativos da maior floresta tropical do planeta. Como parlamentar no Congresso Nacional, tenho me colocado à disposição para auxiliar nos esclarecimentos necessários, e aumentar a voz em defesa da religião nascida na floresta. O desafio é grande, mas a grandeza e a sabedoria dos amigos que tenho e a confiança em Deus me fazem ter a confiança de que estamos no caminho certo. Aos Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, agradecemos a oportunidade. Aos homens e mulheres, sejam crianças ou já experientes de vida, continuem nesta caminhada de luz. Perpétua Almeida, Deputada Federal, no 3º mandato pelo PCdoB/AC Discurso Proferido na Assembléia Legislativa em 15 de abril de 2010
Sumário Apresentação
05 Editorial 07 Apresentação Deputado Edvaldo Magalhães 09 Apresentação Deputada Perpétua Almeida 13 14 15 37
Seminário
Programação É Verde Relatório Final do Seminário Carta de Propostas Das entidades Tradicionais da Ayahuasca 43 Carta Aberta de Alex Polari 45 Comentário Antonio Alves
50 52 55 58 64 70 81 86 92 106
Sessão Solene
Pronunciamento Deputado Moisés Diniz Pronunciamento Antonio Alves Pronunciamento Francisco Hipólito de Araújo Pronunciamento Flávio Mesquita
Colaborações
O culto do Santo Daime e a Formação do Povo Acreano O Cidadão Irineu Serra Mestre Daniel: Uma Missão de Amor à Terra A UDV e as Instituições Hoasqueiras Históricas História política recente da Ayahuasca no Acre A Força da Organização, da União Experiência na Construção de Políticas públicas e fortalecimento
109 da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras 115 Escutar Interpretações e Interpretar: memórias do 125 128 130 131 134
“Povo da Ayahuaska” Educação, Ensino Religioso, como ensinar sobre as coisas divinas... Missão Especial Protesto Ecumenismo Presente no Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca Ayahuasca e a proibição de seu uso terapêutico
Homenagens
141 Homenagem ao Amigo Clodomir Monteiro 143 Homenagem a Tufi Rachid Amim
Documentos
147 Carta de Princípios das entidades religiosas usuárias da Ayahuasca 150 Carta ao Ministro da Cultura Gilberto Passos Gil Moreira 155 157 160 161 164 167 169
Relatorias
Relatoria Cultura Relatoria Educação Relatoria Turismo Relatoria Saúde Relatoria Segurança Relatoria Meio Ambiente Relatoria Urbanismo
Comunidades Tradicionais
da AYAHUASCA
Construindo Políticas Públicas para o Acre - Seminário
programação Dia 12 - Segunda- feira
Seminário
14:00: Abertura do credenciamento 14:30: Solenidade de Abertura Oficial 16:30: Mesa Redonda - História da Ayahuasca e sua importância na formação histórica do Acre 17:40: Intervalo – Coffe Break 18:00: Sessão Temática: Cultura, Educação e Turismo 21:30: Encerramento
Dia 13 – Terça-feira
08:30: Sessão Temática: Saúde 10:30: Sessão Temática: Segurança Pública 12:30: Almoço 14:30: Sessão Temática: Meio Ambiente e Urbanismo 18:30: Encerramento
Dia 14 – Quarta-feira
08:30: Leitura da sistematização das sessões temáticas, debates e aprovação do documento final para encaminhamento das Propostas à Assembléia Legislativa. 12:00: Almoço 14:30: Continuação da plenária 18:30: Encerramento do seminário 19:00: Lançamento do livro “Relicário”
Dia 15 – Quinta-feira
10:00: Seção Solene de Entrega dos títulos de Cidadão Acreano aos três Mestres Fundadores Dias - 12,13 e 14 de abril de 2010 Horto Florestal Dia 15 - Plenário da Assembléia Legislativa
Realização: Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras – CMPC/FGB/PMRB Assembléia Legislativa do Estado do Acre Fundação Elias Mansour – Governo do do Acre 12
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É verde É verde, meu Reino é verde É verde a minha Rainha
Não corte, não queime, não mate Esta floresta que é minha O brilho da luz sagrada É força divina do amor
Energia que brota da mata
E a mão do homem transformou Esse povo que canta e dança Tocando seus maracás
São filhos do sol e da lua
Que a Mãe Natureza criou
No balanço da Ayahuasca Nas cantigas do cipó O Mestre Juramidã Guiado pela Rainha Repartiu com a humanidade Sabedoria ancestral Unindo o velho e o novo O de ontem e o de hoje Lá no reino do astral E assim louvamos a vida Dando viva à natureza Viva todos que vieram E os que estão por chegar Viva o povo brasileiro Daqui e de todo lugar.
Keilah Diniz Música composta na Aldeia Apiwtxa - Ashaninka em maio/2008
* Cantada à capela na solenidade de abertura do Seminário
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Seminário Comunidades Tradicionais da Ayahuasca
Construindo Políticas Públicas para o Acre
12 de abril de 2010 - Horto Florestal
Abertura Conduzida por Jackie Pinheiro, do Cerimonial da Prefeitura Municipal de Rio Branco, foi inicialmente feita a saudação de todos os presentes e uma breve apresentação sobre a iniciativa, organização e finalidades do Seminário. Em seguida foi executado o Hino Acreano, pela cantora Ivana Pacífico, acompanhada por Ytalo Pacífico, ao violão. E, logo, uma ‘performance’ artística do Grupo de Crianças do Centro Espírita Príncipe Espadarte. A Mesa de Abertura foi composta por: Madrinha Peregrina Gomes Serra, dignatária do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo; Madrinha Francisca Gabriel, dirigente do Centro Espírita Príncipe Espadarte; Mestra Pequenina (Raimunda Ferreira da Costa), representante da Sede Geral do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - UDV. Francisco de Oliveira dos Santos, filho do Mestre Daniel; Flávio Mendonça da Silva, presidente da Diretoria Geral do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - UDV; Yalorixá Laura Barcellos, representando as manifestações da Religiosidade de Matriz Africana existentes no Acre; Pastor Albino, representando as Igrejas Evangélicas; Padre Máximo, representando a Igreja Católica; Manoel Pacífico da Costa, representante do Instituto de Fé e Política; Marcos Vinícius Neves, diretor-presidente da Fundação Garibaldi Brasil, representante da Prefeitura de Rio Branco; Osvaldo Leal, Secretário Estadual de Saúde, representante do Governo do Estado do Acre; Edvaldo Magalhães, representante da Assembléia Legislativa do Acre; Perpétua Almeida, representante da Bancada Parlamentar Federal; Keila Diniz, representante do Ministério da Cultura; 15
Francisco Hipólito Araújo Neto, após a composição da Mesa, fez a leitura e a entrega de um Diploma em homenagem ao Presidente da Academia Acreana de Letras, Clodomir Monteiro, como Amigo das Comunidades Ayahuasqueiras e um dos pioneiros pesquisadores sobre o tema (texto de homenagem em anexo). Clodomir Monteiro, em seguida, agradeceu a homenagem, e a ofereceu às Madrinhas, Francisca Gabriel e Peregrina. Fez, também, um breve resumo de sua trajetória como estudioso e pesquisador, e falou sobre a importância das Comunidades Ayahuasqueiras, ressaltando o respeito que merecem. Além disso, discorreu, brevemente, sobre as origens dos ‘troncos’ fundadores das três comunidades realizadoras do Encontro. Concluiu, registrando seu desejo de que as instituições públicas trabalhem com as Comunidades Ayahuasqueiras, e não para as Comunidades Ayahuasqueiras. Francisco Hipólito Araújo Neto foi novamente chamado para falar em nome das igrejas que compõem a linha de Mestre Daniel. Saudou cada um dos Mestres presentes, e disse que o Seminário representa respeito e canal de diálogo das Culturas Ayahuasqueiras com a população, os parlamentares e os gestores públicos das três esferas de governo. Edson Lodi falou em nome dos Centros da União do Vegetal - UDV. Saudou a todos e convidou Mestra Pequenina, esposa do Mestre Gabriel, fundador da UDV, para proferir algumas palavras. Ela agradeceu a oportunidade e declarou que, por muitos anos, foi auxiliar de Mestre Gabriel e, naquele momento, deixava registrada sua satisfação por testemunhar a união de várias representações das Culturas Ayahuasqueiras em prol desse movimento de reconhecimento e fortalecimento. Antônio Alves falou representando Madrinha Peregrina, esposa de Mestre Irineu. Abordou, então, as ramificações dos troncos fundadores das Comunidades Ayahuasqueiras e dos trabalhos realizados junto às comunidades de Rio Branco e do Estado do Acre. Na seqüência, fez um breve resumo sobre a trajetória dos trabalhos realizados pela dignitária e presidente do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo – CICLU, Madrinha Peregrina. Informou que na comunidade situada no núcleo Raimundo Irineu Serra as pessoas que ali habitam são de várias ramificações tradicionais da Ayahuasca, porém, são oriundas de um trabalho comum, o do Mestre Irineu Serra. Disse que as famílias daquela comunidade são testemunhas de uma história formada sobre o pilar da calma, paciência, organização e respeito, conforme as orientações do fundador Raimundo Irineu Serra. Concluiu dizendo que essas comunidades tradicionais têm contribuições e orientações a passar aos governos, municipal e estadual, no que diz respeito à construção de políticas públicas com e para as comunidades. Manoel Pacífico falou sobre as organizações religiosas não ayahuasqueiras. Relatou o seu encontro com a comunidade da Barquinha, através da igreja de Antônio Geraldo, e ressaltou que as comunidades ayahuaqueiras tradicionais têm tolerância religiosa e buscam o respeito entre os religiosos que as compõem e habitam no Acre. Disse, ainda, que a pluralidade deve ser o foco principal desta discussão. Keila Diniz, representante do MinC, saudou a todos, e disse que sua presença tem o objetivo de ouvir o que as comunidades ayahuasqueiras têm a propor em relação ao processo de construção de Políticas Públicas Nacionais. Disse, ainda, que após a 16
realização da II Conferência Nacional de Cultura, foram recebidas várias propostas para o processo de construção de políticas públicas para as comunidades ayahuasqueiras, e que o IPHAN deveria, também, enviar representação para ouvir, de perto, o que estas comunidades anseiam e demandam do poder público. Acrescentou, ainda, que o IPHAN já recebeu a proposta que solicita o Registro Nacional do uso ritual do Santo Daime como Patrimônio Imaterial Brasileiro. Perpétua Almeida, deputada federal, destacou a importância deste momento, em que uma manifestação religiosa, originária do Acre, reúne-se para discutir questões, como o combate ao preconceito e à discriminação, e manifesta sua disposição de levar essa luta ao Congresso Nacional, pautando a favor do Registro dessa manifestação religiosa, como Patrimônio Cultural brasileiro. Edvaldo Magalhães falou de sua gratidão por participar de um momento como aquele: o primeiro Seminário para discutir políticas públicas para as Culturas Ayahuasqueiras, concretizadas em três escolas de sabedoria existentes em Rio Branco – Acre. Manifestou sua admiração pela iniciativa, fazendo referência ao contexto, ao momento em que acontecia o Seminário, logo após a tragédia do assassinato de Glauco e seu filho, em São Paulo, explorada de maneira tão inadequada pela mídia nacional. E concluiu desejando um bom Seminário a todos. Osvaldo Leal, Secretário Estadual de Saúde e representante do governador Arnóbio Marques no Seminário, iniciou abordando a importância e a característica das comunidades ayahuasqueiras para a Amazônia Ocidental. Na seqüência, justificou a ausência do governador, por motivo de incompatibilidade de agenda. Ressaltou, pois, a importância das comunidades ayahuasqueiras para o Estado do Acre, e o respeito que o governo tem para com as mesmas. Prosseguindo, abordou o preconceito que as comunidades tradicionais enfrentam, em nível nacional, e se mostrou indignado com essa postura. Disse, ainda, que a pior agressão que um povo pode passar é o preconceito em relação às suas práticas, seu patrimônio religioso e cultural. Frisou que o governo do Estado do Acre deve combater esse preconceito, e resumiu dizendo que esse espaço é legítimo para a discussão e proposição de políticas públicas, com foco no combate ao preconceito. E finalizou agradecendo o convite para participar do Seminário. Marcos Vinícius Neves justificou a ausência do prefeito, naquele momento em viagem, participando de uma Comitiva em visita à China. Ressaltou sua grande honra em participar de uma Mesa com a presença de representantes dos troncos tradicionais da Ayahuasca, parlamentares e líderes de outras manifestações religiosas. Ressaltou que o Seminário era produto de um trabalho coletivo da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras do Conselho Municipal de Políticas Culturais, que se reúnem, mensalmente, para discutir e propor a construção de políticas públicas para a cultura local. Agradeceu a todos os colaboradores que ajudaram a realizar o Seminário, fez um breve resumo sobre o papel da mulher na construção de Rio Branco, e convidou Keila Diniz para encerrar a abertura oficial do Seminário, com um canto. Keila Diniz, encerrando a abertura oficial do Seminário, cantou a música “É verde”, que compôs durante uma viagem, em comitiva, com o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, pelo interior do Vale do Juruá. 17
Apresentação de Histórico do GMT-CONAD Após o intervalo, o juiz federal Jair Fagundes fez uma breve apresentação sobre o trabalho interdisciplinar, realizado pelo Conselho Nacional Anti-Drogas – CONAD em relação ao uso da Ayahuasca. Disse que o Grupo Multidisciplinar de Trabalho iniciou seus estudos sob a ótica jurídica, para responder sobre o entendimento do CONAD acerca da conceituação do termo “uso religioso”. Prosseguiu informando que o uso religioso da ayahuasca, tradicionalmente, consiste em usar uma folha, um vegetal, em um ritual característico, peculiar da Amazônia, o chá do Santo Daime, em uma prática religiosa, como doutrina de uma religião existente na Amazônia Ocidental. Informou que a produção do grupo de estudo interdisciplinar foi subsidiar com informações sobre as práticas das entidades que, necessariamente, resultaram na formatação de uma resolução elaborada, não para a sociedade, mas com a sociedade. Resumiu dizendo que esta ação foi um marco político essencial para o Estado e para a sociedade. Mesa redonda: A História da Ayahuasca e sua importância para a formação histórica do Acre. Mesa composta por Edson Lodi, representante da União do Vegetal, Francisco Hipólito, do Centro Espírita Casa de Jesus Fonte de Luz e Antônio Alves, do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Alto Santo, com a mediação de Eurilinda Figueiredo. 18
Antônio Alves relatou seu encontro com Mestres, que o ajudaram no processo de crescimento espiritual, e falou sobre a ambigüidade entre o direito nato da sociedade, a religiosidade e o direito imposto pelo Estado às manifestações religiosas. Disse, ainda, que as autoridades e órgãos competentes discutem e travam um grande embate sobre o uso da bebida pelas Comunidades Ayahuasqueiras, e ignoram que, antes de o Estado Brasileiro ser instituído, o uso religioso da Ayahuasca já existia. Fez um breve resumo sobre o processo de formação das Comunidades Ayahuasqueiras que ocorreu, segundo ele, simultaneamente, ao início do processo de formação da sociedade acreana. Disse que, nessa época, as Comunidades Ayahuasqueiras já construíam políticas públicas por meio dos saberes dos Mestres, que já praticavam a medicina por meio das ervas curativas, a Arte através da música, dos cantos, e cuidavam do meio ambiente, preservando e respeitando a natureza e, assim, exerciam a essência do indivíduo cidadão. Francisco Hipólito fez uma breve explanação sobre a vida de Mestre Daniel Pereira de Mattos, no Acre, e sua vinda do Maranhão, antes e depois de conhecer Mestre Raimundo Irineu Serra. Falou sobre os trabalhos espirituais realizados por Mestre Daniel com mais trinta e cinco irmãos de luz na Vila Ivonete, atual Núcleo da Comunidade da Barquinha. Disse que todo o conhecimento relacionado à Missão era ensinado pelo próprio Mestre Daniel aos seus irmãos de Missão, como Francisca Gabriel, Antônio Geraldo, Manoel Araújo, e outros. Falou que, após a passagem de Daniel Pereira Mattos, vários irmãos continuaram seus trabalhos. Ressaltou a resistência que eles desenvolveram frente às autoridades e a importância da educação na comunidade, com a implantação da Escola São Francisco de Assis. Relatou o trabalho de caridade, realizado pela Casa de Jesus Fonte de Luz, e ratificou a importância do trabalho social que a Comunidade Ayahuasqueira realiza em Rio Branco. Edson Lodi relatou parte da história de Mestre Gabriel, ressaltando a importância do papel de Mestra Pequenina. Informou que enfrentaram muitos problemas de intolerância e repressão por parte da polícia, citando, inclusive, que Mestre Gabriel chegou a ser preso, antes de conseguir autorização para o uso do Chá. Informou, também, que durante o governo Busch, nos Estados Unidos, houve uma intervenção governamental contra a utilização do Chá, ocasião em que não se comprovaram os efeitos prejudiciais da Ayahuasca à saúde, motivo alegado para a proibição. Lodi registrou a presença de representantes do Estado, da Igreja Católica, da Igreja Evangélica, das Religiões de Matriz Africana, no Seminário, e observou que isso representava uma ampliação do conceito de poder público, acrescentando que aquele momento sinalizava que estavam caminhando para a construção de um conceito de Nação Ayahuasqueira, fundamentada nos ensinamentos éticos e morais dos Mestres Irineu, Gabriel e Daniel. Falou, também, que no final da década de 90, houve um movimento político de articulação das comunidades ayahuasqueiras, juntamente com o governo Jorge Viana, cujo objetivo estava na intenção de construir políticas públicas conjuntamente com as comunidades. Finalizou dizendo que as comunidades tradicionais da ayahuasca conseguiram vencer os obstáculos postos ao longo do caminho, e se uniram em prol de um bem coletivo, comum, sob a égide da ética, respeito, superando as diferenças e, praticando, assim, os ensinamentos dos Mestres Fundadores. 19
Eurilinda Figueiredo abriu as inscrições de falas (perguntas, contribuições, intervenções). Antônio Alves sugeriu que alguns representantes de Centros tivessem prioridade nesse processo, citando: Jair, Guedes, Geraldo, Tuffi, Luís Máximo, Carlos Augusto. Ressaltou que essas pessoas conhecem as origens, não somente de seus Centros, mas também dos trabalhos de seus respectivos Mestres. Luís Máximo iniciou sua fala dizendo que conheceu Mestre Irineu, Mestre Gabriel e os irmãos Costa, quando morava em Brasiléia. Relatou, também, que quando veio morar em Rio Branco, ficou doente e precisou se tratar em Porto Velho, onde conheceu o Mestre Paixão, que o conduziu ao Mestre Gabriel, do qual ouviu: “Se chegou até aqui, então não morre mais”. Bebeu o vegetal e, daquele momento em diante, sentiu que estava em outro mundo. Deixou de beber, fumar, e depois de três (3) anos voltou ao Acre, com a autorização de Mestre Gabriel, e uma garrafa de vegetal para montar o primeiro Núcleo do Vegetal, no Acre. Contou que foi perseguido por um delegado da Polícia Federal, mas resistiu e, até hoje, continua com seu Centro ativo. Ladislau, do tronco de Irineu Serra, fez um breve relato sobre sua iniciação na doutrina em 1967, por meio de sua atual esposa, na época sua namorada. No início do namoro, em função do preconceito, ela não informou que tomava Daime, mas depois disse que se ele não começasse a tomar Daime, ela não poderia mais continuar o namoro. Ele, então, começou a beber e se integrou ao grupo de feitio do Daime, que distribuía a bebida para os Núcleos do Alto Santo. Depois, acabou assumindo um Centro, o CICLOJUR, que está ativo desde 1994. Guedes informou que os Centros de Daime se mantêm ativos, porque desenvolveram
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uma espécie de resistência frente às adversidades, principalmente com relação ao preconceito e à discriminação de que, historicamente, são vítimas, desde a origem das doutrinas Ayahuasqueiras. Ressaltou que é importante honrar o nome dos Mestres supracitados, e registrou seu desejo de que, ao final do Seminário, seja concretizado um documento legal que oriente a continuidade destas doutrinas. Márcio, da União do Vegetal, usou a metáfora da rosa, para falar da resistência dos Centros de Daime, acrescentando que, na religiosidade das doutrinas Ayahuasqueiras há flores, mas também espinhos. Declarou que vive na Espanha, onde dirige um Centro da UDV, que proporciona às pessoas daquela parte do mundo, a oportunidade de beber a Ayahuasca. José Augusto disse que o Vegetal fê-lo largar a bebida e o cigarro. Relatou que é sócio-fundador do primeiro Núcleo da UDV, e que sempre sentiu a necessidade de divulgar as matérias jornalísticas que informem, adequadamente, sobre o uso da Ayahuasca, observando que, atualmente, isto está se concretizando, e ressaltou que é importante eliminar o preconceito que existe. Tufi Amim relatou uma história que aconteceu com ele e sua mãe. Disse que ela tomava Daime e queria que ele tomasse, mas ele resistia, até que, em 1979, ela o levou para conhecer o Daime na Barquinha do Mestre Manoel Araújo. Acabou por aprofundar-se tanto nesta vivência que, tempos depois, teve a oportunidade de servir Daime para sua mãe. Jair Facundes pediu à Mesa, por conseguinte, que esclarecesse o motivo da ausência dos indígenas no Seminário. Frankcinato Batista disse que a Igreja Católica, mesmo presente nas principais
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cidades acreanas, não estendia sua ação às comunidades rurais ou mais afastadas, de modo que, nesses lugares, a religiosidade acreana orientava-se pelos conhecimentos da floresta e, a partir desta realidade, nossos antepassados resolviam seus problemas de saúde física, mental e espiritual, por meio de rezas ou benzeduras, pois a força da oração os curava. Os Mestres resgataram as referências da floresta e acolheram os seringueiros, permitindo, inclusive, a realização de sacramentos, como o casamento, por exemplo. Rosana Martins ressaltou o momento histórico em que Mestre Daniel construiu a sua Casa (Centro de Daime), durante o período da Segunda Guerra Mundial. Informou que sua Casa acolheu os seringueiros, oriundos da floresta, que enfrentavam condições muito difíceis de vida, que estavam sem motivação e precisavam viver com muita resistência. Cícero Farias expressou sua satisfação em ver toda a diversidade religiosa presente, e apresentou para os participantes do Seminário um “repente”, como um brinde àquele momento. Adalberto Dornelles declarou já ter trabalhado com a construção de políticas públicas em diversos estados brasileiros. Ressaltou que devem ser elevados os ideais que orientam os princípios da Ayahuasca, a utilização da bebida com caráter religioso. Falou, também, que é importante não perder de vista os ideais de fraternidade, de união entre os diversos grupos de Culturas Ayahuasqueiras, com um objetivo comum, que é tornar a política pública vigorosa. Relatou que, há vinte anos, conheceu pessoas que bebiam Ayahuasca, em Minas Gerais, mas que nunca tinham ouvido falar de Santo Daime, e que, ainda hoje, há pessoas que nunca ouviram falar de União do Vegetal. Finalizadas as intervenções, Eurilinda passou a palavra à Mesa, para que esta respondesse aos questionamentos feitos, quando necessário. 22
Antônio Alves respondeu a pergunta de Jair, dizendo que o Seminário foi proposto e organizado pela Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras e pelo Conselho Municipal de Políticas Culturais, a partir do critério da adesão dos Centros Ayahuasqueiros à Carta de Princípios. Segundo ele, esses Centros, já nomeados anteriormente, estão vinculados aos Mestres fundadores: Irineu, Daniel e Gabriel. Ressaltou que os Povos Indígenas ou Originários foram convidados, por meio das entidades presentes e atuantes na cidade de Rio Branco. Após esse esclarecimento, Antônio Alves informou que o Seminário não incluiu os Povos originários, sem que isto significasse desconhecimento ou desprezo às culturas destes Povos, mas, a partir do entendimento de que eles precisarão realizar um Seminário específico, porque essa discussão, de caráter complexo e diferenciado, deverá envolver outros países, nos quais esses diferentes Povos estão presentes. Acrescentou, ainda, que há a possibilidade de se estabelecer o acordo prévio de que o reconhecimento da Ayahuasca, como Patrimônio Cultural brasileiro, deve se dar a partir das três linhas representadas pelos Mestres já citados, e que os Povos Originários precisarão unir-se aos países vizinhos para conquistar o Registro da Ayahuasca, como Patrimônio Cultural da América Latina, por envolver, além das Etnias Indígenas do Brasil, as do Peru, da Bolívia, entre outros países latinoamericanos. Observou ainda que, no momento inicial de organização do Seminário, essa discussão foi de fundamental importância para situar e relembrar as origens dos Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, considerando que eles já começaram a construir políticas públicas e a constituir e organizar suas comunidades, na época em que iniciaram suas doutrinas. Francisco Hipólito interveio, ressaltando que ele e os demais participantes do encontro estavam ali, na condição de aprendizes, sendo ele um aprendiz de marinheiro do barco do Mestre Daniel, e que, naquela situação do Seminário, estariam aprendendo a construir políticas públicas para a cultura local, e ressaltou a 23
contribuição dos centros ayahuasqueiros para a preservação da memória. Além disso citou, como exemplo, a criação dos centros de memória na comunidade do Alto Santo e de outros três na comunidade da Barquinha. Edson Lodi fez suas considerações finais abordando a necessidade de que, neste Seminário, seja discutido e encaminhada uma Portaria, que deve ser instituída pelo Instituto do Meio Ambiente do Acre – IMAC, estabelecendo normas de manejo do cipó jagube e da folha chacrona e, também, em relação a uma posição da Secretaria de Saúde sobre o processo de doação e coleta de sangue. Resumiu sua fala reforçando a necessidade dos presentes participarem, efetivamente, das discussões no Seminário. I Sessão Temática: Cultura, Turismo e Educação Relatores: Marcos Vinícius Neves, Diretor-Presidente da Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil, sobre os dois primeiros temas e Rosângela Oliveira, membro do Centro Espírita e Casa de Oração Jesus Fonte de Luz, relatando sobre Educação. A mediação foi conduzida por Dande Tavares. Participantes: Daniel Zen, Diretor-Presidente da Fundação Estadual de Cultura e Comunicação Elias Mansour – FEM; Cassiano Marques, Secretário Estadual de Turismo, Esporte e Lazer; Moacyr Fecury, Secretário Municipal de Educação, e Maria Correia, Secretária Estadual de Educação. Marcos Vinícius iniciou a Sessão Temática, fazendo uma síntese do que seria discutido ao longo do trabalho, com a contribuição de cada um dos participantes, já citados acima. Informou sobre políticas, programas e ações já realizadas, no que diz respeito à temática cultural e turística, citando a criação das Áreas de Proteção Ambiental – APA, o Plano Diretor da Cidade de Rio Branco e a solicitação de Registro da Ayahuasca, como Patrimônio Cultural Brasileiro. Abordou os trabalhos realizados por alguns pesquisadores interessados no tema, que vinham coletar informações e, no entanto, pouco ofereciam como retorno às comunidades pesquisadas. Falou que, em 1991, houve uma mudança significativa na postura dos Centros Tradicionais que se reuniram e elaboraram a “Carta de Princípios”, que estabelecia princípios fundamentais ensinados pelos mestres fundadores, demonstrando, claramente, um posicionamento ético e político, bem como o início de ações voltadas para os aspectos culturais e ambientais por parte das comunidades ayahuasqueiras. Reforçou, ainda, que uma das ações culturais que mais ganhou força durante os últimos quinze anos, no interior das próprias comunidades, foi a implantação de casas de memória, a partir da experiência da Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos. Mais recentemente deve-se destacar a criação da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras - instância de proposição de políticas públicas culturais - do Conselho Municipal de Políticas Culturais da Fundação Garibaldi Brasil, e o pedido feito ao Ministério da Cultura, para o registro do uso ritual da ayahuasca, como patrimônio imaterial brasileiro. Disse, ainda, que o trabalho cultural das Comunidades Ayahuasqueiras sempre esteve presente, desde o início dos trabalhos realizados pelos mestres fundadores, porém, ainda não eram tidos como preocupação central dessas comunidades. Nos últimos 24
dois anos, a Câmara Temática das Comunidades Ayahuasqueiras fortaleceu o enfoque a partir da cultura, com o sentido de mediar a compreensão que a sociedade brasileira tem do uso ritual da ayahuasca. Disse ainda que, como fruto desse trabalho, há um significativo aumento na implantação de casas de memórias em várias comunidades, o registro da história oral da ayahuasca e a implantação da lei municipal 1.677/07, de Preservação e Manutenção do Patrimônio Cultural de Rio Branco. Citou, ainda, como avanço na área ambiental, a implantação e o funcionamento da Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra, assunto este que será melhor abordado na Sessão Temática sobre o Meio Ambiente. Rosângela citou o preconceito enfrentado por alunos ayahuasqueiros nas escolas, e questionou a falta de preparo dos docentes em relação à problemática. Também abordou a prática do ensino religioso nas escolas, e falou da necessidade de se formar um Fórum específico para discutir o ensino religioso nas escolas. Além disso, disse ser imprescindível a presença das Comunidades Ayahuasqueiras nessas instâncias de controle social. Informou sobre algumas escolas próximas às comunidades ayahuasqueiras que, atualmente, vêm realizando um excelente trabalho educacional, pedagógico e social, no município de Rio Branco. Moacyr Fecury parabenizou os presentes pela iniciativa do Seminário e, em seguida, iniciou sua abordagem ratificando a fala anterior sobre o combate ao preconceito no interior das escolas. Propôs que o corpo integrante das escolas, discentes e docentes, exerça o que rege a Constituição Federal sobre o exercício da cidadania, e do laicismo que, sobretudo, prevê a separação da religião e do Estado. Abordou o Programa Mais Educação, que tem, como objetivo primordial, a inter-relação dos alunos com as práticas culturais no período de contra turno escolar, porém, ressaltou a necessidade de interação entre as zonas urbana e rural. Finalizou apresentando os altos índices de rendimento escolar, social e cultural alcançados pelas escolas Mário Lobão e São Francisco de Assis I, ambas situadas em comunidades ayahuasqueiras. Concluiu sua fala, atribuindo este sucesso à gestão escolar conjunta, entre instituição e comunidades organizadas.
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Explicou que o movimento turístico não se encerra na visitação, mas envolve outras ações, como a hospedagem, a alimentação, o movimento no comércio local, entre outros. Informou que a SETUL observa a demanda para o Turismo local, e que não há intenção do governo em impor qualquer modelo de Turismo, porém declara que há a intenção do governo em incentivar o turismo religioso com responsabilidade, respeito às manifestações e baseado no diálogo das comunidades.
Maria Correia iniciou sua fala elogiando a iniciativa do evento e reforçando a fala de Moacyr. Disse ser essencial a participação das comunidades tradicionais nos Fóruns de Educação, e declarou que a Lei de Diretrizes e Bases – LDB, de 1996, teve o Art. 33, que regula a criação e a implementação do ensino religioso nas escolas, modificado. Sugeriu que, nesses encontros, sejam construídos Referenciais, e se definam quais as formas possíveis para a realização do ensino religioso nas escolas. Informou, ainda, que o trabalho que vem sendo desenvolvido com essa temática, atualmente, aborda apenas orientações de base religiosa, porém as diretrizes curriculares estão sendo revisadas e este processo possibilitará intervenções. Questionou a inexistência de um curso específico, nas universidades, para formar o professor de ensino religioso. Declarou que a Secretaria Estadual de Educação – SEE trabalha baseada em Instruções Normativas. Concluiu sua fala chamando a atenção de todos para a importância de se dar visibilidade ao tema, e finalizou dizendo estar feliz com a realização do Seminário. Daniel Queiroz expressou sua satisfação com o Seminário e mencionou a realização das Conferências Municipais, Estaduais e Nacional de Cultura. Disse, ainda, que a área cultural já tem um amplo leque de propostas prioritárias sobre a necessidade de se construir políticas de proteção, apoio e combate à discriminação e ao preconceito, inclusive os ligados às culturas ayahuasqueiras. Acrescentou ser importante que, neste encontro, os encaminhamentos sejam bem objetivos, e que possam resultar em políticas efetivas e desdobramentos, como o registro e tombamento do fazer cultural das comunidades ayahuasqueiras. Cassiano Marques elogiou a iniciativa do Seminário e o trabalho do governo do Estado, no sentido de empoderar as comunidades tradicionais. Mencionou o fato de as culturas ayahuasqueiras integram um caldo cultural que potencializa o Turismo, ou o interesse das pessoas, para a região amazônica. Disse ainda que, no Acre, há o Turismo sócio-ambiental-vivencial, que atrai pessoas interessadas em novas experiências, inclusive as religiosas, porém informou que o Santo Daime está inserido em um Turismo chamado cultural e, também, em uma outra especificação de Turismo, o místico, que já aponta para outras formas de religiosidade, mais ecléticas. 26
Dande Tavares abriu as inscrições de falas (perguntas, contribuições, intervenções). Edward McRae falou sobre a cultura acreana e seu trabalho em busca da legalização do Daime, como exemplo da importancia da atuação de pesquisadores acadêmicos. Marcelo ratificou a apresentação de Marcos Vinícius sobre o bairro Raimundo Irineu Serra, como Área de Proteção Ambiental, Área de Especial Interesse Histórico e Zona de Atendimento Prioritário. Mencionou uma série de ‘marcas’ referenciais e históricas do bairro, que configuram o espaço como um lugar especial e, por este motivo, chamou a atenção para o fato de ser necessário construir um trabalho de infraestrutura para que, posteriormente, o local seja visto como uma área de Turismo. José Roberto falou sobre a experiência de inclusão digital em um núcleo da União do Vegetal – UDV, em Mato Grosso do Sul, com vistas a trabalhar com educação de jovens e adultos à distância, utilizando o computador como ferramenta para a promoção da cidadania. Solicitou, também, que seja realizada uma parceria com o poder público, através da Secretaria de Educação, para o desenvolvimento de ação semelhante no Acre. Manoel Pacífico ressaltou que ainda existe muito preconceito e discriminação com as comunidades ayahuasqueiras e afro-brasileiras, e chamou a atenção sobre a proposição do Seminário que é, sobretudo, a manutenção do diálogo entre comunidades e poder público. Declarou que não há nenhum levantamento do número dos terreiros de umbanda, e que não há, ainda, nenhuma iniciativa dos governos para a implementação de políticas públicas para esse segmento, e propôs que fosse realizado um Seminário inter-religioso para discutir questões, como o preconceito e o educar religioso nas escolas. Antonio Alves falou sobre a escola Irineu Serra, situada no bairro do mesmo nome, dizendo que a comunidade precisa se organizar para preservá-la como patrimônio do local, pois a mesma é um equipamento histórico e social, e não pode ser destruída ou desativada. Propôs a construção de uma Cartilha de Orientação sobre as Culturas Ayahuasqueiras a ser trabalhada nas escolas públicas. Informou que a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras do CMPC poderá elaborar esse material, acrescentando que o trabalho pode ser feito por todas as igrejas. Registrou, ainda, a necessidade de se mapear nas comunidades ayahuasqueiras, a necessidade de construção de espaços culturais, como centros de juventude, entre outros. Registrou, também, o mau atendimento, por parte dos funcionários dos Postos de Saúde para com a comunidade ayahuasqueira. E, finalizou abordando a questão do Turismo nas comunidades ayahuasqueiras, dizendo que reconhece que a peregrinação religiosa também incide sobre a indústria turística, porém declarou que essa ação é vivencial. Propôs, portanto, a formação de uma Comissão para tratar o assunto com o poder público estadual e municipal. 27
Frankcinato ratificou a fala de Antonio Alves e reforçou a necessidade de cautela com o tema do Turismo. Além disso, chamou a atenção de todos para as diferenças existentes entre as várias comunidades ayahuasqueiras, reforçando que precisam de mais tempo para conversar sobre o assunto. Débora solicitou a participação de representantes das comunidades ayahuasqueiras no Fórum de Ensino Religioso e na comissão que discutirá as questões relacionadas ao Turismo. Tiago falou sobre a casa do Senhor Leôncio Gomes, tombada como patrimônio histórico da comunidade do Alto Santo, de Rio Branco e do Estado do Acre, e informou que o equipamento está abandonado e sendo transformado em local fixo de amparo a usuários de drogas. Falou, também, que o prédio da escola Irineu Serra está necessitando de cuidados e rápida intervenção, pois sua estrutura está colocando em risco a vida das crianças e educadores. Keila Diniz falou sobre o projeto, já desenvolvido no Acre, que tinha como objetivo principal um trabalho com professores e alunos de escolas públicas. Declarou que a educação religiosa pode ser trabalhada com a disciplina História, pois há um espaço ideal para se trabalhar as questões relacionadas à educação, e para o respeito às diversas manifestações religiosas. Disse, ainda, que o Seminário é essencial para a elaboração de propostas que orientarão a construção de políticas públicas, e chamou a atenção para a importância de se dar celeridade ao assunto, uma vez que o tempo burocrático e governamental obedece a um ritmo que nem sempre está em sintonia com o da sociedade. Marcos Vinícius encerrou, formalmente, os trabalhos do dia, convidando todos os presentes a participarem da continuação do Seminário no dia seguinte.
José Roberto iniciou sua apresentação fazendo uma explanação sobre as atividades da UDV no país e no exterior, chamando a atenção de todos para os trabalhos sociais focados na área da medicina. Em seguida, apresentou informações de estudos já realizados pela medicina sobre os impactos do uso do Chá no comportamento humano. O médico apresentou dados sobre testes neurológicos e psiquiátricos realizados com grupos da UDV, usuários da bebida, e outros grupos de não usuários. Disse que os resultados das avaliações psiquiátricas comprovaram a não existência de indícios de danos físicos em nenhum dos grupos acompanhados, tampouco existem dados que apontem o uso do Chá como fator gerador de dependência. Apresentou, ainda, vários dados sobre a composição química do Chá e as possíveis reações provocadas no organismo humano, decorrentes do seu uso. Finalizou sua apresentação informando que as pesquisas já realizadas comprovam que não há nenhuma restrição e comprometimento psíquico ou físico em decorrência do uso do Chá da Ayahuasca. Francimar iniciou sua fala discorrendo sobre o processo legal de coleta e doação de sangue exercido pelo Hemoacre. Após sua argumentação, informou que estava ciente de que vários pacientes reclamavam de atitudes preconceituosas por parte dos funcionários. Em seguida, apresentou informações positivas sobre o uso de fitoterápicos. Osvaldo Leal propôs a formação de um grupo com a participação das Comunidades Ayahuasqueiras para discutir ações de sensibilização dos servidores que atuam em postos de coleta de sangue. Falou, também, da possibilidade de se criar, nas regionais do Estado do Acre, farmácias fitoterápicas, com o auxílio de mestres da medicina tradicional de modo a fortalecer as nossas identidades e práticas.
13 de abril de 2010 - Horto Florestal II Sessão Temática: Saúde.
Evandro Luzia abriu as inscrições para falas e intervenções. Marlinda, farmacêutica e servidora da Secretaria Estadual de Saúde, explicou os critérios utilizados no processo de coleta e doação de sangue, e justificou que o método utilizado pelo órgão não é de cunho preconceituoso, e sim, metodológico. Portanto, o ato de não se colher sangue dos ayahuasqueiros está vinculado às condições físicas do doador, decorrentes do seu comportamento na véspera da coleta (horas de descanso ou repouso, ingestão de bebida alcoólica etc.). Disse, ainda, que os critérios estabelecidos pelo órgão são voltados à preservação da integridade física do doador. Afirmou que o processo não deve ser entendido como um ato de discriminação. Finalizou, dispondo-se a ajudar, e informando que o Hemoacre está disposto a firmar parceria com as Comunidades Ayahuasqueiras, com vistas a desmistificar o suposto preconceito. Rosana Martins informou que o Centro Espírita e Culto de Orações Casa de Jesus Fonte de Luz é parceiro do Hemoacre no processo de coleta e doação de sangue. Relatou, ainda, sobre alguns trabalhos realizados com esse foco, e informou que os doadores ayahuasqueiros podem recorrer ao Centro, situado na comunidade da Barquinha, para ajuda. José Roberto ratificou a fala de Marlinda, informando sobre os resultados do que vem acontecendo nos postos de coleta, e argumentando que o suposto preconceito é resultado de uma má interpretação do público doador.
Relatora: Francimar Leão Torres, representante do Hemoacre Participantes: José Roberto, médico e membro da UDV, Osvaldo Leal, Secretário Estadual de Saúde. Mediação: Evandro Luzia
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Antônio Alves falou sobre a necessidade de os próprios ayahuasqueiros combaterem o auto-preconceito, e abordou, ainda, a necessidade de sensibilizar os servidores da Saúde como etapa anterior à implantação de postos fitoterápicos, pois, segundo ele, há de se ter um diálogo estruturado entre os profissionais de Saúde e ayahuasqueiros. Propôs a formação de um Fórum específico, promovido pela Secretaria de Saúde, para firmar esse diálogo, com vistas a evitar o possível preconceito com mestres dos saberes, que trabalham com ervas medicinais. Falou da necessidade de se ter um programa de saúde regular, de assistência às comunidades ayahuasqueiras, e finalizou pedindo que os postos de saúde do entorno das comunidades, sejam sensibilizados e preparados para fazer esses atendimentos. Edson Lodi falou sobre o uso ritual do Chá, afirmando que as comunidades devem ter conhecimento de que há respaldo legal para essa prática. Falou, ainda, sobre a regulamentação existente da Vigilância Sanitária para a permissão do uso de plantas medicinais pela comunidade, porém ressaltou que os conhecimentos fitoterápicos, praticados para fins comerciais, necessitam de permissão para estar em conformidade com as normas da Vigilância Sanitária. Clodomir Monteiro apontou a Saúde como ação presente nas Comunidades Ayahuasqueiras, e reforçou as argumentações anteriores relacionadas ao fortalecimento e à valorização das práticas medicinais tradicionais, ressaltando que isso é, sobretudo, marca de nossa identidade e de nossa tradição popular. José Roberto informou sobre as possíveis reações medicamentosas da associação entre o uso do Chá e remédios antidepressivos, dizendo que já foram realizados estudos e não há nenhuma contra indicação. Falou também sobre a associação do uso do Chá em pacientes psiquiátricos, afirmando que nada regula a proibição ou tem a proibição da medicina, porém a associação desses fatores deve ser coerente e seguir o critério e normas de cada mestre das Comunidades Ayahuasqueiras. Finalizou dizendo que, em relação ao uso do Chá para fins terapêuticos, deve haver cautela, pois o Chá tem cunho espiritual, deve ser respeitado e, por conseguinte, não utilizado somente como mero medicamento terapêutico. III Sessão Temática: Segurança Pública Relatora: Márcio Dagnone, Advogado e Membro da UDV Participante: Márcia Regina, Secretária Estadual de Segurança Pública. Mediação: Evandro Luzia Márcio abordou questões ocorridas entre órgãos públicos de segurança e as Comunidades Ayahuasqueiras, apresentando alguns dos processos de coibição às comunidades tradicionais, desde o início de sua formação até os dias atuais. Ressaltou, porém, o respeito dos servidores da Segurança Pública pelos mestres ayahuasqueiros. Disse que os ayahuasqueiros devem ser resguardados pelos órgãos de segurança pública quando da realização dos seus cultos e trabalhos, e fez uma breve explanação sobre as orientações dispostas na Resolução do CONAD. Márcia Regina iniciou sua fala saudando a todos e parabenizando a Prefeitura de Rio Branco e as Comunidades Ayahuasqueiras pela iniciativa do Seminário. Abordou 30
algumas questões sobre os mitos existentes em relação ao uso do Chá da Ayahuasca, e informou que, do ponto de vista da Segurança Pública, a utilização do Chá nunca foi vista como problema, e que após a implementação da Resolução do CONAD, a Segurança Pública a utiliza como base legal para fiscalização, porém reforçou a necessidade de se ter uma política clara sobre o transporte do chá e tantos outros temas relacionados às Comunidades Ayahuasqueiras. Expressou sua felicidade com a iniciativa, e disse que este é um momento histórico para o Estado do Acre. Dispôsse, portanto, a ajudar na implementação de normas e diretrizes que auxiliarão a Segurança Pública do Estado a avançar nas questões relacionadas à segurança das Comunidades que fazem uso do Chá da Ayahuasca. Evandro Luzia abriu as inscrições para perguntas, intervenções, contribuições ou questionamentos. Perly Barbosa fez um breve resumo sobre sua inserção na Comunidade Ayahuasqueira, ressaltando o preconceito que sofreu. Antônio Alves falou sobre a falta de segurança que as comunidades enfrentam diariamente por terem que se ausentar de suas residências, da falta de policiamento no entorno dos Centros Ayahuasqueiros, e abordou sobre a falta de tolerância da sociedade para com os demais. Thiago reclamou da falta de fiscalização dos órgãos competentes nos aeroportos, quanto ao transporte do chá. Márcio informou que, de acordo com as normas de transporte de líquidos, é permitido transportar, no máximo, 100 ml do chá. Disse, ainda, ser necessário desenvolver um procedimento diferenciado para a fiscalização de ayahuasqueiros, que sempre estão em trânsito, porém afirmou ser importante combater o tráfico do produto. , secretário municipal de meio ambiente, contribuiu com o debate, informando que a INFRAERO, atualmente, permite o transporte de 100 ml para qualquer líquido. Disse que há uma grande lacuna sobre essa regulamentação, e propôs que, no decorrer do Seminário, sejam elaboradas propostas, com vistas a normatizar essa prática, salvaguardados apenas os ayahuasqueiros em trânsito. Antônio Alves abordou a necessidade da Secretaria de Segurança Pública trabalhar com a territorialização, com vistas a estreitar o conhecimento entre gestão pública e comunidades. Em seguida, perguntou a Márcia Regina como a comunidade poderá agendar uma reunião com a autarquia, para se discutir o plano de trabalho da Segurança Pública para as regionais onde estão situados os Centros Ayahuasqueiros. Rosana retificou a fala de Antônio Alves informando que todos os Centros Ayahuasqueiros têm um calendário anual e estão situados em bairros diferentes. Solicitou à Secretaria de Segurança Pública que se organize para atender a agenda dessas comunidades. Márcia Regina disse que, atualmente, há encontros semanais de representantes da Secretaria de Segurança Pública com a comunidade. Informou que esses encontros acontecem sempre as segundas e terças-feiras de cada mês, e propôs a participação das Comunidades Ayahuasqueiras. Neste momento o mediador Evandro Luzia encerrou a Sessão Temática anunciando uma pausa para o almoço. 31
Manoel, membro da UDV, falou sobre os trabalhos realizados pelas Comunidades Ayahuasqueiras quanto ao cultivo e manejo do cipó Jagube e da folha Chacrona, afirmando que, antigamente, parte dos órgãos responsáveis pela gestão do Meio Ambiente os discriminava, porém, atualmente, o manejo sustentável exercido por estas Comunidades serve como exemplo para as demais. Solicitou que os órgãos públicos dialoguem sempre com as Comunidades Ayahuasqueiras, com o objetivo de serem sensibilizados para a causa. Falou, ainda, sobre a extração ilegal de recursos naturais para fins comerciais, e solicitou que sejam adequadas as normas que regulam o manejo e a extração dos recursos naturais. Henrique Anastácio, representante da Secretaria Municipal de Meio Ambiente – SEMEIA e membro da APA/RIS, falou sobre os trabalhos realizados pela APA/RIS e citou, como exemplo, o trabalho principal, que é o combate às queimadas e a manutenção da coleta de lixo na localidade. José Carlos fez uma fala sobre o trabalho realizado pela UDV relacionado à sustentabilidade, como Sistemas Agroflorestais. Solicitou que os órgãos de Meio Ambiente respeitem e preservem as práticas tradicionais realizadas pelas Comunidades Tradicionais.
IV Sessão Temática: Meio Ambiente e Urbanismo Relator: Thiago Martins, representante da Secretaria de Estado e Floresta. Participante: Gleysa Cartaxo, Diretora-Presidente do Instituto de Meio Ambiente do Acre – IMAC. Mediação: João Guedes. Thiago fez uma breve explanação sobre as normas existentes que regulam a extração e manejo do cipó Jagube e da folha Chacrona para o feitio do Chá da Ayahuasca. Após esse momento, falou sobre a elaboração de uma Resolução que regulamente o transporte da matéria prima do Chá. Disse, ainda, que o documento está sendo construído por órgãos gestores da área de Meio Ambiente, conjuntamente com as Comunidades Ayahuasqueiras, e acrescentou informações sobre os trabalhos desenvolvidos pela Área de Proteção Ambiental do Raimundo Irineu Serra – APA/RIS. Gleysa parabenizou os organizadores pela iniciativa do Seminário para discutir políticas públicas. Sobre a fala de Thiago, destacou a regulamentação nacional para a extração e manejo dos recursos naturais, acrescentando que esta regulamentação não está adequada às práticas das Comunidades Ayahuasqueiras. Por este motivo, segundo ela, foi formado um Grupo de Trabalho (GT) com integrantes do poder público e sociedade civil para discutir e elaborar um documento adequado às nossas identidades, a ser apresentado ao Conselho Estadual de Meio Ambiente. João Guedes abriu as inscrições para perguntas e intervenções. Roberto Silva, servidor do IMAC, abordou as normas relacionadas ao controle dos recursos naturais, entre elas a regulamentação ou o controle das queimadas. 32
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Júlio, servidor do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente no Acre – IBAMA/AC, falou sobre os trabalhos realizados pelas Comunidades e pelo Grupo de Trabalho que discute a questão ambiental, bem como sobre a comercialização da Ayahuasca. Ressaltou a importância de uma articulação de órgãos e institutos do estado, para regular a questão ambiental. Propôs que a comercialização seja retirada do Meio Ambiente e fique sob responsabilidade dos órgãos de Segurança. Gleysa novamente contribuiu com o debate, informando acerca de como será feito o encaminhamento das proposições elaboradas pelo GT e IMAC antes da mudança de gestão, com vistas a não haver prejuízo na continuidade desse processo. Em relação aos trabalhos realizados pela APA/RIS, disse ser importante a organização das propostas elaboradas, e que essas propostas sejam encaminhadas ao Conselho Estadual de Meio Ambiente e IMAC para ciência, articulação e efetivação das proposições. Finalizou parabenizando os presentes pela realização do encontro, observando que será um marco histórico para este segmento. João Guedes agradeceu a presença dos componentes da mesa e encaminhou o início da discussão sobre Urbanismo. Relatora: Lílian Amim, conselheira da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras. Participante: José Otávio, representante municipal de Urbanismo. Lílian iniciou sua participação falando sobre a evolução urbana da cidade de Rio Branco e a fixação das Comunidades Ayahuasqueiras nas regiões do Alto Santo, atualmente bairro Raimundo Irineu Serra e da Barquinha, no bairro Vila Ivonete.
Discorreu sobre as normas estabelecidas através da APA/RIS, como a regulação do uso do solo, controle de queimadas, plano de manejo, regulação de construção de prédios em perímetro urbano, entre outras. Falou, ainda, sobre o Plano de Manejo da Comunidade do Alto Santo, que é regulado pelo Plano Diretor de Rio Branco, pois é o documento que regula e protege as Áreas de Proteção Ambiental – APA do município. Falou que no Plano Diretor da Cidade há a regulamentação sobre as Áreas de Especial Interesse Histórico, informando que as comunidades da Barquinha e do Alto Santo são consideradas sítios históricos, no Plano Diretor. Ressaltou, ainda, que não há o reconhecimento no documento sobre as comunidades da UDV e de outros Centros Ayahuasqueiros. Sugeriu que, no decorrer do Seminário, seja elaborada uma proposta de revisão dessas Áreas de Especial Interesse Histórico registradas pelo Plano Diretor da cidade de Rio Branco. João Guedes abriu as inscrições para perguntas e intervenções. Gisela, membro da comunidade do Alto Santo, propôs a efetivação do Plano de Unidade de Conservação – PUC sugerindo que tenha o suporte efetivo da SEMEIA, para proibir os impactos do urbanismo dentro da APA/RIS. Antônio Alves reiterou a fala de Gisela abordando os impactos causados com o reordenamento urbano pelo qual a cidade de Rio Branco vem passando. Citou o exemplo da construção de casas no entorno de um dos Centros da UDV, observando que o local não tem nenhum marco legal que o proteja. Criticou o modelo de arquitetura e urbanismo imposto na Amazônia pelos governos, e sugeriu que a política urbanística ouça os anseios das comunidades. Pediu, ainda, que as Comunidades Tradicionais locais tenham um marco geral regulamentador de proteção e preservação, com a previsão de espaços maiores para os habitantes,
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que prevejam a reutilização dos espaços ociosos no entorno das Comunidades Ayahuasqueiras. Concluiu dizendo que essa nova urbanização deverá considerar e fortalecer as identidades amazônicas. Perly Alves ratificou a fala de Antônio Alves e informou que, atualmente, as áreas preservadas do entorno das Comunidades Tradicionais vêm sendo descaracterizadas pelo poder público. Solicitou que o Plano Urbanístico da cidade e do Estado respeitem os modos de viver destas comunidades, e reafirmou sua indignação quanto à atual política habitacional. José Otávio falou sobre o objetivo principal do Seminário: sobretudo, propor, discutir, ouvir e construir políticas públicas para o Estado do Acre, através do exercício da cidadania e do diálogo entre poder público e sociedade civil. Disse que a lógica atual de urbanismo se contrapõe às regras estipuladas e expostas pelas comunidades. Informou que as Comunidades Tradicionais poderão participar da revisão do Plano Diretor da cidade de Rio Branco, previsto para 2011, e solicitou que haja a participação dessas comunidades no Conselho Municipal de Urbanismo, com vistas a adequar a Política Estadual e Municipal vigente ao conceito habitacional amazônico. Terminado o debate, o mediador João Guedes encerrou os trabalhos da IV Sessão Temática e do dia. 14 de abril de 2010 - Horto Florestal O terceiro e último dia do Seminário Comunidades Tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas Públicas para o Acre, iniciou às 9h, com pausa para almoço as 13:00, retomando os trabalhos às 14h e 30 minutos, e se estendendo até às 18h, com a finalização das propostas a serem apresentadas ao poder legislativo estadual através do documento intitulado: “Carta de Propostas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca”, que foi lida e aprovada. O encerramento oficial do Seminário se deu após a leitura da Carta aberta de Alex Polari, diretor da ICEFLU - Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal à Coordenação do Seminário e aos comentários de Antonio Alves acerca desta ultima. Na seqüência aconteceu, ainda no Horto Florestal, o lançamento do livro “Relicário” – Imagens do Sertão” de Edson Lodi com diversas falas e apresentações artísticas. A “Carta de Propostas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca” foi apresentada à Assembléia Legislativa do Estado do Acre, no dia seguinte, durante a Seção Solene de entrega dos títulos de Cidadão Acreano aos três Mestres Fundadores das bases doutrinárias de uma nova tradição religiosa do uso ritual da Ayahuasca.
Relatoras do Seminário: Aretuza Bandeira de Araújo Batista. Cristiane De Bortoli Débora Menezes Eurilinda Maria Gomes Figueredo Juliana Barros de Paula Machado 36
Carta de Propostas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca Documento elaborado pelos participantes do Conselho Municipal de Políticas Culturais – CMPC, apresentado e aprovado, por consenso, pela Plenária do Seminário Comunidades Tradicionais da Ayahuasca – Construindo Políticas Públicas para o Acre.
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ós, cidadãos reunidos no Seminário: Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, realizado no período de 12 a 14 de abril de 2010, em Rio Branco - Acre, solicitamos, através deste documento, o envolvimento efetivo da Assembléia Legislativa e dos parlamentares representantes do Acre no Congresso Nacional, bem como do Poder Público nas três esferas de governo: municipal, estadual e federal, nos processos de construção de políticas públicas Setoriais para as Culturas Ayahuasqueiras, principalmente no que diz respeito ao reconhecimento, valorização e combate ao preconceito e a discriminação, que requerem a construção de novos mecanismos estruturais, com a participação da sociedade civil. Esses processos citados serão possíveis se o Estado aceitar prontamente aquela que deveria ser sua obrigação primordial: o desafio ininterrupto do diálogo com as pessoas. As políticas setoriais, que queremos construídas e consolidadas, possibilitarão o fortalecimento de uma manifestação cultural, espiritual e religiosa originária da Amazônia Ocidental e, só farão sentido, se a sociedade intervier, de maneira organizada, através de mecanismos e instâncias adequadas, tais como a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras, do Conselho Municipal de Políticas Culturais – CMPC, órgão de controle social, consultivo, normativo, fiscalizador e deliberativo, composto por maioria da sociedade civil e estruturado em instâncias que democratizam efetivamente os processos de decisão. Na Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras estão representados os vários Centros Religiosos denominados, neste documento, Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, responsáveis pela proposição, organização e realização do Seminário. A título de esclarecimento, cabe ressaltar que uma das características principais do conhecimento do uso do cipó Jagube ou Mariri (Banisteriopsis Caapi) e da folha Rainha ou Chacrona (Psychotria Viridis), é a imensa diversidade dos povos (indígenas e comunidades tradicionais) que o possuem. Cada um desses povos e comunidades designa esta bebida sagrada de diferentes modos, tais como: kamarãpi, huni, yajé etc. entre os indígenas; e/ou daime, hoasca, vegetal etc. entre as comunidades tradicionais. Para possibilitar o trabalho conjunto entre diferentes grupos, por ocasião da elaboração da Carta de Princípios (1991), foi acordado que se utilizaria a designação Ayahuasca, de milenar origem Quéchua, que significa “vinho das almas”. Importante registrar e acrescentar a este documento uma das propostas mais votadas na II Conferência Nacional de Cultura(Brasília, 11 a 14/03/2010), incluída entre as 32 prioritárias aprovadas, tendo em vista que contempla as Culturas Ayahuasqueiras: 37
“Registrar, valorizar, preservar, e promover as manifestações de comunidades e povos tradicionais (conforme o Decreto Federal 6.040, de 7 de fevereiro de 2007), itinerantes, nômades, das culturas populares, comunidades ayahuasqueiras, LGBT, de imigrantes, entre outros, com a difusão de seus símbolos, pinturas, instrumentos, danças, músicas, e memórias dos antigos, por meio de apresentações ou produção de CDs, DVDs, livros, fotografias, exposições e audiovisuais, incentivando o mapeamento e inventário das referências culturais desses grupos e comunidades.” Neste sentido, entendemos as Políticas Culturais, que queremos construídas e consolidadas, como um conjunto de ações sistemáticas, articuladas coerentemente entre si, institucionalizadas, realizadas por agentes públicos e privados, de maneira a satisfazer as necessidades culturais da população, seja na esfera da produção, da capacidade de expressão ou do consumo. Todos que assinamos esta Carta assumimos publicamente o compromisso de trabalhar, de forma coletiva, para o desenvolvimento de Políticas Públicas Setoriais para as Comunidades Tradicionais Ayahuasqueiras, centrados na democracia (no compromisso do poder público de ‘fazer com’ a sociedade), na participação cidadã (o que representa a construção permanente de uma cidadania ativa), no direito à diversidade, na afirmação das pessoas e coletividades, e no fortalecimento das identidades culturais locais. As propostas abaixo relacionadas são resultantes, portanto, de um processo de pactuação, de uma direção comum de atuação, entre Poder Público e Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. PROPOSTAS CULTURA: 1. Registrar o uso ritualístico e religioso da Ayahuasca como Patrimônio Imaterial Estadual e Nacional, definindo claramente o recorte do registro (os elementos a serem registrados). 2. Apoiar discussões que possibilitem o futuro reconhecimento, pela UNESCO, do uso ritualístico e religioso da Ayahuasca como Patrimônio da Humanidade considerando sua presença Pan Amazônica. 3. Reformar, revitalizar e garantir a manutenção da antiga Casa do Seu Leôncio, equipamento cultural aberto a comunidade, situado na área da APA Irineu Serra, tombada como Patrimônio Histórico e Cultural pelo município e pelo estado, assim como a manutenção das demais construções tombadas. 4. Realizar mapeamento sócio- cultural e outros estudos que orientem a instalação de equipamentos sócio-culturais adequados as especificidades das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 5. Apoiar a realização de pesquisas, com a participação da comunidade, que resultem em produtos (impressos, audiovisuais, etc.), de modo a assegurar o registro das histórias, saberes e fazeres das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, bem como de Povos Indígenas, a critério dos interesses específicos das comunidades. 6. Apoiar a criação e o funcionamento de Casas de Memórias, nos Centros Religiosos das Comunidades Ayahuasqueiras. 7. Apoiar a realização do Inventário das Culturas da Ayahuasca, e efetivá-lo em parceria com IPHAN. 38
8. Construir políticas de valorização dos Mestres e de outros Guardiões das Memórias das Comunidades Tradicionais, que garantam a preservação, o conhecimento e a transmissão de saberes e fazeres de tradição oral, em diálogo com a educação formal, por meio do reconhecimento político, social e cultural, concretizado inicialmente em Programa a ser instituído, regulamentado e implantado, no âmbito dos órgãos gestores da cultura e da educação municipal e estadual, incluindo o Patrimônio Histórico e Cultural do estado. 9. Apoiar as manifestações artísticas e a promoção do intercâmbio cultural entre as Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 10. Realizar campanha de sensibilização e combate ao preconceito junto aos servidores públicos, jornalistas e sociedade em geral. PROPOSTAS EDUCAÇÃO: 1. Estabelecer critérios e criar programa de formação continuada para professores de ensino religioso, de modo a garantir sua capacitação para a realização de um ensino religioso laico, não doutrinário, aberto ao diálogo intercultural. 2. Garantir o atendimento aos Parâmetros Curriculares Nacionais, com a inclusão de conteúdos relacionados às tradições culturais indígenas, bem como os afetos às Comunidades Tradicionais da Ayahuasca e as demais manifestações religiosas presentes em nosso estado. 3. Produzir material didático, em diferentes linguagens e suportes, com a participação de representantes dos Centros Religiosos das Comunidades Ayahuasqueiras, com vistas a subsidiar a abordagem dos conteúdos relacionados às histórias e tradições religiosas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 4. Garantir a participação das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca nas instâncias de reestruturação curricular de processo empreendido pela Secretaria de Estado de Educação, bem como na Educação Municipal, de modo a contribuir com a abordagem das diretrizes curriculares e dos materiais didáticos existentes, assegurando o atendimento às orientações religiosas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 5. Criar e implementar um Programa de Capacitação voltado aos professores e demais funcionários das escolas públicas, sensibilizando-os para o respeito às comunidades ayahuasqueiras. 6. Realizar um Seminário de Diálogos Inter-religiosos, pela Secretaria de Estado de Educação, em parceria com o Instituto Ecumênico Fé e Política e outros representantes da CT de Culturas Ayahuasqueiras. 7. Garantir a participação de representantes dos diversos Centros Religiosos das Comunidades Ayahuasqueiras e de representantes da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras no Fórum de Ensino Religioso. 8. Reformar e revitalizar em caráter de urgência, a estrutura física da escola Irineu Serra e dar especial atenção às escolas localizadas nas áreas de especial interesse histórico e cultural, localizadas no entorno dos Centros Religiosos das Comunidades Ayahuasqueiras. 9. Apoiar os projetos e programas educacionais já existentes nas comunidades tradicionais da ayahuasca. 39
10. Realizar projeto piloto de ensino religioso focado nas culturas tradicionais da ayahuasca, na escola Raimundo Irineu Serra. 11.Apoiar a realização de programas de formações técnicas e específicas para membros das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca tendo em vista a produção de materiais didáticos, pesquisa e produção de conhecimento.
as especificidades de cada um dos diversos Centros Religiosos das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 3. Produzir uma cartilha para divulgação e popularização da Resolução do CONAD. 4. Garantir a exclusão da Ayahuasca na Cartilha do PROERD, através de encaminhamento da Assembléia Legislativa do Estado do Acre - ALEAC.
PROPOSTAS TURISMO PROPOSTAS MEIO AMBIENTE 1. Formar uma Comissão com representantes das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca para atuar no âmbito do Conselho Estadual de Turismo, com vistas a emitir Resolução regulamentando as atividades turísticas nas comunidades citadas, em consonância com a regulamentação do CONAD. PROPOSTAS SAÚDE 1. Garantir a divulgação de pesquisas, com informações precisas e consolidadas, disseminando amplamente os resultados dessas pesquisas em toda sociedade, especialmente nos órgãos públicos, de modo a coibir manifestações preconceituosas, realizando campanhas de sensibilização e combate ao preconceito junto aos servidores públicos da Saúde. 2. Elaborar documento com propostas sobre o processo de coleta e doação de sangue discutidas no Seminário Comunidades Tradicionais da Ayahuasca – Construindo Políticas Públicas para o Acre, a ser assinado por todas as comunidades presentes, e encaminhado às autoridades competentes. 3. Realizar oficinas de sensibilização e campanhas de combate ao preconceito, em Postos de Coleta de Sangue e nas Unidades do HEMOACRE de todo estado, com informações específicas sobre a utilização da Ayahuasca, garantindo a participação de representantes das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca na definição dos conteúdos a serem trabalhados. 4. Dar visibilidade às ações e serviços de caráter social desenvolvidos pelas Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 5. Instituir um canal de diálogo entre as comunidades ayahuasqueiras e as Secretarias Municipal e Estadual de Saúde, a fim de discutir o uso de fitoterápicos utilizados pelas Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 6. Identificar os Centros Religiosos de Ayahuasca que se disponibilizem para serviços de atenção primária da Saúde. PROPOSTAS SEGURANÇA PÚBLICA
1. Assegurar o livre exercício e segurança dos cultos e práticas religiosas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, e de seus freqüentadores, em Plano a ser elaborado pela Secretaria de Segurança Pública, contendo: calendário anual, roteiro de rondas, demandas e especificidades de cada Centro Religioso. 2. Construir um canal de diálogo entre os Centros Religiosos e a Segurança Pública, de modo a possibilitar a adoção de medidas de segurança, que considerem 40
1. Garantir celeridade na aprovação da Resolução que regulamenta a coleta e o transporte do cipó e da folha, ainda este semestre, considerando as especificidades dessa atividade, para fins de licenciamento e monitoramento ambiental (baixo impacto ao meio ambiente, ausência de fins lucrativos, utilização de métodos tradicionais). 2. Formalizar um Grupo de Trabalho (GT), no âmbito do IMAC, com a participação das comunidades para o monitoramento da implementação da Resolução. 3. Realizar campanhas, com foco nos servidores dos órgãos de Meio Ambiente, de modo a sensibilizá-los para o diálogo respeitoso com as comunidades ayahuasqueiras, especialmente em relação às práticas tradicionais de preservação realizadas por essas comunidades. 4. Incentivar os processos de cultivo, garantindo sua sustentabilidade, através do programa do Ativo Florestal e outros. 5. Disponibilizar profissionais qualificados do serviço público, como responsáveis técnicos pela elaboração de planos de cultivo e manejo, conforme as demandas dos Centros das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. PROPOSTAS URBANISMO 1. Construir políticas de urbanização para as Comunidades Tradicionais da Ayahuasca e seu entorno, garantindo interface com os mecanismos de proteção ambiental e patrimonial, a serem estabelecidas em comum acordo com essas comunidades. 2. Promover discussão conjunta entre a Secretaria Estadual de Habitação, Secretarias Municipais de Meio Ambiente e de Gestão Urbana e Fundação Garibaldi Brasil - FGB visando definir um modelo de ocupação que valorize e fortaleça as identidades das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 3. Garantir celeridade na elaboração do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra – APARIS, bem como a participação das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca no processo de construção desse Plano, junto a Secretaria Municipal de Meio Ambiente – SEMEIA, e o envolvimento da Fundação Garibaldi Brasil - FGB, Secretaria Municipal de Gestão Urbana - SMDGU, Secretaria Estadual de Habitação - SEHAB, garantindo assim, um modelo de ocupação que valorize e fortaleça as identidades locais. 4. Promover urbanismo com feições mais amazônicas para o Estado do Acre, respeitando os modos de viver das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. 41
5. Discutir, elaborar e implementar o Plano de Gestão para as Áreas de Especial Interesse Histórico registradas no Plano Diretor de Rio Branco, em discussão com as Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, buscando minimizar os impactos da urbanização na áreas e entorno, com suporte efetivo da Secretaria Municipal de Meio Ambiente – SEMEIA, Secretaria Municipal de Gestão Urbana - SMDGU, Secretaria Estadual de Habitação - SEHAB, Fundação Garibaldi Brasil – FGB. 6. Garantir que as áreas das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca sejam reconhecidas e registradas, pelo Estado e Municípios onde estejam localizadas, como Áreas de Especial Interesse Histórico Cultural, assegurando esse reconhecimento no planejamento urbano, de maneira a minimizar os impactos da urbanização dessas áreas e seu entorno. 7. Regulamentar que a distância entre os conjuntos habitacionais e as Comunidades Tradicionais da Ayahuasca seja maior, garantindo a construção de equipamentos urbanos que ofereçam serviços públicos e se adequem as formas habitacionais tradicionais, fortalecendo e respeitando as identidades amazônicas. 8. Promover a participação das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca na revisão do Plano Diretor de Rio Branco e demais instrumentos de planejamento urbano, com o objetivo de assegurar a configuração de um conceito amazônico de urbanismo. 9. Garantir a implementação de iluminação pública e projeto de arborização com espécies adequadas, nas vias que dão acesso aos Centros Ayahuasqueiros.
Rio Branco – Acre, 14 de abril de 2010.
Carta aberta de Alex Polari de Alverga à coordenação do Seminário Para a mesa Coordenadora do Seminário Ayahuasca e Políticas Públicas no Acre. Nossa instituição, a Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal, não pôde comparecer a este seminário, por motivo de força maior. Nesta medida, gostaríamos de encaminhar à Mesa de coordenação dos trabalhos, este pedido, no sentido de que fosse lida em Plenário, a nota anexa para este importante encontro, colocando nossa posição acerca do tombamento da Ayahuasca/Santo Daime como patrimônio imaterial da nação brasileira. Em nome da nossa diretoria Atenciosamente Alex Polari de Alverga - Diretor da ICEFLU Comunicado da Igreja do Santo Daime (ICEFLU – Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal - Patrono: Padrinho Sebastião Mota) Por ocasião da realização deste Seminário sobre a Ayahuasca e Políticas Públicas, gostaríamos de expressar nossa saudação, e desejar que ele tenha resultados bastante positivos, que contribuam para o fortalecimento da institucionalização da nossa bebida sagrada. Para nós, este é um momento de luto, devido ao trágico desaparecimento do nosso querido e saudoso irmão Glauco e seu filho Raoni. Na sequência destes fatos tão tristes, temos constatado uma campanha da mídia, no sentido de culpar o nosso sacramento por este abominável crime. Esta acusação não procede e não tem fundamento. Esperamos que, pouco a pouco, a sobriedade se imponha sobre qualquer tipo de sensacionalismo, por parte daqueles que querem ver, neste acontecimento, um pretexto para retroceder na conquista tão valiosa dos nossos direitos de liberdade religiosa. Pelo contrário, que este caso seja visto por aquilo que realmente é: um crime hediondo, uma exceção uma trágica fatalidade. Nestes últimos anos, obtivemos o reconhecimento pleno e definitivo da prática religiosa da Ayahuasca/Santo Daime no Brasil e no mundo. Neste sentido, cabe destacar o parecer final do GMT/CONAD, que concluiu 25 anos de estudos e pesquisas, reunindo representantes das entidades religiosas, autoridades do governo e cientistas, garantindo a regulamentação do uso religioso da nossa bebida sacramental.
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Agora está em curso um pedido junto ao Ministério da Cultura e ao IPHAN para o tombamento imaterial da Ayahuasca e do Santo Daime, sem dúvida, um patrimônio de valor inestimável da nossa cultura. Esta iniciativa, que coincidentemente foi tomada de forma quase simultânea pelas entidades ayahuasqueiras do Acre, e por nós, do ICEFLU, através da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas, reveste-se de grande significado espiritual, cultural e social. Entretanto, é bom frisar que, quando consideramos o tombamento da cultura da Ayahuasca/Santo Daime, sentimo-nos apenas uma parte de um vasto universo que abrange, também, as variadas formas de denominação que os povos ancestrais da nossa América davam a este mesmo vinho das almas. Rendemos, portanto, também, nossa homenagem a estes povos nativos que, ainda mais do que nós, podem ser considerados os detentores deste patrimônio sagrado, do qual ainda hoje somos tributários e continuadores. Sem dúvida, coube ao Mestre Irineu fazer esta grandiosa síntese da tradição espiritual e da cultura indígena para um novo contexto, ao mesmo tempo em que realizava uma nova leitura do cristianismo popular pelas lentes da ayahuasca. Com isto, ele promoveu um verdadeiro resgate histórico da espiritualidade e da cultura nativa, tão perseguida em nome de uma versão intolerante do catolicismo expansionista aliado à empresa colonialista. Na continuação desta síntese cultural, cabocla e urbana, ele foi seguido, também, por muitos outros irmãos, mestres e fundadores de outras tradições que expressaram esta mesma verdade em outros contextos doutrinários e rituais. Como é o caso do Mestre Gabriel (UDV), Frei Daniel (Barquinha) e, também, do Padrinho Sebastião Mota de Melo (CEFLURIS). Saudamos, portanto, com muita alegria, esta iniciativa de tombamento do nosso sacramento. Consideramos que ela representa um reconhecimento para todos nós e que diz respeito a todas as tradições religiosas que o utilizam, dentro de uma grande diversidade de denominações, credo e ritos. Entendendo o processo espiritual e cultural desta forma, estaremos sendo fiéis aos princípios que nortearam o Mestre Irineu e os demais patronos das nossas tradições, contribuindo para a união deste grande povo Ayahuasqueiro e daimista. Nossa igreja se considera uma derivação legítima e autêntica do tronco do Mestre Irineu. Dele, herdamos o fundamento da nossa Doutrina. Além disto, como afirma o nosso Estatuto Doutrinário, respeitamos todas as demais confissões religiosas. Dando este testemunho, temos crescido em todo o mundo, difundindo nossa língua, nossa cultura e a espiritualidade dos povos da floresta em dezenas de países em todos os continentes. Nossa Igreja tem firmado alianças espirituais com muitas outras medicinas sagradas e contribuído, grandemente, para a legalização e o reconhecimento do nosso sacramento no Brasil e no mundo. Como, também, desenvolvido um intenso trabalho social e ambiental pela preservação da floresta amazônica e, também, em prol das populações carentes, onde se localizam uma boa parte das nossas comunidades. 44
Para finalizar, reiteramos as congratulações a todos os irmãos ayahuasqueiros e daimistas, por este novo tempo de reconhecimento que se avizinha, onde esperamos ter, cada vez mais condições para professar nossa fé e convicção religiosa, sem sermos alvos de constrangimentos e preconceitos. Esperamos que possamos receber e construir este novo tempo e este novo mundo, com muita maturidade, discernimento e união. Pois, para fugirmos da lógica insana e persecutória da qual já fomos vítimas, devemos provar, em nós mesmos, uma sadia coexistência e diálogo dentro da liberdade e diversidade religiosa, que todos queremos agora desfrutar, pois neste mundo de guerra e discórdia, este é o caminho que pode legar, aos nossos filhos e netos, este tesouro que recebemos da Rainha da Floresta.
Comentário de Antonio Alves
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eço bastante atenção, porque é preciso que a gente coloque de maneira bastante cuidadosa coisas que são bem delicadas. Nós temos uma série de demandas extra-pauta neste seminário. Esta é uma reunião convocada pela Câmara de Culturas Ayahuasqueiras do Conselho Municipal de Cultura de Rio Branco, com apoio da Assembléia Legislativa do Acre e do Governo do Estado e convocada também pelos centros das comunidades tradicionais da ayahuasca. Como Marcos já explicou, adotamos esse recorte, Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, para podermos reunir e chamarmos as diversas comunidades da região. Nós chamamos todos, porque todos vivemos aqui e somos da população de Rio Branco e do Acre e precisam elaborar políticas públicas para o estado. Entretanto, nós nos responsabilizamos de apresentar propostas que são oriundas do que nós chamamos de comunidades tradicionais da ayahuasca. Como o Marcos explicou, este termo não está fechado. Nós estamos ainda construindo o que seriam estas comunidades tradicionais, tentando designar o que é tradicional e o que não é tradicional. Isto não significa desprezar o que veio antes, as comunidades originárias, como as indígenas. Ao contrário, temos que honrá-las. Também não significa desprezar o que veio depois, como comunidades que estão se formando hoje e que não seguem nenhuma das tradições antigas, mas que estão construindo outra tradição ou iniciando outro tipo de trabalho. Entretanto, mesmo não desprezando ninguém, a gente quer apresentar qual é a nossa cara e nos consideramos comunidades tradicionais da ayahuasca, filiadas, originalmente a uma das três grandes tradições que foram 45
organizadas e surgiram na Amazônia ocidental nas décadas do século passado, até por volta de 1971, quando faleceram os mestres Irineu e Gabriel, tendo o mestre Daniel falecido alguns anos antes, o final da década de 50. Nós então situamos no tempo o nascimento destas tradições. Algumas dúvidas permaneceram e outras foram esclarecidas. Ontem mesmo, o pessoal do grupo de arte Vivarte me disse: “nós estamos reunindo um pessoal, ayahuasqueiros de diversas origens, e estamos formando um grupo de estudo. Será que nós estamos no seminário errado? Nós não somos uma comunidade tradicional, ou será que somos?” Bem, o que nós podemos responder? Vocês não estão no seminário errado, este seminário é para todo mundo. Agora, obviamente, se vocês se constituírem numa comunidade, só podem dizer que são uma comunidade tradicional se estiverem associados a um rito tradicional. Nós temos comunidades que estão surgindo agora, bem recentemente. Entretanto, elas estão associadas a ritos tradicionais definidos já anteriormente. Estes ritos traduzem tradições fechadas. A doutrina do mestre Irineu está pronta, ele colocou um ponto final. Ela se atualiza, mas não muda, ela não está se transformando e incorporando novas coisas. A doutrina do Mestre Gabriel está pronta, ele deixou um corpo doutrinário que pode se atualizar ao longo do tempo, mas outros elementos doutrinários não vão ser acrescentados. A doutrina do Mestre Daniel está pronta, do mesmo modo. Outras doutrinas que estão em construção, incorporando elementos novos, não estamos incluindo no âmbito destas conceituação de doutrinas tradicionais, porque elas são doutrinas que estão se formando. Mesmo que suas comunidades sejam mais antigas, estão em evolução, incorporando elementos novos e se transformando. Não estão apenas seguindo os trilhos de uma tradição, estão criando uma nova tradição. Dito isto, gostaria de fazer alguns comentários em relação à carta do Alex. Ela me traz alguma tranqüilidade e alegria que é compartilhada com os demais centros tradicionais, cujas direções me autorizaram a fazer estes comentários. A primeira coisa que nos agradou, e que agrada particularmente a nós do Alto Santo, é que ele assina a carta pela ICEFLU, Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal e, portanto não usa aquela denominação do CEFLURIS na qual ainda consta o nome do mestre Raimundo Irineu Serra que de certa forma nos incomoda um pouco, porque a gente vê o nome do nosso mestre, nosso patrono, colocado sob o uso de outra entidade. E, logo abaixo da sigla ICEFLU, ele coloca: “patrono, Sebastião Mota de Melo”, o que significa, pra nós, a assunção de um outro patrono, diferente do patrono de nossa entidade . Nos agrada essa diferenciação, porque estabelece realmente uma distinção de identidade. Ainda em 1991, quando a gente estava organizando a Carta de Princípios, o Alex descreveu o trabalho do CEFLURIS nos seguintes termos: “a Doutrina do Mestre Irineu com os acréscimos que foram introduzidos pelo Padrinho Sebastião”. Conversando com ele, eu falei que achava essa formulação adequada e que restava saber se esses acréscimos já chegavam ao ponto de formular uma outra doutrina, um outro patrono, constituindo o que alguns chamam hoje de um outro tronco. E é isso que parecem indicar os termos da carta dele, quando situa que a origem da ICEFLU é a doutrina do mestre Irineu, que fornece a essência de suas bases doutrinárias. 46
Entretanto, ele já indica a ampliação para uma doutrina, uma igreja de culto eclético, que parece incorporar a contribuição original de mestre Irineu, mas que afirma outras contribuições, chegando, talvez, a se constituir um quarto tronco de tradições da ayahuasca, o que nós precisamos analisar. A princípio, não nos desagrada esta formulação, desde que se assuma uma identidade própria e que se estabeleçam determinadas diferenças. Entre estas diferenças, que pode significar a criação de uma outra tradição, está um trecho especialmente claro da carta do Alex, em que ele diz que firmaram “alianças espirituais com outras medicinas sagradas” e que estão contribuindo para legalização do nosso sacramento, o Daime, em todo o mundo. Pra mim é bastante clara esta declaração de que a ICEFLU não reconhece apenas a sacralidade de uma substância, a ayahuasca ou daime, mas que incorpora a sacralidade de outras medicinas e que, portanto, constitui uma tradição de afirmação das chamadas plantas de poder, de plantas enteógenas, seja lá qualquer a denominação que se dê. Nós fazemos uso apenas da ayahuasca e, portanto, a nossa tradição é restrita apenas à ayahuasca. Respeitamos quem quiser batalhar pela legalização, pela legitimidade do uso de todas as outras substâncias, entretanto a nossa batalha é apenas pela manutenção da legalidade do uso da ayahuasca. Que fique, portanto, claro o nosso respeito e ao mesmo tempo a nossa diferença. Ainda, com relação a isto, a frase afirma que o CEFLURIS -agora o ICEFLUestá contribuindo para legalização deste sacramento, a ayahuasca, no Brasil e no mundo. Eu não posso atestar com relação ao esforço ou as vitórias que eles têm conquistado para legalizar o uso da ayahuasca no mundo, mas no Brasil, lamentavelmente, a atuação do ICEFLU, antes CEFLURIS, não tem contribuído muito para legalização do uso da ayahuasca. Todos os problemas que nós enfrentamos com o antigo CONFEM, com o atual CONAD, todas as denúncias de surtos psicóticos, comportamentos bizarros, que geraram suspeita a respeito da necessidade ou da conveniência de legalizar o uso da ayahuasca, todos eles são oriundos de centros associados ao pessoal do Mapiá. Portanto, nós não concordamos com esta frase, que eles têm contribuído para legalizar o uso da ayahuasca. Nós achamos que esta contribuição tem sido atrapalhada justamente pelos problemas que se originaram com a associação da ayahuasca com outras substâncias, comércio em alguns casos e muitos desvios de comportamento. A gente tem feito uma defesa do uso da ayahuasca e, nesta defesa, tem sido beneficiados aqueles que usam dessas outras formas, com as quais não nos identificamos. Nós achamos que essas pessoas e entidades devem defender as suas próprias formas de uso da ayahuasca e também o uso outras substâncias e não esperar que o uso da ayahuasca os beneficie e lhes forneça proteção. Infelizmente, eu tenho que fazer estes comentários e demarcar estas diferenças sem a presença do Alex. Mas ele certamente vai ficar sabendo disso e ouvir a nossa voz assim como nós ouvimos a voz dele. Tivemos dúvidas, entre as direções dos vários centros, se nós deveríamos introduzir este ponto que foge tanto a nossa pauta, se ele não poderia gerar algum tipo de mal estar. Entretanto, eu me lembro muito bem que levei uma carta assinada por dona Peregrina Gomes Serra e o Fran47
Sessão Solene cisco Hipólito levou uma carta assinada por ele mesmo e outros centros no Seminário promovido pelo CONAD dois anos atrás, e não nos foi permitido ler a palavra da esposa do mestre Irineu e a palavra dos centros originários do trabalho do mestre Daniel. Nós não queríamos fazer com o Alex o mesmo que fizeram conosco. Então a gente lê a carta dele e, mesmo sem a presença dele, a gente demarca estas diferenças, respeitosamente. Nossa intenção é deixar clara a diferença entre os centros e comunidades tradicionais da ayahuasca e os centros que afirmam uma outra tradição que inclui a ayahuasca, mas que vai um pouco mais além, com mais de diversidade e amplitude. Espero que fique bem claro a nossa posição, que não é agressiva, não está negando ninguém, mas apenas tenta afirmar as diferenças que compõe a nossa identidade. 48
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Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados,
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ntes de abordar o tema desta belíssima Sessão, talvez uma das mais bonitas na história do Acre, gostaria de dizer que nunca deixei de falar o que penso, mesmo que isso me custe caro. Desde cedo, estou na Assembleia para receber o Sindicato dos Professores, e a principal reivindicação deles era dialogar com o Governo. Deputado Moisés Diniz Então, dei-lhes a garantia de que seriam recebidos. Às nove (Líder do Governo) Proponente dos títulos horas, o Sindicato se reuniu e pedi para que eles dos Mestres Fundadores compreendessem a especial importância desta Sessão, e permanecessem sem fazer barulho. Contudo, nunca vi tanta falta de educação. Minha reivindicação não foi por respeito aos Deputados, mas pelos convidados que aqui se encontram. Senhores, falar de uma religião é interpretar a palavra de Deus, é como decifrar vontades divinas e dialogar com os anjos. Falarei aqui de homens de carne e osso, das suas dores nos dias de frio, de fome, dos desejos da solidão, do calor, do sofrimento, da sua humanidade. Os Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, profetas da floresta, antes de tudo, eram homens, na sua beleza e na sua perversão, pecadores como nós, como qualquer um, como Buda, como Maomé, como Jesus. Sim, como Jesus, fundador do Cristianismo. Na época do rei Herodes, o anjo Gabriel aparece para Maria, na cidade de Nazaré, virgem e noiva de José, e anuncia que ela viria a conceber, do Espírito Santo, e que daria ao seu filho o nome de Jesus, que era um menino de prótons, neutros e elétrons. Uma criança constituída de átomos eternos, a brincar com os quasares como se fossem pedaços de gesso. O Mestre Irineu foi fundador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo. Filho de ex-escravo, guerreiro das estradas de seringa, em Xapuri, Brasiléia, Sena Madureira e Rio Branco. Irineu Serra cortou seringa na terra de Chico Mendes, trabalhou com o Marechal Rondon. Se tivesse sido 15 anos antes, teria trabalhado com Euclides da Cunha, na definição dos limites entre Acre, Peru e Bolívia. Mestre Irineu fez sua passagem em 1971, nove anos depois da instalação da Assembleia Legislativa do Acre. Muitos já receberam títulos de cidadão acreano, no entanto, sempre esqueceram do negro maranhense, que fundou essa bela religião da floresta. Homens comuns como Buda, fundador do Budismo, que nasceu no século VI, a.C, com o nome de Siddharta Gautama - filho do rei dos Sakias – príncipe que, aos vinte e nove anos, casado com a bela princesa Yasodhar, resolveu abandonar a casa no mesmo dia em que nasceu o seu filho, Rahula, após ter concebido profundos pensamentos sobre a miséria humana. Os budistas eram, portanto, homens que viviam como nós, como Mestre Daniel, fundador do Centro Espírita e Culto de 50
Oração Casa de Jesus Fonte de Luz. Maranhense, foi construtor naval, cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro, sapateiro e padeiro. Viveu no bairro 6 de Agosto e no Papoco, na beira do rio, zona de meretrício. Era boêmio, bebia, fumava, escrevia canções de amor, dormia ao relento. Mestre Daniel era um profeta que estava nascendo dentro de um violão. No poço das cobras, ele recebeu a missão e, em 1958, desencarnou. Homem que enfrentava a mortalidade, como Maomé, fundador do Islamismo que, nascido em Meca foi, durante a primeira parte da sua vida, um mercador. Tinha, por hábito, retirar-se para orar e meditar nos montes perto de Meca. Os muçulmanos acreditam que, em 610, quando Maomé tinha quarenta anos, enquanto realizava um desses retiros espirituais, numa das cavernas do Monte Hira, foi visitado pelo anjo Gabriel, que ordenou-lhe a recitação de uns versos enviados por Deus, comunicando-lhe que tinha sido escolhido como o último profeta enviado à humanidade. Maomé deu ouvidos à mensagem do anjo e, após sua morte, estes versos foram reunidos e integrados ao Alcorão. Mestre Gabriel, fundador da União do Vegetal, baiano, filho do povo, abandonou todos os laços familiares, porque soube ser solidário com um amigo, e era contra a injustiça. Veio para o Norte, passou primeiramente por Rondônia, e trabalhou na seringa como um brabo, enfrentando até esporada de arraia. Em 1946, por conseguinte, conheceu sua amada, a Mestra Pequenina. Em 1961, tornou-se da borracha, quando funda a UDV, no Acre. Em 1971 fez sua passagem, nove anos depois da instalação da Assembleia Legislativa do Acre. Homens que fundaram uma religião são como salivas de Deus, seus olhos mortais e ouvidos, compatriotas dos anjos, na pátria da eternidade e do sonho humano de viver sem dores. Jesus, Irineu, Buda, Maomé, Gabriel. Homens comuns que ultrapassaram o seu tempo, fizeram-se maiores do que os obstáculos e de todas as misérias humanas, capazes de vencer a dor, os vícios, as indecências, as fraquezas humanas. Homens que se fizeram próximos dos anjos e que, aqui, na Amazônia do Brasil, fundaram uma religião e fizeram homens e mulheres se tornarem melhores, mais fraternos, mais irmãos. Gabriel, Irineu e Daniel ficaram próximos das dores humanas, sentiram o odor da carne e todos os seus incensos, provaram do vinho profano e abriram suas almas para as aventuras da mortalidade, apalparam a pele áspera das árvores, dos cipoais e a pele macia das mulheres amazônicas, suportaram o calor do sol e o frio das madrugadas, a sede e a fome, as doenças da época, os desejos de adolescente e os sonhos de adulto. As mães de Gabriel, Irineu e Daniel sangraram no parto, os três Mestres nasceram cobertos de sangue, como toda criança, um instrumento rústico cortante separou os seus umbigos do corpo e uma palmada carinhosa arrancou-lhes o primeiro soluço de choro. A comida que eles consumiram se decompunha no estômago, e eles precisavam se desfazer delas, urinar, limpar-se, vestir-se. Os Mestres Gabriel, Irineu e Daniel eram humanos como todo e qualquer homem da Terra, e seus desejos seguiam a lógica da mortalidade. Eles eram homens, tinham as mesmas necessidades que acompanham a nossa espécie, desde os primórdios. 51
Gabriel, Irineu e Daniel eram mortais, dotados de todas as habilidades humanas, e perseguidos, como pássaros feridos, por todas as serpentes que infernizam os homens, especialmente aos que sobrevivem do trabalho de suas próprias mãos e, como herança do Éden perdido, comem do suor do próprio rosto. Nossa homenagem a esses homens que, apesar de toda a montanha da mortalidade sobre os seus dias, foram capazes de se tornar anjos. Minhas reverências aos queridos Mestres Gabriel, Irineu e Daniel. Muito obrigado.
Senhor Presidente da Assembleia Legislativa, Senhores Deputados Estaduais e Federais aqui presentes,
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alo em nome de um dos homenageados da família, o Mestre Irineu Serra, e, principalmente, em nome de seus filhos, porque na nossa casa, no Centro do Alto Santo, o Mestre Irineu era o pai, e a madrinha Peregrina é a nossa mãe, e todos nós somos os seus filhos, porque vivemos como irmãos, com nossas brigas, nossas picuinhas e, também, nosso amor, nosso derramado carinho uns com os outros. Como uma casa cheia de crianças, sempre alegre e animada, de vez em quando, porém, alguém chora, porque cai e se machuca. É assim que vivemos. Trabalhamos como todos os seres humanos para sobreviver. Tentamos criar os nossos filhos em um ambiente de paz, harmonia, tranquilidade, e fazemos aquilo que o nosso mestre nos ensinou, dando valor à educação, à instrução, à cidadania. Não descuidamos de levar nossos filhos para a escola, de dar-lhes o melhor possível, não apenas na alimentação, mas também na instrução, para que possam sobreviver e ser felizes. Nós aprendemos isso com os nossos pais, com os nossos professores, com as pessoas às quais convivemos em nossas vidas. E os que chegaram ao Alto Santo adultos, ou aqueles que nasceram quando suas famílias já frequentavam aquela casa, encontraram um mestre que lhes ensinava tudo, até para os professores. Conhecendo Irineu Serra como eu conheço, não pessoalmente, na matéria, de ver o rosto dele, de apertar sua mão, mas, espiritualmente, eu posso dizer que, do lado de cá, Deputado Moisés Diniz, o que nós vemos não é apenas o sublime homem que se torna anjo, mas é o anjo que tem a capacidade de se tornar homem.
Antonio Alves (Jornalista e representante do Alto) Santo
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Todos nós sabemos que Jesus é Deus e, como tal, Ele nos ensina a viver neste mundo, porque, como seus filhos, nós somos e compartilhamos de sua essência. Nós também trazemos, no coração e na mente, a centelha divina do nosso espírito, o Espírito Santo. Temos, também, a tarefa de nos transformar em homens e mulheres e, a cada dia, a cada passo, saber rir, chorar e, principalmente, compadecer-se da dor do outro. Portanto, o espírito de humanidade que nos cabe desenvolver não é apenas relacionado ao individual, e sim ao coletivo. Isso nosso mestre nos ensinou. Em 1946, 1947, o centro da cidade de Rio Branco era um local de pequenas casas de comércio. Este Poder era um casarão antigo de madeira e, logo mais abaixo, existiam outras casas de comércios e pequenos prédios de alvenaria que começavam a se formar. Não existia nem mesmo o Edifício Abrahim, que era, também, uma casa antiga de madeira coberto com telhas de barro, onde, hoje, é o Palácio das Secretarias. Mas já tinha o Palácio Rio Branco, ainda inconcluso, porque fora iniciado no Governo de Hugo Carneiro, em 1929, e concluído no governo Major Guiomard Santos que, ao se instalar naquele local, olhou pela janela, que direcionava à beira do rio e disse: “Mas isso está muito sujo”. E pediu que o limpassem, para a segurança das pessoas que pegavam a catraia, andavam na rua do comércio, hospedavam-se no Hotel Madri, frequentavam a bagunça do Sicareli ou iam para o trabalho nas repartições públicas do 1º Distrito. O Major Guiomard Santos chamou seu ajudante, homem de todas as ocasiões, o Coronel Fontinelle de Castro, para resolver o problema da sujeira, e ele se lembrou de um antigo colega da Guarda Territorial e disse: “Eu tenho o homem ideal para esse serviço”. Mandou chamar o Mestre Raimundo Irineu Serra e ele veio com mais de quarenta homens. Passaram a manhã e a tarde trabalhando, limparam tudo. E, no final da tarde, vieram se apresentar ao Governador, que desceu as escadarias do Palácio e perguntou ao Mestre Irineu quanto custava o serviço. O Mestre Irineu respondeu: “Para mim, não quero nada, mas se alguns dos homens quiserem alguma coisa, estejam à disposição para falar”. E, todos os homens disseram: “Nós também não queremos nada”. E o Mestre, então, voltou a falar: “Governador, se for possível, nós queremos um transporte que nos leve até a Vila Ivonete, porque de lá subiremos pelo varadouro e vamos para nossas casas”. E o Governador ofereceu um caminhão, onde todos foram na carroceria, cansados, mas alegres, satisfeitos. E dali começou uma amizade, que rendeu frutos para o Estado do Acre. Pouca gente sabe, mas o Mestre Irineu Serra mantinha, em sua casa, um comitê dos Autonomistas, que lutava para transformar o Acre em Estado, e ele era sua maior liderança. Os líderes políticos, como Guiomard, Fontinelle e outros, sempre que tinham alguma dúvida, iam à casa do Mestre Irineu pedir aconselhamento sobre como deveriam proceder. Esse laço que se formou foi capaz de diminuir as perseguições, as incompreensões as quais o Deputado Moisés se referiu e que, de fato, existiram e existem, até hoje, mas a missão dos mensageiros de Deus na terra é assim mesmo, cheia de espinhos e incompreensão. O Mestre Irineu ensinou aquilo que ele trazia na sua memória divina; como nós devemos louvar a Deus nosso pai, a rainha nossa mãe e ao nosso salvador Jesus. Como se faz para passar dessa vida material para a vida espiritual, como devemos 53
proceder para chegar aos pés de Deus. Ele também nos ensinou como ser um cidadão que faz o bem aos seus semelhantes, colabora com os poderes públicos, luta por aquilo que acredita, que defende as suas ideias e, ao mesmo tempo, respeita as ideias, a organização social de todas as outras comunidades. Na década de 50, a comunidade do Alto Santo, que se reunia em torno do Mestre Irineu, era responsável por quase 40% do abastecimento agrícola do mercado municipal. Pessoas como Dr. Chico Marins, Antonio Gomes, Raimundo Gomes, José das Neves que tinha uma padaria aqui na Floresta, carregavam sacos de arroz nas costas para vender no mercado. A madrinha Peregrina, até a década de 60, colheu muito arroz nos roçados do Alto Santo, depois batia, escolhia e colocava no paiol. Um companheiro, que é músico no Alto Santo, disse-me que formou sua habilidade musical escutando o som que saía das rodas de madeira dos carros de boi. Essas pessoas trabalharam duro, também na formação de valores, da política e na formação da sociedade. O Mestre Irineu fundou a Escola Cruzeiro, que hoje se chama Escola Municipal Raimundo Irineu Serra. Naquela época, os professores eram pessoas que foram alfabetizadas na comunidade e passaram a alfabetizar as suas crianças. Por isso, nós sabemos que essa homenagem não é apenas justa, ela não apenas descreve o fato de que esses Senhores são cidadãos do Acre, construtores deste Estado, da Amazônia Ocidental, do Brasil. Eles fizeram a passagem de uma importante sabedoria indígena para dentro da cultura brasileira, eles ofereceram à humanidade uma nova experiência existencial da floresta Amazônica, como se pode ter Deus dentro da floresta, num lugar onde não chegava nenhuma palavra escrita e mesmo que chegasse não seria entendida, porque ninguém sabia ler. Como se pode louvar a Deus em lugares tão ermos, onde não tem um médico, um enfermeiro para fazer um curativo? Porque Deus está na planta que nos cura, está na comida que nós comemos, como ele já dizia há muito tempo: “quando levantares uma pedra, eu estou ali debaixo, quando cortares uma árvore, eu estou dentro dela”. Esses homens encontraram Deus na floresta e trouxeram para as cidades, para toda a humanidade. Por isso, esse Título descreve, não apenas a construção de uma cidadania, mas a construção de uma humanidade, é por isso que eles são cidadãos e, também, anjos que se transformaram em homens. Agradecemos em nome do Mestre Raimundo Irineu Serra e de todos os mestres que passaram por essa terra, esta homenagem da Assembleia Legislativa. Agradecemos também ao Governador Binho Marques, que mandou os seus Secretários passarem três dias em um seminário que nós organizamos sobre políticas públicas, onde oferecemos sugestões para o Estado e reivindicações das nossas comunidades. Nós estamos vivendo um momento muito especial da nossa cidadania, a Assembleia Legislativa vai ao encontro do povo, através da Assembleia Aberta, e abre suas portas para que o povo venha até ela. O Governo do Estado vai até o povo, construindo as zonas de atendimento prioritário e, também, abre suas portas para que as lideranças do povo venham negociar suas reivindicações. Este momento especial de cidadania, que nós estamos vivendo no Acre, ensina ao Brasil como se deve tratar, inclusive, as minorias. 54
Como os outros Estados deveriam tratar sua população indígena? As religiões minoritárias? As pessoas que são portadoras de necessidades especiais? As pessoas que têm orientação sexual diferente daquelas que são predominantes? Como podem tratar as pessoas que são discriminadas, as mais pobres, os doentes mentais? Como tratar as pessoas que são diferentes do comum? O Estado do Acre está ensinando, e o resto Brasil, se prestar atenção, pode aprender a lição que vem lá do fundo da floresta e que serve para toda a humanidade. É esta lição que está sendo mostrada hoje, e não só o Mestre Irineu e sua esposa, Dona Peregrina, que veio aqui para receber esse Título, estão agradecidos por essa homenagem, mas todos nós. Ele, certamente, não está só agradecendo, está retribuindo em bênçãos, em rogativos a Deus, nosso Pai, que desçam sobre nós, sobre esta Casa, sobre toda a humanidade, a Saúde, a paz, a harmonia, o amor. Muito obrigado, em nome do Mestre Irineu e de toda a nossa comunidade.
COMUNIDADES TRADICIONAIS DA AYAHUASCA: O MOMENTO É DE GRATIDÃO
É
tradição reconhecer as coisas boas e bem vindas, recebendo, agradecendo e bem aproveitando, como dádivas, o que nos é ofertado. Daí o sentimento de gratidão e satisfação pela oportunidade de realizar o Francisco Hipólito de Seminário de Culturas Tradicionais da Ayahuasca: Araújo Neto, Presidente Construindo Políticas Públicas Para o Acre, que começou do Centro Espírita e com uma conversa sobre a iniciativa do Deputado Estadual Culto de Oração “Casa de Jesus Fonte de Luz”. Moisés Diniz pela proposição da concessão de Títulos de Cidadão Acreano aos Mestres Irineu Serra, Daniel Mattos Frank Batista, Historia(maranhenses) e Gabriel Costa (baiano), ao qual foi aprovada, dor e Membro do Cenpor unanimidade, pela Assembléia Legislativa do Acre. tro Espírita e Culto de As comunidades tradicionais, afirmadas nos mestres Oração “Casa de Jesus fundadores, construíram o seminário a partir da Câmara Fonte de Luz”. Temática de culturas ayahuasqueiras, em conjunto com a Fundação Garibaldi Brasil - Prefeitura de Rio Branco - Fundação Elias Mansour – Governo do Estado do Acre, com todo o apoio da Assembléia Legislativa do Acre, por seu Presidente, Deputado Estadual Edvaldo Magalhães, onde foi possível tratar, de maneira institucional, com os governos Estaduais e da capital acreana, questões pertinentes a estas comunidades nas diversas áreas públicas, como Educação, Saúde, Segurança, Urbanismo, Meio Ambiente e Cultura. 55
Ao construir temas de políticas públicas para o Acre, as comunidades tradicionais puderam dialogar sobre seus valores éticos, morais e fundamentais que as diferenciam como prática do uso ritual religioso da bebida sagrada, que foi recebida de comunidades ancestrais, introduzida na vivência dos seringueiros e, assim, consolidando-se e tornando-se uma religião urbana genuína, como da Amazônia, com identidade forte na sociedade acreana. Como valor ético estão guardadas, fundamentalmente, a produção com o cipó jagube e a folha rainha, fervida em água; a não comercialização e, além disso, a utilização nos centros, efetivamente nos dias de programação religiosa. Este pacto guarda os bons costumes e os ensinamentos morais, tornando-se a pedra de toque para impedir o desvirtuamento e a contaminação das práticas deixadas pelos três mestres fundadores que foram reconhecidos como cidadãos acreanos pela seriedade, respeito e boa conduta, ensinada e cultivada em cada um dos segmentos por eles fundados. Os homens, negros trabalhadores, fundadores destas comunidades, ofertaramnos uma doutrina de solidariedade, de irmanação, de amor ao próximo, de acolhida ao irmão necessitado e o bom aprendizado de que, das coisas simples da floresta podemos, se bem observar, reconhecer a grandeza do Deus Criador, ao mesmo tempo em que colhemos dela as ofertas para as nossas necessidades materiais, e o bom ensinamento para as nossas necessidades espirituais. Ao tratar das dificuldades diante das Políticas Públicas, estas comunidades abriram uma conversa institucional, não sobre uma religião ou doutrina específica, mas, fundamentalmente, sobre preceitos religiosos em geral, reivindicando o fim da intolerância religiosa nas escolas, nas repartições públicas, nas relações familiares e pessoais, na nossa sociedade, visto que é predominante, no Acre, a escolha dos ensinamentos cristãos que, assim como outros existentes, prega o amor, a verdade, a justiça e a paz entre os homens, para que cada um exercite a própria liberdade de crença, sem excluir as outras presentes. O Seminário permitiu, ainda, esclarecer a riqueza, a sabedoria e a seriedade destas doutrinas, geradas no seio da floresta Amazônica, e que são possuidoras de um laço inseparável com a própria história e com a identidade do Acre. Num tempo em que os seringais só recebiam a visita do padre, uma vez ao ano, a Ayahuasca possibilitou levar espiritualidade e sacramentos aos povos, empobrecidos e maltratados da floresta, judiados pelo egoísmo industrial e governamental que, no início do século passado, só tinha olhar para as divisas geradas pela extração da borracha local, tratando os homens seringueiros como coisas, mercadorias ou animais. Este era um tempo em que se vivia a espiritualidade, de maneira espontânea, através da relação com a floresta e seus seres. Este tempo era o do conhecimento tradicional: das parteiras, das benzedeiras e dos curadores, que conheciam plantas curativas, e conheciam, ainda, as formas de usá-las associadas às rezas, às fortes orações, tornando-se as referências espirituais para tratamento de doenças, como vento e espinhela caídos, a panema, o mau-olhado, entre tantas outras necessidades de socorro para os males do corpo e da alma. 56
Também, durante a década de 40, os sacramentos - como batismo e casamento - excluíam o povo que não estivesse de acordo com as exigências da Igreja, seja os casos de padrinhos que não fossem casados, os filhos de pais separados ou que não fossem casados religiosamente, entre outras exigências que negassem esses sacramentos. As doutrinas de Mestre Irineu e Mestre Daniel vêm de encontro a estas necessidades, recuperando e valorizando os elementos da natureza, como a mata, os pássaros, os animais, ao mesmo tempo em que resgatam os povos da floresta (caboclos, índios, negros, ribeirinhos e seringueiros) dando-lhes oportunidade de receber os sacramentos e realizando, para estes, batismos, celebrações de casamento, orientação religiosa cristã, etc. Mestre Daniel orienta, ainda, que sua missão traz as obras de caridade, necessitando, por isso, de muitos braços e deve, portanto, ser um trabalho solidário, gratuito e aberto a todos que procuram ajuda, sem distinção de cor, sexo, raça, credo religioso ou condição social, visto que todos somos irmãos de passagem neste plano material terrestre. Na relação de identidade com a história acreana, a religiosa, das comunidades tradicionais da Ayahuasca é, ao mesmo tempo, a história da resistência e da preservação das nossas origens, resistindo, inclusive, à imposição da cultura religiosa norte-americana, que tenta se universalizar reprimindo culturas tradicionais como a nossa. O objetivo da resistência e da preservação destas culturas tradicionais foi percebido pelo Historiador e Ativista Cultural Marcos Vinícius das Neves que, atuando como Chefe do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado soube, em conversas com estas comunidades, captar a importância e incentivar a constituição de Casas de Memória (museus), que contam a história dos mestres e seus seguidores e, ainda, a vida cotidiana dos centros por eles fundados, numa parceria que é reforçada, até os dias de hoje, com a Fundação de Cultura de Rio Branco, Garibaldi Brasil, e com a Fundação Elias Mansur, no Estado. No Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus Fonte de Luz”, onde Mestre Daniel recebeu seus trabalhos espirituais, a Casa de Memória Daniel Pereira de Mattos foi fundada em 08 de setembro de 1995 e, nela, estão disponíveis documentos e objetos de valor histórico, provenientes da administração do Centro e, ainda, de pesquisas feitas sobre a vida de Mestre Daniel, além do acervo do Centro constituído de documentos manuscritos, datilografados e impressos dos períodos do Mestre Daniel (1945-1958), irmão Antônio Geraldo da Silva (1959-1977), Mestre Manuel Hipólito de Araújo (1977-2000), e do atual Presidente Francisco Hipólito de Araújo Neto. O Mestre Manuel Hipólito de Araújo sempre teve a preocupação com a organização do trabalho e obras, registrando, já a partir de 1959, os ofícios produzidos pelo Centro e, também, de alguns poucos documentos que tratavam da vida e da presença de Mestre Daniel. Também, pelo acervo da Casa de Memória, podemos encontrar a comprovação da vida institucional do Centro, e toda a luta de resistência da comunidade, desde Mestre Daniel. 57
Nossos mestres da floresta souberam perceber que a ayahuasca não se constitui de substância proscrita. Sua atuação é benéfica para os homens, visto que trata dos males do corpo e da alma, quando sabiamente dirigida e orientada por um conjunto ritual que compõe a doutrina destas religiões, o que foi confirmado pelo Ministério da Justiça, após anos de pesquisas e acompanhamento dos procedimentos exercidos pelas comunidades tradicionais, caracterizados pela Carta de Princípios. O Seminário também deixou claro que as gerações continuadoras das missões deixadas pelos mestres não podem ser confundidas com as que caminham, conscientemente, na ilegalidade, seja pela comercialização, seja pela utilização da ayahuasca com substâncias proibidas pelo Ministério da Justiça. Assim, podemos dizer que, para além da realização, vivemos o sentimento de gratidão estendida ao Governador Binho Marques e aos Secretários e Secretárias Oswaldo Leal, Daniel Zen, Professora Maria Correia, Cassiano Marques, Márcia Regina, Cleísa Brasil. Também, ao Prefeito Angelim e os Secretários da Prefeitura de Rio Branco, Marcos Vinícius, Moacir Fecuri, Artur Leite, José Otávio, Paskal Kalil, e todos os assessores que se fizeram presentes e se dispuseram a ajudar na construção das políticas públicas. A gratidão estende-se, ainda, aos Deputados Estaduais, por todo o apoio, consideração e respeito, e aos Deputados Federais, em especial à deputada Perpétua Almeida, pela disponibilização decisiva de seu gabinete para a construção do seminário, e aos deputados, Nilson Mourão e Fernando Melo, que também estiveram presentes nesta jornada. Por conseguinte, o agradecimento especial é a Deus e à Virgem Maria, que nos deram as bênçãos durante quatros dias, ao unir os irmãos das comunidades tradicionais para, juntos, construirmos um trabalho com iluminação e alto nível, em que os assuntos foram conduzidos com tranquilidade e bom senso, concluindo, assim, as atividades no Horto Florestal e na Assembléia Legislativa, com emoção e sabedoria. Com certeza, bons frutos iremos colher desta seara.
Bom dia a todos,
C
Flávio Mesquita Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
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umprimento à Mesa, na pessoa do Deputado Edvaldo Magalhães, que tem se esforçado para trazer as nossas entidades, a fim de conversarmos a respeito de temas tão importantes; também cumprimento a todos, pedindo a Deus que nos dê sua bênção e nos ilumine, através dos nossos mestres, que recriaram o diálogo, tão fundamental para nós, que vivemos neste mundo moderno. Hoje, o Acre está se desenvolvendo com base em uma política de valorização da floresta e do seu povo, e tal fator lembra o que as comunidades tradicionais vêm fazendo há
vários anos, ou seja, ensinando a sociedade a encontrar, na floresta, o seu fruto, o seu pão e o seu alimento, não somente material, mas também espiritual que, no nosso caso, é o Ayahuasca, chá que está mais conhecido, atualmente, pela humanidade, no entanto, para nós, que estamos aqui presentes, não é novidade. É preciso que esse veículo espiritual, trazido por esses três mestres, seja conhecido e venha acompanhado de uma doutrina, de uma formação de cidadania e de uma comunidade, as quais trazem equilíbrio, luz, paz e amor. Agradeço aos organizadores desse encontro, porque sabemos que há muitos colaboradores conhecidos e anônimos, e outros que, possivelmente, irão aderir a esse movimento, de afirmação de um espaço das minorias, que têm a sua crença, os seus valores e, além disso, que constroem a sociedade da mesma forma que muitas outras, que já são conhecidas da sociedade, mais numerosas e, por isso, mais notadas. No entanto, não quero falar somente disso, e sim, principalmente, desse grande homem que, quando eu cheguei ao Acre, já encontrei seus colaboradores nossos primeiros irmãos - a sua família, e a querida amiga Pequenina, a qual sempre me recebeu com boa vontade, com um sorriso e com seus nobres ensinamentos, transmitindo aquilo que ela recebeu do seu esposo, o Mestre Gabriel. Também encontrei alguns amigos, que aqui se encontram presentes, como o mestre Herculano, Roberto Souto, Rita, Luiz Máximo que, de alguma forma, trouxeram a sua mensagem. E, muitos outros que também conviveram com o Mestre Gabriel, e que estão aqui, como a conselheira Jandira, sua filha, a qual, de alguma forma, trouxe para minha vida a sua presença e o seu exemplo. O Mestre Gabriel, como já foi falado, foi um batalhador pela sua sobrevivência. Ainda jovem, ele veio para a Amazônia como soldado da borracha, fugindo da guerra, e buscando a paz, incorporou-se àqueles seringueiros, com muita simplicidade e sacrifício, lutando pela sua sobrevivência nos seringais da Bolívia e do Acre. Então, eu acho justa essa homenagem que é prestada a ele, e quero dizer que a semente plantada do vegetal Ayahuasca, chá comungado nessas três sociedades religiosas, nasceu nessa região, portanto, é de fundamental importância que se saiba e, por conseguinte, se valorize. Os antigos cidadãos do Acre conhecem esse trabalho, porque foram apresentados a esses homens e se beneficiaram do trabalho deles; mas a gente conhece a árvore por seus frutos, e esses frutos, cada vez mais, vêm aparecendo na vida de cada cidadão que conhece uma dessas sociedades. O Mestre Gabriel criou a União do Vegetal visando dar condições às pessoas de ter uma vida saudável e em paz. Ele as orientava a ter uma vida correta, limpa e sem subterfúgio, tanto é que há uma história interessante relacionada a ele, que bebeu o vegetal no dia 1º de abril de 1959, popularmente chamado o dia da mentira, para contradizer a tradição popular, trazendo a verdade ou encontrando o caminho da verdade, através do vegetal. A partir desse dia, ele começou a se organizar para fundar, em 22 de julho de 1961, o seu centro, a fim de poder trabalhar com as pessoas que usavam o chá Ayahuasca, de maneira recreativa e responsável. Inocentemente, ele procurou auxiliar as pessoas a encontrar o equilíbrio, chegando ao ponto de, em 6 de janeiro de 1962, na Vila Plácido de Castro, ele ser reconhecido, por alguns mestres ali 59
presentes, como o Mestre superior, porque viram nele uma pessoa do bem, uma pessoa correta, que sabia o que vinha fazendo. E, é essa superioridade que os mestres trouxeram para a sociedade religiosa, que é fundamental, porque o chá, em si, é apenas uma chave que precisa manuseada por pessoas que saibam o que estão fazendo. Para isso, o Mestre Gabriel ensinou os nossos primeiros irmãos a organizar uma comunidade, onde essa doutrina pudesse frutificar nas famílias dos membros da União do Vegetal. Hoje, nós temos a União do Vegetal, cujo nome foi materializado em Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, em 1961, e sua sede está situada em Brasília. Essa semente, plantada no Acre, está se espalhando em todo Brasil, e alguns lugares do exterior. Isso representa a materialização do pensamento do Mestre, de trazer a paz ao mundo, organizando nosso Centro em todos os lugares. Interessante é que o Centro não tem frente, nem lado, nem costas, é Centro. É uma dimensão do absoluto que, pela inteligência, está materializada em uma organização humana que a gente busca espelhar, mas que não é fácil devido ao tamanho de sua grandeza. Não é fácil materializar o sonho e o pensamento de um homem de luz, e é por isso que nós precisamos de tantos colaboradores, principalmente para a consolidação desse trabalho que, a cada dia, está mais organizado. Temos, presente neste importante encontro, o nosso nobre amigo, mestre Edson Lode, que é a pessoa que há muitos anos vem fazendo esse trabalho de aproximação, de amizade e de igualdade, e que está frutificando, visto que hoje estamos aqui, nesta homenagem que eu desejo, sinceramente, que seja o símbolo do reconhecimento das tradições ayahuasqueiras com o mundo moderno. Lembrome de um hino, neste momento, em que pedimos a Deus que continue nos iluminando, para que essa floresta continue de pé, dando os frutos criados por Deus, a fim de que a humanidade continue crescendo material e espiritualmente. No Acre, nós temos dezoito lugares, que chamamos de núcleos, e que surgiram de uma semente plantada, inicialmente, pelo Mestre Gabriel, que criou o primeiro núcleo da União do Vegetal e, depois, pelo nosso irmão aqui presente, Luís Máximo, que foi a Porto Velho em busca de um tratamento de saúde, e encontrou o Mestre Gabriel, o qual pôde lhe dar, através da espiritualidade, as condições para ele reviver e restaurar a sua condição, para que ele pudesse trabalhar e, por conseguinte, trazer a União do Vegetal para o Acre. Certamente, todos que frequentam a União do Vegetal, aqui no Acre, são gratos a ele por seu trabalho. Eu também quero falar um pouco a respeito da simplicidade e da humildade do mestre, que é uma pessoa sábia, pois ele não faz tudo sozinho, e nem diz o que é para ser feito, mas é aquela pessoa que chama todos para o trabalho, dando-nos o exemplo da participação, da igualdade e da mão estendida, que é a melhor forma para trazermos mais pessoas para perto de nós. Normalmente, quando se fala de irmão, esquecemos de que dentro dessa palavra existe a palavra mão, que para nós significa a mão estendida, que hoje está representada, neste encontro, por essas três sociedades que testemunham esse momento importante, e que esperamos ser o primeiro de muitos. Eu peço que o grande Deus ilumine os mestres que transmitem, para nós, a sua presença, dentro do mundo invisível da espiritualidade, mas que, como diz Saint 60
Exuperry: “O essencial é invisível”; Porém, é sentido em nossos corações e, em nossas consciências, pela clarividência, pela paz e pelo amor. Então, que Ele possa continuar iluminando, não somente os adeptos da União do Vegetal, mas a todos que buscam o bem da humanidade, em qualquer lugar, seja nos governos municipal, estadual, federal, nos três Poderes e na sociedade civil, para que possamos construir um mundo melhor. Como disseram, ontem, os palestrantes que estavam à Mesa, no Seminário: o evento superou as expectativas. E, como eu sou uma pessoa otimista, e não me surpreendo com boas notícias, eu sabia que daria certo. Aproveito para parabenizar aos que se esforçaram para que esse fórum acontecesse. E uma característica que eu achei muito importante, foi o clima de ordem, respeito, amor e amizade, porque não adianta falar de políticas públicas, se não houver amor a quem necessita das políticas públicas, se não houver amor para com o povo que necessita das políticas. Então, nós - que representamos parte desse povo, aqui no Acre – pedimos com muito carinho, em nome dos mestres, e eu, particularmente, tenho a honra de pedir em nome do Mestre Gabriel, para que possamos continuar essa parceria, com respeito e amizade, construindo - a partir do Acre e da Amazônia - o mundo que Deus quer, e não apenas o mundo que o homem que tem o dinheiro e a força material quer. E que nós possamos reconhecer o quanto somos pequenos perante esse grande Deus, que quer que conservemos as condições de vida que esse planeta necessita, para que possamos ter as nossas necessidades providas. E contem conosco, porque é isso que o mestre quer. Ontem, eu pensei: o que o mestre quer que eu fale? Ele quer que eu fale para os Senhores que contem conosco. A gente sabe, pela história que foi contada, e pela que está registrada, que esses três homens, muito antes de haver política pública, no interior do Acre, já vinham trazendo ordem, organização social, fraternidade, consolo às almas sofridas, e dando, acima de tudo, condições para as pessoas pensarem em um futuro melhor. E esse futuro chegou, pois hoje, estamos aqui, em uma condição moderna, mas devemos sempre lembrar de que existe a tradição. Também devemos lembrar que, antes da modernidade, existia a essência, a qual deve permear a modernidade, para que se alcance o equilíbrio e a harmonia no desenvolvimento deste Estado. Então, em nome do Mestre Gabriel, o qual vem sempre nos dando luz, paz e amor, agradeço a todos e, como disse, contem conosco. Brasília não é tão longe, e estamos aqui, muito bem representados, e sempre que precisar, estaremos aqui, juntando forças para construirmos um mundo melhor. Muito obrigado!
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Colaborações
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O CULTO DO SANTO DAIME E A FORMAÇÃO DO POVO ACREANO
Clodomir Monteiro Presidente da Academia Acreana de Letras
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espeito, honra e alegria dirigem o pensamento para publicar estes textos. Contribui um pouco com esta revista, o grande acontecimento deste final de 2010, que é mais um passo para a consolidação da Câmara das Culturas Ayahuasqueiras. Haverá um dia em que, crescendo progressivamente a quantidade e a qualidade de doação de amor e de responsabilidade dos participantes desta câmara temática, e continuando o apoio institucional, tal qual ocorre hoje, passaremos a ganhar autonomia e a alçar vôos mais altos como, por exemplo, a aprofundar estudos sobre a identidade acreana, onde jamais a temática da autonomia ética, religiosa, sempre generosa às suas fontes, seja abafada por outras vozes, cantos e preconceitos. Assim é a verdadeira autonomia, desprendida de autoritarismo ou prepotência. E assim tem sido o povo da Ayahuasca, que reúne daimistas e hoasqueiros. Ayahuasca, nome de uma das “plantas mestras” dos povos mais remotos da floresta, é uma expressão que vem ganhando status urbano desde o Círculo Regeneração e Fé de Brasiléia, dos anos vintes, integrando bolivianos e brasileiros e, ecoando, em seus falares, o quéchua, cuja tradição é forte entre os peruanos, que nos trouxe o chá da iluminação espiritual. Ayahuasca é sugerida por nós, que vivemos a epopéia do surgimento da Carta de Princípios. É, portanto, o mais forte e legítimo termo para caracterizar a ação e a união sagrada dos filhos do Pai Eterno, da resistência e da luta pela liberdade de religião nas pioneiras décadas, das entidades firmadoras do estatuto da fidelidade e da lealdade às leis que regem cada centro constituinte daquela fidelidade. Vou deixar que Abguar Bastos, meu confrade da União Brasileira de Escritores (UBE), de São Paulo, valorize o meu texto com o dele, como se fosse de minha própria lavra. Publico aqui, pela primeira vez, em trinta anos, o texto que este grande político, escritor, folclorista e
antropólogo escreveu a respeito de um artigo “As Comunidades do Santo Daime”, publicada em 1979, após minhas primeiras pesquisas sobre o culto do Santo Daime. Abguar Bastos conclui levantando a tese de que o Santo Daime seria uma via instituidora do povo acreano. COMENTÁRIOS SOBRE AS COMUNIDADES DO SANTO DAIME Abguar Bastos
O fenômeno de regressão econômica, ou seja, a passagem do homem de um nível superior para um nível inferior de economia, como forma de vida, levou nordestino ao Acre, fê-lo reprimir o seu tradicional horizonte psicomoralreligioso e adaptou-o aos condicionamentos pagãos que a realidade da selva impunha e que tinha, como modelo, as sociedades primitivas indígenas. O aborígine puro não tinha noção de um deus cósmico universal. O seu psiquismo mágico-religioso estava voltado para os heróis de cultura ou transformistas sem origens definidas que, depois de cumprida a missão, recolhiam-se a um lugar celeste. Há, por conseguinte, na origem das coisas, um entendimento mais próximo entre o herói cultural e os homens, muitas vezes nascidos das mágicas dessas poderosas entidades, e os ritos mágicos subseqüentes não passavam de diretrizes proclamadas por esses deuses da floresta ou das montanhas. O pajé, por exemplo, passava a ser o intérprete dos segredos dos cultos e senhor igualmente de poderes, que iam do enfeitiçamento ao encantamento. O nordestino, sedentário da agricultura e do pastoreio, ao se abrigar no seio de uma economia extrativista predatória, era obrigado a conciliar-se com um seminomadismo típico (estradas de seringa) e, além disto, com os usos, os hábitos, que englobavam as formas de alimentação e habitação dos índios (palhoças), os novos perigos (feras e enchentes), a semi-nudez e o regime de transporte (canoas). Por outro lado, perdia contato com os símbolos mais atraentes de sua formação moral: o padre, a igreja, a 65
procissão, os santos. Saía, portanto, de um tipo de vida rural para um tipo de vida em que preponderavam as alfaias do índio, os fantasmas da mata e as superstições do meio. A regressão dos institutos morais acompanhava a regressão econômica, mas é claro que o nordestino não surgiria no cenário de tanga, tacape, arco e flecha, porém adotaria a cuia, o moquém, o panteão das assombrações, a canoa, o tejupar, o alimento baseado na caça, no peixe, nas raízes, nos frutos silvestres. Os utensílios de barro seriam mais constantes e, assim como o índio em suas relações com o branco, passavam para uma categoria altamente valiosa: as quinquilharias, o terçado, o machado, o balde, o facão. Da região dos milagres, o recém-chegado entrava na região dos mitos. No entanto, havia uma resistência de heranças arraigadas que o nordestino perdia de um lado, enquanto não aceitava as do outro, visto que a beatice perdia o vigor, e o “cabra” substituía o jagunço. Começava, por conseguinte, uma fusão entre o antes e o depois, entre dois estágios diferenciados de vida, porque o próprio aparato visual mudava e, portanto, não se via nas brenhas acreanas, nem o cangaceiro hípico, nem o profeta de cruz alçada, pois as novas condições etológicas operavam uma mutação genética no comportamento. A solidão e a volta a um contato mais direto e áspero com a natureza obrigavam o nordestino fixar-se à revisão constante de valores, quer conscientemente ou não. Tudo ali tinha que ser vivido dia a dia, sem ilusão alguma, sem projetos e sem ajudas de fora. Dentro de uma realidade bruta insociável, não bastavam as energias antigas, pois o antes e o depois resultariam num presente, numa contemporaneidade de efeitos transformadores. O nordestino e, principalmente, seus descendentes, iriam sistematizar um tipo novo, o homem do Acre. Aceita essa condição de caldeamento psicológico, o homem conviveria dentro de novos padrões evolutivos e iria, aos poucos, abandonando o extrativismo e passando para a economia superior da agricultura e do pastoreio, não conduzindo, porém, as cargas da civilização portuguesa 66
ou holandesa do nordeste, mas as que eram impostas a um homem que vinha das brenhas, em carne viva, e ia transformar-se num membro da civilização orícola, não emprestada, mas sim, criada por ele mesmo. Estava ali, em corpo inteiro, o que não era mais nordestino e não era mais o semi-indígena, mas o acreano, a nova sub-raça trançada a cipó e desencantada dos imensos pélagos que a rodeavam. Coube a Clodomir Monteiro da Silva recolher e revelar um dos padrões dessa mudança: o Santo Daime, e faltava a mim, ao tempo em que fixara, baseado na conquista Acreana, o fenômeno da regressão econômica, um quadro vivo dos efeitos do corte sociológico ensejado. Como haveria de acontecer, o novo homem acreano mudou a sua prospecção religiosa, antes arraigada no nordestino, em termos de um catolicismo colonizante e dominador. O intruso também não poderia aceitar, pela intensa elaboração hereditária, os padrões mágicos das sociedades secretas indígenas, nem a totalização de um conceito disciplinar mitológico. No entanto, não deixou de receber as influências mágicas de que se revestia a figura do pajé florestal, e que ressurgia na personagem do Padrinho, no Santo Daime, com características de ações diferenciadas, é claro. E, por que se trata de um diferenciador religioso de novo tipo? Porque o Santo Daime é tipicamente acreano. Como bem viu o prof. Clodomir, o Santo Daime é “uma autêntica sociedade religiosa rural”. Este ponto de intermediação é importante anotar: a fusão teria que ocorrer entre o feiticismo florestal indígena e os padrões urbanos da igreja cristã. Teria que ficar, portanto, entre dois pólos de absorção, entre o antes e o depois, e o ponto de intersecção seria o meio caminho entre a cidade e a floresta, o meio caminho entre os santos e as vidências mágicas, oriundas de práticas indígenas, dentro da região do caapi (huasca), que tanto podia invadir a Amazônia pelo alto rio Negro, como pelo alto-Acre. O autor de “As Comunidades do Santo Daime” destacou relevos autônomos e, de certa maneira, incomuns, 67
desse tipo de concentração religiosa: o mutirão (putirum), que é um dos institutos básicos das comunidades indígenas, assim como o uso de alucinógenos naturais, usuais entre os índios nas suas danças ritualísticas, como o ipadu e o paricá, sem falar na influência posterior da liamba. A prática da vidência (miração) é prática de pajé. O uso do maracá, no Santo Daime, revela a presença do principal instrumento dos cultos mágicos do íncola. Por outro lado, a visão se incorpora a uma entidade superior, mensageira celeste de Deus, Jesus ou santo poderoso. Mas o principal sustentáculo da fé não são as regras de Jurupari e, também, não é a Bíblia: é o Hinário, onde os tópicos são versificados e cantados nas reuniões de adeptos do Santo Daime, e oferece a sua mensagem, de forma sistemática, de modo que os cantos passam a formar um compromisso de lei, que avança para um sistema de catequese religiosa. Parece-me que não se pode falar em sincretismo, que é uma instrução religiosa sobre outra já existente. Não foi o índio que misturou os santos católicos aos seus ritos mágicos, e também não foi uma seita católica que, posteriormente, aceitou a intromissão de padrões mágicos forâneos. O Santo Daime começa com as visões produzidas pela ingestão da huasca, de uso de índios fronteiriços, que a transmitiram, talvez, por intermédio dos Kaxinawás, que tinham a mania, nos seus festejos, de mastigarem o “nixpô”, que lhes enegreciam os dentes. O problema da bricolage, baseado em Strauss, se aplicado, parece-me irrelevante. Não há evidência de que um determinado culto indígena aceitou a superposição ou a justaposição de ritos de origem adventícia. Por outro lado, não havia um culto católico instituído que viesse, posteriormente, agregar ritos mágicos indígenas. Temos de partir do existente antes, para observar os seus revestimentos posteriores. O que vemos no Santo Daime é um culto que já nasce impregnado da cultura indígena e da cultura colonizante, e que passa a existir e a funcionar com um corpo institucional já definido. Uma seita, por exemplo, protestante ou espírita, 68
já com tradição de funcionamento, incrustada de santos católicos ou devoções monoteístas que recebessem um agregado mítico-indígena, e a ele se fundissem num estado cultualista, estaria dentro do campo analítico da bricolage. O Santo Daime, não. Se amanhã for notado que o Santo Daime está lidando com alfaias típicas da Umbanda, aí sim, o superposto seria incluído em regime de bricolage, porque se a aceitarmos no Santo Daime atual, este perderia a sua tipicidade acreana. A fusão do feiticismo indígena com os relevos católicos não alteram, de um lado, os ritos indígenas autônomos, assim como não alteram os ritos católicos usuais. As duas sociedades religiosas continuam isentas de camadas distorcivas cultualistas. As primeiras insuflações do Santo Daime foram baseadas na bebida Jagube (huasca), da mesma série caapi. Usaram-se os instrumentos típicos (maracás), que conduzem ao tapete vibratório. A visão maior e mais comunicante foi a de uma entidade considerada santo e as mensagens que se baseiam em Deus, Pai Eterno, Jesus Cristo, Virgem Maria, São José, como senhas invocatórias que se misturam a outras entidades, que escapam da galeria cristã e arrolam um “rei Titango”, um “rei Agarrube”, um “rei Tintuma”, tudo tendo como palco não o céu, mas a floresta. Mesmo que se quisesse encontrar relações do Santo Daime com o catimbó nordestino, teríamos que considerar menos artifícios no santo Daime, porquanto se instala tão somente com duas alças sólidas: os santos católicos e as deidades florestais. E, temos ainda a observar que o Santo Daime, sejam quais forem as origens do nome, é algo igualmente típico no santuário rural acreano. É uma figura nova, incorporadora de poderes, que tanto podem vir de Deus e dos Santos, como dos reis caboclos da floresta. Dentro deste painel, portanto, não temos dúvida em afirmar que o Santo Daime, a partir de um fenômeno regressivo de categorias econômicas antagônicas, representa um estado típico devocional, ao lado de um homem de novo tipo: o acreano. 69
O cidadão Irineu Serra
Q Antonio Alves (Jornalista e representante do Alto) Santo
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uando começamos a organizar o seminário de políticas públicas das comunidades tradicionais da ayahuasca, minha principal preocupação era que seguíssemos velho costume das reuniões desse tipo: passar três dias reclamando das “carências” e ao final fazer uma lista de reivindicações ao governo. A política assistencialista, tão antiga a ponto de parecer a única possível, há muito já deu mostras de sua insuficiência. E essas comunidades tem uma história de autonomia que as torna capazes de oferecer ao Estado critérios para ações gerais, aplicáveis a toda a sociedade, não apenas às suas necessidades específicas. É bom esclarecer, desde já: nem só de autonomia é feita a história das comunidades, as da ayahuasca e todas as outras, mas de combinação e alternância entre as iniciativas próprias e a “ajuda” dos governos. Também não quer dizer que não existam reivindicações; elas são muitas e tem sua importância. Mas o que eu temia não aconteceu. O que houve, de fato, foi um diálogo para definir prioridades e dividir responsabilidades. Há coisas urgentes e outras que podem esperar um pouco, há coisas que cabem ao Estado e outras à comunidade. O governo do Estado e Prefeitura de Rio Branco foram respeitosos e enviaram seus secretários e dirigentes de órgãos públicos. As comunidades aproveitaram a oportunidade de serem ouvidas com atenção. Talvez o documento final, muito sintético, não revele a riqueza do debate. Mas vi de perto, pois participei em quase todos os momentos, que desde os informes de cada área (saúde, segurança, educação etc.) até as discussões em cada tema conseguimos um diálogo profundo e abrangente. Em alguns assuntos, mais avanço e entendimento. Em outros, permanecem indefinições. Exemplo de avanço: a legislação estadual sobre colheita e transporte dos vegetais necessários à preparação da ayahuasca, que estava sendo elaborada há mais de dois anos, finalmente recebeu o impulso necessário à sua aprovação pelos conselhos de meio ambiente e florestas. Ainda há de
mudar e ser aperfeiçoada, mas já é um bom começo. Exemplo de indefinições: a política de estímulo ao turismo não encontra boa acolhida nas comunidades mais antigas, que se sentem incomodadas com uma exposição muito intensa. Pensei bastante sobre o sucesso desse seminário. Por que as comunidades da ayahuasca conseguem fazer isso? Acho que tem duas coisas: primeiro, o momento atual vivido por aquelas que nós chamamos de comunidades tradicionais, que se reuniram para propor esse seminário. Nos últimos anos, elas experimentaram uma afirmação perante a sociedade, estruturaram suas casas de memória, cuidaram de seu patrimônio, expandiram suas atividades. Até mesmo o noticiário nacional desfavorável, com os problemas ocorridos nas grandes cidades, estimularam as comunidades do Acre a darem uma espécie de resposta, como se tivessem sido tocadas em seus brios. É como se dissessem “nós não somos isso que andam dizendo, nós somos gente respeitável, nossa historia é antiga, nossa comunidade é estruturada, nossa gente é pacífica, trabalhadora, ordeira”. Mas há outra coisa: o lastro que as comunidades da ayahuasca tem para dar essa resposta. O Alto Santo e a Barquinha surgiram nos anos 30 e 40 do século passado. A União do Vegetal, que é mais recente, instalou seu primeiro núcleo no Acre há quase 40 anos. Esses centros e outros que deles derivaram tem uma bonita história, semelhante às de tantas outras comunidades amazônicas mas, ao mesmo tempo, marcada pela autonomia de um povo que se acostumou a realizar prodígios contando apenas com suas próprias forças. Os mestres fundadores dessas comunidades tinham um trabalho voluntário muito grande em seu redor. Sob sua liderança, principalmente no Alto Santo e na Barquinha, que são mais antigas, tudo era feito na base do adjunto. Quando decidiram construir uma sede ou uma igreja, foi por iniciativa própria, sem pedir ao governo. Tinham madeira, paxiúba, palha, sabiam fazer cavaco, tijolo, telha. Juntavam o trabalho de gente sem muita escolaridade mas com diversos conhecimentos práticos da vida na floresta e na cidade. 71
São muitas as lembranças de uma longa história, que hoje vai sendo registrada pelos descendentes dos “antigos”. Andei escutando algumas e até vi uma parte dessa vida rural que ainda predominava nos anos 80, quando cheguei ao Alto Santo e conheci da casa do Mestre Irineu, de quem tanto ouvi falar em minha infância. Não tinha luz elétrica, a estrada fechava no tempo das chuvas, quase não havia casas de alvenaria. Mas a simplicidade e até pobreza material era vivida com um notável sentimento de honra. Pessoas comuns, como as que se encontra em qualquer bairro pobre ou vila, traziam nos gestos e nas palavras a consciência de que eram portadoras de uma história e uma memória de grande importância. Não se sentiam pobres ou carentes, mas plenamente cidadãos.
Cidadania no Alto Santo Uma das características dessa cidadania, que encontrei no Alto Santo, era a persistência de uma memória política que, de início, associei a um certo conservadorismo. A comunidade parecia não ter muito contato com os governos da época e mantinha como referencial político os líderes e autoridades das décadas de 50 e 60. A idéia de boa prática de governo e de boa política ainda estava associada aos nomes de José Guiomard dos Santos, Manoel Fontenele de Castro e outros antigos amigos do Mestre Irineu. Mas o que parecia ser um sinal de atraso da comunidade, de ligação com uma política muito conservadora, do tempo do coronelismo, era na verdade uma reserva de valores e conceitos de honestidade, de lealdade, de aproximação e respeito entre o governante e a população. Era uma mentalidade mais conservacionista do que conservadora, porque se tratava também de preservar valores que a política contemporânea parecia ter perdido, principalmente pela generalização da corrupção. Os governantes da época não tinham a mesma dignidade e autoridade moral dos governantes do passado. Esse saudosismo sustentava uma forma sutil de resistência, não contra os 72
governos ou o Estado, mas contra a dissolução ética que dominava os novos tempos. Percebi uma orientação clara, expressa até em documentos, para que se registrasse as datas históricas, se cultivasse o civismo, se respeitasse a bandeira e os símbolos nacionais. Havia mesmo um certo gosto por solenidades, homenagens, em que os oradores se expressavam numa linguagem veemente, sem deixar de manter a elegância. Na minha visão, aquilo era um modelo que vinha da década de 50. Recentemente – aliás, justamente durante uma solenidade-, comentei com o historiador Gerson Albuquerque, que se mostra sempre tão incomodado com formalidades, que eu situava nessa época, a década de 50, a formação de um modelo institucional que ainda hoje é muito forte nas comunidades do Daime. É uma estrutura simbólica, que se torna estrutura de discurso e estrutura institucional e acaba configurando um modelo de organização social. Esse modelo, embora traduza os valores de uma época, traduzi também uma certa invenção da comunidade. Foi ela que o criou. Claro, com o símbolos e a linguagem da política dominante, mas também com seu próprio discurso, sua própria simbologia e seus próprios valores. Isso me foi mais ou menos explicado na tese de mestrado do Clodomir Monteiro, o primeiro trabalho acadêmico de pesquisa a respeito do Daime, onde ele narra a formação da comunidade do Mestre Irineu como sendo a formação de uma institucionalidade onde não existiam instituições. A Amazônia era uma terra praticamente sem Estado, as instituições eram muito frágeis, fazia parte do Brasil, mas o Brasil não chegava nela. Então as pessoas tinham que recriar a pátria e criar as instituições. A formação de um centro, uma igreja, uma religião, significava o estabelecimento de uma hierarquia, comportamento, autoridade, relações de respeito e obediência, da própria noção de lei, toda uma série de coisas que se aprende na vida social, no exercício da cidadania. Mas a comunidade não tinha sequer uma escola, nem qualquer outro serviço público, tudo tinha que ser criado por ela mesma. Então a comunidade cria suas instituições. E cria uma cidadania onde ela não existia. E, cá entre nós, acho essa 73
cidadania muito parecia com a idéia que tenho de florestania, porque aquelas pessoas viviam na floresta e davam imenso valor á floresta pois extraíam dela não apenas o seu sustento mas a sua simbologia, seu valores, sua religião, seus sonhos e desejos de futuro.
O Mestre Tudo o que a comunidade realizou e conseguiu ao longo de sua história tem uma fonte de inspiração. É um cidadão brasileiro –agora também reconhecido como cidadão acreano- chamado Raimundo Irineu Serra. O comportamento dele, sua maneira de viver, de agir, de relacionar-se com o governo e com a sociedade em geral, de organizar a sua comunidade e, principalmente, em sua Doutrina religiosa é que estão assentados todos os valores que formaram essa cidadania à maneira do Alto Santo. A história do Mestre Irineu é razoavelmente conhecida. Ele nasceu no Maranhão, no final do século 19 e veio para o Acre quando já se encerrava o primeiro ciclo da borracha, em 1912. Trabalhou como seringueiro na região de Xapuri e Brasiléia e foi nessas matas perto da fronteira com o Peru que ele conheceu a ayahuasca, através dos irmãos Antonio e André Costa. Participou do CRF, Circulo de Regeneração e Fé, a entidade que congregava os irmãos Costa e outros huasqueiros próximos à vila Brasília, hoje Brasiléia. Nesse época ele obteve uma iluminação espiritual com a Rainha da Floresta, que é Nossa Senhora da Conceição: uma doutrina religiosa que ele aprenderia, desenvolveria e ensinaria ao longo de muitos anos. Em seguida ele veio para Rio Branco, participou de uma comissão que demarcou os limites e divisas do território, trabalhou em vários lugares, cidades e vilas do vale do Purus e Acre. Sentou praça na polícia militar no início dos anos 20. Foi aí que ele conheceu Fontenele de Castro, que mais tarde viria a ser uma grande autoridade do Estado, e também vários outros personagens importantes da história e da política do Acre. Na polícia, ele aprendeu a estrutura, a linguagem e a hierarquia militar, que seriam importantes na formação de seu centro religioso e de sua comunidade. Em 1930, deixou o quartel e se estabeleceu como agricultor nos arredores 74
da pequena cidade de Rio Branco, na região onde mais tarde se formariam os bairros da Vila Ivonete, Conquista, Manoel Julião. Nessa época, já começava a ser chamado de Mestre e tornar-se conhecido como curador. Os discípulos começam a se reunir em torno dele e a comunidade foi ficando numerosa. Ele organiza, então, seu centro religioso: fardas, hinos, rituais, calendário de festas e atividades, uma estrutura cada vez mais detalhada. Em 1945, Mestre Irineu transferiu sua moradia para o outra margem do igarapé São Francisco, numa colocação conhecida como Espalhado. Mas ele ocupa a parte mais alta e lhe dá no nome de Alto da Santa Cruz, que o povo abreviou para Alto Santo. Aí a comunidade permanece até hoje. A doutrina de Irineu Serra é expressa em hinos, então as pessoas aprendem a cantar e algumas a tocar instrumentos, especialmente o violão. Precisaram construir uma sede, com bancos, mesas e cadeiras, então tinham que trabalhar como carpinteiros, pedreiros, artesãos. Viviam na floresta e tinham que tratar a saúde com ervas e plantas medicinais. Pra fazer o Daime, tinham que conhecer os ciclos da natureza, saber distinguir o cipó e a folha, os períodos de crescimento e floração das árvores, um complexo conhecimento da floresta e da biodiversidade. Quando quiseram alfabetizar as crianças, o Mestre fundou a escola Cruzeiro e os que eram alfabetizados foram os primeiros professores. Ou seja, o que se forma em torno do Mestre não é apenas uma comunidade de sobrevivência e nem somente uma comunidade religiosa, é um centro produtor de cultura, de formação de saberes. O conjunto de saberes que vão se articulando em torno da pessoa e da vida do Mestre, desenvolvidos por ele e pelas pessoas que participam da comunidade é que fornece a base de um modelo de cidadania. O cidadão Irineu é um cidadão exemplar, porque ele serve de exemplo para outras pessoas também tornarem-se cidadãs. Seu comportamento, expressão prática de sua Doutrina, orienta as pessoas para que não sejam ociosas, respeitem as leis, tenham bons hábitos e costumes moralmente aceitáveis, ou seja, não sejam nocivas à sociedade mas, ao contrário, sejam 75
formadoras de uma sociedade saudável, com valores de honestidade, trabalho, solidariedade e justiça. A esse ideário acrescente-se um detalhe importante, derivado da experiência religiosa e com implicações em todo o sistema de vida: o respeito pela floresta e todos os seres que nela habitam. Dito dessa forma, parece uma proposição geral e abstrata. Mas imaginem os detalhes, as centenas de situações do dia-a-dia. Um dos antigos no Alto Santo me contou de uma ocasião em que sentiu, durante um hinário, uma forte dor na perna. No dia seguinte foi conversar com o Mestre, que lhe deu o seguinte ensinamento: às vezes – disse ele - o homem está trabalhando no roçado e faz uma pausa para almoçar. Quando chega em casa, guarda o terçado fincando-o no galho de uma árvore, por exemplo um cajueiro, e o retira depois do almoço para voltar ao roçado. Ele não repara que ofendeu, sem qualquer necessidade, um ser vivo. A árvore sente dor quando é cortada. À noite aquele homem sente uma dor na perna, ou no braço, e não sabe porque. Quem vive neste mundo tem o direito de cortar árvores pra botar um roçado e sustentar sua família. Mas tem que pedir licença, tem que saber usar de acordo com a necessidade, não deve desperdiçar nem ter intenção de destruir. Foram mais de 40 anos vivendo em comunidade, ensinando e aprendendo, moldando os valores e o comportamento de várias gerações. Em redor do Mestre e sua Doutrina, formou-se um povo com identidade forte e auto-estima elevada, depositário de um conjunto de conhecimentos e habilidades essenciais para uma vida digna –bem superior à mera sobrevivência na pobreza. E, principalmente, um povo portador de uma ética essencialmente cristã: rigorosa e justa e, ao mesmo tempo, generosa e solidária.
O Estado e a política Mestre Irineu e sua comunidade sofreram preconceitos e perseguições. A memória dos mais antigos registra ao menos uma vez em que um destacamento policial chegou à casa do Mestre para prendê-lo. O motivo, 76
entretanto, não lhe dizia respeito: uma mulher, na cidade, havia feito queixa de um de seus discípulos, dizendo que estava tentando seduzir sua filha. O Mestre pediu que os policiais retornassem e prometeu que se apresentaria na delegacia no dia seguinte. Antes, porém, visitou seu amigo Fontenele, comandante da Guarda Territorial, que mandou chamar o delegado e esclareceu o assunto. Situações que evidenciavam o preconceito social, religioso ou racial, foram inúmeras. Mas a comunidade do Alto Santo era formada por pessoas discretas e de bom comportamento, sem qualquer problema com as instituições ou com as leis. E o prestígio do Mestre era crescente. Além do mais, uma comunidade cada vez mais numerosa acumulava crescente importância política numa época em que a população era pequena e as eleições se decidiam por poucos votos. Cada vez mais, os que aspiravam a qualquer liderança política buscavam aproximar-se do Mestre Irineu. O momento privilegiado desse prestígio do Mestre entre as autoridades do Estado iniciou-se na segunda metade da década de 40, quando foi nomeado governador o então Major José Guiomard dos Santos, que mais tarde seria deputado federal, autor do projeto que elevou o Acre à condição de estado, e senador. A história do encontro entre eles é interessante. Dizem que Guiomard, depois de assumir o governo, viu que a margem do rio no centro da cidade estava muito suja, cheia de mato, provocando problemas de saúde pública e segurança. Comentou o assunto com Fontenele de Castro, que disse conhecer a pessoa ideal para o serviço e mandou chamar o Mestre Irineu. Com o Mestre vieram cerca de 40 homens da sua comunidade, começaram o trabalho por volta das 6 horas da manhã e pouco antes das 6 da tarde toda a área do barranco do rio nas proximidades do Mercado Municipal e na rua do comércio estava totalmente limpa. Foram apresentar-se ao governador, dizer que o serviço estava feito. Guiomard desceu as escadarias do palácio e perguntou quanto custava o serviço. O Mestre disse que para ele não precisava nenhum pagamento, talvez algum dos seus companheiros quisesse receber algo, mas todos disseram que também não queriam nada, que tinham 77
trabalhado em colaboração para o governador e o povo da cidade. O Mestre então disse que tinha um pedido a fazer, que gostaria que o governador arranjasse transporte para levar os homens até a vila Ivonete, de onde eles caminhariam pelo varadouro até o Alto Santo. Guiomard providenciou um caminhão para transportá-los. Nesse contato nasceu uma amizade e uma colaboração entre eles. Guiomard passava dias na casa do Mestre, tanto como governador quanto depois, como deputado federal ou senador. Nessas ocasiões, recebia gente que vinha de toda parte, dava audiência, resolvia problemas. O Mestre Irineu lhe dedicava total lealdade política. Votava nele e liderava a comunidade para votar, até filiou-se ao partido dele, o PSD. Era um cidadão de destaque no movimento autonomista, liderado pelo Guiomard, que propunha que o Acre saísse da condição de Território Federal e passasse a ser um estado da Federação. Sua casa era um diretório do PSD e um núcleo do movimento autonomista. Ali se fazia comícios, reuniões, manifestações e campanha eleitoral. Mestre Irineu ia muitas vezes à cidade, convidado a participar de solenidades, ou simplesmente para tratar dos assuntos da comunidade, fazer compras ou vender a produção agrícola no Mercado. Nessas ocasiões, costumava visitar o governador, o Coronel Fontenele, o comandante do destacamento do Exército, comerciantes importantes com os quais tinha amizade, ou seja, tinha um roteiro de contatos políticos e sociais. Essa presença do Mestre Irineu no ambiente político do Estado era freqüente, assim como eram freqüentes as visitas das autoridades públicas no Alto Santo. Prefeitos, governadores, deputados, senadores, secretários e dirigentes de órgãos públicos iam lá não apenas nas campanhas eleitorais, mas em qualquer tempo porque, afinal, ali estava uma comunidade importante em todos os aspectos. Por exemplo, na economia: na década de 50, boa parte dos produtos agrícolas que alimentavam a cidade de Rio Branco vinham da comunidade do Alto Santo. Mestre Irineu Serra faleceu em julho de 1971, no início do governo de Wanderley Dantas. Seu velório durou três dias, com a presença registrada de mais de 3 mil pessoas 78
numa época em que Rio Branco tinha pouco mais que 30 mil habitantes. O governo providenciou transporte para os visitantes e a presença da banda de música da Polícia Militar. A cidade parou no dia do sepultamento. Inicia-se nessa época –alguns notarão o que se pode chamar de coincidência- um momento especialmente difícil para o Acre e sua população, principalmente as comunidades da floresta. Ali começa a que ficou conhecida como “década da destruição”, quando ocorre a venda das terras do Acre para instalação da pecuária, o desmatamento e a violenta expulsão dos seringueiros das terras que ocupavam secularmente, com todas as implicações sociais e culturais que hoje já são bem conhecidas.
A semente do futuro O cidadão Irineu Serra é a base da cidadania que se formou na comunidade do Alto Santo, assim como outros mestres fundadores e lideranças espirituais fornecem modelos de cidadania para suas comunidades. O Acre abrigou inúmeras experiências na formação das aldeias, vilas, cidades, bairros, colônias agrícolas e, mais recentemente, reservas extrativistas e vários tipos de assentamento. Uns tiveram presença efetiva do Estado e das instituições ou organizações sociais, outros nem tanto. Todas as comunidades, urbanas ou rurais, tem algo a dizer ao Estado e à sociedade na definição de políticas públicas que atendam às demandas da população e que sejam adequadas ao ambiente e à cultura. Mas penso que as comunidades da ayahuasca trazem uma contribuição essencial e especial, porque desenvolveram ao longo do século 20 uma história de autonomia e criatividade. Elas elaboraram longamente a respeitabilidade de que hoje desfrutam. Criaram seus próprios valores, noção de organização, códigos de solidariedade, hierarquia, comportamento. Desenvolveram uma ética. No Alto Santo, os bons frutos são evidentes. Por exemplo: seu entorno é hoje o único lugar dentro do perímetro urbano que tem uma floresta razoavelmente preservada, a ponto de alguns anos atrás D. Peregrina, esposa do Mestre Irineu, pedir e ser atendida na decretação 79
de uma Área de Proteção Ambiental (APA), que ao mesmo tempo é de proteção cultural pelo patrimônio histórico existente relativo a origem da Doutrina do Daime. Outro exemplo: o governo queria construir um conjunto habitacional com mil casas nas proximidades. A comunidade disse que não concordava e propôs alternativas: um numero menor de casas e o aproveitamento da área para a instalação de equipamentos sociais: escola, centro cultural, área de lazer etc. As comunidades tradicionais da ayahuasca tem várias parcerias com o poder público em que demonstram sua capacidade de conservar seu patrimônio e sua cultura, expondo-os como modelo para outras comunidades e até como modelo de ação para o Estado. Nós, que vivemos nessas comunidades e convivemos com as memórias dos anciãos, sabemos de onde vem a força que as sustenta. No caso do Alto Santo, vejo a presença e do trabalho permanente de seu fundador, que deu ao Acre boas lições de cidadania. Nesses novos tempos, em que o mundo anda às voltas com os resultados de erros longamente acumulados e com a necessidade de rever seus padrões civilizatórios, não tenho dúvidas de que ainda se pode aprender, e muito, com o cidadão Raimundo Irineu Serra.
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Mestre Daniel: Uma Missão de Amor à Terra
C Francisco Hipólito de Araújo Neto, Presidente do Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus Fonte de Luz”. Rosana Martins de Oliveira, Historiadora e Membro do Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus Fonte de Luz”.
onsideramos a realização do Seminário Comunidades Tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas Públicas para o Acre muito importante, não só por ter debatido e formulado políticas públicas a serem tratadas com o poder constituído, mas também pelo nível de esclarecimento que foi possível construir, a partir deste evento, para os diversos setores governamentais e da sociedade acreana. Nesta oportunidade, foi possível tratar de assuntos cotidianos e de extrema importância para as comunidades. Como exemplo, destaca-se o reconhecimento das Secretarias Estadual e Municipal de Educação, da necessidade de uma atuação conjunta para tratar, de maneira clara, o problema da discriminação nas escolas, onde a falta de informação ou de uma orientação, na gestão, culmina em afirmações equivocadas para as pessoas que participam das religiões, cujo Daime é o sacramento. Ainda relacionado à Educação, tratamos da questão do Ensino Religioso nas escolas, identificando a necessidade de uma orientação de gestão para a preparação de professores específicos para o ensino religioso, buscando corrigir a prática atual, onde cada escola ou professor estabelece o ensino, aplicando a doutrina ou segmento religioso ao qual tem ligação, estabelecendo, para os estudantes, o ensino da religião. Outro aspecto importante foi tratado na área de saúde, com a presença das Secretarias do estado e do município, onde realizamos esclarecimentos sobre doações de sangue, visto que vários irmãos doadores, que já salvaram vidas, foram impedidos de realizar doações quando informavam que tomavam o Daime. Neste aspecto, o Secretário Oswaldo Leal afirmou ser sabedor de que o uso do Daime, especificamente religioso, não traz nenhuma conseqüência danosa para quem o toma, nem para quem recebe sangue, visto que, para ser doador, são necessários vários exames que confirmam a saúde dos que compõem 81
o banco de doadores. E, neste sentido, assumiu compromisso de orientar, administrativamente, os responsáveis pela coleta de sangue para impedir qualquer bloqueio, constrangimento ou discriminação. Tivemos, ainda, diálogo importante com a Secretaria Estadual de segurança, com a qual, entre os temas tratados, tivemos a possibilidade de conversar sobre a melhoria de segurança nos locais (centros), onde realizamos os cultos. E, por fim, um outro destaque importante, sem esquecer as questões de urbanismo e cultura, foi o diálogo com o IMAC, no sentido de formalizar a resolução de controle para a extração do cipó e da folha, matérias primas da produção do Daime, onde produzimos resultados concretos, com consensos formados entre os centros, os técnicos e a Secretária do IMAC, e já estamos, portanto, em fase de aprovação da normatização. Além das conquistas já descritas, o seminário cumpriu, ainda, o papel fundamental de evidenciar aspectos da história e da identidade das comunidades que fazem uso religioso da Ayahuasca, desde o início da formação social e política do Acre. Uma dessas histórias é construída por Mestre Daniel, fundador do Centro Espírito e Culto de Oração “Casa de Jesus - Fonte de Luz”, também conhecida, nos primeiros tempos, como Capelinha de São Francisco. Daniel Pereira de Mattos nasceu em 13 de julho de 1888, na antiga freguesia de São Sebastião de Vargem Grande, no Maranhão. Ainda criança, ingressou como aluno na Escola de Aprendizes Marinheiros, de onde vem a sua formação básica e profissional. Foi na condição de marinheiro que conheceu o Acre, em 1905, embarcado em uma fragata da Marinha de Guerra Brasileira, que trazia o batalhão de paz para guarnecer o novo território brasileiro. Após essa viagem e outras que se seguiram, pela Europa e Jerusalém, repensou os rumos de sua vida e escolheu o Acre para viver, onde construiu boa parte de sua história de vida e trabalho. E, desde o dia 7 de abril de 1907, fez sua moradia “com prazer e amor, como se fosse a terra que me viu nascer, o Maranhão”. Assim afirmava Mestre Daniel. 82
Ele viu a cidade de Rio Branco nascer, pois quando chegou era apenas uma vila, com aproximadamente 20 casas. Trabalhou nos seringais com os líderes da revolução acreana, entre eles o Cel. Plácido de Castro e José Galdino, e também conheceu as recentes trincheiras de Porto Acre. Na década de 20, já se fazia presente como morador da antiga Rua da África (conhecida Rua 1º de Maio), uma das primeiras ruas da margem direita do Rio Acre. Foi no Bairro 06 de Agosto que estabeleceu sua barbearia, bem como na Rua Epaminondas Jácome, na época de sua construção, em 1925. Além disso, vivenciou o crescimento da cidade e acompanhou a realização de várias obras, como: Mercado Público, Palácio do Governo, Quartel da Polícia Militar, entre outras. Tratava-se de um homem extremamente habilidoso, que desempenhava diversos ofícios com igual desenvoltura. Assim, pôde ser barbeiro, sapateiro, marceneiro, carpinteiro, alfaiate, artesão, cozinheiro e músico. Daniel era um grande compositor e intérprete. Tocava em vários estilos, como valsa, choro, marcha e samba, e construía violão, violino e cavaquinho. Era um reconhecido tocador de violão, e dava sua grande contribuição para a sociedade acreana, principalmente nas décadas de 30 e 40, escrevendo e ofertando partituras musicais para a Banda da Antiga Guarda Territorial do Acre, que tocava suas músicas nas retretas da cidade. Sua vida foi de alegrias e dificuldades, como é a vida de todo ser humano. Após vivenciar conflitos, de natureza familiar e problemas de saúde durante vários anos, foi acolhido pelo conterrâneo e amigo, Raimundo Irineu Serra, em 1937, época em que iniciou os trabalhos com a Ayahuasca. Esse encontro trouxe um novo significado para sua existência, visto que os benefícios que Deus lhe concedeu, em cura física e espiritual através da Ayahuasca, estenderam-se a centenas de pessoas desta terra. No ano de 1945, Mestre Daniel funda uma nova prática religiosa no Brasil, unindo, em meio à floresta acreana, tradições religiosas de origem afro e do catolicismo popular, com o uso ritual da Ayahuasca, bebida de origem indígena. 83
Foi na luz do Daime que ele recebeu a revelação de um Livro Azul, que se constituía na orientação de criar uma Missão religiosa baseada no uso ritual da Ayahuasca e no ensinamento da Doutrina cristã, através do Hinário, um conjunto de hinos, salmos e benditos que representam os ensinamentos de Jesus sobre a terra. Nele, estão presentes os princípios éticos e morais que norteiam a doutrina de Mestre Daniel, como a paz, o amor, a verdade e a justiça. Em 1945, Mestre Daniel se estabelece em um pedaço de terra emprestada do compadre Manoel Julião, na Vila Ivonete, que era parte do Seringal Empresa, e constrói uma capelinha de taipa, coberta de palha, e consagra a São Francisco das Chagas, santo de sua devoção. Ele dá, por conseguinte, início as suas obras, que alcançaram os necessitados desta terra. Através de rezas, Mestre Daniel acolhia os caçadores da região que chegavam a sua casa, acometidos, principalmente, de panema; crianças doentes trazidas pelos pais; alcoólatras sem esperança de regeneração; e os doentes do corpo e do espírito, que não encontravam respostas em médicos e, muitas vezes, chegavam carregados em redes, trazidos pelos familiares, para receberem o auxílio de Mestre Daniel. Para cada caso, ele indicava um tratamento: Daime, rezas, chás e banhos com plantas medicinais. Os que se viram beneficiados pelo tratamento e foram tocados no coração, iam ficando em sua companhia para auxiliá-lo nessas obras. Para esses, Mestre Daniel servia o Daime e os doutrinava, através do Hinário. Ao longo dos 12 anos em que passou formando a sua missão, de 1945 a 1958, os resultados dos benefícios por ele praticados eram conhecidos pelos moradores da cidade de Rio Branco. Sua casa tornou-se, desse modo, um centro de peregrinação, onde se praticava romarias, penitências, terços, rosários, homenagens aos santos, batismo de crianças e consagração de casamentos. Em suma, homens, mulheres e crianças foram beneficiados e, ainda hoje, podem testemunhar os auxílios recebidos de suas mãos. Informações de suas obras chegaram ao Palácio do Governo e, por várias ocasiões, Mestre Daniel foi recebido, pelo então Governador do Território do Acre, José 84
Guiomard dos Santos, com quem dialogou, rogando a ele em benefício dos pobres desvalidos e dos doentes deste pedaço de terra. E, ainda, ofertou-lhe diversas partituras musicais, de valsas e marchas em sua homenagem, e de dona Lydia, esposa de Guiomard. Após o seu falecimento, em 1958, os seus discípulos deram continuidade a sua Missão, atendendo e auxiliando a todos que procuravam a sua casa. Em 1963, as obras sociais foram ampliadas, com a criação da Escola São Francisco de Assis I, pelo irmão Manuel Hipólito de Araújo. Na década de 60, o poder público reconheceu o valor do trabalho religioso e social de Mestre Daniel e seus seguidores, concedendo, à casa dele, o título de Utilidade Pública Estadual, através da Lei nº 77, de 25 de outubro de 1966. Em 2003, o Governo Federal, através do Ministério da Justiça, concedeu o título de Utilidade Pública Federal, que tem sido mantido em reconhecimento às obras prestadas em benefício da sociedade, ao longo desses 65 anos. Mestre Daniel comprovou o seu amor a esse Estado, através das obras realizadas por sua casa. E, por isso, obteve – merecidamente - em 15 de abril de 2010, o reconhecimento do Poder Público, com o título de cidadão acreano, cidadania que ele já considerava, quando afirmava o seu sentimento pelo Acre, dizendo: “tive aqui a minha mocidade registrada e bem selada com o selo do patriotismo e do amor à terra”.
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A UDV e as Instituições Hoasqueiras Históricas
O
uso ritual da hoasca, esse chá misterioso que nos une como irmãos espirituais, é uma prática milenar que, ao longo das histórias específicas de diversos povos amazônicos, teve e continua tendo ricos significados, ligados a uma grande variedade de tradições culturais. O próprio chá, que denominamos hoasca, já recebeu diferentes nomes. Quando utilizamos o termo instituições hoasqueiras históricas, queremos enfatizar os esforços dos guias espirituais, que trouxeram o uso do chá para os contextos urbanos, ainda que, inicialmente, restritos a comunidades especificamente caboclas ou negras, como é o caso dos primeiros membros do Alto Santo. Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Matos e José Gabriel da Costa são reconhecidos, por seus discípulos, como: Mestre Irineu, Mestre Daniel e Mestre Gabriel. Esses homens são expoentes em seus respectivos contextos. Tiveram seus primeiros contatos com o Daime ou Vegetal, que são a mesma Hoasca, em ambientes ainda pouco formais que, até então, não seguiam linhas firmes de conduta. Os mestres organizaram rituais, congregaram irmandades e trouxeram orientações cristãs que, combinadas a elementos ligados aos seres encantados da floresta, vêm auxiliando um crescente número de pessoas, das mais diversas proveniências, a lidar com os anseios da vida, trazendo alento, conforto e direção, no sentido da evolução espiritual. Consideramos, portanto, as instituições que esses líderes construíram, como sendo os pilares da institucionalização e reconhecimento, por parte da população nacional e do Estado brasileiro, da legitimidade desta prática, com suas variações rituais. São essas instituições, o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU), ou Alto Santo, aqui representado pelo querido amigo, de tantas jornadas na busca do bem, Antonio Alves, o Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte 86
Edson Lodi Campos Soares Coordenador de Relações Institucionais da UDV
de Luz”, ou Barquinha, representado pelo nosso irmão, Francisco Araújo, e o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Cabendo a mim, falar pela União do Vegetal, discorro com uma breve narrativa que tem, como centro, o nosso Mestre Gabriel. José Gabriel da Costa nasceu em uma numerosa família de treze irmãos, no ano de 1922, no município de Coração de Maria, próximo à Feira de Santana/BA, sendo filho de Manuel Gabriel da Costa e de Prima Feliciana da Costa. Seus parentes contam histórias indicando que, desde pequeno, José Gabriel da Costa já se destacava como alguém especial. Em 1944, integrou o “exército da borracha” e foi para Rondônia, trabalhar como seringueiro. Casou-se com Raimunda Ferreira da Costa, conhecida como “Pequenina”, em 1947. De 1950 a 1958, o Mestre e sua família foram e voltaram dos seringais a Porto Velho, por três vezes. Na terceira vez, quando se preparavam para voltar ao seringal, Mestre Gabriel disse à esposa e aos filhos que, juntos, iriam encontrar um tesouro. Em 1959, no Seringal Guarapari, José Gabriel da Costa bebe o Vegetal, pela primeira vez, recebendo-o das mãos de um seringueiro chamado Chico Lourenço. Mestre Gabriel sempre demonstrou respeito e consideração àquele que proporcionou o seu reencontro com o tesouro que afirmou, posteriormente, conhecer a milhares de anos. Na data de 22 de julho de 1961, é criada a União do Vegetal, religião cujo nome é de autoria de Mestre Gabriel. Até então, o chá era denominado de diversas maneiras, entre elas Cipó, Yajé, Mariri e Daime. Com relação ao Daime, consta que havia, na região de Porto Velho, um grupo ligado ao Mestre Irineu, liderado por um senhor chamado Virgílio. O Mestre Gabriel mantinha boas relações com o Sr. Virgílio, tendo participado de sessões, juntamente com alguns de seus próprios discípulos, em mais de uma ocasião. Também recebeu visitas de participantes daquele centro, tendo feito, inclusive, uma chamada em ocasião, na qual realizou uma 87
sessão da União do Vegetal utilizando um “daime”, recebido de presente. Essa chamada recebeu o nome de “Correi para onde tem sombra”, e faz parte do acervo de cânticos utilizados em nossos rituais. Mestre Gabriel e Mestre Irineu desencarnaram no mesmo ano, em 1971. Como gesto de amizade, D. Peregrina, viúva do M. Irineu, conhecida carinhosamente como Madrinha Peregrina, chegou a ir a Porto Velho, em visita à nossa Mestra Pequenina, viúva do Mestre Gabriel. O autor da UDV sempre se pautou por manter boas relações, não somente com outros líderes hoasqueiros, mas também com a população em geral, e com as autoridades constituídas. Precisou, no entanto, enfrentar algumas dificuldades para que o uso do Vegetal deixasse de ser uma prática relacionada somente a populações indígenas e povos tradicionais da floresta, e passasse a ser aceito em círculos mais amplos, que se pautam pela legalidade dentro de uma ordem nacional. A trajetória da União do Vegetal vem sendo, desde os primórdios, na direção de uma crescente formalização de sua organização sem, contudo, afastar-se de sua linha doutrinária original e de suas raízes caboclas. Temos sempre promovido iniciativas no sentido de esclarecer àqueles que ainda não conhecem suas práticas, que o Vegetal é “comprovadamente inofensivo à saúde”, frase esta que está presente em nossos documentos, desde o primeiro estatuto. Igualmente importante é a “doutrinação reta”, que se encontra em concordância com valores éticos e morais, compartilhados pelos segmentos mais respeitáveis da sociedade envolvente. A UDV, como instituição religiosa, almeja a integração de seus membros, tanto no sentido do equilíbrio físico e psíquico individual, quanto no sentido social. Inicialmente, foi criada a “Associação União do Vegetal”. O M. Hilton Pereira Pinho redigiu o primeiro Regimento Interno, com 16 artigos, autorizado pelo Mestre, mas ainda não foi registrado em cartório. Esse regimento era, simplesmente, denominado de UNIÃO DO VEGETAL. No dia 23 de julho de 1967, um dos discípulos, o M. Cruzeiro (conhecido, atualmente, por M. Florêncio) viajou para 88
Manaus e distribuiu o Vegetal aos seus familiares, em 29 de julho, autorizado pelo Mestre Gabriel, dando início, assim, ao Núcleo de Manaus que, depois, recebeu o nome de Núcleo Caupuri. O Mestre assumiu o compromisso de visitar Manaus, e o M. Florêncio também tinha o compromisso de visitar Porto Velho - uma vez por ano. No momento da inauguração, em 1971, o Mestre Gabriel profetizou que, de Manaus, a União do Vegetal iria circular o mundo. Desde o início, o Mestre e seus discípulos lutaram contra resistências ao uso do Chá Hoasca. Embora fosse “comprovadamente inofensivo à saúde”, seu uso ainda encontrava preconceitos e arbitrariedades, tanto é que um delegado de Porto Velho chegou a deter o Mestre Gabriel, para fazer averiguações. Esse episódio foi publicado no Jornal Alto Madeira, em outubro de 1967, na narrativa intitulada “Convicção do Mestre”. O Mestre foi preso e solto no dia seguinte, explicando, aos seus discípulos, a missão da União do Vegetal, e lembrando o símbolo da Paz e da Fraternidade Humana, adotado por essa religião: “Luz, Paz e Amor”. A partir deste acontecimento, viu-se a necessidade do registro da Associação em cartório. O M. José Luiz de Oliveira e o M. Hilton Pereira Pinho já vinham elaborando o Estatuto da Associação Beneficente União do Vegetal, mostrando o texto ao Mestre, que lia, fazia as modificações necessárias e aprovava. Deram, então, continuidade ao trabalho, formando a primeira diretoria, em 1º de novembro de 1967, e registrando o primeiro estatuto em cartório, em março de 1968. No ano de 1970, houve outra forte perseguição pelas autoridades, em que o Sr. Rodolfo Ruiz, Chefe de Polícia do Território de Rondônia (equivalente ao Secretário de Segurança nos Estados), declarou verbalmente que a União do Vegetal estava fechada. O Mestre não fechou a UDV, mas demonstrando atenção à autoridade constituída, deixou de atender os adventícios e continuou realizando sessões com os sócios. O M. Monteiro, que estava na Presidência da Associação Beneficente União do Vegetal, 89
constituiu o advogado Dr. Jerônimo Santana, para a defesa dos nossos direitos. E, confiante no seu dever perante a União do Vegetal, propôs Ação perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (O Tribunal competente para o Território de Rondônia, na época). Diante do resultado no Tribunal, iniciaram a elaboração de um novo Estatuto, em que se mencionava o uso do Vegetal. Em 1971, o então Presidente da Diretoria, Conselheiro Adamir, orientou-se, com advogado de Rondônia, de que devia refazer o Estatuto, citando o uso de Mariri e Chacrona na União do Vegetal, conforme consta na redação atual. Em junho de 1971, ocorreu a transformação da Associação Beneficente em Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Com a transformação da Associação em Centro, passamos a destacar, em nossos documentos, que utilizamos o mariri e a chacrona no preparo do chá que utilizamos, reiterando que o Vegetal é, comprovadamente, inofensivo à saúde. Em novembro de 1970, o Mestre precisou fazer uma viagem para tratar de sua saúde. Foi a Fortaleza e, em seguida, visitou sua família na Bahia, depois de 25 anos distante. Voltou, posteriormente, a Fortaleza, passando por Manaus, e em 27 de março de 1971, chegou a Porto Velho. Os discípulos foram recebê-lo, uniformizados, no aeroporto. Nesse dia, houve um almoço festivo com a irmandade e, à noite, uma sessão. Foi a primeira ocasião em que a irmandade do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal se apresentou uniformizada publicamente, ato que demonstra coragem e confiança no Mestre, em pleno período de ditadura militar, quando as manifestações públicas eram proibidas. Atualmente, essa data é consagrada como a Ressurreição do Mestre, na União do Vegetal, sendo a palavra ressurreição utilizada no sentido de renovação. É interessante que, antes de seu desencarnamento, ele passa novamente alguns dias em Manaus em tratamento médico, e lá, enfermo, é carregado nos braços por alguns irmãos, participa de uma sessão, e faz o rosário de chamadas que vinha anunciando há tempos, cumprindo 90
a palavra. De Manaus, viaja para Brasília, onde é sepultado. Tempos depois, a Sede Geral se instala nesta capital e, desde então, a União do Vegetal vem se expandindo no Brasil e em outras partes do mundo, confirmando as palavras do Mestre. Em 11 de julho de 1971, o Bispo de Porto Velho fez algumas críticas à União do Vegetal, em um sermão, na missa de domingo. O Mestre respondeu, através de um artigo, publicado em 16 de julho, no jornal “O Guaporé”, com o título “Velado Enquanto Dorme”. O artigo assegurava que um sócio da União do Vegetal, com 60 dias de frequência na seita, estava livre de vícios, como a bebida alcoólica e o cigarro. Dessa forma, reiterava o compromisso com a boa conduta que faz parte dos ensinos de nossa sociedade religiosa. Desde o desencarnamento de José Gabriel da Costa, em setembro de 1971, os responsáveis pela União do Vegetal, Mestres, Conselheiros e Discípulos, vêm trabalhando para consolidar a posição de legalidade e respeitabilidade pela qual o Mestre se empenhou, de maneira incansável. Com a expansão da UDV para todas as unidades da federação, em nível nacional, bem como os Estados Unidos e a Espanha, vimos sempre prestando os esclarecimentos solicitados pelas autoridades constituídas e conquistando o direito ao sincero exercício religioso. Nesse sentido, é importante ressaltar o empenho por parte dos dirigentes da UDV para, juntamente com os líderes de outras instituições hoasqueiras, notadamente as instituições históricas aqui presentes, estabelecer diretrizes e fundamentos éticos do uso do chá, sempre de forma responsável, ressaltando o caráter ritual e religioso, que deve ser preservado em todas as ocasiões em que se comunga essa bebida misteriosa, que temos como sagrada. Ressaltamos o início formal de uma parceria, entre os anos 1990 e 1991, ocasião em que a UDV, juntamente com outras entidades, elaborou a Carta de Princípios das Entidades Religiosas do Chá Hoasca, assinada em 24 de novembro de 1991. Vimos procurando, desde então, fortalecer a aproximação entre aqueles que têm o mesmo compromisso com a responsabilidade religiosa, trabalhando pela humanidade no sentido de seu desenvolvimento espiritual. 91
História política recente da Ayahuasca no Acre A Ayahuasca não existe na natureza, ela é um produto da cultura. Diferente do Peyote, do Tabaco, da folha de Coca e de outras tantas plantas que se tornaram sagradas e parte da elaboração de diversas e importantes formações sociais ao longo da história da humanidade. A Ayahuasca, Daime, Vegetal, Huni, Kamarãpi - a “liana das almas” de tantas culturas e tantos diferentes nomes - é feito com a mistura de duas plantas diferentes: o cipó Jagube e a folha Chacrona, o que pressupõe, não apenas o conhecimento das propriedades de cada uma, como também a percepção da interação entre ambas. É, pois, marca cultural da Amazônia, impressa no tecido do mundo. Conhecimento antigo, engendrado durante milhares de anos... Presente da floresta à humanidade... Ainda que assim seja, é imprescindível perguntar: qual a imagem que o uso da Ayahuasca tem para o povo brasileiro? Não apenas a imagem superficial, aquela imediatamente acessível a todos os olhos, todas as bocas, mas também a que ocupa um lugar muito mais profundo em nosso imaginário. Uma possível resposta não pode ser obtida de forma breve ou superficial. Só a compreensão da história cultural e política, que tem sido construída pelas comunidades ayahuasqueiras na Amazônia e no Brasil, no último século, pode ser capaz de nos dar uma explicação minimamente confiável. Eis o Breviário... Foram muitas reuniões, mas não conseguimos construir um consenso válido e satisfatório, mesmo havendo boa vontade de todos ali reunidos e tendo um objetivo comum, esse sim, consensual. Estávamos em 2007. As reuniões aconteciam na Assembleia Legislativa do Estado do Acre, com a presença de várias das principais lideranças “políticas” das maiores e 92
Marcos Vinicius Neves Diretor - Presidente da Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil
mais antigas comunidades ayahuasqueiras do Acre, alguns gestores públicos e a coordenação da Deputada Federal Perpétua Almeida. Discutíamos uma nova tomada de posição em relação à postura do estado brasileiro, que ainda insiste em discutir as questões relativas à Ayahuasca, sob a ótica de uma política nacional antidrogas. Parecia óbvia, então, para todos, a incapacidade do governo em encontrar um eixo de discussão que contemplasse, de forma integral, as necessidades das comunidades ayahuasqueiras, tendo em vista os aspectos históricos peculiares do Acre e a liberdade religiosa garantida na constituição brasileira. O fato é que, nos últimos cinco anos, tanto o Governo do Estado do Acre quanto a Prefeitura de Rio Branco, impelidos pelas comunidades, têm buscado desenvolver uma nova abordagem, com caráter prioritariamente cultural e ambiental. Por conta disso, por exemplo, foram abertos diversos processos de tombamento no Alto Santo e no sítio histórico de Rio Branco, foi criada a APA Irineu Serra, foram realizadas ações de fortalecimento do Centro de Memória Daniel Mattos - criado por iniciativa da própria comunidade herdeira da doutrina desse Mestre Fundador - além da criação de outros centros e salas-memória. Ainda assim, foi muito difícil encontrar uma ação consensual que servisse para estender este novo eixo de diálogo também ao Governo Federal. Embora a possível solução já parecesse bastante evidente: propor o reconhecimento do uso da Ayahuasca como patrimônio cultural amazônico e brasileiro, simplesmente ainda não estávamos prontos e, além disso, não tínhamos respostas satisfatórias para as diversas perguntas e questões que se colocavam. Eis o plenário... Nesse meio tempo, teve início o fértil processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco. Pela primeira vez, pessoas das comunidades ayahuasqueiras participavam diretamente do movimento cultural acreano, da mesma forma que muitos outros segmentos que, até 93
então estavam excluídos, se auto-excluíam ou, simplesmente, não participavam mesmo, também se integraram. Foi muito interessante ver daimistas, artistas, líderes comunitários, filhos e mães de santo, militantes, esportistas, turismólogos, roqueiros, metaleiros e forrozeiros, juntos, discutindo um mesmo princípio. Assim nasceu a diversidade, que é mãe desse conselho de cultura municipal de tantos pais e de configuração tão particular. O funcionamento de trinta e cinco câmaras temáticas, somado ao seu diferenciado modelo de auto-representação, possibilitou que as diferenças, apenas recentemente afloradas, aprofundassem-se. Sob esse signo, começou a funcionar a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras, experiência que pode ser conhecida, com maiores detalhes, em muitos dos textos desta publicação1. É importante explicitar que as discussões ocorridas, desde então, nesta Câmara, não só proporcionaram um aprofundamento de temas, conteúdos e conceitos da área cultural, como se tornaram uma referência avançada para outras câmaras menos articuladas ou ativas. Uma surpresa. Afinal, não havia como prever, durante a construção do Sistema de Cultura de Rio Branco, quais das Câmaras Temáticas iriam avançar, quais iriam ter dificuldades, e quais nem chegariam a funcionar plenamente. Logo, a partir de diversos trabalhos coletivos - não sem muita discussão, divergências e contratempos - a Câmara de Culturas Ayahuasqueiras se tornou uma das mais inovadoras e consistentes desse nosso instigante Conselho de Cultura. Eis o calendário... Inesperadamente, a oportunidade. Já estávamos no meio de 2008, mas o aviso de que o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, viria visitar mais uma vez o Acre, a última como dublê de Ministro e Músico, provocou nova reunião, na mesma Assembléia Legislativa, com a mesma composição que um ano antes. 94
E a luz se fez... O consenso aconteceu espontaneamente em torno de um novo arranjo, tão surpreendente quanto longamente cultivado. O pedido de reconhecimento do uso ritual da Ayahuasca como Patrimônio Cultural Brasileiro implicava, e todos tinham consciência disso, que ninguém poderia ser impedido de participar do processo.
1Ver textos de Lílian Amin e João Guedes, entre outros.
Ou seja, provavelmente poderia, novamente, ocorrer uma mistura indistinta de grupos muito desiguais sob o imenso guarda-chuva da “Ayahuasca”, como já havia acontecido em outros fóruns e deliberações do estado brasileiro, com certas conflituosas reuniões do CONFEN. Em alguns casos, isso soava como inaceitável para todos os centros “tradicionais” do Acre. Seria necessário, portanto, propor um processo de registro que, ao tratar dos fenômenos e manifestações sociais e culturais das comunidades ayahuasqueiras, tratasse e compreendesse, de forma distinta, os diferentes. E fazer isso sem se afastar do objetivo central, que é ver as culturas ayahuasqueiras reconhecidas como parte indissociável do tecido social do país, conquistando, assim, o deslocamento da questão da Ayahuasca do Gabinete da Presidência da República/CONFEN, para o Ministério da Cultura. Sabendo, de antemão, que o reconhecimento da dimensão sócio-cultural do uso ritual da Ayahuasca não responderá, automaticamente, a todas as questões relacionadas ao uso recreativo da ayahuasca, ou as suas possíveis aplicações terapêuticas, ou a sua exploração turística e comercial, ou às possíveis abordagens jurídicas, etc. Por conseguinte, estabelece um novo e importante parâmetro de análise para que essas questões possam ser respondidas com mais coerência. Sem resultar, como acontece em tantos casos, em mais preconceito, intolerância ou discriminação de milhares de cidadãos brasileiros que fazem da Ayahuasca um sacramento religioso secular, milenar, amazônico, muito anterior, inclusive, ao próprio estado brasileiro. Aproveitar a presença do Ministro da Cultura, Gilberto Gil, histórico representante artístico de nossa cultura tropical, florestal, tupiniquim, passou a ser, então, a possibilidade concreta de promover um acontecimento 95
chave, e estabelecer um novo marco na história das comunidades ayahuasqueiras. Essa insuspeita conspiração do tempo possibilitou, assim, que fosse realizada uma singela solenidade (extra à “agenda oficial”) de entrega, ao Sr. Ministro, de um documento assinado por boa parte dos mais tradicionais centros daimistas e do vegetal (já que a UDV também participou de todo o processo), ligados aos três “mestres fundadores”, Irineu, Daniel e Gabriel. Naquela noite especial, ali no velho Alto Santo, de Mestre Irineu e Madrinha Peregrina, o nosso Gil (desculpando-me pela intimidade com o então Ministro, mas guiado pela força do costume de fã), recebeu mais que um pedido de abertura de um processo burocrático pelo paquidérmico estado brasileiro. Ele recebeu um documento que atesta o acordo/pacto celebrado pelas “Comunidades tradicionais da Ayahuasca” para, junto com os outros campos ayahuasqueiros da sociedade brasileira, lutar pelo pleno reconhecimento de seus legítimos direitos culturais e religiosos. Um movimento em direção ao estado brasileiro, iniciado em 1991, com a elaboração da primeira carta de princípios das comunidades ayahuasqueiras ou, antes ainda, quando, em meados dos anos 70, chegou, por vias transversas, a certos novos baianos tropicalistas, uma garrafa do Daime de Mestre Irineu. Vai saber?!?! Um momento apenas, mas longo e profundo, como a própria noite dos tempos. Uma ocasião pra não esquecer. Eis o seminário... Mas, como já disse Caetano, “a vida não se resume a festivais” e, no Acre, as questões do Daime estão relacionadas diretamente a muitas e distintas dimensões da vida social, exigindo dos poderes públicos respostas adequadas e eficazes. Vida real, cotidiano, ruas, casas, praças, escolas, hospitais, repartições, enfim... Logo, as discussões da Câmara Temática explodiram (no bom sentido) para muito além da cultura (em seu sentido tradicional). E começamos a articular a ligação das 96
2Ver
o texto da Relatoria de Meio Ambiente, de Thiago 3Ver
o texto da Relatoria de Saúde, de Francismar Leão 4Ver
o texto da Relatoria de Educação, de Rosinha
5Convite realizado durante o Curso de Formação em Educação Indígena promovido pela Secretaria Estadual de Educação, no município de Plácido de Castro, que contava com a presença de mais de 250 professores de diversas etnias do Acre e Sul do Amazonas.
6Educação, saúde, segurança pública, meio-ambiente, cultura, turismo.
diversas iniciativas paralelas, que estão em pleno curso, num só movimento. Ao grupo que vem discutindo, nos últimos três anos, com o IMAC, a questão da regulação ambiental para extração e transporte de cipó e folha2, reuniram-se profissionais da saúde, que seguem lutando para pôr fim à discriminação de doadores de sangue3; além do pessoal da educação4 , preocupados com o fato de que nossas escolas continuam privilegiando as manifestações religiosas das maiorias dominantes, tratando, assim, com desrespeito e desconhecimento, a fé das minorias étnicas ou religiosas do nosso estado. Assim, surgiu na Câmara Temática a proposta de realizar o “Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas Públicas para o Acre”, a fim de que pudéssemos discutir todos os problemas e questões pendentes das comunidades em relação ao Estado e suas políticas públicas. Além, é claro, de avançar com as discussões de viés cultural e político. Um seminário proposto e realizado pelas comunidades ayahuasqueiras de Rio Branco, mas aberto para os povos indígenas5, bem como para todos que ali quisessem estar. E o resultado foi extraordinário. Na sua abertura, mais importante que a presença de diversas autoridades públicas dos poderes executivo, legislativo e judiciário, foi um inédito encontro ecumênico (com participação de representantes católicos, evangélicos e mães-de-santo) organizado a partir do consistente trabalho que vem sendo realizado pelo Instituto Ecumênico Fé e Política. Nas sessões temáticas6, através das quais foi organizado o Seminário, foram debatidos os principais problemas da vida cotidiana na Amazônia brasileira e apresentadas propostas para possíveis soluções. Tudo com a presença e a participação de secretários estaduais e municipais relacionados a cada área temática, formando, assim, um consistente mapa para orientar o caminho que continua sendo trilhado pela Câmara de Culturas Ayahuasqueiras do Conselho de Cultura de Rio Branco. Com isso, esta Câmara se tornou a primeira a propor e a realizar um seminário em que foram ampliadas e amplificadas as discussões travadas no cotidiano do 97
Conselho de Cultura. Desde então, outras Câmaras mais ativas (arte-educação, música, literatura, indígenas, etc.), estão seguindo o exemplo e vêm preparando ou realizando uma série de seminários que esperamos ser um passo decisivo na construção do nosso Plano de Cultura, próximo e desafiador objetivo. Por outro lado, o Seminário das Culturas Ayahuasqueiras Tradicionais foi o primeiro grande desafio de discussão pública, sem intermediação direta do estado, auto-regulada e conduzida pelas próprias comunidades, aberta aos diversos centros religiosos da ayahuasca, com todas as suas diferenças e divergências. Mas, talvez, não por acaso, desde então, centros irmãos, que já perderam muito tempo com desentendimentos, por vezes de forma justificada, outras tantas não, agora estão falando e agindo como parte de um mesmo sentido. E isso faz uma grande diferença, porque prova que o consenso (ou a pactuação política) até aqui alcançado, não só é real, como está proporcionando novas ações conjuntas, algumas inesperadas e surpreendentes, como a recente reforma coletiva (ou em “adjunto”, como se diz por aqui) do Túmulo de Mestre Irineu, no Alto Santo. Eis o inventário... Enquanto, no Acre, nós seguíamos discutindo os rumos da vida, o IPHAN - a quem coube dar andamento ao pedido feito pelas comunidades tradicionais ao Ministro da Cultura - submeteu todo o farto material bibliográfico que enviamos à sua Câmara Temática do Patrimônio Imaterial, para receber um parecer antes de ser submetido ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, a quem cabe a deliberação pelo registro ou não do “Uso ritual da Ayahuasca” como patrimônio imaterial da cultura brasileira. E, como era de se supor, já que isso faz parte do “modus operandi” do IPHAN, foi solicitada a realização de um inventário das manifestações culturais ayahuasqueiras para que o processo possa ser corretamente apreciado pelo Conselho. Afinal, não se trata apenas de registrar e pronto. É preciso saber o que registrar. A música que permeia todas as diferentes tradições? O feitio do chá, os 98
fardamentos, a rica iconografia e seu inerente simbolismo? Faz-se necessário responder, enfim, quais são as expressões culturais que caracterizam as comunidades ayahuasqueiras. Quais são seus elementos comuns e suas diferenças. Mas, também, em que livro estes bens culturais devem ser registrados? No livro dos lugares, no dos saberes, no das celebrações ou no livro das formas de expressão, como consta da legislação vigente. E, uma vez respondido isso tudo, ainda há que se responder quais as salvaguardas necessárias para garantir a proteção, manutenção e a promoção deste patrimônio cultural e que deverão passar a ser obrigações do estado brasileiro. Caso a solicitação seja aprovada, é claro. Diante dessa infinidade de questões e definições necessárias para o registro da Ayahuasca, torna-se evidente que a realização do Inventário sobre o uso cultural, ou ritual, da Ayahuasca, só é possível a partir de uma ampla e efetiva participação das comunidades ayahuasqueiras, que são as principais interessadas e afetadas por essa ação. E, por sua vez, sob a orientação desta participação política, todas as instituições públicas envolvidas no processo terão que desenvolver um claro e inequívoco reconhecimento da enorme diversidade das manifestações culturais relacionadas às práticas e aos rituais ayahuasqueiros, compreensão essencial para uma correta e equilibrada identificação das referências e bens culturais que são relevantes e que, por conseguinte, terão que ser considerados no registro da Ayahuasca como patrimônio brasileiro. Portanto, o ponto de partida que, acreditamos, também poderá ser o da chegada (tal qual estrada de seringa), passa pela diferenciação dos três grandes campos ayahuasqueiros, através dos quais o inventário deverá ser realizado. Eis o cenário... Ainda não se sabe, ao certo, onde e quando surgiu o conhecimento cultural da Ayahuasca. No mesmo sentido, hoje, não sabemos quantos ayahuasqueiros existem no Brasil. Como discutir sobre algo que nem conhecemos e nem entendemos? Para tentar organizar essa aparente 99
confusão, as instituições responsáveis pela construção da uma pré-proposta de inventário7 estão trabalhando, através da identificação preliminar de três grandes grupos, ou “campos ayahuasqueiros”, e da convicção de que o inventário deve ser, em grande medida, orientado e realizado pelas próprias comunidades. Com isso, estamos buscando compreender a atual realidade, tanto no que diz respeito às praticas rituais diversas, que podem ser milenares, seculares ou muito recentes, como apontar manifestações culturais não religiosas, que têm grande importância e influência, também, sobre a história de muitas comunidades, segmentos sociais e cidadãos brasileiros. Ressaltando que esta é apenas uma proposição de possível recorte de caráter cultural e histórico, ainda impreciso e sujeito à análise e alteração pelas comunidades usuárias da ayahuasca. 1 - O “Campo Originário” da Ayahuasca é o mais antigo de todos. Algumas informações indiretas da arqueologia tentam situar sua origem por volta de 2.000 antes do presente. Mas esses estudos ainda são superficiais e inconclusivos. O fato é que suas práticas se encontram em plena vigência, entre as dezenas de atuais grupos indígenas da Amazônia. Na verdade, existe um grande “arco panamazônico” de ocorrência do uso da Ayahuasca, que começa ao sul, na Bolívia, segue a leste, por Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima, e a oeste, pelo Peru, Equador, Colômbia e Venezuela. No Panamá, por conseguinte, fecha-se a extremidade norte do “arco ayahuasqueiro”. Esta é, exatamente, a região dos formadores da bacia Amazônica, ponto de contato entre os Andes e as terras baixas do grande “Rio de Las Amazonas”. Região de uma floresta muito variada, a mais rica em biodiversidade dentre todas as outras configurações bióticas da grande floresta, área de povos tribais de diferentes troncos linguísticos8 que estabeleceram uma extensa rede comercial e cultural que conectava, desde os povos do Altiplano Andino, até os grupos indígenas das florestas da “Montana” e das “Terras Baixas”. Em síntese, pode-se dizer que o “Campo Originário” é milenar e mega-diverso: multilinguístico, plurinacional, 100
7Fundação
Garibaldi Brasil, Fundação Elias Mansour, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Ministério da Cultura.
8A esse respeito ver: LUNA, L. E. Vegetalismo:Shamanism among the Mestizo Population of the Peruvian Amazon, Stockholm, Sweden, Almquist and Wiksell International, 1986, pp. 167 –170 (Appendix 1) - Referência gentilmente fornecida por Bia Labate.
panamazônico, com origem e rota de difusão ainda desconhecidas, mas, indubitavelmente responsável pela criação e transmissão deste sofisticado conhecimento para a sociedade contemporânea e pós-moderna em que vivemos. Por outro lado, as diferentes experiências indígenas terão que ser avaliadas, não só em suas características originais, mas também em relação aos impactos e mudanças que essas práticas culturais vêm sofrendo atualmente. É inevitável, portanto, o reconhecimento das marcas dos últimos cinco séculos de pressão e opressão contra os milenares conhecimentos mágico-espirituais ameríndios. 2 - O “Campo Tradicional” (ou tradicionalista) da Ayahuasca surgiu na Amazônia Ocidental - tríplice fronteira entre o Brasil, a Bolívia e o Peru - no início do século XX. Seus “mestres fundadores” operaram, não sem problemas e grandes dificuldades, é bom que se diga, a transposição das práticas ayahuasqueiras dos grupos indígenas originários para o mundo dos “cariús”, os “não-índios”, neste caso, brasileiros da Amazônia Ocidental. Entre 1912 e 1920, Raimundo Irineu Serra e os irmãos Antonio e André Costa, todos negros maranhenses, aprenderam a usar a ayahuasca e agregaram, a ela, um profuso conjunto de símbolos e ritos cristãos e afrobrasileiros. Começava, assim, a tradução do uso individual e esporádico para uma utilização coletiva, com caráter religioso e curativo, em uma sociedade que vivia sem a presença do governo, da igreja ou da medicina formal. Enquanto os irmãos Costa seguiram uma experiência religiosa isolada, que terminou por volta dos anos 40, na cidade de Brasiléia, alto rio Acre, e em Rio Branco, médio rio Acre, Irineu Serra, a partir de 1935, e o também negro maranhense Daniel Mattos, algum tempo mais tarde, deram início ao estabelecimento de um trabalho religioso - como rezadores, curadores e orientadores espirituais - na periferia rural da capital acreana. Com o tempo, formaramse, em torno destes dois mestres fundadores, comunidades de trabalhadores que passaram a professar uma religião cabocla, marcadamente cristã, mas também difusamente indígena, negra e espírita: o Alto Santo de Mestre Irineu e a Barquinha de Mestre Daniel. 101
Começava, assim, uma longa história de resistência contra a opressão socioeconômica e o preconceito, em que se alternaram episódios de intolerância e momentos de reconhecimento e legitimação por parte das autoridades constituídas. Uma trajetória cultural intensamente vivida no Acre, não só pelos “daimistas” como por toda a sociedade local, nas últimas nove décadas (e se alguém achar isso muito pouco, é importante lembrar que o próprio Acre tem apenas cento e seis anos de existência). Paralelo a isso, em Rondônia, ao final dos anos cinquenta e início dos sessenta, Gabriel Costa, baiano de origem, soldado da borracha por imposição, viveu um processo muito semelhante ao dos dois mestres já citados, entretanto, com matrizes simbólicas e rituais bem distintas, apesar dos possíveis contatos que aconteceram entre Gabriel e Irineu. Surgia, assim, a União do Vegetal, terceiro tronco ayahuasqueiro caboclo, brasileiro, amazônico. Nesta abordagem, consideramos que o período formativo das práticas rituais desse campo ayahuasqueiro, encerrou-se em 1971, ano em que morreram os Mestres Irineu e Gabriel (Daniel já havia morrido em 1958) e que, por uma estranha coincidência, foi também o ano em que o Acre, Rondônia e a própria Amazônia brasileira haveriam de mudar radical e definitivamente. Desde então, consolidou-se o “campo tradicional” da ayahuasca, constituída por todas as comunidades tradicionalistas, estritas seguidoras das doutrinas do Daíme ou Vegetal, como estabelecidas por seus três “mestres fundadores”: Irineu, Daniel e Gabriel. Um campo que vem crescendo, de forma consistente, nos últimos anos, mas sem fazer dessa expansão um objetivo em si. 3 - O “Campo Neo-Ayahuasqueiro” (ou Eclético) é o mais recente, tem cerca de 40 anos de desenvolvimento. Mas é, talvez, o mais numeroso de todos, já que está, hoje, presente tanto no Brasil quanto em diversos outros países da América e da Europa. Ao passo que é, também, muito provavelmente, o campo de expansão mais acelerada. Este campo foi iniciado por um outro “Mestre Fundador”, o Padrinho Sebastião Mota, também no Acre. De certa forma, essa expressão religiosa poderia até ser 102
vista como parte do tronco do Alto Santo, porque, inicialmente, o Padrinho Sebastião também seguia estritamente a doutrina de Mestre Irineu. Entretanto, o processo social, histórico e político da Amazônia brasileira já era completamente diferente e exigiu, desta comunidade, novas e distintas respostas que resultaram numa outra configuração ritual e simbólica que, na prática, tornou-a fundadora deste novo “campo ayahuasqueiro”. Quando Padrinho Sebastião saiu do Alto Santo, após a morte de Mestre Irineu - fundando a colônia Cinco Mil e, mais tarde, o Céu do Mapiá - o Acre e Rondônia haviam se tornado regiões de grandes conflitos e crise social profunda. A ditadura militar transformou a Amazônia em área de expansão desenfreada da fronteira agrícola. Agora, o grande “negócio” era devastar a floresta, vender a madeira e plantar gado e soja. Resultado: grilagem de terras, expulsão de famílias da floresta, importação de trabalhadores sem terra do sul do país, assassinatos, corrupção, explosão populacional das cidades, convulsão social, etc.etc.etc. Entretanto, na Amazônia Ocidental e, em especial, no Acre, ocorreu uma forte resistência que, em grande medida, era eminentemente cultural e se expressou de diferentes formas. Enquanto seringueiros resistiam “empatando” a derrubada da floresta, índios rompiam com os “marreteiros”, intelectuais locais publicavam denúncias e faziam músicas de protesto, as comunidades tradicionais da ayahuasca se fecharam em si mesmas, sentindo-se, mais uma vez, ameaçadas pelo desconhecimento dos poderosos da hora, que eram “de fora”. Já o Padrinho Sebastião Mota e sua comunidade se abriram a uma parte dessa nova leva de migração das grandes cidades brasileiras do sul para a distante e exótica fronteira do Brasil. É bom lembrar que a década de 70 englobou os anos da contracultura, do amor livre, de Woodstok, do desbunde geral, e de novas formas de religiosidade “esotérica”. Enquanto ensinava o conhecimento amazônico da ayahuasca aos visitantes, Padrinho Sebastião também adquiria novas práticas e elementos culturais que, até então, A partir dos anos 80 abriu-se, portanto, um canal de diálogo direto entre uma comunidade ayahuasqueira amazôni103
não faziam parte das doutrinas tradicionais. Em especial, a decisão de utilizar outras “medicinas sagradas”, além da ayahuasca, em seus rituais e simbologia. Neste tempo, além dos fazendeiros e grileiros que invadiam o Acre e Rondônia, alguns integrantes das elites intelectuais e artísticas dos grandes centros urbanos começaram a peregrinar ao Acre e a professar o uso da ayahuasca no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília, o que resultou numa radical expansão da agora chamada doutrina do “Santo Daime”. A partir dos anos 80 abriu-se, portanto, um canal de diálogo direto entre uma comunidade ayahuasqueira amazônica e segmentos das classes médias e altas urbanas que começaram a influir, não só na reconfiguração gradativa da doutrina de Padrinho Sebastião Mota, como também num fenômeno ainda mais recente: a proliferação de novas denominações e práticas religiosas, muito mais variadas, que passaram a incluir, de uma forma ou outra, o uso da Ayahuasca. Atualmente, existem centenas de igrejas espalhadas por todo o Brasil e diversos outros paises. Elas têm as mais distintas configurações. Algumas seguem elementos doutrinários do Padrinho Sebastião, com o acréscimo de algumas novas características, outras dizem seguir os ensinamentos dos Mestres Irineu, Daniel ou Gabriel, mas divergem em seus rituais e práticas, enquanto outras fazem misturas completamente inusuais e dissociadas do que foi legado pelos “mestres fundadores”, mesclando yoga, meditação transcendental, esoterismos diversos, umbandaíme, taoísmo, medicina alternativa, etc., etc., etc. E, mesmo que estas novas configurações místicas ou religiosas constituam formas de expressão tão legitimas quanto quaisquer outras, são claramente distintas daquelas estabelecidas pelo campo dos ayahuasqueiros tradicionais. Torna-se, assim, evidente, que o reconhecimento das grandes diferenças existentes entre os três “campos ayahuasqueiros” podem possibilitar a união e uma construção coletiva que contemple a todos os ayahuasqueiros. 104
Eis a sintaxe, uma proposta de vocabulário... Sinceramente falando, então. Hoje, os índios argumentam que a ayahuasca é deles, e que os não-índios deveriam pagar royaltis para eles, por sua cultura estar sendo usurpada. Os tradicionais, por conseguinte, acusam os neo-ayahuasqueiros de desvirtuar princípios fundamentais deixados pelos mestres fundadores. E os neo-ayahuasqueiros, por sua vez, criticam o governo brasileiro por tratá-los com preconceito e intolerância. Ou seja, todos reclamam de todos e pouco se conversa. E, é por isso que neste texto tanto insistimos sobre a necessidade de que a proposta de um arranjo específico para o inventário da ayahuasca seja, na prática, uma “pactuação política”. Um entendimento semelhante ao que, recentemente, ocorreu entre as comunidades tradicionais, como descrito acima, e que resultou na iniciativa de propor um “olhar cultural” para as questões legais relacionadas à ayahuasca no Brasil. Uma pactuação política entre originários, tradicionais e neo-ayahuasqueiros que estabeleça, além de uma motivação comum, também o respeito pelas diferenças e pela necessidade de todos, um dia, falarem a mesma língua... a antiga linguagem (linhagem) cultural revelada pelo “vinho das almas”. Eis o Confessionário... Hora de voltar à pergunta: Qual mesmo a imagem do uso cultural da Ayahuasca para o povo brasileiro? Certamente, uma imagem ainda imprecisa, mas fruto de uma milenar mistura de ingredientes especiais: fogo, água, cipó Jagube cortado e batido, folhas limpas de Rainha, arte de quem faz, índios - muitos e diversos, negros fugidos ou desterrados, europeus e sua vasta descendência de mestiços, árabes e orientais de todas as cores, caboclos de tantas incertas origens. Misteriosa mistura de alquimias e rituais antigos... há muito curtidos em fervura branda para não desandar... Este é o trecho da história que tenho presenciado e o que compreendo dele... 105
A Força da Organização, da União
C
om a implantação do Sistema Municipal de Cultura, no final de 2007, que estabelece diretrizes para as Políticas Municipais de Cultura, a Fundação Garibaldi Brasil - órgão gestor do Sistema - com maestria tem coordenado a mobi-lização de diversos segmentos da sociedade, incentivando, fortalecendo e preservando as diversas manifestações cul-turais, democratizando o acesso aos bens culturais, estimu-lando e fornecendo apoio na organização de grupos e associações em suas mais variadas manifestações. Neste contexto, foram criadas as Câmaras Temáticas, se não me engano no total de 34, entre as quais a Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras, que são espaços de diálogos, pactuação e formulação de políticas públicas para cada segmento. Este fórum – Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueira – protagonizou o que poderia se chamar de uma revolução no seio destas comunidades, à medida que passaram a se reunir e a discutir suas dificuldades, necessidades e experiências afins, mobilizando e incentivando a participação de grupos e de pessoas, até então dispersas. Talvez este tenha sido o principal marco delimitador deste processo que, atualmente, vivenciamos no meio ayahuasqueiro, no Estado do Acre. Com a participação destacada de alguns, as reuniões permitiram minimizar, senão eliminar, diferenças existentes, diagnosticando necessidades, valorizando e fortalecendo o necessário intercâmbio de experiências vivenciadas - cultural e espiritual sedimentando a tão “desejada” união e um relacionamento fraterno em nosso meio. Quem poderia imaginar, num passado não muito distante, que estas comunidades – as chamadas tradicionais – que têm, como patronos, os queridos Mestres Irineu, Daniel e Gabriel, estariam unidas, um dia, num processo de alinhamento de amplas discussões visando à satisfação de 106
João Guedes Filho Membro do Centro Espírita Obras de Caridade Príncipe Espadarte Barquinha da Madrinha Chica
suas necessidades comuns. Aqui, faço uma referência ao salmo 133, que sintetiza bem este momento: “Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos!” A idealização, formatação e discussão do curso Agente Cultural das Comunidades Ayahuasqueiras, no âmbito da Câmara Temática, em fase final de execução, face ao ineditismo da iniciativa e dos benefícios oriundos desta capacitação para as comunidades, evidencia o quão podero-sa é a força da organização e da união. O que dizer, então, do seminário realizado nos dias 12, 13 e 14? E da solenidade em homenagem aos mestres fundadores, no dia 15, na Aleac? Acho que a realização do seminário, aliás, grandioso, serviu não apenas para a proposição de políticas públicas do maior interesse para todos nós, que comungamos este sacramento junto ao poder público, mas também para percebermos a importância da mobilização de nossas comunidades em torno de objetivos comuns e, principalmente, a importância e o poder da nossa união e organização. Acho que nós mesmos não sabíamos da nossa capacidade de articulação e organização. A participação efetiva das autoridades constituídas das diversas áreas presentes no processo de discussão das políticas públicas propostas, além de abrir um valioso canal de interlocução com o poder público, em seus diversos segmentos, fortalece e dá, ainda, mais legitimidade às nossas comunidades e práticas religiosas. É claro que isto é só o início, mas é um bom início. O reconhecimento dos diversos segmentos da sociedade e, em especial dos poderes constituídos para com as nossas comunidades, mestres e práticas espirituais legítimas, não têm preço. Enquanto se realizava o seminário, na solenidade na Assembleia, pensei: “Os nossos mestres estão presentes aqui, só podem estar! Eles estão, certamente, harmonizando o ambiente e canalizando luz e inspiração para todos nós”. Preciso, portanto, fazer uma referência elogiosa e de agradecimento à Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil, na pessoa de seu presidente, Marcos Vinícius Neves – competente empreendedor cultural - Eurilinda, Leudes e 107
equipes, pela valiosa contribuição na realização do evento, ajudando-nos no que considero ter sido um sucesso e um “divisor de águas” na existência e relações institucionais desta tradição – As Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. Nossos agradecimentos aos nossos queridos Mestres Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos e José Gabriel da Costa, homens, anjos, profetas - como diria o ilustre deputado Moisés Diniz – construtores de uma tradição religiosa genuinamente acreana, que influenciou e influencia, fortemente, na formação política, social e cultural, moral e ética, não só do nosso estado e de seu povo, mas também da Amazônia e do Brasil. Por este legado, a nossa reverência e gratidão.
Experiência na Construção de Políticas públicas e fortalecimento da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras Liliam Amim
Muitas mãos... Muitos fazeres... Muitas crenças... A mesma fé... A mesma esperança... E o mesmo sonho...
D
epois de tanta angústia e resistência, consigo – enfim - uma inspiração e um pouquinho de coragem para relatar a experiência de construir Políticas Públicas no âmbito cultural que atendessem as comunidades ayahuasqueiras. Esse recorte é preciso e necessário para que possamos contextualizar esta trajetória. A inspiração que falei, inicialmente, representa a realidade que as comunidades ayahuasqueiras vivem, hoje, na consolidação do sonho de discutirmos políticas públicas como os demais segmentos da sociedade, e de sermos reconhecidos, valorizados e respeitados, abandonando, de uma vez por todas, nossa clandestinidade ou invisibilidade social. A resistência e a angústia ocorriam através da sensação que eu vivia ao mergulhar no oceano da memória em busca de elementos e fatos que traduzissem esta experiência, e só encontrar angústias, aflição, desesperanças, solidão e abandono, pois eram esses os sentimentos que se apresentavam no rosto de cada participante, durante a primeira reunião convocada pela Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil – FGB, no início de 2005, para construir a nova face da política cultural de Rio Branco. Hoje, posso traduzir todas as expressões em um único sentimento: incerteza. Também poderia utilizar a 108
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poesia de Gonzaguinha ao cantar: “O que será o amanhã? Responda quem puder...”. Pudera... Depois de décadas de discriminação e negação da existência dessa manifestação religiosa e cultural, por parte não apenas da sociedade, mas também pelo poder público, inicia-se um movimento de aproximação, com um discurso de valorização e respeito. No entanto, “aí é que a coisa ficou feia mesmo”, pois o sentimento de incerteza foi substituído, de imediato, pelo medo. Imagine alguém dizer que te reconhece e te valoriza por tudo que você representa, se essa pessoa ao menos te conhece! Foi assim o início dessa trajetória, todos dominados pela incerteza e pelo medo, acrescido a outros ingredientes, como o isolamento e a falta de diálogo entre as diversas comunidades ayahuasqueiras, ou seja, tínhamos todos os ingredientes para não dar certo como, de fato, no início, não deu. Os motivos? Primeiro, fomos tratados como afrodescendentes pelo simples fato da cor da pele e da ascendência de nossos líderes. Segundo, os índios presentes não se sentiram confortáveis com o cenário, pois os mesmos reivindicaram para si o uso genuíno e exclusivo da ayahuasca. Terceiro, não sabíamos qual era o universo das comunidades que utilizavam a ayahuasca em Rio Branco. Tirando a parte triste, foi bem engraçado! Não perdemos o bonde e, assim, fizemos uma lista de necessidades para o poder público, elencamos prioridades, enfim, não perdemos tempo em pedir, afinal nunca tínhamos tido oportunidade para tal. Por conseguinte, pedimos investimentos em centros de memória, pesquisas e publicações com informações sobre nossa cultura para tentar diminuir a discriminação existente, entre outros. Ao sair da reunião, tínhamos a certeza de que nada daquilo seria levado a sério, então passamos a fazer algumas visitinhas à FGB para verificar o andamento das coisas, iniciando, de fato, o verdadeiro diálogo com a FGB, na tentativa de entender o processo e, quem sabe, ajudálo. Nesse momento, conseguimos ter a participação da FGB em algumas ações, bem pontuais, e bem estratégicas, 110
a fim de apresentar para as pessoas que estariam encaminhando as discussões sobre a política cultural, a nossa cultura e, ao mesmo tempo, apresentando à comunidade essas pessoas e os seus papéis políticos. Acho que começou a dar certo... Então, iniciou o processo de reconstrução da política cultural de Rio Branco, e a participação insistente e firme dos aprendizes ayahuasqueiros dessa nova realidade construiu diálogo e fortaleceu laços entre os diversos e, por vezes, diferentes grupos. Utilizo o termo “diferentes” para esclarecer que os grupos não são apenas diversos, mas também são diferentes, por sua forma de organização administrativa, calendários, rituais e vestimentas, mesmo fazendo uso da ayahuasca. Assim, enquanto a cidade debatia o novo modelo de política cultural, nós também debatíamos como seria a nossa participação nesse processo, e o que ele poderia contribuir conosco. Conseguimos ter, como o primeiro fato histórico desse processo de construção, a participação ativa de diversas pessoas representando as diversas comunidades ayahuasqueiras na 1ª Conferência Municipal de Cultura, em outubro de 2006. A Conferência não pode ser considerada apenas mais um fato na seqüência cronológica de eventos promovidos pelo poder público que contou com a participação dessas comunidades. Por isso, considerei-a como o primeiro fato, pois, foi a partir da aprovação do novo SMC que o uso da ayahuasca, em Rio Branco, passou a ser considerada, oficialmente, como uma manifestação cultural, e mais, com o peso devido e merecido, passou a ser considerada como uma manifestação genuinamente riobranquense. Como a aprovação do referido SMC, a política cultural foi dividida em 3 eixos: Esporte, Patrimônio Cultural e Artes. Cada eixo é composto por CT, espaço de encontro para discussão de política pública específica daquele grupo. Dessa forma, nasceu a CT de Culturas Ayahuasqueiras, parte integrante do eixo Patrimônio Cultural. 111
Superado o primeiro momento de reconhecimento, iniciamos nossa trajetória rumo à consolidação dessa conquista. A regra era não enfraquecer diante do novo desafio: consolidar a CT como espaço de debate, diálogo e construção de políticas públicas entre os diversos grupos ayahuasqueiros e os poderes públicos. As primeiras reuniões sempre contaram com um quórum bastante significativo, porém, em mesma proporção rotativa, ou seja, nem sempre as pessoas que vinham em uma reunião eram as pessoas que participavam da próxima, dificultando, por vezes o andamento e o funcionamento qualitativo da mesma, afinal tínhamos o funcionamento quantitativo. Para melhor esclarecer, passamos uns seis meses, a cada reunião, explicando o processo de criação da CT e seus objetivos, pois o público participante era totalmente diferente. Vale ressaltar, é claro, que ninguém aguentava tamanha ladainha, então decidimos romper com aquela rotina e iniciarmos outro debate, com algo que nos trouxesse uma compreensão da função da CT, através de uma ação mais prática, e, assim, quem sabe, animássemos a turma a participar. Nesse momento, já contávamos com um pequeno grupo fiel, que nunca faltava às reuniões, compostos por: Alencar, Odaísa, Silvana Camargo, Paulo Serra, Antonio Alves e Liliam Amim. Podia fazer sol ou chuva, estávamos sempre presentes às reuniões. Por ocasião das discussões dos Editais do Fundo de 2008, decidimos apresentar um projeto que contemplasse os interesses de todos os grupos representados e participantes da CT. Acordado isso, passamos para a definição de que projeto seria esse, quais os objetivos, o perfil do formador, carga horária, local, enfim, tudo o que era exigido no edital, nós discutimos. Nesse aspecto, não podemos dizer que não fomos democráticos ou que impomos qualquer coisa, afinal, não é para todo mundo a paciência de passar os outros seis meses do ano discutindo um único projeto. Isso mesmo! Só conseguimos apresentar o projeto no ano seguinte. Assim, no ano de 2009, apresentamos à Lei 112
Municipal de Incentivo à Cultura, o projeto Agentes Comunitários Ayahuasqueiros, que tinha, como objetivo, a formação em história oral, e teve início em setembro de 2009. O Curso História Oral, de 60h, ministrado pelo Prof. Dr. Gerson Albuquerque, contou com a participação de 13 Comunidades Ayahuasqueiras, totalizando mais de 45 pessoas selecionadas em suas comunidades. Os participantes eram bastantes diversos com relação as características de idade, formação e atuação profissional. O curso discorreu acerca de conteúdos teóricos e práticos, fazendo a interação entre os conceitos fundamentais dessa abordagem da história com a relação vivida nas comunidades. Podemos afirmar que o curso não contribuiu apenas para a formação desses novos agentes, mas também para o fortalecimento da CT, pois ampliou a compreensão do papel dessas comunidades no processo de construção de políticas públicas destinadas para a manutenção, valorização, promoção e preservação de riqueza cultural, presente na formação história de cada comunidade. Ampliou-se, também, a compreensão da necessidade do fortalecimento da CT, não só por representar o instrumento de construção e definição dessas políticas, mas de, principalmente, representar o espaço de diálogo e interação entre essas comunidades. O Seminário das Comunidades Tradicionais das Comunidades Ayahuasqueiras, ocorrido entre os dias 12 a 19 de Abril, foi um dos frutos do fortalecimento desse espaço. Nele, atendeu-se a necessidade da promoção do referido evento, mas com uma grande diferença na forma de fazê-lo, onde todo o processo de idealização, formatação, organização e objetivo foram discutidos entre os participantes da referida CT, trazendo, inclusive, os diversos representantes dos poderes para discutirem com os reais fazedores e mantenedores dessa cultura. Podemos citar os diversos e diferentes aspectos que fizeram desse evento um sucesso: pluralidade e diversidade dos participantes, a maneira da abordagem dos diferentes assuntos, dos encaminhamentos tomados frente aos 113
diversos assuntos, a participação dos poderes públicos nas três esferas de poder. No entanto, prefiro citar os aspectos que estavam subjetivos ao processo, que são: o reconhecimento e a valorização dessa cultura, a continuidade e a consolidação do processo de construção de política pública, iniciada em 2005, a necessidade da CT consolidada, e a interação entre as diversas comunidades que utilizam a ayahuasca, não só em Rio Branco, o pacto de geração. Gostaria de falar, especificamente, sobre este último aspecto: o pacto de geração. Essa trajetória se consolida, a cada dia, ao instante em que somos desafiados a preservar e a garantir o direito das futuras gerações de usufruir desse bem cultural. Certa vez, comentei com o Diretor-Presidente da Fundação Municipal de Cultura, Marcos Vinícius, da minha felicidade de participar da CT de Culturas Ayahuasqueiras, pela oportunidade de encontrar pessoas de várias comunidades, algumas delas, inclusive, que conheci quando criança, quando meus pais começaram a freqüentar o “Daime”, como sempre é citado. Assim, eu sabia que, a cada encontro, eu iria apertar os laços de amizade e irmandade com essas pessoas. Por fim, confesso, com o coração apertado, que nada foi tão significativo e importante pra mim, quanto à participação dos meus pais, Herotildes e Tufi (in memorian), na CT e, de forma especial, no Seminário, validando o pacto das gerações presente nesse processo, dando-me a grata satisfação e a sensação de que tudo que vivemos foi importante e que, realmente, valeu a pena! Poderia terminar contando Vinícius: “Começaria tudo outra vez...”
Escutar Interpretações e Interpretar: memórias do “Povo da Ayahuasca”
Gerson Rodrigues de Albuquerque Professor Associado Centro de Educação, Letras e Artes Universidade Federal do Acre (UFAC)
1Bâ,
Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. Tradução de Xina Smith de Vasconcellos. São Paulo: Pala Athena/Casa das Áfricas, 2003, p.175. 2Reflexões de Antonio Gomes da Silva Neto, 15 anos, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010. 3Curso de formação de agentes culturais nas comunidades ayahuasqueiras, organizado por Antonio Guedes e Lílian Amin, da Câmara Temática da Ayhuasca, Conselho Municipal de Cultura de Rio Branco. Fundação Garibaldi Brasil, Lei de Incentivo à Cultura, 2009. 4Alessandro Portelli, “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais”, In Tempo, Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, vol.1, n.2, 1996, p.61.
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“A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. É a herança de tudo aquilo que nossos ancestrais puderam conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe, em potencial, em sua semente”1.
“
O interessante da história oral não é escutar uma pessoa te dizer o que aconteceu como se estivesse lendo uma história e várias pessoas te contarem do mesmo jeito. O interessante é escutar interpretações de pessoas diferentes, que viveram e viram, sob vários ângulos, de vários lados, e que te falam cada detalhe minúsculo. Ao mesmo tempo, se você comparar depois, no final, para você, não será a mesma história” 2. Com essas palavras, o mais jovem dos alunos de um curso sobre “história oral” 3, inicia seu relatório de avaliação das atividades desenvolvidas. O interessante é escutar interpretações de pessoas diferentes. Interpretar é esclarecer e é, também, explicar, traduzir, atribuir sentido às coisas vistas, ouvidas ou vividas, como nos informam ou conformam os dicionários. Atribuir significados é papel de quem se faz presente e presentifica, atualiza e atribui significados à experiência vivida ou, como nos ensina o jovem Antônio Gomes, escuta a interpretação do vivido e, também, interpreta, porque parte de sua própria experiência. A subjetividade é “uma característica indestrutível dos 4 seres humanos” , diz-nos Alessandro Portelli, e é no amplo espectro de suas possibilidades que trilham as memórias de mulheres e homens de “comunidades ayahuasqueiras acreanas”, em importante processo de “lembrar”, produzir “lembranças” e organizar/inserir essas “lembranças”, em suas casas de memória. 115
Atividade política de primeira grandeza, a organização dessas casas de memória e a inserção do “documento oral”, em seus acervos, resulta em revigoramento do debate sobre a importância da memória, da subjetividade e da inter-subjetividade como elemento articulador da própria formulação/elaboração do “documento oral”, e de tudo o que vem com o ato de lembrar. Ato que independe da vontade ou da decisão do sujeito – aquele que lembra – a lembrança acomete, no dizer de Beatriz Sarlo, até mesmo quando não é convocada, e em seu tempo próprio: o presente 5. A memória oral, escreve Ecléa Bosi, longe da unilateralidade para a qual tendem certas instituições, faz intervir pontos de vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior riqueza 6. Partindo dessa perspectiva, podemos depreender a importância do “documento oral” para as casas de memória, especialmente quando a própria comunidade decide gravar ou registrar, transcrever, catalogar, organizar e possibilitar o acesso aos relatos orais. É um trabalho silencioso, que exige muita atenção e tempo dos “historiógrafos” e entrevistadores, mas que coloca possibilidades ao discurso homogêneo e ao predomínio da narrativa coletiva “explicadora e legitimadora” de tudo que esteja a serviço do controle e de um determinado poder que procura “transmitir e difundir 7 como referencial de todas as experiências” . O que se busca – no ato de parar e ouvir o outro – é romper as amarras que silenciam o indivíduo no coletivo, que tornam sua trajetória individual um lugar comum da trajetória de todos. Retomo à perspicaz compreensão de Antônio Gomes, que nos desafia a “escutar interpretações de pessoas diferentes” para, no final, percebermos que o resultado, de “cada detalhe minúsculo”, constitui-se como central na formulação de algo que, segundo ele, “não será a mesma história”. Em minha opinião, esses “detalhes minúsculos”, os quais diferenciam as narrativas individuais da narrativa coletiva – no caso, aquela que funda a doutrina – são construções mentais resultados da intervenção material e simbólica das mulheres e homens entrevistados que, produzindo leituras sobre o que experimentaram, projetam-nos e consolidam-nos como seguidores do 116
8Benjamin, Walter. Magia e téc-
5Sarlo, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007, p. 10.
nica, arte e política. (Obras escolhidas, vol. I). Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 5ª ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p.33.
6Bosi, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. 2ª ed., São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 15.
7Bosi, Ecléa. Obra citada, 2003, p.17-18.
9Sarlo, Beatriz. Obra citada, 2007, p.25.
daime, construtores da doutrina, propagadores de seus efeitos sobre o indivíduo e sobre o coletivo; de suas condutas éticas, morais, sociais. O sujeito da experiência – individual e coletiva – pensa, interpreta e traduz essa experiência de múltiplas formas. Aquele “que pensa, que espera, que se dedica, pertence à galeria dos iluminados”. Iluminação que, também, é profana, como ressaltou Walter Benjamin8, e que nos inspira a ouvir/ler as incursões dos agentes culturais de “comunidades ayahuasqueiras”, em produção de relatos que tendem a um desordenamento discursivo – a inserção de narrativas orais em suas casas de memória - para preservar suas “tradições”, seus saberes, seus ensinamentos, ou seja, para manter o consenso pelo dissenso, no tenso campo de disputas, que articula e institui toda forma de memória. Tal paradoxo não pode nos eximir de insistir que as lembranças de “velhos bebedores de daime”, com toda sua carga de subjetividades – a exemplo de qualquer documento/testemunho histórico – não é a história “tal qual”, a “verdade dos fatos”, assim “como ocorreram”, mas a leitura possível de um passado que mulheres e homens fazem, num tempo presente, marcado pelas condições objetivas e subjetivas desse tempo. Eis que retornamos às questões formuladas por Sarlo e Benjamin, posto que a “narração inscreve a experiência numa temporalidade que não é a de seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade que, a cada variante, atualiza-se” 9. Não obstante, penso que a questão que devemos formular é: qual o significado de inserir a oralidade ou o “documento oral” em casas de memória de comunidades que, historicamente, organizaram-se com base em práticas de transmissão oral dos seus conhecimentos e saberes? Esse tipo de iniciativa parece um tanto contraditória, porém, não podemos nos surpreender que isso ocorra, especialmente, porque vivemos num mundo marcado pelo predomínio da linguagem escrita e de suas formas de organização/instituição do poder. Poder hierarquicamente estruturado e estruturante a partir da palavra escrita. 117
A primeira organização cultural/social/espiritual do daime se articula em torno da palavra falada, cantada. Raimundo Irineu Serra, o mestre fundador da doutrina, era um homem da oralidade, da escola oralidade em suas múltiplas dimensões. Negro maranhense, filho das diásporas africanas, praticante de uma “nova abordagem da dimensão espiritual das humanidades”, para apegar-se às reflexões de Édouard Glissant, recompondo paisagens mentais capazes de articular os processos das muitas misturas que têm marcado as “modernidades” americanas, latino americanas, caribenhas, amazônicas 10, compreendeu os significados dos sopros e apelos da floresta com seus segredos, suas visualidades, suas invisibilidades. Em síntese, seus saberes, formulados nos muitos intercâmbios culturanatureza, natureza-cultura, produziram materialidades/ espiritualidades transmitidas por palavras, sons, gestos, olhares, corpos em movimento. As primeiras comunidades do daime foram formadas por mulheres e homens da palavra falada, gesticulada; da escola oral que escreve/inscreve no e com o corpo; da “fala cabocla”, como preferem alguns. Ouviam as mensagens do mestre e internalizavam seus conhecimentos; “recebiam” os hinos e cantavam para os outros ouvirem; os que ouviam, repetiam, entoavam, cantavam, dançavam, e os produziam/reproduziam em seus corpos. A palavra era, aí, instrumentalizada pelos gestos, olhares, sons. A escrita nunca lhes fez falta, e seus saberes/ensinamentos ecoaram, com força, para além das fronteiras de grupos de negros, afro-indígenas e outras misturas que aí se socializavam. Em contagiante palestra, proferida na cidade de Rio Branco, o jornalista e poeta Toinho Alves, destacou que o “Mestre Irineu recebia seus hinos por revelação divina” e, em seguida, recitava-os e cantava-os para seus familiares e integrantes da comunidade/irmandade, repetindo-os várias vezes, até que estes aprendessem: “o daime é essencialmente musical”. A repetição e a memorização, com riqueza de detalhes, estão na base de toda a organização social do daime, estruturando valores e percepções ético-religiosas, por intermédio de seus hinários 11. 118
10Glissant, Édouard. Introdução a uma Poética da Diversidade. Tradução de Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2005, p.20-21.
11Antonio Alves, em debate realizado no dia 26/09/2009, na Casa Paroquial da Catedral Nossa Senhora de Nazaré, em Rio Branco, Acre, promovida pelo Instituto Ecumênico, sob a Coordenação do professor e ex-padre Manoel Pacífico da Costa.
12Olson, David R. & Torrance, Nancy. Cultura Escrita e Oralidade. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Editora Ática, 1995, p.27.
Desse modo, o não domínio da escrita, por parte dos primeiros mestres e demais integrantes da irmandade, constituiu-se como virtude e força para a organização social do grupo. A cultura do grupo era oral; a forma de produção, trocas e transmissão de seus saberes se ancoravam em diferentes e complexas tradições de oralidade. Afinal, o “ser humano natural não é escritor nem leitor, mas falante e ouvinte”, o que implica em um comportar, um pensar, um agir/reagir oralmente 12. No entanto, nos dias atuais, parece se evidenciar que, nas comunidades/irmandades ayahuasqueiras, a força da oralidade tornou-se menos intensa, principalmente, em função da inserção da linguagem escrita em seu interior – a palavra escrita com suas racionalidades e narrativas “congeladas”, seus estatutos científicos e ordenamentos sociais racionalistas. Se essa evidência se confirma, um dos desafios centrais, colocados aos participantes do curso, é o de enfrentar/dialogar com as tensões e, mesmo, com os paradoxos de iniciar um trabalho com a oralidade para “preservar” saberes, conhecimentos e “tradições” em comunidades/irmandades estruturadas em torno de culturas orais. Nessa direção, no âmbito das casas de memória existentes ou a serem criadas nas comunidades, poderão ser gestadas alternativas e estratégias contra o “esquecimento”, mas os “agentes culturais” e demais organizadores das mesmas, estarão cientes de que tal formulação é o reconhecimento da existência de um “vazio” ou de algo que se “rompeu” nos procedimentos de produção e transmissão oral dos saberes/ensinamentos nessas comunidades. Convencer os “mais velhos a falar” e os “mais novos a ouvir”, parece ser outro desafio que se coloca aos “agentes culturais das comunidades ayahuasqueiras”. Isso se depreende pela leitura de vários relatos de alunos, em trabalhos de conclusão do curso. Senão vejamos: “O relato de memórias busca guardar conhecimentos, histórias de pessoas onde quer que seja, no bairro, comunidade ou até mesmo em casa, para que um dia, os mais jovens ouçam e não deixem os costumes e tradições 119
se apagarem, de forma a tomar outros rumos. O que mais se busca mais nessa ação, é que as grandes riquezas, aquelas que estão gravadas dentro de cada pessoa, não partam ou se percam juntamente com seu corpo, mas fique gravado ou escrito.”
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“O curso de memória oral me proporcionou certo conhecimento de como entrevistar uma pessoa e fazer com que essa pessoa relembre o seu passado, de forma que venha recordar suas experiências de vida. Nem sempre as pessoas querem revelar o seu passado e, por isso, muitos só falam de momentos bons, onde não se percebe tanta angústia. Pode-se perceber, nas entrevistas realizadas durante o curso, que as pessoas se emocionaram, choraram e algumas não queriam nem falar de coisas tristes.” 14 “... No dia marcado para a entrevista, enfrentamos dificuldades, porque a depoente se recusou a ir ao nosso encontro, no local marcado. Daí, foi necessário nos replanejarmos e fomos ao seu encontro, na casa da filha dela. Percebi e senti que sua recusa era porque uma das filhas a estava pressionando com insegurança do destino que seria dado àquela gravação. Ao término da gravação, quando colocamos a fita para rodar, ela deixou transparecer isso, chamando a filha para ouvir a gravação, e o resultado 15 foi que a filha se emocionou muito e saiu aos prantos.” “Nosso projeto de pesquisa já foi direcionado envolvendo daimistas mais idosos com o objetivo de reunirmos depoimentos a serem preservados em casas de memória em todas as sedes ayahuasqueiras que participaram do curso. Nestes registros constituiremos um acervo de relações de pessoas na sua família e na comunidade e poderemos montar uma cadeia de interpretações que aproximará passado e presente com sua dinâmica viva, suas contradições e suas convergências, e oferecerá aos mais jovens mais uma ferramenta de aprendizagem, além da repetição, quando esses mais idosos se forem. Um dos nossos entrevistados nos disse que antes era contra a publicização das informações, mas que hoje ele reconhece que é um arquivo vivo da história daimista e afirma/indaga: quem ensinará o certo se nós 16 nos calarmos?” 120
13 Alzir Ferreira Soares, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010.
14Etinaiara De Oliveira, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010.
17Ocilene Ferreira da Silva Cruz,
15Lindalva Brasil da Silva, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Cul-
16Marina Brandão Coutinho de Rezende, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010.
em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010.
“No começo do curso enfrentei alguns obstáculos por parte de pessoas da própria comunidade que não entenderam o objetivo do curso, achando que iria fazer divulgação dos ensinamentos da doutrina e dos conhecimentos dos entrevistados da comunidade. Não foi fácil chegar a uma conclusão e dizer, para essas pessoas, qual o real objetivo, que era trazer para a comunidade as histórias de vida de pessoas com muitas experiências e que, com esses depoimentos e ensinamentos, iríamos construir o centro de memória da nossa comunidade. Pois, durante as entrevistas com uma pessoa bem idosa que, por sinal, é da comunidade onde estou desde que nasci, eu ouvi, dessa pessoa, coisas e ensinamentos da doutrina que jamais sabia, e essa pessoa estava ali, bem perto de mim, e eu não estava sabendo valorizar, ou seja, ouvir seu depoimento. Foi preciso a realização desde curso para eu aprender que, muitas vezes, estamos ao redor de pessoas com uma bagagem belíssima mas, por nunca sentarmos para conversar, deixamos de aprender muito.”17 “Explicar aos depoentes sobre a importância de se registrar a memória oral de determinada cultura, em especial, a do Santo Daime, passa a ser um ato de convencimento para com grande parte dos integrantes da vanguarda daimista. Neste ponto, ao se abordar as pessoas indicadas para registrar seus relatos, todas sentem uma dificuldade em falar de sua vida, apesar da oralidade sempre ter feito parte da vida deles, pois a Doutrina do Daime é repassada, durante décadas, através de histórias de pessoas que conviveram com o Mestre, ou de pessoas que escutaram sobre determinado assunto, ou mesmo através dos hinos. Porém, trazer para um trabalho dessa natureza, e oficializar um documento, parece bem distante da realidade deles. É bem verdade que registrar a memória oral deles é confidenciar sua história de vida. Ademais, o receio de se desvirtuar o seu depoimento, ou até mesmo tratar assuntos polêmicos, que criaram divergências no passado, traz, geralmente, um receio de se reviver ou relembrar possíveis desafetos ou lembranças dolorosas. Durante os relatos, as expressões do corpo das pessoas, os atos de esquecimento, grandes pausas, todas nos trazem um entendimento. E o interessante é que se torna um 121
entendimento que chega a ser um discernimento individual para cada ouvinte (...). Chamou-nos atenção, principalmente, a reação das pessoas entrevistadas. Com o receio de relatar sobre suas histórias indagavam, repetidamente, sobre qual objetivo tinham as entrevistas, onde iam ser divulgadas, etc. Após aceitarem registrar os depoimentos, os entrevistados se preocupavam com a colocação das palavras nas frases, ficando, desta forma, um pouco constrangidos, selecionando e filtrando o que iriam dizer, tirando sua naturalidade. Deixando, deste modo, de registrar fatos interessantes que haviam dito nas conversas que antecediam as gravações.” 18 “Tivemos uma conversa inicial com a entrevistada, onde foi explicado o objetivo do trabalho que seria realizado. Esse primeiro contato foi feito de uma forma breve, onde a entrevistada não se mostrou muito disposta a dar o seu relato. Por isso, foi necessária uma segunda conversa, mais detalhada, sobre a finalidade do curso. Observamos que a entrevistada continuou mostrando-se insegura, mas conseguimos marcar o local e a data para a entrevista (...) Em outro depoimento, o entrevistado começou a contar sua história de vida, mas quando chegou um determinado momento, ele pediu que fizéssemos perguntas para ele. Essa situação nos causou um pequeno transtorno, porque não esperávamos essa reação do entrevistado, ou seja, tivemos que continuar a entrevista fazendo perguntas que foram improvisadas na hora (...) Apesar da boa vontade do entrevistado, e de o mesmo ser uma pessoa que gosta muito de conversar, já familiarizado com as pessoas que participaram da entrevista, notamos 19 nervosismo e ansiedade na hora de seu depoimento.” Os trechos de depoimentos, destacados acima, foram retirados das significativas observações e análises feitas pelos alunos do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”. Parte substancial dos relatórios que integram essas análises são constituídos por importantes entrevistas com mulheres e homens das diferentes comunidades e linhas do daime, na cidade de Rio Branco. 122
18Clemilda Gomes de Oliveira, Frederico dos Santos França, Herotildes Sales Amim, Rejane Nascimento Teixeira de Souza e Suzy Cristiny da Costa, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010.
19Haérica Holanda, Israel Silva de Souza e Mírian Dias Lopes, em Trabalho de Conclusão do Curso “Formação de Agentes Culturais nas Comunidades Ayahuasqueiras”, Rio Branco, Acre, abril de 2010.
No ato de escrever este texto, refletindo sobre os significados de minha participação, convívio e trocas de experiências com os alunos durante o curso, procurei preservar os nomes dos depoentes e não fazer uso indevido de suas falas/entrevistas – às quais tive acesso privilegiado -, posto que não tinha e não tenho autorização expressa para fazê-lo. As narrativas dos depoentes/entrevistados pertencem, em primeiro lugar, a eles próprios, posto que não são dados ou fontes para pesquisas de quem quer que seja, e sim leituras/interpretações de suas próprias vidas; em segundo lugar, tais depoimentos/entrevistas/histórias de vida pertencem às comunidades onde, coletivamente, produziram e produzem seus saberes, suas trajetórias. Lendo e ouvindo os impressionantes resultados dos trabalhos de conclusão de curso que me foram entregues pelos alunos, mais que corrigir seus “equívocos” ou “erros”, fui surpreendido pela força de suas entrevistas e, mais ainda, de suas reflexões. A motivação e o empenho, demonstrados nesse curso, estão espelhados nos relatórios que devem servir como grande referencial para os desafios que terão que enfrentar, principalmente, porque foram ou estão sendo formados na escola da escrita com seus códigos rígidos, cerceadores. Isso coloca a todos o imperativo de ter que aprender a inserir/incorporar os recursos da oralidade em seus universos mentais. Para compreender os mais velhos e inserir suas trajetórias nas casas de memórias, os “agentes culturais” das comunidades ayahuasqueiras terão que ampliar e fortalecer a capacidade de ouvir, cujo pontapé inicial foi dado no curso que encerramos: ouvir/ler/traduzir as falas, as percussões, os movimentos dos corpos, as linguagens da oralidade. Essa compreensão da força da oralidade, utilizada no entrecruzamento das culturas afro-indígenas e cristãs, utilizado na concepção da doutrina do daime, por Raimundo Irineu Serra, pode ser a chave para enfrentar os apelos e assédios de todos os aparatos, artefatos e códigos “modernos” que concorrem para esvaziar os significados das tradições orais no presente. Assim, talvez seja possível superar o paradoxo de inserir a oralidade para “preservar tradições” ou saberes em 123
comunidades/irmandades articuladas pela própria oralidade. Talvez, também, seja possível apreender o que os corpos e as experiências dos mais velhos comunicam a todo instante: as casas de memória - em céu aberto - são as próprias comunidades, cujos esteios se assentam naquelas pessoas que não precisam dos “papéis escritos” para entoar/bailar/mirar/regar/alumiar/cultivar as “flores” do “grande jardineiro”, e dos demais mestres nas enluaradas noites ou no cotidiano de seus ofícios. Encerro retornando ao início e ao mestre da oralidade, Hampâté Bâ, para quem o saber é uma luz que existe no homem. Essa luz articula a herança de nossos antepassados, que se comunicavam pela fala, gesto, olhar; pelos sons dos ventos, das águas; pela posição dos astros; pelos sonhos, pré-visões, premonições; pelas coisas visíveis e invisíveis. Em uma palavra, pela oralidade. O relato oral é um todo complexo, uma totalidade que comunica sem cansar, sem se exaurir. Frente ao relato oral, ensina-nos o velho mestre africano, temos que estar atentos ao todo e a tudo; é preciso registrar não somente o conteúdo da fala, mas, “toda a cena – a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos, sua mímica e os ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o griot Diêli Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto...” 20
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Educação, Ensino Religioso, como ensinar sobre as coisas divinas... “Para serem amadas, as coisas da terra precisam ser conhecidas; para serem conhecidas, as coisas divinas precisam ser amadas.” Blaise Pascal, filósofo, matemático, físico e teólogo francês. Só educar não basta! É preciso, também, dar e ser exemplo naquilo Silvana Camargo de Castro (pedagoga, sócia da U.D.V.)
20 Bâ, Amadou Hampâté, obra citada, 2003, p.13-14.
que se acredita.
S
omos sabedores de que, na L.D.B. (Lei de Diretrizes e Bases) do Ensino no Brasil, nos P.C.Ns (Parâmetros Curriculares Nacionais), e nas Propostas Curriculares do Município, estão contemplados os mais amplos e os mais específicos temas que podem e devem ser trabalhados nas salas de aula em todo país. Como aplicar toda essa legislação de forma coerente e eficiente? Entre as disciplinas do Currículo, consta, de forma obrigatória, o Ensino Religioso nas escolas públicas, porém é opcional para o aluno, garantindo, assim, a liberdade de credo religioso, previsto na Constituição soberana do país. Na realidade, o que se quer garantir, na prática, é o ensino das religiões como elemento cultural, ético, e não de uma linha religiosa, quer seja a do professor, a do aluno ou da direção da escola, para que a criança possa conhecer, de forma neutra, que há uma diversidade de religiões; que existem valores religiosos que são universais; que o ser humano, de múltiplas formas, busca uma ligação com o divino, ou com um poder superior, desde os primórdios da humanidade. Na prática, isso quer dizer que o professor deve planejar atividades que contenham os valores humanos éticos, tais como o respeito, a paz, a verdade, a amizade, o amor, a solidariedade, ou seja, valores de cidadania, de boa convivência. Será que o que acontece no sul do Brasil, tem algo a ver com o que acontece nas escolas do Acre? Bem, em termos geográficos, históricos, culturais, pode-se dizer que 125
a distância equivale à diversidade. Porém, ao se olhar atentamente, percebe-se que existe um fio que atravessa todo o currículo e, além dele, apresenta-se na sala de aula, no convívio, no cotidiano, nas palavras bem ditas ou não, nos gestos firmes e nas atitudes coerentes ou não, do professor. Qual é o conceito que o professor tem das diversas religiões? Será que o professor tem esse olhar respeitoso para com outras religiões, além da dele, caso pratique alguma? Será que o professor pode ter algum preconceito sobre as religiões ayauasqueiras? Como lidar com o preconceito religioso na sala de aula? Ouvimos, no Seminário, a fala concisa da Secretária de Educação, professora Maria Correia, dizendo que este é um bom momento de tratar do ensino religioso nas escolas. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases de 96) também regulamenta o ensino religioso nas escolas públicas, ao qual já gerou muita discussão, pois as escolas privadas não estão inclusas e, além disso, há também outro ponto: conforme a legislação, deveria ser constituído um fórum - pelo Conselho Estadual de Educação – em que, independente da instituição, poder-se-iam discutir as diversas religiões, a fim de se construir um Referencial para o ensino religioso. Segundo a Secretária, após 14 anos de implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais, temos o grande desafio de trabalhar nas escolas essa disciplina, pois o professor, responsável por esse trabalho, tende a colocar sua linha religiosa em prática, porque, hoje, ainda não tem uma formação nesse sentido, e o que existe é uma limitação do professor, desde a Universidade, em sua formação acadêmica, e mesmo nas formações continuadas, onde o destaque é o ensino de Português e de Matemática. Então, o que se vê, em toda essa discussão, é que o Currículo (ou Referenciais Curriculares) mesmo sendo amplo, atual, depende do professor, no dia a dia, para que ele possa se nortear, e que não é por falta de normas que isso não aconteça, mas, talvez, pela pouca informação nesse tema. Então, é preciso colocá-lo na pauta, porque o que não é divulgado, ninguém vê, portanto, tem que ser feito esse esforço, para que haja um currículo com ensino religioso em nível nacional. 126
A Secretaria disse, também, ser oportuno esse momento, para a criação de uma cartilha das religiões ayahuasqueiras, de um DVD informativo, e de outros materiais, para mais informação e apoio, pois “só podemos defender aquilo que conhecemos”. . Nas demais falas e propostas apresentadas no Seminário, ressaltou-se, também, a preocupação que existe com a discriminação e o preconceito que há nas escolas, mas que também está nas ruas, nas casas, nas comunidades, e que existe muita desinformação a respeito das religiões ayahuasqueiras, que podem ser trabalhadas de forma transversal. Sabemos que a religiosidade é uma manifestação cultural e, entre os diversos contextos culturais, como a cultura indígena e a cultura afro, está inclusa a religiosidade deste povo, que é histórica, faz parte da História do Acre e, assim, têm seu valor na construção social e cultural da cidade e do Estado, podendo, portanto, serem expostas, de forma didática, nos livros de História. É evidente que os professores não têm domínio de todas as religiões, mas, na prática, como professora na rede pública, posso dizer que à medida que surgem as indagações, as diferenças no cotidiano da sala de aula, daquilo que não sei responder, faço plenas pesquisas e, em seguida, respondo aos meus alunos, da melhor forma possível, pois esse é o papel do educador. Então, penso que este Seminário veio clarear essa postura ética da Educação, que apoiada na legislação, quer seja municipal, estadual ou federal, quer também garantir um ensino religioso laico nas escolas públicas, mas, em contrapartida, requer um compromisso das comunidades ayahuasqueiras de produzir uma cartilha, e todo o material necessário para dar informação e apoio às escolas e professores. Também ficou evidente a importância de uma participação efetiva das comunidades ayahuasqueiras no Fórum de Ensino Religioso, junto ao Instituto Ecumênico Fé e Política, que teve uma participação no Seminário, buscando fortalecer diálogos e parcerias junto a esses grupos. 127
Missão especial
C
omo participante do processo de reconhecimento cultural das comunidades Ayahuasqueiras, fui selecionada pela reunião setorial que aconteceu em Rio Branco para participar da pré-conferência de Cultura em Brasília, a fim de representar as comunidades Ayahuasqueiras. Senti-me carregando o enorme peso de uma grande responsabilidade: empreender uma missão tão fina. Por isso, procurei preparar-me espiritualmente para enfrentar todas as barreiras que, certamente, iria encontrar pela frente. Fiz uma visita à Madrinha Peregrina, durante a qual ela me disse para não ter medo. Enfim, tudo se encaixou perfeitamente até o dia da viagem (11/03/2010). Na chegada à Brasília, senti-me feliz por estar na linda capital do meu país. Pronta para a batalha, fui à solenidade de abertura da pré-conferência. No dia seguinte, começaram os trabalhos e discutimos o sub-eixo dois, do Patrimônio Imaterial. Ao término das discussões, aconteceu a eleição dos delegados da região Norte para a Conferência Nacional de Cultura, e fui escolhida para ser a delegada da região Norte, fator que aconteceu em meio a muita confusão e protestos de certas pessoas que se consideram mestres e/ou doutores e, por isso, pretensamente estariam mais preparados para representar a região Norte. Diante de tantas confusões, realizou-se uma nova eleição, na qual fui novamente eleita. Escutei, então, diversas críticas em relação ao “Santo Daime”, e chegaram a me sugerir que desistisse do posto de delegada da Conferência, já que não iria conseguir ter sucesso em colocar o uso cultural da Ayahuasca como Patrimônio Imaterial brasileiro. Sem nada temer, fiquei firme, pois meu objetivo estava claro: concluir o trabalho sob minha responsabilidade. Durante a Conferência Nacional de Cultura, novos obstáculos surgiram. No caderno de propostas da Conferência não existia nenhuma proposta que falasse das comunidades Ayahuasqueiras, uma vez que elas tinham sido suprimidas. O significado disso era, portanto, claro: a 128
Rosa Lopes
desvalorização do povo acreano e das manifestações culturais da Ayahuasca, simplesmente por falta de conhecimento sobre o assunto. Além disso, no meio da conferência, começaram a circular notícias distorcidas acerca de um grave problema ocorrido num Centro daimista de São Paulo, fator que dificultava, ainda mais, a proposta de inserir as comunidades Ayahuasqueiras no plano nacional. À noite, voltei para o hotel e fui estudar o caderno de propostas. Percebi, então, que a proposta de número seis falava das comunidades tradicionais, sendo o lugar mais adequado para a inclusão das comunidades Ayahuasqueiras. Na hora H, tudo acabou dando certo, visto que a proposta, que relacionou os ayahuasqueiros entre as comunidades tradicionais, não só foi aprovada, como foi eleita uma das propostas prioritárias de toda a Conferência, repercutindo fortemente em diversos meios de comunicação nacionais. Vamos dar vivas à nossa cultura e à nossa pátria, com amor e com coragem.
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PROTESTO
ECUMENISMO PRESENTE NO SEMINÁRIO DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA AYAHUASCA
Átila Maria Farias Rufino
N
ós, do Centro Eclético Fluente Luz Universal Wilson Carneiro de Souza, sentimo-nos representados, neste evento grandioso que foi o Seminário, apesar de nos sentirmos, por uns momentos, meios marginalizados pelos Irmãos, que se intitulam Tradicionais, nós conseguimos grandes avanços, pela qualidade das propostas apresentadas e, também, pelo público participante. De qualquer maneira, temos que estar juntos, do contrário, nada conseguiremos, o Elo da Corrente é seus filhos, e os filhos somos nós, Daimistas, em geral. Quero que saibam que somos do Tronco de Raimundo Irineu Serra sim, mas temos, como Padrinho, nosso querido padrinho Sebastião Mota, e ninguém vai tirar o seu valor, o próprio poder não permite, e vocês constataram o que falo, quando o próprio Sistema de Cultura colocou que, sem o segmento de Sebastião Mota de Melo (CEFLURIS ou ICEFLU) nada seria feito, zeraria toda a negociação. Então, a força de nosso padrinho vigorou e resolveram falar em 4º tronco, o que, na verdade, o que realmente existe é o que nosso Mestre Irineu falou QUE SE TIVER ALGUMA A MAIS, VOIS ACRESCENTE O MEU AMOR. Finalizo, convidando toda a irmandade para nos unirmos, em prol do nome de nosso padrinho, e levantarmos nossa torre, nossos trabalhos espirituais, usarmos nossa Igreja, nosso Templo, e levarmos Políticas Públicas para a nossa comunidade, pois nosso Presidente, Alfredo, disse que a Doutrina está no Progresso, no Trabalho, no Saber e no Universo. Um grande abraço ao povo da FGB, que são especiais para nossos Mestres e Padrinhos, e vamos adiante!!!
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Professor Manoel Pacífico da Costa, Secretário Geral do Instituto Ecumênico -Acre
O
Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas Públicas para o Acre aconteceu no momento certo de consolidação destes centros religiosos no marco legal da religião da floresta, através da Resolução do Conad – Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas do Ministério da Justiça e, ao mesmo tempo, constitui-se no rechaço democrático contra a intolerância de grupos oportunistas que procuravam associar o uso do “Daime” em rituais religiosos e ao lamentável assassinato do cartunista Glauco, ocorrido em São Paulo. O movimento Fé Política se fez presente a este evento, com a participação de várias denominações religiosas, representadas por seus líderes, estabelecendo mais um grande passo para o movimento ecumênico no Acre. Assim, antes de continuarmos nossas considerações sobre o Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca, convém apresentar o que é este Instituto. O Instituto Ecumênico, criado em dezembro de 2007, é a principal ferramenta do Movimento Fé e Política no Estado do Acre. Trata-se de uma entidade civil, democrática e pluralista, que reúne pessoas de diversas igrejas e denominações religiosas: católicos, evangélicos, espíritas, daimistas, e de outras expressões de fé que têm, como objetivo, estimular e promover atividades educativas de caráter ecumênico, a partir da cooperação entre igrejas e instituições religiosas afins, orientadas para a paz, para a cidadania, e a promoção dos direitos humanos, da democracia e dos valores universais. Outro importante objetivo é desenvolver a consciência solidária e participativa de ações voltadas para o desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental, como forma de combate às desigualdades, às injustiças, à marginalização social e à degradação ambiental. 131
Numa sociedade marcada pelas divisões políticoideológicas, divisões religiosas, divisões de dominação econômica e subordinação, divisões entre grupos sociais, divisões de gênero, divisões raciais e culturais, a tarefa de um Instituto Ecumênico implica na capacitação de todos e, muito especialmente, de suas lideranças numa nova cultura de paz e de democracia, sem os vícios do preconceito e do autoritarismo religioso. O instituto passa a ser, necessariamente, um espaço para o aprendizado, para a realização de seminários, de fóruns e de Cursos destinados à construção de um novo modelo de sociedade, mais justo e mais fraterno. Por essa razão, consideramos a vitória das Comunidades Tradicionais na realização do Seminário, como uma grande vitória do movimento ecumênico acreano, visto que foi possível tratar de aspectos que interessam a todas as denominações como, por exemplo, o ensino religioso nas escolas. As Secretarias de Educação do Estado e do Município de Rio Branco assumiram um compromisso com as Comunidades Tradicionais - com propostas formuladas de um programa mais ecumênico – e não de um ensino confessional em que predomine a prática religiosa do gestor, diretor ou professor. Este é o fiel cumprimento constitucional do Estado Laico, comprovar a necessidade de união entre as lideranças religiosas e a importância de compreendermos e respeitarmos a religião do Daime como uma denominação cristã, genuinamente amazônica, e com forte identidade acreana, como também as religiões de matriz africana, indígena, da mesma forma que as demais já estabelecidas. Como Secretário Geral do Instituto, devo dizer que minha experiência com as comunidades do “Daime” são de longas datas. Há quase 40 anos tive o prazer de conhecer o Centro, presidido, então, pelo Mestre Antônio Geraldo e, ainda nesse mesmo ano, 1971, conheci o Mestre Raimundo Irineu Serra, antes de sua partida, participando, em anos posteriores, de reuniões na União do Vegetal. Em todos esses encontros, constatei a presença de muita gente que abandonara uma vida anterior, desregrada 132
e mundana, de álcool e de drogas, e que passara a frequentar estes centros, em reuniões prolongadas com muita oração, muitos hinos e louvores a Jesus e à Virgem Maria, com apelos ao arrependimento e à penitência, assim como reflexões sobre o caráter passageiro da vida e a necessidade do preparo para o retorno à casa do Pai. Estes centros, popularmente conhecidos pelo uso ritual do “Daime” ou “Vegetal”, trazem à memória um hábito milenar das comunidades Indígenas Incaicas, mas não se ignorar que, além dos saberes indígenas da floresta, estes centros reúnem, também, elementos marcantes do Catolicismo Popular e tradições dos povos negros da África. A solenidade histórica que a Assembléia Legislativa do Acre realizou, dedicada aos Mestres Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos e José Gabriel da Costa, passa a ser o reconhecimento oficial desse patrimônio espiritual herdado, marcado pelo sangue dos mártires cristãos, de milhões de indígenas massacrados, e de milhões de negros escravizados. Esta solenidade somente aconteceu em virtude do gesto profético desses homens humildes, porém destemidos e cheios de fé, que foram transformados em vasos de bênçãos, abriram uma clareira de luz em nossa floresta, curando feridas, cicatrizando corações amargurados e alimentando a fé de quem se encontrava faminto das bênçãos divinas. O Instituto Ecumênico do Acre permanecerá, portanto, sempre solidário e em comunhão com esta rica tradição religiosa de nossa gente.
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Ayahuasca e a proibição de seu uso terapêutico Era conhecido por Lintim. Chico Grangeiro, Júlio Carioca, Raimundo Gonçalves, Nica e seu irmão, Antônio Cancão, trouxeram-no amarrado. A família havia pedido. Ao chegar ao Alto Santo, Mestre Irineu chamou Percília e mandou abrir uma Mesa, um trabalho espiritual. Perguntaram se Daime seria dado para o doente, ao que Mestre Irineu respondeu que não, pois a mente dele não estava bem. Durante a Mesa, Lintim gritava, xingava, espumava, desmaiava, recobrava, esperneava, queria correr, morder; os olhos injetados. A Mesa continuava. Até que ele desfaleceu. Quando recobrou os sentidos, estava lúcido, orientado, perguntando por que estava amarrado. Foi solto. Não teve mais problemas mentais. Mestre Irineu ficou sentado, no fundo da sala, assistindo a tudo. Nesse dia, não houve Daime.
A
Resolução CONAD 1, de 26.01.2010, que regulamenta o uso religioso da ayahuasca, no item IV.VI trata do uso terapêutico, distinguindo-o do uso ritual. Enfatiza que o CONAD autorizou e reconheceu a legitimidade do uso religioso, e proclamou que o uso terapêutico se sujeita à prévia comprovação por pesquisa científica. Também dispôs que o uso de ayahuasca para fins terapêuticos, em atividade privativa de profissão regulamentada por lei, dependerá de habilitação profissional e respaldo em pesquisas científicas. A Resolução CONAD é explícita em reconhecer os rituais destinados à cura e, nisso, em nada inovou. A cura, eventualmente obtida, é compreendida como resultado da fé, da mesma forma que pode resultar de uma missa católica, de um culto evangélico, de um ritual para iemanjá à beiramar, de rito num terreiro de candomblé, etc. Cura como resultado de um milagre divino, para quem, assim, acredita. Se uma pessoa estiver doente e for a uma missa católica ou participar de uma novena, e ali obter uma cura 134
Jair Araújo Facundes Juiz Federal. Membro do GNT-CONAD
para sua enfermidade, aquele ritual não pode ser rotulado como terapêutico ou medicinal, no sentido técnico que se atribui a essas palavras. No mesmo compasso, os praticantes não estabelecem uma relação mecânica de causa e efeito, entre o ato de tomar ayahuasca e a eventual cura de alguma enfermidade, tal como existe, por exemplo, entre um antitérmico e a febre. Eventual cura é atribuída a fatores religiosos e espirituais, e não a fatores farmacológicos ou químicos. Essa visão das entidades ayahuasqueiras se harmoniza com o discurso dos praticantes de que não visam a um efeito farmacológico da bebida, mas sim a um resultado espiritual; não consideram que a bebida ayahuasca, em si mesma, seja um remédio, uma panacéia para todos os males. Ao contrário, condicionam o resultado ao ritual, interligando homem, ritual e ayahuasca. No ritual, a ayahuasca deixa de ser um elemento material e se transforma – para o praticante, o crente - em algo imaterial, espiritual, da mesma forma que o pão e o vinho se transformam, pela transubstanciação, na matéria e sangue de Cristo para os católicos, no sacramento da eucaristia. No mesmo sentido, as entidades ayahuasqueiras, segundo sua própria dicção, não querem fazer medicina, arte médica, mas acreditam praticarem religião. Surgiram algumas críticas, todavia, quanto à vedação do uso terapêutico da ayahuasca voltado para seus efeitos farmacológicos e químicos, ao fundamento de que, embora as entidades atribuam alguns resultados a fatores imateriais ou espirituais, não ponderáveis, é possível que ayahuasca seja útil em tratamentos para várias enfermidades. Imaginemos que alguém se livre de grave dependência de drogas após ingerir ayahuasca em rituais religiosos. Talvez os praticantes atribuíssem tal recuperação a fatores espirituais; talvez um estudo social demonstrasse que a recuperação não teve nada de espiritual ou religioso, mas foi o mero resultado de uma maior interação familiar e social, proporcionada pela igreja, enquanto espaço de convivência e reencontro. Todavia, uma pesquisa poderia demonstrar que, para além de um pretenso milagre, ou da constatação de que a igreja proporcionou um reencontro 135
familiar e resgate da identidade, haveria algum tipo de efeito farmacológico da ayahuasca que facilitaria a recuperação de toxicômanos. Igualmente, é possível que a observação de que pessoas com depressão melhoram quando começam a ingerir ayahuasca indique que os componentes químicos dessa bebida, independentemente de qualquer ritual, contribuam para a melhora do quadro depressivo, como sugeriu uma recente pesquisa concluída pela USP1 . Num tal contexto, objeta-se, seria contraproducente e, até irracional, a vedação do uso terapêutico e/ou da pesquisa. Esta objeção não procede. O CONAD não trouxe nenhuma alteração normativa em relação à atividade médica ou psicológica, tampouco, em relação à pesquisa científica, quer por refugir sua área de competência, quer porque tais temas já estão regulamentados. Convém assinalar que, no Brasil, só as pessoas portadoras de diploma de nível superior em medicina, regularmente registrados no Conselho de Medicina, podem exercer a atividade médica (art. 17 c/c 20 da Lei 3.268/57) ou psicológica (art. 13 da Lei 4.119/62), configurando ilícito o exercício de tais atividades sem preenchimento daquelas condições (art. 47 LCP). Legalmente, quem pode diagnosticar, ministrar medicamentos e receituário, indicar tratamento, solução de problemas de ajustamento, orientação psicopedagógica é o profissional médico e o psicólogo, respectivamente. Por outro lado, a literatura médica não reconhece propriedades terapêuticas da ayahuasca, de modo que seu uso, a título de tratamento, caracteriza pesquisa, nos termos da Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde: III.2- Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não esteja ainda
consagrada
na
literatura
científica,
será
considerado como pesquisa e, portanto, deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução. Os procedimentos referidos incluem entre outros, os de natureza
instrumental,
ambiental,
nutricional,
educacional, sociológica, econômica, física, psíquica
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ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica.
1http://www1.folha.uol.com. br/folha/ciencia/ult306u469235.shtml. Acesso em 27.04.10.
2Disponível em: <http://
conselho.saude.gov.br/ resolucoes/reso_96.htm> Acesso em 20.04.2010.
Em decorrência, médicos ou psicólogos não podem usar ayahuasca a título terapêutico, sob pena de violar com seu ato, simultaneamente, duas normas: a que veda o uso de ayahuasca fora do âmbito religioso, e as regras éticas e profissionais de seu ofício, porque o uso de ayahuasca ainda é não reconhecido como procedimento válido. Todavia poderá fazê-lo a título de pesquisa, com todo o protocolo ético e metodológico previsto na Resolução 2 que 196/96 do Conselho Nacional de Saúde - CNS salvaguarda os interesses do sujeito da pesquisa. A pesquisa envolvendo seres humanos é regulada em vários tratados internacionais: Código de Nuremberg, de 1947; Declaração dos Direitos do Homem (1948); Declaração de Helsinque (1964 e alterações de 1975, 1983 e 1989), Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS, 1991). No Brasil, a referência obrigatória é a Resolução 196, de 10.10.1996, do Conselho Nacional de Saúde – CNS (D.O.U.: 16.10.1996), que condensa as normas aplicáveis à pesquisa com seres humanos. A pesquisa, nos termos da legislação de regência, exige uma série de requisitos que resguardam não só os resultados da pesquisa, mas os sujeitos dela, à condição de pessoa humana. Dentre esses requisitos, destaca-se o parecer favorável de Comitê de Ética em Pesquisa - CEP, consentimento livre e esclarecido dos participantes, identificação da instituição e do promotor responsável pela pesquisa, entre várias outras exigências previstas na Res. 196/96, CNS. Esse conjunto de normas acerca da pesquisa científica deve ser compreendido em sua gênese histórica, especialmente a partir das lições extraídas do holocausto judaico e da condição de objeto ali imposta ao ser humano, de modo que todo aquele aparato normativo tem a função de assegurar uma relação ética entre quem pesquisa, sua finalidade e os sujeitos dela, para que estes 137
não se tornem objetos da pesquisa, mas preservem sua condição de sujeitos/pessoas detentores de dignidade e respeito. Não se tolera, em pesquisa científica, procedimentos que ignorem o princípio maior da dignidade da pessoa humana e, assim, caracteriza-se o procedimento de quem experimenta ayahuasca para tratar de enfermidades nos outros, sem método, roteiro ou supervisão, transformando as pessoas de suas experiências em objeto de sua curiosidade, meras cobaias. Consideremos um “centro terapêutico” ou “holístico”, pouco importa o nome, que ministre ayahuasca a título de tratamento para toxicômanos, depressão, distúrbios comportamentais ou para estudo da mente e da personalidade. Um hipotético “centro” com essas características, tenha ou não a supervisão de um médico psiquiatra ou de um psicólogo, incorre em duas ilicitudes: i) a que veda o uso de ayahuasca fora do âmbito religioso; e ii) as regras éticas e profissionais de seu ofício (se médico ou psicólogo), porque o uso de ayahuasca ainda não é reconhecido como procedimento clínico, ou, incorre no exercício ilegal de profissão (art. 282, CP e art. 47 LCP), pois não tem habilitação para o exercício da atividade privativa daqueles profissionais. O exercício da liberdade de religião, constitucionalmente assegurado, aceita rituais de cura, os quais não se confundem com o uso terapêutico, a pesquisa científica, nem com as figuras penais do charlatanismo e do curandeirismo (arts. 283 e 284 do Código Penal) justamente porque não visa substituir a arte médica, nem atribui à ayahuasca, em si mesma, resultado algum. São práticas e discursos religiosos, tão válidos (ou não), quanto inúmeras profissões de fé, filosóficas, ideológicas e políticas existentes, enquanto concepções abrangentes e razoáveis de vida e que, por isto mesmo, devem ser aceitas no âmbito de um ordenamento constitucional laico que respeita a autonomia das pessoas, que reconhece, em cada indivíduo, a capacidade de fazer escolhas para sua vida acerca do que é certo e errado, e que impedem o Estado de substituir-se àquelas decisões fundamentais, próprias de cada um, sobre qual deve ser o sentido e objetivo da existência. 138
Naquele jipe sacolejando, Manoel Guajará refletia sobre seu desespero. O mercado estava abastecido de alho. Ninguém queria alho. Não acreditava que havia vendido todo seu patrimônio em Porto Velho e comprado alho para vender em Rio Branco. Esperava ganhar um dinheiro e, assim, viajar em busca de sua saúde. Agora não tinha nem casa. Só um barco cheio de alho e um tumor enorme na cabeça. E, este, os médicos não operavam, pois estava em localização delicada. Só seu desespero para ir atrás de um “macumbeiro” muito afamado nos arredores de Rio Branco. Viu, de longe, a casa alta e pobre, e já pensou: “se ele tivesse poder, estaria bem de vida, e não moraria nesta pobreza”. Mas já estava ali. Foi apresentado ao Mestre Irineu e, desesperançado, contou só o problema do alho e de sua falência. Mestre sorriu. Disse que, ao sair dali, começaria a vender seu alho, e não pararia até acabar. Despediu-se, pensando no tempo ali perdido. Já no portão grande, avistou, do outro lado da estrada, um comércio. O comércio de Leôncio Gomes. Foi até lá. Leôncio estava precisando de alho, pois seu fornecedor tinha falhado. E indicou outro comerciante que, também, estava precisando, que indicou outro. Seu alho foi vendido. Teve um bom lucro. Lembrou-se do “macumbeiro velho” e foi até lá deixar uma oferta. Mestre Irineu recusou. Disse, então, de sua doença. Mestre Irineu avisou que quarta-feira era dia de sessão de cura, um trabalho espiritual. Era segunda. Na quarta, Manoel Guajará foi e tomou Daime. E sonhou, como sonhou. Viu Mestre Irineu num “sonho”, pegando sua cabeça e abrindo-a como um coco, de lá tirando algo escuro e fétido; passou um pano, soprou, e vendo que estava bem limpinha, fechou. Mas disse: não faça mais. E ao ouvir, Manoel Guajará entendeu o que não devia fazer mais. Ficou bem, e ficou no Acre. Pedreiro, em 1971, construiu o Túmulo de Mestre Irineu. Ainda está vivo.
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Homenagem ao Amigo Clodomir Monteiro
N
Francisco Hipólito de Araújo Neto
Homenagens
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este Seminário, queremos prestar uma homenagem ao Professor Clodomir Monteiro da Silva, Antropólogo e atual Presidente da Academia Acreana de Letras, considerado por nós, seguidores dos Mestres Raimundo Irineu Serra, Daniel Pereira de Mattos e José Gabriel da Costa, como amigo de longas datas. Clodomir Monteiro aproximou-se de nós, no final da década de 70, como pesquisador e professor da Universidade Federal do Acre. Chegou pedindo licença para conhecer o ritual do Daime e, durante suas pesquisas, teve a oportunidade de conhecer e entrevistar pessoas que conviveram com os nossos Mestres fundadores. Ele foi o pioneiro no estudo da Doutrina, escrevendo, em 1983, a primeira dissertação de Mestrado sobre o tema, e apresentando, para o meio científico, a obra O Palácio de Juramindam – Santo Daime: um ritual de transcendência e despoluição. Mas, na medida em que se estreitava a convivência com os dirigentes dos nossos Centros, vimos desabrochar o irmão, amigo e companheiro Clodomir. Amigo, porque soube ouvir e respeitar todo o conhecimento que lhe foi entregue nas mãos e, mais que isso, soube zelar a confiança que os nossos dirigentes tiveram por ele. Companheiro, porque não silenciou, nem se omitiu de compartilhar as dificuldades vividas pelos nossos Centros, nas décadas de 80 e 90, disponibilizando, a serviço de nossas casas, a sua sensibilidade, boa vontade e capacidade de articulação e elaboração. Clodomir ajudou os nossos dirigentes a encontrar soluções para garantir a defesa do bom uso da Ayahuasca em nossa sociedade, que vinha sendo, naquele momento, ameaçado por práticas que desvirtuavam os princípios ensinados pelos Mestres. 141
Pela confiança, o amigo recebeu carta branca de Madrinha Peregrina, Padrinho Manuel Araújo e Mestre Francisco Adamir Lima, representando o pensamento dos Mestres fundadores dos Centros Tradicionais da Ayahuasca, para ser um dos condutores do processo de construção da Carta de Princípios e do 1º Seminário Internacional da Ayahuasca, realizado no Anfiteatro Garibaldi Brasil, há 19 anos, quando reuniu estudiosos de alto gabarito. Foi com base nos ensinamentos dos nossos fundadores e, na Carta de Princípios, que o CONAD publicou, no Diário Oficial da União, no dia 26 de janeiro deste ano, a Resolução com as normas e procedimentos que regem o uso religioso da Ayahuasca, consolidando o reconhecimento público do Governo brasileiro pelo bom uso dentro dos princípios instituídos pelos nossos Mestres. A nossa homenagem a você, Clodomir, é um reconhecimento pela sua coragem em ter assumido, como sua, a nossa causa. Queremos, por conseguinte, dizer-lhe que a nossa luta prossegue. Assim como você esteve e está ao lado de Madrinha Peregrina, Padrinho Manuel Araújo e de tantos amigos da UDV, desejamos tê-lo contribuindo, neste Seminário, com as discussões para a construção de políticas públicas para as nossas comunidades. Neste momento, registramos a gratidão e o reconhecimento da nossa geração e das futuras gerações que darão continuidade as nossas Doutrinas, pelo relevante trabalho que você realizou e continua realizando em benefício do bom uso ritual da Ayahuasca. Rio Branco, 12 de abril de 2010. Assinam esta homenagem em nome das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. Madrinha Peregrina Gomes Serra - Dignitária do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo Mestre Francisco Herculano de Oliveira - Mestre Geral Representante do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal Francisco Hipólito de Araújo Neto - Presidente do Centro Espírita “Casa de Jesus-Fonte de Luz”
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Homenagem a Tufi Rachid Amim
Tufi Rachid Amim Texto de Juarez Duarte Bomfim (com adaptações da Srª Herotides Sales Amim)
T
ufi Rachid Amim nasceu em Rio Branco-Acre, em 10 de maio de 1952. Originário de família síriolibanesa, que migrou para o Norte do Brasil, atraída pela pujança econômica da borracha amazônica. Quando criança, estudou na Escola O Cruzeiro, fundada pelo Mestre Raimundo Irineu Serra, no Alto Santo, e teve, como professora, dona Percília Matos da Silva. Timidamente, o menino Tufi observava o Padrinho Irineu Serra nas visitas periódicas que este fazia à escola. Ainda garoto, Tufi começou a trabalhar para ajudar a família. Foi baleeiro, catraieiro, vaqueiro, “marreteiro” (compra e venda de gado), ajudante de caminhão, caminhoneiro, taxista, trabalhador rural e policial militar, onde contribuiu para a fundação do Corpo de Bombeiros do Acre. Aposentou-se como policial militar, e atuava como pequeno proprietário rural. O sargento Tufi Amim é filho do comerciante Rachid Amim Abrahim e de Luzanira Alves Rodrigues. Da amizade de Mestre Irineu Serra com Benjamim Rachid Amim, filho do velho Abrahim e irmão de Tufi, surgiu o convite para que fosse padrinho de casamento de Raimundo Irineu Serra com a dona Raimunda Feitosa, isso no já distante ano de 1937. Tufi Amim foi casado com a Sra. Herotildes Sales Amim, pai de cinco filhos – Rachid, Liliam, Leila, Suzy e Lisandra – e avô do menino Douglas. Terminou, ainda, de criar duas meninas, que recebeu como filhas: uma filha de coração, Clemilda, e uma afilhada, Chiquinha. Conheceu o Daime no ano de 1979, numa visita ao Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”, a Barquinha, presidida pelo Velho Pastor Manuel Araújo, da qual foi freqüentador, e no ano de 1985, filia-se à linha do Mestre Irineu, a Doutrina do Santo Daime, no Centro Livre, presidido por Luiz Mendes do Nascimento, Centro ao qual pediu fardamento. 143
Nesta casa – então denominada CICLU, atual Centro Rainha da Floresta – Tufi Amim exerceu as funções de subcomandante, comandante e gestor da Diretoria. Nesse período, contribuiu decisivamente na organização da inesquecível comemoração do Centenário do Mestre Irineu (1992), e os “causos” de tão memorável festa ainda estão vivos na lembrança dos participantes, como se tivessem ocorrido ontem. Em 1994, junto ao padrinho Luiz Mendes, Ladislau Nogueira, amigos e familiares, Tufi contribuiu decisivamente para a fundação do CICLURIS, também situado na Vila Irineu Serra, tendo Ladislau Nogueira como Presidente, Tufi Amim como Vice, e Luiz Mendes como Conselheiro. Em 1998, o CICLURIS é rebatizado de CICLUJUR – Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Juramidam – com a mesma composição da diretoria: Ladislau Nogueira, presidente; Tufi Amim, Vice-Presidente, enquanto que o Mestre Conselheiro, Luiz Mendes do Nascimento, adentrava à floresta para firmar a sua fortaleza. Foi na condição de dirigente daimista que Tufi Amim participou, como representante (suplente), do Grupo Multidisciplinar de Trabalho do Conselho Nacional de Drogas (GMT do CONAD), instituído como resultado do Seminário sobre a Ayahuasca, organizado pelo Governo Federal, em março de 2006, na cidade de Rio Branco, tendo o objetivo de criar normas e regulamentar o uso religioso da ayahuasca. Em 2008, Tufi Amim assume, com muito entusiasmo, o desafio de fundar um novo centro, o CICLU- MIDÃ, também na Vila Irineu Serra. O seu hinário “Eu sou feliz”, começou a ser recebido do Astral Superior por Tufi Amim, no ano de 1987. Tufi Amim era um ser curador. Foi médium passista do Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”, presidida pelo Velho Pastor Manuel Araújo. Mesmo com a saúde combalida, nos últimos nove anos de vida em matéria, de seu corpo emanava uma energia curadora, da qual todos nós éramos beneficiados. No seu último hino, de nº 40, Caminho de Amor, foi recebido por Tufi, no dia 27 de outubro de 2004, e é um 144
hino de despedida: Tufi Amim, sofrendo de doença renal crônica, passava pelo período mais crítico de sua vida, com a saúde abalada e, além disso, “desenganado” pelos médicos. É, pois, transferido às pressas para um hospital, em São Paulo, à espera de um transplante de rim. Ao receber este hino, o velho General do Exército de Juramidã imaginou que sua hora de deixar o mundo Terra tinha chegado, e ainda teve forças de instruir a esposa, Sra. Herotildes, para que acrescentasse o novo hino ao seu Hinário. O que Tufi Amim não sabia é que o chamamento a se apresentar no mundo espiritual, naquele exato momento, não era para si, pois o chamado para viajar “para junto de Mamãe” foi para a sua antiga professora e amiga: dona Percília Matos da Silva. O amor incondicional da sua generosa esposa foi fundamental para a recuperação de seu querido cônjuge, pois foi ela a doadora do rim que restituiu a vida e a saúde de seu amado marido. Os anos que sucederam ao transplante proporcionaram, ao velho Tufi Amim, participar de momentos de grande importância para a Doutrina Daimista, tais como a participação como palestrante no Fórum Social Mundial, em 2009, realizado em Belém-PA, e também teve a felicidade de participar do 1º Seminário de Cultura Ayahuasqueira, realizado no 1º semestre de 2010, na cidade de Rio Branco - Acre, pouco antes de sua passagem. No dia 3 de maio de 2010, às 14h30m da tarde, em Rio Branco – Acre, Tufi Rachid Amim partiu para a vida espiritual. Foi para “juntinho de Mamãe”, atendendo o chamado do “Velho Juramidã”. Tufi Amim está feliz, pois voltou à sua pátria espiritual, retornou ao seu país, como afirma no seu primeiro hino. Cumpriu a sua missão aqui na Terra, de bom pai, bom marido, bom amigo e irmão. Amigo Tufi, hoje nós rezamos e rogamos por ti. Rezai e rogai por nós, também.
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CARTA DE PRINCÍPIOS Das entidades religiosas usuárias da Ayahuasca
A Documentos
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s entidades religiosas abaixo-relacionadas, sem prejuízos de suas identidades e convicções, comprometem-se, através desta Carta de Princípios, em adotar procedimentos éticos comuns em torno do uso do chá resultante da decocção dos vegetais Banisteriopsis Caapi (Mariri ou Jagube) e Psychotria Viridis (Chacrona ou Rainha) – doravante aqui denominado AYAHUASCA ( Hoasca, Daime, Vegetal, etc.). Do preparo e uso da Ayahuasca – A Ayahuasca é o produto da União do Banisteriopsis Caapi e Psychotria Viridis, fervidos em água. Seu uso, que é tradicional entre os povos da floresta amazônica, deve ser restrito nos centros urbanos aos rituais religiosos autorizados pelas direções das entidades usuárias, em locais apropriados sendo vedada sua associação a substâncias proscritas. Dos rituais religiosos – respeitada a liturgia de cada uma tendo em vista as peculiaridades do uso da Ayahuasca – as entidades comprometem-se em zelar pela permanência dos usuários até o tempo determinado pelas suas respectivas direções. Do plantio e cultivo – As entidades têm o direito ao plantio e cultivo dos vegetais necessários para obtenção da bebida, em face à depredação do habitat natural onde eles se encontram mais acessíveis. Dos cuidados e restrições: a) Comercialização – As entidades comprometem-se incondicionalmente em não comercializar a Ayahuasca, mesmo à seus adeptos, sendo seus custos de produção, transporte, estocagem e distribuição às filiais de responsabilidades dos centros. b) Curandeirismo – A prática do curandeirismo proibida pela legislação brasileira deve ser evitado pelas entidades signatárias. As propriedades curativas e medicinais da Ayahuasca – que estas entidades conhecem e atestam – requerem 147
uso adequado e devem ser compreendido do ponto de vista espiritual, evitando-se todo e qualquer alarde publicitário que possam induzir a opinião pública e as autoridades a equívocos. c) Pessoas incapacitadas – será vedado terminantemente a participação nos rituais religiosos, bem como o uso da Ayahuasca, às pessoas em estado de embriaguês ou sub efeito de substâncias proscritas. A participação de menores de idade só será permitida com a autorização dos pais ou responsáveis. d) Da Difusão de Informações – Grande parte das controvérsias e contratempos em torno do uso da Ayahuasca – inclusive junto às autoridades constituídas – decorre dos equívocos difundidos pelos veículos de comunicação. Isso impõe, da parte das entidades usuárias, especial zelo no trato das informações em torno da Ayahuasca. Assim sendo, torna-se indispensável: 1) Que cada instituição, ao falar aos veículos de comunicação, esclareça obrigatoriamente sua identidade, ressalvando que não fala pelas demais entidades usuárias; 2) Que cada instituição restrinja a pessoas experientes de sua hierarquia o direito de falar aos veículos de comunicação, tendo em vista os riscos decorrentes da difusão inconseqüente do tema, por parte de pessoas com ele pouco familiarizadas; 3) Quando estiver em pauta tema comum às instituições usuárias, deve-se buscar entendimento prévio em torno do que será difundido, de modo a resguardar oi interesse geral e a correta compreensão dos objetivos de cada uma. Da regulamentação Legal – A regulamentação do uso da Ayahuasca, através de lei, aprovada pelo Congresso Nacional, é objetivo prioritário das entidades signatárias desta Carta de Princípios. Por essa via, superam-se definitivamente os obstáculos e controvérsias ao uso adequado da Ayahuasca, mediante mecanismos de fiscalização legal, a serem claramente definidos. Cada uma das instituições signatárias compromete-se em designar um representante para responder pelos termos desta Carta de princípios perante as demais. 148
Esta Carta de princípios está aberta a adesões por parte de outras entidades usuárias da Ayahuasca que se comprometem com os seus termos. Rio Branco, 24 de novembro de 1991.
Manoel Hipólito de Araújo Presidente - Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz
Luiz Mendes do Nascimento Presidente - Centro Iuminação Cristã Luz Universal
Juarez Martins Xavier Presidente - Centro Espírita Luz, Amor e Caridade
Antonio Alves Leitão Neto Representante Designado - Centro de Iluminação Cristã Luz Universal
Raimundo Carneiro Braga Mestre Geral Representante - Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
Antonio Geraldo da Silva Filho Representante Designado - Centro Espírita Daniel Pereira de Matos
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Excelentíssimo Senhor Gilberto Passos Gil Moreira Ministro da Cultura da República Federativa do Brasil
A
yahuasca é um termo de origem Quéchua, que significa “vinho das almas”, e é utilizado para designar o chá feito pela cocção de duas plantas originárias da floresta amazônica: o cipó Jagube ou mariri (Banisteriopsis Caapi) e as folhas da Rainha ou Chacrona (Psychotria Viridis). Este chá serviu como base para o estabelecimento de diferentes tradições espirituais por comunidades indígenas em uma vasta região que compreende diversos países amazônicos (Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, etc.), tradições mágico/ culturais que se consolidaram na grande floresta amazônica, durante os últimos dois mil anos, pelo menos, e exerceram influências importantes, inclusive sobre sociedades complexas da região andina, como a civilização Inca, por exemplo. Mais recentemente, nos primeiros anos do século XX, na Amazônia Ocidental (atuais estados do Acre e de Rondônia, na fronteira com o Peru e a Bolívia), a formação da sociedade extrativista da borracha - que a exemplo dos povos indígenas amazônicos – tinha, como marca fundamental, uma enorme multiplicidade étnica e cultural, estabeleceu as condições necessárias para que a milenar tradição indígena da Ayahuasca fosse assimilada por brasileiros e desse origem a uma nova configuração religiosa, cultural e social. Assim, Raimundo Irineu Serra e Daniel Pereira Mattos (ambos negros, maranhenses, descendentes de escravos) fundaram, entre 1910 e 1945, uma doutrina religiosa que rebatizou a Ayahuasca com o nome de “Daime”. Algum tempo depois, na década de 60, o baiano José Gabriel da Costa formulou uma outra doutrina, que passou a chamar a Ayahuasca de “Vegetal”. 150
Porém, mais importante do que apenas designar novos nomes, a atuação destes três mestres fundadores Irineu, Daniel e Gabriel – estabeleceu as bases doutrinárias de uma nova tradição religiosa, sincreticamente brasileira e tipicamente amazônica, que possibilitou a formação de comunidades organizadas em torno do uso ritual da Ayahuasca e que passaram a ter importante papel (político, social e cultural) na própria formação da sociedade brasileira na Amazônia Ocidental. O conhecimento espiritual destas doutrinas tem sido transmitido, de geração a geração, e mantido por diversas tradições culturais através de um sincretismo religioso caracteristicamente amazônico, o que implica numa relação essencialmente harmônica com a natureza e estabelece um sentimento de identidade e continuidade, garantindo, assim, o respeito à diversidade étnico-cultural e à criatividade humana. Com isso, as Doutrinas do Daime/Vegetal, como estabelecidas por seus mestres fundadores, tornaram-se partes indissociáveis da sociedade brasileira, podendo, assim, receber o reconhecimento como patrimônio cultural de nosso país. Com base nas informações acima relacionadas, podemos afirmar que a utilização ritual da Ayahuasca, em doutrinas religiosas, preenche os quesitos que a caracterizam como patrimônio imaterial, considerado como “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que comunidades ou grupos reconhecem como parte integrante do seu patrimônio cultural.” Em atenção aos ditames da Resolução nº 1, de 3 de agosto de 2006, expedida pelo Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), os representantes responsáveis pelas Fundações Culturais do Estado do Acre e do Município de Rio Branco, a partir do diálogo com os centros que integram os três troncos fundadores das contemporâneas doutrinas Ayahuasqueiras, solicitam ao Senhor Ministro da Cultura que, através do Iphan, instaure o processo de reconhecimento do uso da Ayahuasca em rituais religiosos, como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira. 151
Daniel (Zen) Santana de Queiroz Presidente da Fundação Elias Mansour/Estado do Acre
Marcos Vinícius Neves Diretor-presidente da Fundação Garibaldi Brasil/Município de Rio Branco
Peregrina Gomes Serra Centro de Iluminação Cristã Luz Universal-CICLU – Alto Santo
Francisco Hipólito de Araújo Neto Centro Espírita e Culto de Oração/“Casa de Jesus – Fonte de Luz”
José Roberto da Silva Barbosa Centro Espírita Beneficente União do Vegetal - UDV
Jair Fagundes de Oliveira Centro de Iluminação Cristã Luz Universal - CICLU
Rio Branco, 30 de abril de 2008.
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Relatoria de Cultura Marcos Vinícius Neves
D
Relatorias
urante as primeiras décadas da formação dos centros tradicionais da Ayahuasca na Amazônia Ocidental, as principais questões que afetavam as suas comunidades giravam em torno de aspectos religiosos, políticos e sociais, já que o Estado era, então, quase totalmente ausente no atendimento das necessidades das pessoas. Mais tarde, com o pioneiro trabalho de Clodomir Monteiro (1983), houve um crescente interesse acadêmico, ou literário, sobre as diversas questões relacionadas às doutrinas ayahuasqueiras, cujo foco foi mudando, ao longo do tempo, e pode ser observado até os dias de hoje. Entretanto, observa-se, também, que muitas dissertações, teses e livros publicados, desde então, foram elaborados por pesquisadores de outras regiões do Brasil, que vinham ao Acre e à Amazônia para “coletar” informações, e pouco ofereceram, como “retorno”, às comunidades “pesquisadas”. Ou, então, tiveram, como objetivo, atender a interesses muito localizados deste ou daquele grupo. Os anos 90 marcaram uma mudança na postura dos centros tradicionais que, já na reunião, que culminou com a elaboração da Carta de Princípios (1991), demonstrou claramente um posicionamento ético e político de suas comunidades frente aos desafios contemporâneos, buscando fortalecer os princípios fundamentais legados pelos Mestres Fundadores: Raimundo Irineu Serra (Alto Santo), Daniel Pereira de Mattos (Barquinha) e José Gabriel da Costa (União do Vegetal). É, nesta época, também, que começam as primeiras ações que revelam uma forte preocupação com aspectos culturais e ambientais por parte das comunidades amazônicas, fruto das rápidas mudanças e crises sociais que atingiam toda a região, como, por exemplo, a criação do Centro de Memória Daniel Mattos, em 1995. Esta linha, da atuação das comunidades tradicionais, vem ganhando cada vez mais força nos últimos anos, culminando com o efetivo e intenso funcionamento da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras, no Conselho Municipal de Políticas Culturais da FGB, e com o pedido feito ao Ministério da Cultura para o Registro do Uso Ritual da Ayahuasca, como Patrimônio Imaterial Brasileiro. Assim, está em curso a redefinição da relação dessas comunidades tradicionais com o Estado Brasileiro, no sentido de que as questões relativas aos centros tradicionais criados pelos três mestres fundadores (Irineu Serra, Daniel Mattos e Gabriel Costa) devem ser tratadas no âmbito do Ministério da Cultura (e demais instituições estaduais e municipais correspondentes), e não no âmbito do Ministério da Justiça, ou dos órgãos de Saúde e Segurança Pública. Instrumentos legais de preservação e promoção culturais: - Leis Federais, Estaduais (Lei nº. 1294) e Municipais (Lei nº. 1677) de Patrimônio Cultural; - Legislações Ambientais federal, estaduais e municipais; Legislações Urbanísticas (Planos Diretores e outras);
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Mecanismos de preservação, proteção e difusão de práticas, locais e monumentos:
Tombamento: Destinado à proteção de patrimônio edificado ou paisagístico; Registro - Destinado à proteção do patrimônio imaterial; Áreas especiais – Proteção de áreas definidas através de tombamento de sítios históricos ou da Criação de APAs e Áreas de Especial Interesse Histórico e Cultural (AEIHC); Inventários - Levantamentos (Pesquisa) dos diferentes bens culturais (materiais e imateriais) que devem ser preservados; Obs: Estes mecanismos atuam de forma complementar, visto que cuidam de aspectos e bens culturais distintos. Extra – Cultura
- Elaboração, apresentação, aprovação de projeto coletivo de diversos centros pela Câmara Temática para curso de formação em história oral; Em 2009: Execução do Projeto Curso de formação de agentes comunitários em história oral; Em 2010: Aprovação do Projeto de Inventário para instrução do Processo de Registro da Ayahuasca, como Patrimônio Imaterial Brasileiro por parte do IPHAN (2010);
Relatoria Educação Rosângela Silva de Oliveira
Ações já realizadas e em curso:
Em 1995: Construção da Casa de Memória da Barquinha; Em 2005: - Criação da Área de Proteção Ambiental e Cultural Irineu Serra - Elaboração de Plano de Manejo; - Publicação do livro de Daniel Mattos; Em 2006: - Pedido de tombamento do Alto Santo e correspondente publicação dos decretos municipal e estadual, bem como abertura de processo federal, estadual e municipal; - Desapropriação da casa do Sr. Leôncio para constituição de Centro de Memória; - Aprovação do Plano Diretor de Rio Branco, com a previsão das AEIHC do Alto Santo e da Barquinha; Em 2007: - Publicação de revista do Antonio Geraldo; - Publicação da revista da Madrinha Chica Gabriel; - Reuniões preparatórias para o pedido do registro da Ayahuasca, com apoio da Deputada Federal Perpétua Almeida; - Aprovação da Lei do SMC, com ampla participação das comunidades da Ayahuasca, e formação da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras - uma das mais ativas e participativas dentre as 34 Câmaras que compõe o CMPC; Em 2008: - Restauração da casa do Mestre Irineu e reinstalação de Centro de Memória; - Implantação de Centro de Memória da Barquinha da Madrinha Chica Gabriel; - Pedido ao Ministro Gilberto Gil do registro do uso ritual da Ayahuasca, como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira (maio de 2008); - Governo do Peru declara los conocimientos y usos tradicionales del Ayahuasca practicados por comunidades nativas amazônicas, como patrimônio nacional (24 junho de 2008); 156
1) Problemas que afligem pais e crianças das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca em relação à escola/educação.
- O Professor, que destrata; - Os colegas, que discriminam; - A escola, que marginaliza; - O Ensino de doutrinas; - As Omissões; - As Reprovações. 2) Leis e Direitos – Função do Poder Público
LDB-9394/96 exige 5 conjuntos de reflexões e decisões: O artigo 33, redefinido na Lei 9475/97 , dispõe sobre o ensino religioso no nível fundamental das escolas públicas, e traz, à luz da reflexão, a premissa de que todas as escolas devem estar centradas no compromisso da formação básica do cidadão que tem, nos seus princípios gerais, os fundamentos norteadores dos currículos, e de todo o projeto pedagógico nos diferentes níveis de ensino e na formação do professor. Parecer CEE/AC 09/1999 – Estabelece diretrizes gerais para a implementação do ENSINO RELIGIOSO no âmbito dos sistemas de educação básica no Acre, face à LDB.
- Criação do Fórum do Ensino religioso – Elaborou a Proposta Curricular do Ensino Fundamental – Implementação do Ensino Religioso. OBS: No Fórum, no entanto, não há participação de representantes das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. Enquanto somos reconhecidos pelo poder público Estadual e Federal com os títulos de utilidade pública pelos serviços prestados à sociedade, não temos o reconhecimento como instituições religiosas no âmbito do ensino religioso, mesmo prestando serviços à educação, através das nossas escolas, a partir da década de 60. 157
Parecer CEE/AC 63/2002 – Analisa a Proposta Curricular do ENSINO RELIGIOSO para o Ensino Fundamental (1ª a 4ª) Série e de (5ª a 8ª).
- Um dos desafios desta proposta é reconhecer a importância da educação religiosa como parte da formação integral do cidadão, transcendendo a opção religiosa, a defesa de dogmas, mas alicerçando-se na contribuição das diferentes ciências, como História, Filosofia, dentre outras. - A organização de conteúdos na Proposta é feita a partir de quatro grandes eixos: Espiritualidade, Ética, Alteridade e Tradição. No tratamento dos conteúdos curriculares, a realidade do aluno é o ponto de partida e chegada, valorizando suas experiências e vivências religiosas, justificando a opção por uma concepção de aprendizagem que envolve o aluno como todo, promovendo seu desenvolvimento afetivo, social, espiritual e cognitivo. Exemplo: Na 6ª Série – ao tratar o tema tradição – a abordagem dos conteúdos, necessariamente, objetiva – propiciar a compreensão da história e da origem da palavra sagrada na história das tradições religiosas, relacionando-as com as práticas significativas para os diferentes grupos. Recomendação N. 001/2009, da Promotoria Especializada de Defesa da Cidadania e Saúde, que visa apurar a discriminação religiosa praticada pelas entidades religiosas.
Onde recomenda: 1 - Às instituições Religiosas e à sociedade de Rio Branco, que se abstenham de praticar atos discriminatórios por motivos de religião e nem exerçam coação capaz de limitar a liberdade do indivíduo de ter a religião de sua preferência. 2 - Encaminhem-se cópias desta Recomendação aos Representantes dos Templos Religiosos desta cidade, bem como aos Presidentes da Assembléia Legislativa e Câmara de Vereadores, para ciência. 3 - Encaminhem-se cópias desta Recomendação, também, para as Emissoras de Televisão e Jornais Periódicos, para darem ampla divulgação à sociedade de Rio Branco, visando cientificar o conteúdo da Recomendação para, de forma preventiva, coibir a prática de atos discriminatórios por motivo de religião. 4 - A não observância integral, contida na presente Recomendação, acarretará a adoção, pelo Ministério Público Estadual, das medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis. 3) Práticas e Experiências – O que cada centro tem feito para minimizar os problemas relacionados ao preconceito Comunidade do Mestre Daniel - A Escola São Francisco de Assis I
A Escola São Francisco de Assis I, diferentemente da criação de outras escolas da rede estadual, foi pensada e concretizada fora do controle do Estado. Nasceu no ano de 1963, criada por Manuel Hipólito de Araújo, a partir da necessidade de crianças e adultos, que faziam parte do Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus – Fonte de Luz”. 158
O princípio que motivou a fundação da Escola, por Manuel Araújo, foi o respeito ao próximo, que se estende à valorização das diferenças, sejam elas, políticas, religiosas ou econômicas. Convivendo em meio ao grupo religioso, que utiliza o Daime em seus rituais religiosos, padrinho Manuel Araújo presenciava as constantes dificuldades sofridas pelos filhos dos irmãos, nas escolas próximas ao Centro, onde eram discriminados por serem filhos de seguidores da doutrina. Sensibilizado com a situação das crianças que, por intolerância religiosa sofriam preconceito, passou a lecionar, na sala de sua casa, no terreno do Centro. Era uma taperazinha de sala e quarto, construída em taipa e coberta com latas de querosene aberta, medindo 4 metros de largura por 6 de comprimento. Comunidade do Alto Santo - Escola Municipal de Ensino Fundamental Mestre Irineu
A denominação da Escola Municipal de Ensino Fundamental Mestre Irineu é uma homenagem, pelo reconhecimento, por parte da comunidade e do poder público, do pioneirismo na promoção da educação escolar na comunidade, onde após a construção da sede oficial dos trabalhos no final da década de 1950, Mestre Irineu Serra fundou a primeira escola, no Alto Santo, denominada Escola Cruzeiro, que funcionou, durante muitos anos, no espaço construído para os cultos religiosos. Após o falecimento de Raimundo Irineu Serra, em 06 de Julho de 1971, a Escola Cruzeiro funcionou poucos anos na sede provisória, ganhando uma estrutura física própria, no final da década de 1970, passando a ser administrada pelo Estado e, a partir da década de 80, pelo poder público municipal. União do Vegetal - Amigos da Escola Mário Lobão
Em 2006, cedeu espaço para acomodar a turma de alunos excedentes da escola Mário Lobão. Após um ano, quando a escola foi reformada, continuou cedendo espaço para atividades recreativas. 4) Propostas: - Que as instituições de Educação do Estado e Município reconheçam que a tradição da doutrina que seguimos faz parte da história do Acre, como cultura religiosa existente há quase um século, sendo parte, portanto, do processo de construção da sociedade acreana. - Que o Fórum de Ensino religioso seja reativado e tenha a participação de representantes das comunidades tradicionais da ayahuasca. - Que os professores tenham formação para ministrar a disciplina de Ensino Religioso. E que tenham acesso a informações sobre a história da doutrina das comunidades tradicionais da ayahuasca. - Que os professores tenham formação específica para o ensino religioso, sendo garantidos a partir dos critérios de seleção dos mesmos. Incluir, de forma didática, a história e a tradição da Doutrina da ayahuasca nos conteúdos da grade curricular de ensino religioso. 159
Relatoria Turismo Marcos Vinícius Neves
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esde as novas configurações sócio-culturais dos anos 70 e 80, que atingiram toda a humanidade, diversos centros religiosos da Ayahuasca passaram a atrair, fortemente, a atenção e o interesse de brasileiros e estrangeiros que, provenientes dos grandes centros urbanos, queriam se pôr em contato com estas doutrinas, tipicamente amazônicas. A expansão de alguns centros religiosos para grandes cidades, como o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, aumentou ainda mais a curiosidade sobre as práticas tradicionais das comunidades ayahuasqueiras amazônicas. Esta nova realidade promoveu, não só um aumento no fluxo de visitantes nacionais e estrangeiros, como também mudanças em algumas práticas tradicionais pela inserção de novos elementos, até então desconhecidos pelas comunidades amazônicas. Isso provocou a reação dos centros mais tradicionais, que reforçaram seus mecanismos de controle visando manter práticas e costumes como definidos por seus fundadores. O surgimento de diversos grupos de prática eclética, também chamados de Neo-ayahuasqueiros, abriu caminho para experiências de turismo místico, isoladas em diferentes partes do Brasil, tipificando uma modalidade de abordagem turística não adotada pelos centros tradicionais, uma vez que envolve diferentes formas de remuneração pelos serviços prestados, o que contraria os dogmas religiosos estabelecidos pelos Fundadores dos centros tradicionais. Ao mesmo tempo, o aumento do fluxo turístico para outros países amazônicos, como o Peru e a Colômbia, impactou culturas indígenas diversas dando origem ao movimento conhecido como Neo-xamanismo, que também adotou práticas econômicas relacionadas ao turismo místico. Isso tem trazido problemas, também, para diferentes etnias indígenas amazônicas, como a perda de seus elementos culturais originais e a adoção de novas práticas e usos, até então desconhecidos por estes grupos ou seus integrantes. Por outro lado, não se pode desconhecer que os Centros Tradicionais da Ayahuasca sempre estiveram abertos ao acolhimento daqueles que os procuram por diferentes motivos, como a busca da cura de seus problemas. Com a ressalva que, ainda que isso pudesse ser visto como uma modalidade de turismo (pelo menos conceitualmente), por questões éticas e religiosas não pode envolver qualquer tipo de remuneração pelo atendimento religioso, ainda que a título de cobertura de custos. Atualmente, com o incremento do fluxo turístico em razão da execução de diversos programas governamentais - tais como, por exemplo, a abertura da Estrada do Pacífico e a estruturação de programas locais de promoção turística – faz-se necessário discutir os limites dentro dos quais se pode pensar o turismo, em suas diversas modalidades, de forma a adequá-lo à realidade sócio-cultural das comunidades tradicionais da Ayahuasca para salvaguardá-las de possíveis impactos negativos que possam vir a ocorrer diante deste novo quadro. 160
Parâmetros e Ações em curso:
- Implementação de um Programa Estadual de Turismo estruturado e relacionado aos grandes programas nacionais e internacionais pela SETUL; - Implantação de um Plano Municipal de Turismo (relacionado ao Programa 65 Municípios Indutores do Ministério do Turismo); - Abertura de diversos cursos de graduação e outras modalidades de formação técnica que criam pressão por abertura de novos campos de atuação profissional relacionados ao turismo; - Impactos causados por promoções turísticas realizadas sem atenção aos parâmetros sócio-culturais de nossa realidade regional; - Demandas sobre os organismos públicos para efetivação de ações de promoção turística por alguns centros religiosos; - Recente resolução do CONAD (Conselho Nacional Anti-Drogas) disciplinando os limites da abordagem turística para comunidades religiosas que fazem uso da Ayahuasca;
Relatoria Saúde Francismar Leão
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onsidero este momento muito importante para as comunidades ayahuasqueiras, pelo reconhecimento que estamos tendo das instituições públicas, o que, certamente, vem contribuindo para garantir os nossos direitos constitucionais. Nesta oportunidade, estou aqui para abrir os trabalhos desta sessão temática, apresentando-lhes dois temas importantes relacionados à saúde de nossas comunidades, que servirão de base para uma conversa franca, construtiva, e para que possamos, ao concluir este seminário, elaborar e encaminhar, juntamente com os demais textos provenientes das outras câmaras temáticas, um documento às autoridades, propondo ações de políticas públicas voltadas para as necessidades das comunidades ayahuasqueiras acreanas. Os assuntos aqui relatados nasceram de uma série de conversas anteriores entre os representantes das comunidades ayahuasqueiras, a comissão organizadora desse evento, e outras pessoas que, também, detêm conhecimento sobre o modo de vida desses povos. 1. DOAÇÃO DE SANGUE O primeiro tema retrata a situação atual da doação de sangue, por ayahuasqueiros, em nosso Estado. Há cerca de cinco anos, algumas pessoas da UDV procuraram o HEMOACRE para doar sangue, mas foram impedidas quando informaram que eram adeptas de uma religião que utiliza o chá Ayahuasca, em seus rituais religiosos. 161
Eu, particularmente, escutei algumas dessas pessoas e, em seguida, conversei com outras pessoas, também da área da saúde, e juntos procuramos a legislação, que normatiza a doação de sangue para estudar e ver em quê estava fundamentada a proibição. Naquela ocasião, fui escalada em meu trabalho para doar sangue. Assim, cheguei ao HEMOACRE e, sem identificar-me profissionalmente, submeti-me aos procedimentos comuns a todos que lá chegam com o intuito de doar sangue. Fui muito bem recebida, sendo, em seguida, encaminhada para uma entrevista. Observei que o formulário questionava sobre o uso de álcool e outras drogas e, entre as alternativas, não estava a ayahuasca. Na pergunta seguinte, fui questionada se eu costumava passar as noites acordadas, ao qual respondi que não. Finalizamos essa etapa e, se os índices sanguíneos não estivessem abaixo do permitido, eu teria doado sangue normalmente. Saí de lá com o seguinte questionamento: como as pessoas tinham acesso à informação de que o doador bebia o chá se não lhe era perguntado? Voltei a falar com as pessoas que me procuraram, e elas relataram que, na segunda pergunta, referente às noites acordadas, responderam que passavam as noites acordadas, em alguns finais de semana, devido à religião que frequentavam, quando utilizavam um chá nos rituais religiosos. Após essa resposta, automaticamente, o entrevistador os excluía do processo, alegando que “quem bebe o Daime, não pode doar sangue, porque o chá é alucinógeno”. Novamente, voltei a estudar a legislação, que regulamenta a doação de sangue para ver se algo tinha mudado, e não encontrei qualquer coisa que mencionasse o que expus acima. Com isso, concluí que a autorização para realizar a doação estava dentro do critério do entrevistador. Ela era puramente subjetiva e estava intimamente relacionada com o entendimento que o entrevistador tinha a respeito do chá quando escutava a menção de uso pelo entrevistado. Isso nos fez entender que, nas entrelinhas, estávamos expostos ao preconceito e, acima de tudo, à falta de conhecimento das pessoas sobre o que já existe, publicado na literatura científica, a respeito desse assunto, visto que é o que elas demonstravam em suas ações. Nesse período, a bancada federal do Estado, representada pelo Senador Tião Viana e pela Deputada Federal Perpétua Almeida, intervieram junto ao HEMOACRE, buscando e conseguindo um entendimento e uma solução para o problema. Com isso, passamos um tempo doando sangue, mas ocorria porque omitíamos a informação de que passávamos algumas noites acordadas. No ano passado, novos impedimentos de doação de sangue aconteceram com membros das nossas comunidades, em Cruzeiro do Sul e, também, em Rio Branco. Acompanhei novamente o caso, que foi tratado da seguinte maneira: um membro do Departamento Jurídico da UDV entrou em contato com a Gerente Geral do HEMOACRE acerca do acontecido na cidade de Cruzeiro do Sul. Ela o recebeu bem e, logo de entrada, desculpou-se por tal fato, nomeado por ela de puro preconceito. Comentou ainda que repudiava essa prática e, na mesma hora, entrou em contato com a agência transfusional do município para os esclarecimentos necessários. 162
Também se comprometeu em elaborar um documento para ser encaminhado às agências, em outros municípios do Estado, coibindo tal prática. Alguns meses depois, eu tive a oportunidade de conhecer essa pessoa. Na oportunidade, conversamos sobre o assunto e ela novamente reiterou as palavras acima citadas, e disse ainda que, em uma região com diversas doenças endêmicas como a nossa, não podíamos nos dar ao luxo de excluir pessoas com hábitos de vida saudáveis, somente por puro preconceito. Conversamos, ainda, acerca da possibilidade de realizarmos uma atividade intitulada Dia da Saúde para as nossas comunidades, e o ônibus de captação se fazer presente para doarmos sangue e, se possível, fidelizarmos nossos doadores ao Banco de sangue. Desta forma, derrubaríamos de uma vez esse preconceito e, ainda, poderíamos auxiliar a Sociedade com um ato tão nobre. Tal evento aconteceu em dezembro/2009, na UDV, mas por questões de agendamento, o ônibus não pôde ser disponibilizado. 1. USO DE FITOTERÁPICOS: O segundo tema a ser debatido, hoje, é o uso de fitoterápicos dentro destas comunidades. Essa prática é muito comum entre as pessoas da região amazônica e não só das comunidades ayahuasqueiras. É uma prática salutar, milenar e comum entre todos os povos da humanidade. Os Estados Unidos, por exemplo, gastam em média, anualmente, cerca de 40 milhões de dólares com medicina complementar e alternativa, sendo 70% desse valor com o uso de fitoterápicos. Para nós, então, que moramos dentro da floresta, essa prática é mais arraigada, especialmente pelas grandes dificuldades que já tivemos, e ainda temos em determinadas regiões, pela carência de atendimento médico. O Sistema Único de Saúde (SUS), hoje, coloca à disposição dos gestores da área da saúde, a possibilidade de implantar programas de práticas terapêuticas complementares, principalmente no âmbito da atenção primária, como mecanismo de prevenção e cura de doenças. Assim, a fitoterapia vem sendo progressivamente reconhecida pela saúde pública em nosso país, através destes programas de medicina complementar, juntamente com especialidades, como homeopatia e acupuntura. Já há Estados em que os Centros de Saúde têm atendimento com fitoterapia, com base em uma lista de ervas medicinais, elaborada pelo Ministério da Saúde. A implementação destes programas vem demonstrando o que a literatura mostra: a cada real gasto em práticas preventivas em saúde, economizam-se quatro em tratamentos curativos. Isso é um forte ponto de contribuição para a melhora da qualidade de vida das pessoas. Em nossas comunidades, há pessoas com grande conhecimento e experiência no uso de plantas no tratamento de doenças comuns à nossa região. Ainda temos muitas pessoas que acreditam no poder curativo dos vegetais e procuram, quando doentes, antes de procurarem os serviços médicos, as pessoas que sabem das propriedades terapêuticas das ervas medicinais. Enquanto esta prática mantémse de forma artesanal e caseira, sem qualquer acondicionamento para uma maior 163
durabilidade e eficácia das propriedades terapêuticas, não há problemas com os órgãos públicos da área sanitária. A partir do momento em que uma pessoa resolve acondicionar o fitoterápico, visando à venda do produto, ela precisa se submeter à legislação vigente da Vigilância Sanitária, que normatiza o processo de colheita da planta, preparação, acondicionamento, transporte, conservação e distribuição do fitoterápico. Esta é a recomendação que fazemos.
Relatoria Segurança Márcio Dagnone
Artigo publicado no Jornal “Alto Madeira”, em edição de 6 de Outubro de 1967 “Quando foi preso em Jarú, José Rodrigues Sobrinho, por estar preparando o Vegetal, que chamam pelo nome de HOASCA, o Mestre da UNIÃO DO VEGETAL, JOSÉ GABRIEL DA COSTA, foi chamado pelo Senhor Delegado de Polícia da Capital, para fornecer alguma explicação sobre aquele líquido, Chá Misterioso. O Senhor Delegado, não encontrando nenhuma infração legal, deu cobertura à UNIÃO com as seguintes palavras: “Não posso proibir as Sessões de vocês, mas também não posso dar licença.”
Neste artigo, temos dois aspectos da segurança pública: 1. Segurança preventiva e punitiva – que conduz o cidadão perante a autoridade policial, e a 2. Segurança jurídica – que dá ao cidadão a certeza de que pode agir ou deixar de agir pela existência ou pela ausência de determinada lei. No exemplo, o Mestre da União do Vegetal, José Gabriel da Costa, foi levado perante a autoridade policial, mas não foi punido, porque não havia lei que definisse sua atividade como ilegal, nem que suas atitudes se enquadrassem em algum artigo da legislação punitiva. A primeira atitude do delegado, de detê-lo, foi motivada pelo preconceito. A segunda, pelo direito – visto que não há crime sem existir uma lei que assim o defina. I. Conceito de segurança pública
Numa sociedade que exerce a democracia plena, a segurança pública garante: 1. A proteção dos direitos individuais; e 2. Assegura o pleno exercício da cidadania. Neste sentido, a segurança pública é: Condição para o exercício da liberdade, que garanta qualidade de vida dos cidadãos. Portanto, Segurança Pública diz respeito ao exercício pleno do ESTADO DE DIREITO, onde as pessoas e suas convicções lícitas são respeitadas e garantidas. 164
II. Segurança com Cidadania
A Secretaria Nacional de Segurança Pública, (SENASP) vinculada ao Ministério da Justiça, sabedora da necessidade de institucionalizar os conceitos de segurança com foco na cidadania, em legislação própria, lançou o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI). Neste novo conceito, a Segurança Cidadã contempla políticas de prevenção à violência e à criminalidade, em parceria com a comunidade, através de mecanismos que garantam o pleno gozo dos direitos da cidadania. Proposta das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca para im-plantação de Medidas de Segurança preventiva e punitiva. As comunidades da Ayahuasca se dispõem a elaborar, juntamente com a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Acre, um plano de segurança preventiva que garanta a liberdade e a segurança de seus cultos e de seus membros. III. Políticas Públicas sobre Drogas no Brasil
Até 1998, o Brasil não contava com uma política nacional específica sobre o tema da redução da demanda e da oferta de drogas. A partir da XX Assembléia Geral Especial das Nações Unidas, cujas medidas sobre redução da demanda de drogas foram aderidas pelo Brasil, este começou a tomar medidas mais efetivas. O então Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) foi transformado no Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (CONAD) e foi criada a Secretaria Nacional antidrogas (SENAD), diretamente vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. IV. CONAD regulamenta o uso religioso da Ayahuasca
O Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas - CONAD - editou a Resolução nº5/2004, que traz normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da Ayahuasca. Breve histórico
Nos anos 80, o uso da bebida chegou a ser proibido. Em 1987, houve a suspensão provisória da interdição do uso da Ayahuasca, pelo CONFEN, com a exclusão da bebida e das espécies vegetais que a compõem das listas da DIMED. Em 1991, o CONFEN foi novamente incumbido de realizar estudos sobre o contexto de produção e do consumo da bebida. O estudo concluiu que não havia razões para alterar a conclusão proposta em 1987, que havia liberado o uso da substância para fins religiosos. Em março de 2004, o CONAD solicitou a elaboração de parecer técnico-científico a respeito do uso da Ayahuasca, sendo instituído o Grupo Multidisciplinar de Trabalho - GMT. O parecer final do GMT foi aprovado na Reunião do CONAD de 17/08/04 (Resolução nº 5, de 04/11/04), que aprovou os seguintes princípios de ontológicos para o uso religioso da Ayahuasca: 165
1. O uso do chá Ayahuasca é restrito a rituais religiosos, proibido o seu uso associado a substâncias psicoativas ilícitas; 2. É proibida a comercialização da Ayahuasca; 3. As entidades deverão buscar a auto-sustentabilidade, desenvolvendo seu próprio cultivo. A extração das espécies da floresta nativa deverá observar as normas ambientais; 4. O chá não deve ser utilizado com finalidades de turismo; 5. As entidades devem evitar a propaganda da Ayahuasca, ser discretas e moderadas no uso e difusão de suas propriedades; 6. A prática do curandeirismo é proibida pela legislação brasileira. As propriedades curativas e medicinais da Ayahuasca requerem uso responsável, e devem ser compreendidas do ponto de vista espiritual, evitando-se toda e qualquer propaganda que possa induzir a opinião pública e as autoridades a equívocos; 7. Recomenda-se às entidades, que se conduzam por meio de pessoas responsáveis com experiência no reconhecimento e cultivo das espécies vegetais sagradas, na preparação e no uso da Ayahuasca, assim como na condução dos ritos; 8. Compete a cada entidade exercer rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos adeptos, a fim de evitar que a Ayahuasca seja ministrada a pessoas com histórico de transtornos mentais, bem como a pessoas sob efeito de bebidas alcoólicas ou outras substâncias psicoativas; 9. Recomenda-se manter ficha cadastral com dados do participante, e informá-lo sobre os princípios do ritual, incluindo a necessidade de permanência no local até o término do ritual e dos efeitos da Ayahuasca. 10. Cabe a cada entidade e a seus membros, indistintamente, zelar pela ética e pelo respeito mútuo. A Resolução nº 1, de 25 de janeiro de 2010 tornou pública esta Resolução Conclusão: Segurança Jurídica O cumprimento, por parte das comunidades tradicionais da Ayahuasca, do que determina a legislação atual, expressa nas Resoluções n. 05/2004 e 01/2010 do CONAD, garante o pleno exercício de sua expressão e liberdade religiosa e dá subsídios às autoridades para que saibam da legalidade do uso ritualístico da Ayahuasca. Assim sendo, as mesmas não podem proibir o uso ritualístico, pois, agindo em conformidade com a legislação, estamos com a licença. Portanto, a Segurança das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca se expressa na segurança jurídica que as mesmas têm na atualidade, e a sua efetivação depende da continuação de sua prática.
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Relatoria Meio Ambiente Thiago da Silva
1. REGULAMENTAÇÃO DA COLETA E TRANSPORTE DO CIPÓ BANISTERIOPSIS CAAPI E DA FOLHA PSYCHOTRIA VIRIDIS – PORTARIA IMAC.
A
partir do ano de 2006, por uma política do Governo Federal para aumentar a eficiência do controle ambiental, começou uma descentralização da gestão florestal, passando o IBAMA (Órgão Federal) a cuidar apenas de: licenciamento e controle de Unidades de Conservação Federais; Planos de Manejo Florestal com áreas de manejo acima de 50 mil hectares; Processos de desmate acima de 2 mil hectares; e licenciamento e controle de propriedades localizadas em mais de um Estado da Federação. A última função do IBAMA/Acre a ser descentralizada foi o setor dos produtos florestais não-madeireiros, onde o cipó e a folha estavam inseridos de maneira especial. A regulamentação da coleta e transporte, do cipó e da folha, pode ser dividida em quatro: 1. IBAMA: Quando ainda havia muita desinformação e até desrespeito dos funcionários com o assunto, deixando evidente uma falta de interesse em atender às entidades usuárias da Ayahuasca, sendo tratadas como qualquer empresa comercial; 2. IBAMA: A partir de 2005, quando novos funcionários entram no órgão através de concurso público (especialmente o analista ambiental Júlio Raposo), acontece uma reorganização do processo dando maior agilidade através da Portaria № 04 de 2001 do IBAMA/Acre, a qual era uma legislação específica, criada pelo IBAMA/Acre, para atender o assunto; 3. IMAC: Com a descentralização promovida pelo Governo Federal, o controle passa para o órgão estadual. Nessa terceira fase (que atualmente nos encontramos), uma reclamação comum das entidades é a demora da resposta das solicitações de coleta e transporte, e o próprio IMAC reconhece que sua demanda é maior do que sua capacidade de atendimento; 4. IMAC: Fase que queremos chegar, com uma adequação das exigências através da diferenciação do cipó e da folha dos outros produtos florestais, com uma legislação específica que atenda o processo de maneira especial. Reforça essa necessidade, a Resolução № 01, de 2010 do CONAD, que especifica que deve haver “legislação específica para essas plantas de uso ritualístico religioso, as quais não podem ser tratadas como um produto florestal não madeireiro”. Até hoje, não existe lei ou norma específica que atenda a essa atividade, sendo tratada pelo órgão responsável – IMAC, semelhante a qualquer produto florestal, extraído de forma comercial. Para se extrair as espécies, em mata nativa, ou propriedade rural qualquer, estando com todo o cadastro atualizado junto ao IMAC (Alvará, Estatuto, CTF, etc.), o processo normal, atualmente, é protocolar o pedido 167
no IMAC, aguardar a vistoria dos técnicos na área, e esperar a aprovação do pedido. Todo esse processo chega a demorar até 50 dias. Em Setembro de 2007, em uma reunião no Horto Florestal, com a presidenta do IMAC, Sra. Cleísa Cartaxo, a mesma sugeriu que as entidades ayahuasqueiras se reunissem e apresentassem uma proposta de Portaria. No dia 4 de dezembro de 2007 aconteceu, na Secretaria Estadual de Floresta – SEF, às 14h40min, a primeira reunião de trabalho para a elaboração de proposta para uma Portaria Estadual a fim de regulamentar a coleta e o transporte do cipó e da folha. Foram 14 os participantes: pelo IMAC – Tupi, Roberto França, Cristina, Lisandra; pelo IBAMA – Júlio Raposo; pela SEAPROF – Alan; pela SEF – Thiago Martins; pelas entidades – Francisco Hipólito (Barquinha), Rosângela (Barquinha), Fábio (CRF), Artur (CRF – Sec. Municipal de Meio Ambiente), Amélia (UDV), Márcio Dagnoni (UDV), João Paulo (UDV). Apesar de os representantes dos órgãos governamentais terem participado tão somente das primeiras reuniões - elas, por insistência e pelo grande interesse por parte das entidades que formaram um Grupo de Trabalho – GT, estenderam-se por todo o ano de 2008 e parte do ano de 2009, resultando, assim, em uma proposta adequada à realidade estadual e à legalidade técnica. A proposta foi entregue, oficialmente, ao IMAC, no dia 05 de Maio de 2009, o qual contratou o consultor externo André Lima, para adequá-la. No dia 8 de abril de 2010 aconteceu, no IMAC, uma reunião do GT, com a presidenta Cleísa e seus técnicos, onde foi colocado, por parte da presidenta Cleísa, que a regulamentação será mais adequada se for uma Resolução do Conselho Estadual de Meio Ambiente, e não apenas uma Portaria do IMAC, que poderia ser revogada. Também foi colocado pela presidenta, que precisamos estar juntos (IMAC e entidades) para encontrar a forma de equilibrar o controle da devastação e a agilidade para o atendimento às entidades. Foi explicado ao GT, entretanto, que a demora de mais de um ano para dar um parecer à proposta de regulamentação das espécies do cipó e da folha, aconteceu devido à demanda grande do IMAC, principalmente da demanda madeireira. Foi anunciado, porém, que o consultor André Lima entregaria o produto final de sua consultoria, no dia 09 de Abril de 2010. Ficou marcada outra reunião do GT, com a presidenta e seus técnicos, para o dia 22 de Abril de 2010, em local a ser confirmado. Nessa reunião, espera-se chegar a um consenso entre entidades e IMAC para que, finalmente, seja aprovada a resolução específica que regulamenta a coleta e o transporte do cipó e da folha. Aqueles que não se importam com um uso correto dentro dos preceitos religiosos de cada linha de uso da Ayahuasca estão trabalhando livremente, causando vários danos ambientais, e até invadindo propriedades para explorar as espécies citadas, enquanto as entidades religiosas idôneas se propõem a legislar restringindo o próprio uso, para que possa haver uma coibição do uso irregular. 2 . APA RAIMUNDO IRINEU SERRA LIXO – É constante e corriqueiro o despejo de lixo (inclusive por parte da prefeitura), e de restos de animais (de açougues) na Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra. 168
3. INCENTIVO A SUSTENTABILIDADE Muitas entidades são carentes de recursos financeiros. Poder-se-ia ajudar muito a sustentabilidade das espécies do cipó e da folha, através de financiamento para plantio próprio.
Relatoria Urbanismo
Lílian Kristina Sales Amim
A sessão temática de urbanismo tem, por objetivo, identificar nos instrumentos da política urbana municipal, quais mecanismos se relacionam diretamente na proteção, preservação e valorização das comunidades tradicionais ayahuasqueiras1 ao longo dos anos. Partimos do pressuposto de que a dinâmica e o crescimento urbano foi determinante para que as comunidades fossem inseridas na construção da política urbana, ambiental e de patrimônio cultural de Rio Branco. Portanto, iniciamos nossa apresentação demonstrando o ritmo desse crescimento.
Figura 1: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 1948 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Figura 2: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 1961 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
O crescimento urbano de Rio Branco aconteceu de forma lenta, entre as décadas de 1940 e 1960, ao qual pode ser classificado como crescimento tímido. No entanto, tivemos, entre as décadas de 1970 e 1980, o primeiro grande crescimento urbano de Rio Branco, embora não tenha avançado além do Igarapé São Francisco, como podemos perceber nos gráficos a seguir:
1 Termo utilizado para identificar e diferenciar os três primeiros centros/núcleos fundados pelos Mestres Irineu, Daniel e Gabriel dos demais locais surgidos ao longo dos anos.
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Na década de 1990, percebemos a segunda grande expansão urbana de forma intensa e sem planejamento. O crescimento ultrapassou as margens do Igarapé, bem como retomou o crescimento para a margem direita do Rio Acre, popularmente conhecida com 2º Distrito, como podemos analisar no gráfico a seguir:
Figura 3: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em1970 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Figura 4: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 1985 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Já na década de 80, o crescimento populacional foi intenso e desencadeou o maior processo de expansão urbana da época, e a cidade não estava preparada para tal evento. Esse crescimento definiu o planejamento e a projeção urbana para os anos seguintes, com a elaboração do primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano - PDDU de Rio Branco, aprovado em 1986. Os estudos orientadores para a elaboração do referido plano foram baseados, diretamente, na taxa do crescimento populacional nesse período. O PDDU de 1986 estabeleceu diretrizes em vários aspectos urbanos para a cidade. Destacamos a área de Meio Ambiente, que estabeleceu, entre seus objetivos, a preservação do Patrimônio Histórico de Rio Branco. Porém, o mesmo só reconhecia como Patrimônio Histórico “os prédios do centro da cidade” (PDDU, 1986).
Figura 6: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 1990 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Figura 8: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 2000 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Figura 5: Mapa da representação do perímetro e do zoneamento urbano estabelecido no PDDU de 1986 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Figura 7: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 1994 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Figura 9: Mapa da evolução urbana de Rio Branco, em 2005 Fonte: Adaptação do PDDU (1986)
Apesar da expansão urbana intensa nesses últimos anos, demonstrada pelos gráficos anteriores, a cidade, por outro lado, só alcançou o desenvolvimento esperado, por meio do PDDU de 1986, no início da década atual, precisamente no ano de 2005. Ou seja, o PDDU de 1986 não foi assumido pelas gestões municipais e não serviu de orientador e indutor para o crescimento da cidade como previsto, fato que desencadeou diversos problemas. Entre eles, está o aspecto dúbio que a cidade assumiu durante anos, como que dividida novamente. Só que, desta vez, não por aspecto geográfico, mas por aspecto legal, estabelecendo duas cidades, a legal e a ilegal. Nesse contexto, o município de Rio Branco deu início à revisão do seu PDDU em 2005, com o objetivo de estabelecer uma ferramenta administrativa que orientasse e sinalizasse a possibilidade de manutenção do crescimento urbano, de forma organizada e sustentável, frente ao processo de expansão urbana, ocorrido nas últimas duas décadas. Temos, assim, os dois primeiros marcos da Política Urbana de proteção, reconhecimento e valorização das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca. O primeiro acontece com o Decreto 500 de 2005, que cria a Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra – APA2 . Apesar do PDDU de 1986 ter estabelecido 2Área de Proteção Ambiental – APA é uma Unidade de Conservação de uso sustentável regulamentada pela Lei nº 9.985 de 2000 que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação- SNUC.
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o perímetro urbano, além do uso urbano da época, a área fundada por Raimundo Irineu Serra3 , na década de 1950, atualmente conhecida como Bairro Irineu Serra, não estava inserida no perímetro urbano da cidade, mas pela proximidade da expansão urbana, o seu uso se confundia entre urbano e rural. Neste momento, o PDDU já estava ultrapassado e, em completo desuso, deixando à deriva a política urbana. Sem diretrizes definidas para a área, ela começou a sofrer com as características do processo de expansão urbana da época, gerando ações que promoviam o parcelamento do solo de maneira indiscriminada, bem como o aceleramento do desmatamento, características que põem em risco a manutenção da manifestação cultural e religiosa da primeira comunidade ayahuasqueira de Rio Branco. Uma das saídas encontradas para amenizar o conflito quanto ao uso do solo na região foi a criação da APA Raimundo Irineu Serra, considerando os atributos ambientais e culturais do local. Assim, em 07 de Junho de 2005, através do Decreto Municipal Nº 500, foi criada a primeira Área de Proteção Ambiental – APA, de Rio Branco, antes mesmo da finalização do diagnóstico urbano em curso, com o objetivo de proteger os atributos ambientais e culturais, referindo-se, especificamente, à manifestação cultural e religiosa do local, conhecida como Santo Daime4 .
curso, onde as comunidades ayahuasqueiras passaram a ser analisadas, não somente através do eixo cultural, mas, principalmente, através da necessidade e do uso que faziam no tecido urbano. Dessa forma, foi possível que o diagnóstico realizasse o mapeamento e a identificação dos locais utilizados pelas originárias comunidades ayahuasqueiras existentes em Rio Branco. Assim, o novo Plano Diretor - PD de Rio Branco, aprovado em 28 de Outubro de 2006, através da Lei Municipal Nº 1.611, consolida a criação da APA Raimundo Irineu Serra, estabelecendo-a como Área de Especial Interesse Ambiental – AEIA, no Art. 197, mantendo as especificidades estabelecidas pela sua categoria de Unidade de Conservação.
Figura 11: Anexo XIII do Plano Diretor Fonte: Lei Nº 1.611/06 – Plano Diretor (2006)
A APARIS corresponde a 908.7420 ha (novecentos e oito hectares, setenta e quatro ares e 20 centiares), conforme o mapa:
Figura 10: Mapa com os limites da APA Raimundo Irineu Serra Fonte: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de Rio Branco - SMDGU (2010)
Como forma de atender aos objetivos iniciais, o decreto de criação da APARIS5 estabelece algumas restrições e considerações para o uso e, bem como, o parcelamento do solo da região: “ [...] Estabelece diretrizes iniciais a cerca do parcelamento do solo. Estabelecendo que as áreas maiores de 6ha não poderá ser parcelada menor de 3 h.
Estabelece que o Plano de Manejo seja realizado em 2 anos. Estabelece que a Área de Preservação Permanente- APP ao longo do Igarapé São Francisco e seus afluentes. Bem como, prever a garantia de remoção de famílias. Estabelece as entidades participantes do Conselho [...]” (Decreto nº 500, 2006) Esse ato não constituiu um ato histórico isolado e finalístico, ou como marco fundamentalmente ambiental, pois contribuiu com o diagnóstico urbano em 3Raimundo Irineu Serra – maranhense da cidade de São Vicente de Ferrer, nascido em 15 de dezembro de 1892 que veio para o Acre por
Figura 12: Mapa com os limites da APARIS Fonte: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de Rio Branco - SMDGU (2010)
volta de 1912, período migratório para exploração do látex(borracha). 4Termo utilizado para identificar a Doutrina fundada por Raimundo Irineu Serra, que utiliza, em seu ritual, a bebida Ayahuasca, batizada por ele com o nome de Daime. 5APARIS é a sigla da Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra
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As Áreas de Especial Interesse Ambiental – AEIA constituem-se em unidades territoriais com características que exigem tratamento e estratégia de qualificação específica para o Município e, segundo a Lei, em seu Parágrafo Único, estabelece “que uma Lei Específica definirá as diretrizes para a formulação do Sistema de Unidades de Conservação Municipal” (PD, 2006) A criação da APA Raimundo Irineu Serra e sua definição como AEIA, estabelece o primeiro marco na política territorial e urbana, configurando positivos alguns de seus aspectos, como o estabelecimento de: limite geográfico, de algumas diretrizes para o uso e parcelamento do solo, o prazo para a realização do Plano de Manejo e a gestão democrática, através do Conselho Deliberativo. Porém, essa definição não elimina os problemas que podem surgir na gestão territorial do espaço, pois essa modalidade de UC não prevê área de entorno, gerando, por conseguinte, conflito entre a finalidade da área e o destino estabelecido em seu entorno, fragilizando, assim, sua autonomia. Além disso, a área é caracterizada por sua vulnerabilidade geológica, ambiental, de infraestrutura e equipamento, fato que se agrava pela demora da realização e efetivação de seu Plano de Manejo, que deveria estar concluído no ano de 2007. Porém, a maior contribuição do novo Plano Diretor referente às comunidades tradicionais da ayahuasca não se restringe somente à sua importância ambiental, porém, considero e destaco que esse novo contexto político e urbano conseguiu seu ápice ao reconhecer as Comunidades Ayahuasqueiras originárias, como patrimônio histórico cultural, conforme estabelece o Art. 203, ao destacar o Sítio Histórico, o Núcleo do Mestre Irineu Serra, identificado como Alto Santo, e o Núcleo de Daniel Mattos1 , identificado como Barquinha, entre outros, como ÁREA DE ESPECIAL INTERESSE HISTÓRICO-CULTURAL, conforme imagem a seguir:
Em destaque, o Sítio Histórico, o Núcleo do Mestre Irineu Serra (Alto Santo)2 como ponto S04, e o Núcleo do Daniel Mattos (Barquinha)3 , como ponto S05:
Figura 14: Adaptação do Anexo XV do Plano Diretor Fonte: Lei Nº 1.611/06 – Plano Diretor (2006)
A importância dos núcleos onde o Mestre Irineu e Mestre Gabriel fundaram suas doutrinas, como áreas de Patrimônio Histórico no novo Plano Diretor, trazem várias leituras. A primeira, de que não existia nenhum registro legal da importância/ participação dessas comunidades para a formação cultural de Rio Branco até o momento. Segundo, o simples ato em si, representa o principal marco legal, o qual obriga os gestores públicos a realizarem estudos específicos para formular e atender às especificidades dessas comunidades através de políticas públicas que garantam a preservação e a valorização da genuína manifestação cultural religiosa brasileira. Apesar dessa representação, o Plano Diretor não aprofunda a temática, não define perímetro e uso para as áreas, estabelecendo apenas, no Parágrafo Único do Art. 205, “que Lei Específica poderá definir perímetros, bem como as diretrizes para a formulação do Plano de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural” (Plano Diretor, 2006). Esse ato representa um novo período no processo de valorização das referidas comunidades, estabelecendo, assim, uma relação direta entre a política cultural e a política urbana, fruto da nova conjuntura estabelecida pela gestão municipal, que garantiu a participação e a valorização das diversas manifestações locais, entre elas, as comunidades ayahuasqueiras. Em dezembro de 2006, o município realizou o tombamento do conjunto de edificações que fazem parte do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo, atendendo à solicitação realizada pela senhora Peregrina Gomes Serra , a Madrinha Peregrina4, dignatária do centro. O processo de tombamento refere-se aos bens a serem preservados, sendo eles: a casa na qual ela e Raimundo Irineu Serra moraram; o templo onde são realizados os trabalhos espirituais; a casa de feitio da bebida; o poço, aberto pelo próprio Irineu Serra; o túmulo onde o mesmo foi enterrado; a escola, por ele fundada, e a casa onde viveu Lêoncio Gomes da Silva, “presidente eterno” do centro. 2O Sítio 04 – Núcleo do Mestre Irineu Serra (Alto Santo): Situado no bairro Raimundo Irineu Serra, essa área fazia parte da Colônia Custódio
Figura 13: Anexo XV do Plano Diretor Fonte: Lei Nº 1.611/06 – Plano Diretor (2006) 1Raimundo Irineu Serra – Fundador da Doutrina do Santo Daime; Daniel Pereira de Matos - Fundador do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz.
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Freire, porém, diferenciou-se por ter sido o lugar em que o Mestre Irineu Serra, no ano de 1945, instalou-se para morar e trabalhar como agricultor, estabelecendo as bases para o desenvolvimento da doutrina do Santo Daime, da qual foi fundador. 3Sítio 05 – Núcleo do Mestre Daniel Pereira de Mattos (Barquinha): Situado no bairro Vila Ivonete, o núcleo da Barquinha está situado na área do Igarapé Fundo, onde, no final da década de 20, o Mestre Irineu Serra, junto com Daniel Mattos, iniciou o trabalho espiritual com o Daime. A partir da mudança de Mestre Irineu para o Alto Santo, coube ao mestre Daniel Mattos permanecer nessa área, onde hoje estão situadas várias igrejas de Daime, alinhadas à doutrina que este criou. 4Peregrina Gomes Serra, viúva de Raimundo Irineu Serra, é dignatária do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal CICLU - Alto Santo, fundado por seu esposo.
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O novo cenário, estabelecido diante da política local, e destinado ao reconhecimento e a valorização dessas comunidades, respaldadas nos diversos atos já mencionados, estimulou o pedido de registro e tombamento das doutrinas fundadas por Mestre Irineu, Daniel e Gabriel5 , como patrimônio histórico cultural nas esferas municipal, estadual e nacional, através dos gestores culturais, em abril de 2008, caracterizando-se, por conseguinte, como o ápice desse movimento cultural. Mesmo com todos esses avanços demonstrados em diversas áreas, ainda há algumas questões a serem encaminhadas, pois quando o município estabeleceu como áreas de Patrimônio Histórico Cultural apenas os núcleos onde Mestre Irineu e Mestre Daniel fundaram suas doutrinas, não atendendo ao núcleo fundado por Mestre Gabriel, em Rio Branco, já ocorreram sérias consequências. Ressalta-se, porém, que na época, não havia nem estudos que identificassem, nem demonstrassem e comprovassem a importância desse núcleo como os demais. Atualmente, já são sentidas as consequências dessa exclusão, diante do adensamento urbano provocado pelos programas de construção habitacionais na proximidade do núcleo, interferindo diretamente na manutenção e na preservação da manifestação religiosa e cultural da referida comunidade. Outro aspecto negativo é que, mesmo com a participação ativa das comunidades e órgãos públicos, ainda não foram realizados os estudos exigidos, como o inventário, necessários para a regulamentação dessas áreas. As políticas descritas até o momento são destinadas, inicialmente, apenas aos três principais núcleos ayahuasqueiros, caracterizados, respectivamente, pelos núcleos fundados por Mestre Irineu, Mestre Gabriel e Mestre Daniel, nos quais caracterizamos como as comunidades tradicionais ayahuasqueiras. Este recorte diferenciando as comunidades tradicionais ayahuasqueiras, tornase necessário à medida em que, a cada momento, surgem novas comunidades ayahuasqueiras, em Rio Branco e no mundo. Atualmente, já identificamos e localizamos mais de 20 comunidades ayahuasqueiras em Rio Branco, como mostra o mapa a seguir:
Figura 15: Mapa das Comunidades Ayahuasqueiras, em Rio Branco Fonte: Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de Rio Branco - SMDGU (2010) 5José Gabriel da Costa, conhecido como Mestre Gabriel, fundador do Centre Espírita União do Vegetal – UDV, em 1961.
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A linha vermelha corresponde ao perímetro urbano, estabelecido na Lei 1.611, de 2006, o novo Plano Diretor. Como forma de visualizarmos melhor, identificamos e dividimos as comunidades por troncos. Em seguida, estabelecemos cores diferentes por troncos doutrinários. Dessa forma, temos: As comunidades destacadas em azul – Comunidades que se identificam com a doutrina fundada por Mestre Daniel. As comunidades destacadas em verde - Comunidades que se identificam com a doutrina fundada por Mestre Irineu. As comunidades destacadas em amarelo – Comunidades que se identificam com a doutrina fundada por Mestre Gabriel. É de suma importância destacar que uma das maiores dificuldades em relação à construção de indicadores e políticas públicas para esse grupo de comunidades, dá-se, principalmente, pela dificuldade de obter dados e identificação de todas as comunidades existentes em Rio Branco, pois a maioria possui uma forma de organização administrativa independente. Além dos diversos apontamentos já realizados, é importante destacar a necessidade da criação de um banco de dados que reúna informações sobre todas as comunidades ayahuasqueiras, independente da realização do inventário cultural. Parece simples e sem importância os destaques realizados sobre “os poucos” instrumentos da política urbana municipal destinada à proteção, preservação e valorização das comunidades tradicionais ayahuasqueiras nos últimos anos. Mas, ainda, constituem-se não só os primeiros, mas os únicos instrumentos destinados a essas comunidades, que já existiam e ocupavam os mesmo lugares que ocupam atualmente, antes mesmo que o crescimento populacional e urbano chegasse ao ponto em que se encontra agora. Essas comunidades assistiram, participaram e contribuíram para o crescimento da cidade, e esta, por sua vez, silenciou sua existência por quase um século. Quando entendemos que a cultura, meio ambiente, entre outros, compõem um processo dinâmico, devemos entender, também, que a organização da cidade também é dinâmica. Dessa maneira, podemos concluir que as Comunidades Tradicionais da Ayahuasca foram reconhecidas e inseridas na política urbana de Rio Branco, seja por sua importância histórica, ambiental e/ou cultural, entretanto, essa garantia legal enfrenta resistência para a sua efetivação.
Referências: Brasil - Rio Branco - AC, Prefeitura Municipal de. 1º Plano de Diretor de Desenvolvimetno Urbano. Coordenado por Cláudio Gastão Kipper, e outros. Rio Branco, 1986. Rio Branco - AC, Prefeitura Municipal de. Plano de Diretor. Coordenado por José Otávio Francisco Parreira, e outros. Rio Branco, 2006. Rio Branco - AC, Prefeitura Municipal de. Decreto Nº 500 de 07 de Junho de 2005.
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Organização e Execução Seminário Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras Adriano de Araújo Lima Daniel Dias Danielle Moreira Brasileiro Frankcinato da Silva Batista Geison Bandeira de Araújo João Guedes Filho Juliana Barros de Paula Machado Lelcia Maria Monteiro de Almeida Marcio Rogério Dagnone Maria de Fátima Nobre Maria do Socorro Silva Dagnone Maria Leudes da Silva Souza Mônica Cabral Ferreira Rosa Maria do Nascimento Lopes Relatoria Aretuza Bandeira de Araújo Batista Cristiane De Bortoli Débora Menezes Eurilinda Maria Gomes Figueredo Infra-Estrutura Afrânio Moura de Lima João Gomes Vasconcelos Neto Marcelo Sergio Luiz Revisão Marcos Luis Alves Batista Especialista em Língua Portuguesa Organização Livro Marcos Vinícius S. Neves Maria Leudes da Silva Souza Edição Onides Bonaccorsi de Queiroz Maria Leudes da Silva Souza Capa, Diagramação e Arte Márcio Oliveira Wanderley
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