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UPORTO IDENTIDADES

Estórias da Universidade

“Meus senhores, agora que estamos só homens, vamos começar o curso”

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Desde há mais de dez anos que, na Faculdade de Medicina do Porto, os estudantes do sexo feminino ultrapassaram, em número, os do sexo masculino. Lembro-me que, alguns anos atrás, estava eu na sessão solene que se intitulava “O dia da Faculdade” e na qual, além de vários discursos, entre os quais o do Director da Faculdade que historiava o que de relevante tinha acontecido na vida da Escola, no último ano, havia a apresentação dos que se tinham doutorado ou agregado esse ano. Havia, também distribuição dos prémios habituais aos melhores alunos de cada ano, e aos melhores de algumas cadeiras para as quais, geralmente, Mestres já falecidos tinham deixado legados cujo rendimento anual constituía o prémio. Ao meu lado estava sentada uma professora de uma cadeira das básicas. Éramos e somos amigos e eu não resisti em dizer-lhe: “Há mais alunas do que alunos, mas na distribuição dos prémios vai ver quem vai receber mais prémios”. Eu queria dizer, e ela percebeu bem, que os rapazes arrecadariam muitos mais prémios do que as raparigas. Já não se tratava de adolescentes, entre os quais as raparigas têm fama de ser mais estudiosas. Agora estávamos na Universidade onde se cultiva o pensamento, se faz progredir a ciência através da investigação, e onde os espíritos livres fazem a crítica do mundo de hoje e procuram o caminho para o de amanhã. Embora o número de doutoradas tenha vindo a aumentar e cada vez haja mais assistentes e professores do sexo feminino, os homens “ainda” continuam a dominar o corpo docente. A professora amiga, que estava sentada a meu lado, aconselhou-me a não me entusiasmar antes do tempo e esperar pelo fim. “Os tempos estão a mudar”. Começou a distribuição dos prémios e aos poucos deixei-me dominar pela menta1idade do espectador de futebol: afinal, quem vai ganhar? O Secretário da Faculdade ia chamando os premiados um a um, que iam receber do Reitor o respectivo diploma e as felicitações. Pelo sim pelo não, puxei de um papel e fui riscando uns tracinhos para rapaz ou rapariga premiados. A cerimónia da distribuição dos prémios chegara ao fim. “Então, é necessário contar os tracinhos ou não vale a pena?” perguntou-me a colega sentada ao meu lado. Envergonhado, tive que lhe responder: “Não vale a pena”. De facto, os prémios foram, em maior número, para as raparigas. Apenas pude dizer, meio em surdina: “Não admira, há mais alunas do que alunos! Mas a percentagem de alunos premiados, fazendo a conta só aos rapazes, deve ser maior do que a percentagem de alunas premiadas. Foi uma defesa que me ocorreu à falta de melhor.

Lembrei-me, então, de um episódio, passado há 40 anos, quando eu era aluno. Último ano, cadeira de Medicina Legal, primeira aula. O professor, depois de saudar a todos e de expor o programa e finalidades da disciplina, resolveu dar exemplos de casos sobre os quais o médico legista poderia ter que se debruçar. Contou, então, uns três ou quatro casos de violação e estupro que fizeram corar as minhas colegas, as quais, geralmente, ocupavam as primeiras filas. À segunda aula teórica, (a frequência às aulas teóricas era facultativa) metade das minhas colegas resolveu não ir. O professor contou mais casos e com um pormenor que ou aterrorizavam um morto ou faziam corar o mais barbudo. À terceira aula, definitivamente as minhas colegas faltaram todas. Então, o professor abriu a aula dizendo: “Meus senhores, agora que estamos só homens, vamos começar o curso”. Tomé Ribeiro (Medicina, 1949) Professor Catedrático Jubilado de Gastrenterologia na FMUP


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