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53 Revista Gama, Estudos Artísticos. ISSN 2182-8539, e-ISSN 2182-8725. Vol. 1 (2): pp. 49-54.

Senão, literalmente, vejamos: a tela Moça na janela (1939), datando do primeiro momento de Dias em Paris, exibe a perspectiva realista do sistema da “janela aberta”, o campo de profundidade é recortado na parte do fundo pela “veduta”, que fraciona a superfície do quadro e expande os signos-cor através da apreensão formal. Na produção dos anos 1930 do artista, via de regra, a articulação de uma relação figura/lugar reflete a significação regional de forte laço afetivo. Contudo, nessa tela a figura da mulher é apresentada com modelagem extremamente rasa e sem uma distinção aparente do seu sentido etimológico. Em Distante (1941), tela que manipula o tema de banhista (repertório familiar a Picasso) a operação de desintegração da forma associada ao “baixo-relevo-furtivo” aponta para problemas pictóricos que exploram a ambivalência formal sob os efeitos de excessiva luz que cria uma superfície mutável, trêmula (NB: Essa tela, Distante, pertenceu a Picasso. Informação Sra. Raymonde Dias [esposa de Cícero Dias] Paris 27/11/2000). O que provoca a indistinção entre o linear e o informe, entre o traço e a mancha e confere à figura o sentido de romper uma forma. Os corpos articulam, ao mesmo tempo, uma relação estreita com o lugar e uma negação de possessão particular. As figuras não são mais representações, elas são matéria. Essa concentração de grande força cromática cria elementos muliformes que deixam livre trânsito à imaginação e ao fato plástico. Mulher se penteando [1943] e Mulher com espelho (Figura 2) não deixam esquecer o contato estreito do artista com o trabalho de Picasso e poderiam indicar, usando um conceito de Hermeren, uma “recepção transformadora” (Hermerem: 53-5). Sem dúvida, sua pintura trabalha a idéia de desdobramento e de dissociação (abstração do modelo natural), engendrando figuras num possível jogo de metamorfoses na intuição de apreensões formais. Com a emergência da Segunda Guerra Mundial, em 1942, Cícero Dias vai para Lisboa, por um período que dura até os anos 1944. Nessa trajetória sua pintura segue através da derivação da Forma-Quadro cubista e da conseqüente superação do ponto de vista psicológico de representação do seu mundo imagístico. Vai nesse sentido um desenho que elabora e dá o título de O atelier de Picasso. Nele, percebe-se a reprodução estilizada de uma tela de Picasso: l’Aubade. Esse desenho ganha em interpretação ao sabermos que foi pensado como ponto de partida para a tela Campo de cana-de-açucar, datada de 1942. Nesta, o grafismo e a cor acentuada dos corpos estilizados das duas figuras e dos motivos evocam uma geometria implacável e fazem uma alusão a “vida e a morte”. Mas, se afastam naturalmente do referente da guerra evocado pala l’Aubade de Picasso e pontuam a decadência do mundo dos canaviais de Pernambuco. Cícero Dias costumava dizer que sua tela Mormaço [1942] celebrava um exercício de perseverança do ato de criar. De fato, o artista utiliza uma


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