Revista Fantástika 451 #2 - Para onde vão as narrativas fantástikas do presente e do futuro?

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Em sua obra “The Strange Library”, Haruki Murakami conta a história de um menino que vai até a biblioteca local depois da aula para pesquisar sobre a coleta de impostos no Império Otomano. Lá, ele acaba trancafiado em uma cela com a promessa de que será solto caso termine de ler os três pesados volumes a respeito do assunto que procurava. Ele logo descobre, porém, que o velho que o está mantendo cativo planeja comer seu cérebro. Em meio a sonhos onde ele é um coletor de impostos, refeições deliciosas preparadas por um homem vestido de ovelha e visitas de uma linda menina sem voz, ele elabora um plano de fuga e o coloca em prática, e chegamos ao fim da obra sem saber exatamente se o que ele viveu foi sonho ou realidade. Este ensaio se propõe a analisar, com base na teoria narratológica de Mieke Bal, a maneira como Murakami constrói o efeito de fantástico nos termos descritos por Tzvetan Todorov e por David Roas. Exploraremos, então, como o texto escolhido para transmitir a fábula na edição inglesa, publicada pela Harvill Secker, tem um papel importante no efeito final da obra, assim como os elementos que compõem o que Bal chama de história.

É interessante notar que a criação de situações nas quais o leitor acompanha os personagens vivenciando dúvidas acerca da realidade em que está inserido pode ser tida como uma recorrência de Murakami. Conforme aponta Nihei (2013), o autor “diz que, através do ato de ‘engolir’, conseguimos desfamiliarizar a realidade, o que nos permite percebê-la de maneira diferente. (…) meramente rejeitar uma situação não produz nada, nem resolve nenhum problema.” A construção do efeito de fantástico, em “The Strange Library”, combina as ideias de Todorov e de Roas: traz a hesitação, mas também se vale da desestabilização de um mundo parecido com o do leitor para trazer a estranheza. Para analisar esta construção, recorremos a Bal (1997), que identifica três camadas na narrativa: o texto, a história e a fábula. Ela explica que (…) um texto narrativo é um texto no qual um agente ou sujeito transmite a um destinatário (…) uma história através de um meio específico (…). A história é o conteúdo desse texto, e produz uma certa manifestação, inflexão e “colorido” de uma

Todorov (2008) estabelece que o fantástico é, por si, um gênero literário, definido por estar entre o estranho e o maravilhoso. Ele define: “(…) realidade ou sonho? verdade ou ilusão? (…) Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso.” (TODOROV, 2008, p. 15) No conto de Murakami, o próprio protagonista se indaga: “Quanto do que eu me lembro realmente aconteceu? Pra ser sincero, não tenho certeza.” (p. 72). O fantástico todoroviano está declarado na obra, não havendo dúvidas de que se está no campo da incerteza. Segundo Alberti e Furuzato (2017, p. 155), porém, “a inquietação, a estranheza que a obra fantástica oferece ao leitor [é] sua característica mais marcante”. Assim, apenas a fala explícita que traz hesitação do personagem em relação ao que vive pode não ser o suficiente para que se tenha o efeito de fantástico. Para complementar, Roas (2013, p. 31) postula que, para que tenhamos o fantástico, é necessária a criação de um espaço familiar ao leitor, que, ao se tornar instável, transtornará também a estabilidade que cerca o leitor. 74

fábula; a fábula é apresentada de uma certa maneira. A fábula é uma série de eventos relacionados lógica e cronologicamente que são causados ou experienciados por atuantes. (BAL, 1997, p. 5).1

Portanto, a fábula possui aspectos que podem ser compartilhados por várias narrativas únicas, sendo possível pensar nela como o enredo, a sequência de eventos que compõem a narrativa; a fábula precisa do texto como veículo para ser transmitida. O texto é o meio pelo qual a narrativa é desenvolvida e não é necessariamente texto escrito, o que faz com que o termo abranja a fala e imagens, por exemplo. Portanto, o meio escolhido para contar a história determina quais artifícios podem ser utilizados pelo narrador ao fazer seu relato. No caso da edição inglesa de “The Strange Library”, todas as páginas são ilustradas com imagens cedidas pela Biblioteca Nacional de Londres. Estas imagens compõem uma estética visual que remete a livros antigos e enciclopédias, não havendo fotos ou elementos visuais contemporâneos. 75


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