::: Revista Perspectiva nr 16 ::::

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REPORTAGEM

Ainda não despontou a alvorada e já nos deslocamos a passo apressado para um bairro pobre da cidade: vamos visitar o bairro dos curtidores de peles. Chegamos aos curtumes à hora em que se eleva o Sol. Aos nossos olhos desdobram-se perante uma infinitude de tanques que exibem a paleta de cores estonteante dos pigmentos com que se pretendia tingir os couros em imersão nas tinas. Estonteados, já entrámos no complexo dos curtumes devido ao intenso odor que tudo aquilo exalava – o fedor é como um verdadeiro bofetão olfactivo. Para se ter uma ideia da mistura, um dos principais ingredientes para curtir as peles advém da amónia produzida por quantidades incomensuráveis de fezes de pombo. Mas estes ambientes duros já me habituaram a deixar sempre um olho alerta, pois, como a flor de lótus cuja brancura resplandecente nasce da lama mais ignóbil, também foi naquele ambiente de monturo e vísceras sanguinolentas que encontrei um dos mais belos olhares humanos que já vi na vida. Imerso até à cinta na imundície estava um jovem ocupado a raspar uma pele. Ao constatar o meu interesse pelo seu trabalho, predispôs-se a ensinar-me todo o mister do tratamento de peles, mas com uma bonomia e uma simpatia superlativas. Quando me despedia com o «Salam Aleikum» da praxe, levei a mão ao bolso numa pergunta muda. Só aí passou uma sombra nos seus olhos brilhantes.

Meneando a cabeça, agradeceu-me a visita pedindo desculpas pela pestilência do ar. Voltei confundido, mas com uma alegria imensa por renascer a minha esperança na raça humana. Enquanto houvesse homens de boavontade como aquele, apesar da vida terrível e do trabalho abjecto, poderíamos todos sonhar com um futuro melhor. A etapa seguinte levou-nos a transpor a cordilheira do Atlas, com a nossa viatura a resfolegar de esforço para vencer a inclinada pista serpenteante. Cruzámos algumas aldeias berberes, aninhadas nas encostas das montanhas. Já perto do majestoso Toubkal, pudemos abarcar uma paisagem de sonho. Dos píncaros da montanha podíamos divisar lá muito em baixo as aldeias com os seus terraços de açoteias que, vistas do alto, pareciam favos de uma colmeia. O nosso objectivo empurrava-nos para sul. Passámos pela bela cidade de Oarzazate, com as suas aldeias fortificadas em adobe, as kasbah. A partir daí estendia-se um mar de dunas e pedregais. Estávamos às portas do magnífico deserto do Sara, o maior deserto do mundo. Apesar do fascínio provocado pelos desertos, sentíamos um aperto na garganta. Percebia-se então melhor porque é que a palavra em berbere para água, amane, é sinónima de confiança, fé ou tesouro… Depois de uma longa estirada sobre a areia fina das dunas que alter-

nava com pedregais e oueds (leito de rios de enxurrada, secos), finalmente divisámos no horizonte um grupo de tendas negras compridas. Era a khaima (acampamento tuaregue) do nosso amigo Hammadi. Quando nos acercámos das tendas de pêlo de camelo, vários homens aproximaram-se envoltos nas suas longas túnicas azuis, com os rostos totalmente envoltos num longo lenço azul-índigo; o turbante enrolado à moda do «povo do véu» só deixava entrever os olhos brilhando como verrumas. De súbito, um longo silvo cortou os ares e um cavaleiro aproximou-se a galope largo, montando um mehari (dromedário) beije claro como as areias do deserto. Sem parar a montada, saltou para os meus braços num caloroso abraço. As notícias correm céleres no Sara… – Metulem!... Metulem!... – Cumprimentou o nosso amigo na tradicional saudação targui. O Sol já se enroscava nas dunas distantes quando o chá de menta ficou pronto a ser despejado de grande altura nos copos, de modo a libertar o seu aroma inebriante.

DEZEMBRO 2008

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