Livro zero 7

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Do real ao a, ou da queda ao passo de dança •

Lucília Maria Abrahão e Sousa1

Do real, o que não se diz Ando muito completo de vazios./ Meu órgão de morrer me predomina./ Estou sem eternidades./ Não posso mais saber quando amanheço ontem. Manoel de Barros Boca não disse palavra. Carlos Drummond de Andrade

O cotidiano de Ana – nome banal de uma mulher acostumada ao conforto do lar e à realização de tarefas domésticas sempre iguais – guarda certa inquietação contida, um desarrumar sob aparente controle, “alguma coisa intranquila” que se sustenta presente na ordem da vida. Clarice Lispector a desenha com primor, mantendo-a circunscrita ao típico dos anos 50, uma vida escrita por/para marido e filhos, em um apartamento bem situado na capital carioca e em cuja ordem do repetível as horas se desenrolam protegidas de toda turbulência e da “ternura do espanto”. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco de espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo espanto – ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido [...] Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. Ela alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera (LISPECTOR, 2009, pp. 20-21). 1 Docente na Universidade de São Paulo (FFCLRP), membro do Fórum do Campo Lacaniano SP. Contato: luciliamasousa@gmail.com

Do real ao a, ou da queda ao passo de dança

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