Caderno de Stylus 3

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mestria do eu em enlaçar a imagem ao vazio absoluto do objeto a, a imagem como idêntica à falta. A anorexia é uma resposta que fabrica no real o “nada” como causa, mas sem passar pelos sintomas nem pelo Outro; por isso é um modo como, no discurso capitalista, fazer-se sujeito só com o objeto, e com o buraco no corpo. É resposta dessas filhas que não encontram no amor do pai uma “armadura” para sustentar seu corpo como sede da falta que encerra o mistério do desejável, uma resposta para evitar que o corpo se lhes desfaça como gozo informe do Outro. Quando a filha não encontra no pai uma versão da forma falicizada que lhe proporcione um envoltório com os semblantes do desejo do pai, com suas palavras, para alojar-se em seu amor, pode optar por arranjar-se sem a dor de seu falhado amor pelo pai. Lacan diz que existem pais que só passam às suas filhas “saber como meio de potência”. Acrescentarei que, seguindo o que Lacan coloca em outros momentos de seu ensino, esses pais não portam a função de Nome do Pai como “vetor da lei no desejo”, senão como vetor da lei no poder social do saber ou do saber-fazer. E se do lado materno, a filha não encontra amparo para sua falta, pois a mãe se antecipa com seus cuidados e oferta de objetos para que a filha nada tenha a pedir, o prato estará servido. A filha anoréxica tornará sua dependência dos asfixiantes imperativos do Outro em poder sobre o Outro, para fazer o Outro depender dela, dessa causa que será, por sua ação de privação de alimento, o vazio realizado em seu corpo. Comer e vomitar é outro modo de operar com o corpo como objeto a como buraco, na alternância entre a ânsia de comida do corpo e o ato de expulsá-la do corpo. A bulímica diz muito bem que só quando o vômito sai do corpo, ela se sente liberada e renasce como sujeito, refeita de novo, instaurando-se como sujeito na passagem ao ato. Na passagem ao ato mostra que se faz sujeito só causado pela perda no real, essa perda da pasta hedionda à que se reduz o objeto do gozo oral. Assim que o imperativo do consumo, de direito ao gozo, quando para os sujeitos já não rege o dever do Outro – que já não rege o dever do Outro é o próprio do discurso capitalista – consome os sujeitos. Anorexias, bulimias, consumos aditivos são provas disso. A anoréxica desmascara a avidez do mestre capitalista e mostra um desejo “puro”, como puro desejo de morte, desejo imortalizado, sem gozo da vida. Opta por fazer-se mártir, diria, não da não relação sexual “como no sintoma histérico, mas do corpo como assexuado”. Por último, muitas meninas hoje, bulímicas inclusive, se dedicam a essa prática de “cortar-se” que os americanos chamam de “cutting”. Não é uma passagem ao ato pelo que se faz retorno no real do efeito de castração dos significantes mestres sobre o gozo do corpo? Aí onde o rechaço do corpo da histérica, que a divide como sujeito, a condena a ser corpo abandonado a si mesmo e a efeitos imprevisíveis e indizíveis. Uma menina disse: “era só meu mecanismo para escapar de uma situação que me fazia sentir muito mal”. E outra: “começa quando sucede

Caderno de Stylus Rio de Janeiro no. 03 p. 45-65 outubro 2014

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