EM-BARCO
UMA PRODUÇÃO A PARTIR DE MARIE-LOUISE VON FRANZ A BUSCA DO SENTIDO
JANEIRO 2021
EM-BARCO 1° edição
equipe editorial
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fotografia ilustrações
arte final e-mail instagram
Aparecida Silva Dênis Peixoto Araújo Fabrícia Bernardes Jheynne Scalco Jheynne Scalco Aparecida Silva Dênis Peixoto Araújo Fabrícia Bernardes Jheynne Scalco Jheynne Scalco Dênis Peixoto Araújo Aparecida Silva Fabrícia Bernardes Jheynne Scalco
grupoestudos.vfranz@gmail.com @em_barco
ÍNDICE 01
Quem somos?
02
Sobre o grupo e sobre a obra escolhida
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A Busca do Sentido
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Carta ao leitor
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Ensaio: Em-barco
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Mudança e Transformação
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Um Pequeno Exemplo Pessoal...
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Figuras dos meus sonhos, que me chamam para Ser
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O Grito de Merlin
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A Busca do Mito Pessoal
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O que vocês sentem quando eu me mostro em totalidade?
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Ressurreição
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Deusas e O Deus
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O fim do começo Com-Sentido
Foto: Jheynne Scalco (2018)
EM-BARCO QUEM SOMOS?
APARECIDA SILVA Psicóloga junguiana Fortaleza - CE
FABRÍCIA BERNARDES
Analista junguiana Brasília - DF
DÊNIS PEIXOTO ARAÚJO
Psicólogo junguiano Fortaleza - CE
JHEYNNE P. SCALCO Fotógrafa e Ecóloga Rio Claro - SP
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EM-BARCO
SOBRE O GRUPO E SOBRE A OBRA ESCOLHIDA O que uma galera com vontade de estudar a obra de Marie-Louise Von Franz, sem grana e no meio de uma pandemia faz? Não sei o que você pensou, mas nós decidimos montar um grupo de estudos. Só a vontade materializa alguma coisa? Achamos que não. Há quem duvide. Lançamos a ideia para poucas pessoas próximas – a intenção é ser um grupo pequeno – e tivemos uma resposta positiva de interesse e disponibilidade. Dentre as muitas coisas que aprendemos com o “ A busca do sentido” – logo, logo, falaremos dele – é que atentar-se para as inesperadas possibilidades, para as pequenas sincronicidades, faz da vida, vida. E foi por diferentes caminhos que uma outra galera foi chegando, desconhecidas, morando em outros Estados, diferentes profissões, diferentes... Então como apresentar o que estamos sendo? Já falamos de algumas premissas, outras delas são: o grupo se propõe a estudar toda a obra de Von Franz visando chegar aos estudos alquímicos. Nós nos reunimos semanalmente, fazemos produções (aqui exercite sua imaginação) com a intenção de compartilhar o que estamos aprendendo e isso talvez seja o mais importante sobre nós: estamos aprendendo! Porém restava outra pergunta. Por onde começar? Diante das opções o “A busca do Sentido” pareceu a mais coerente, não pelo número de páginas e, apesar do título, também não foi por isso. Foi porque nele Von Franz conta sobre o sentido de sua vida, seu mito pessoal e a relação profunda com os estudos da alquimia. O livro “A busca do Sentido”, é formado por duas entrevistas que Von Franz concedeu a Claude Mettra, produtor da programação de rádio Cultura Francesa, do grupo Radio France.
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A primeira entrevista, “O grito de Merlin”, foi divulgada tanto em 1978 quanto em 1979 e fala sobre a figura lendária do mago Merlin e sua íntima relação com a construção do processo de autoconhecimento de C. G. Jung. Nela Von Franz também expõe conceitos da Psicologia Complexa e da alquimia, que são importantes para compreender o processo de encontro com a própria identidade. Todas as explicações são dadas através
de
mitológicos
exemplos e
de
clínicos,
experiências
pessoais da autora. A segunda entrevista, “Os sonhos e
o
destino”
1986.
Nela
respeito
do
foi Von
divulgada Franz
livro,
então
fala
em a
recém
lançado, “Os Sonhos e a Morte”. Neste livro, que foi o motivo da entrevista, Von Franz interpretou muitos sonhos de pacientes que se
encontravam
em
condições
que apontavam para a morte. Foto: Jheynne Scalco (2017)
Ela faz algumas considerações sobre uma possível continuidade da psique e da relação verdadeira que
precisamos
manter
com
o
inconsciente,
mesmo
que
esta
possa
nos
levar
a
direções
contrárias ao que desejamos conscientemente. Dois anos depois dessa entrevista, Marie-Louise Von Franz faleceu. Com o fim do estudo sobre “A busca do sentido”, seguimos em busca. Por: Dênis Peixoto Araújo e Aparecida Silva
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A BUSCA DO SENTIDO Analista junguiana, pesquisadora, Ph.D. em línguas clássicas, autora de vários livros, palestrante e importante continuadora do trabalho de Carl Gustav Jung. Trabalhou com Jung por mais de 30 anos, contribuindo com ele em seus estudos sobre psicologia e alquimia. Seu estilo de escrita é acessível e direto, o que torna a leitura fascinante. Von Franz se dedicou a uma enorme gama de assuntos: interpretação psicológica dos contos de fada, conexão entre psicologia e física, o simbolismo do Graal (continuação da obra de Emma Jung), alquimia e a questão do problema do puer aeternus (juventude eterna). De acordo com C. G. Jung, Marie-Louise Von Franz foi a única entre seus discípulos que compreendeu plenamente suas ideias (Barbara Hannah em Jung Vida e Obra, p. 350-351). MARIE-LOUISE VON FRANZ
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CARTA AO LEITOR Olá, tudo bem? Puxa uma cadeira, senta aqui pertinho. Aceita um café? Vou te contar uma coisa: você nem sabe, mas aconteceu algo incrível este ano. Mesmo com uma pandemia na nossa cola e condições de temperatura e pressão nada favoráveis. A gente também não esperava, nem passava na imaginação. Depois de alguns meses de divagações e estudos coletivos, de risos frouxos olhando para a tela, de partilhar de desejos, aconteceu... Alguém disse um dia: “ah, e se a gente escrevesse um e-book com essas produções?”. Daí do outro lado alguém disse: “hum, porque não?”. A ideia do e-book, caro leitor, organizou nossa disciplina e desafiou nossa coragem para continuar acreditando que seria possível ultrapassar as barreiras entre a fantasia e a ação. Aqui tem muita imaginação. É preciso ser livre para sentir o que foi expresso e traduzido pelas vias do sentimento, da intuição, do pensamento e da sensação, agindo em conjunto. Um grupo misto, diverso, construindo juntos. Não poderíamos esperar menos que isso, não é mesmo? Um passo de cada vez. Pensamos em você durante todo o percurso, afinal, para quem estamos escrevendo e mostrando o que produzimos? Será alguém capaz de compreender o que foi colocado aqui? E nós estamos sendo capazes de nos comunicar com quem vai ler? Estes questionamentos não nos impediram de continuar, pelo contrário, nos deram mais vontade. Nós não sabemos quem irá ler ou como será a reação, mas trazemos aqui, humildemente, o convite para que você embarque nesta viagem que a gente compilou com muito amor, enquanto líamos esta obra incrível chamada “A Busca do Sentido”. Esperamos que você se sinta à vontade e se quiser nos contar depois suas impressões, estaremos ansiosos para saber. Pois então, seja bem vinda/o, se achegue e sinta-se em casa. Aqui é tudo nosso. Antes de mais nada, obrigada por ter vindo! Por: Jheynne Scalco e Aparecida Silva
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ENSAIO: EM-BARCO
Que sensação estas imagens lhe causam?
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“Eu sou a minha própria embarcação Sou minha própria sorte E Je suis ici*, ainda que não queiram não Je suis ici, ainda que eu não queria mais” trecho da música “Um corpo no mundo” da cantora Luedji Luna * “eu estou aqui” em tradução livre do francês para o português
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Foi em uma manhã qualquer na qual eu ouvia esta música tentando dar lugar a vozes que não costumo escutar, vozes que vêm de um lugar de longe de dentro, que, ao ouvir este trecho, consegui entender o sentido da produção destas imagens. “Dar sentido”, algo que durante semanas havia sido tema de reflexões até então, tão intangíveis e abstratas. Algo que parecia completamente inalcançável, mas que bastou abrir os olhos e ouvidos de dentro, abrir a escuta fina, para que o sentido viesse, pela via do sentimento ou do sentir, ou da intuição. Nunca vou saber de fato os caminhos internos que eu tive que permitir serem abertos para que o sentido deste trabalho se mostrasse e agora, neste dia de manhã, subitamente, tudo fez sentido. Eu andava fazendo experimentos de uma forma de imprimir imagens em plantas, com uma técnica chamada fitotipia. Queria, sem saber como, imprimir imagens em folhas garimpadas da natureza. Já havia feito muitas tentativas frustradas... Até que um belo dia, pela observação de processos de uma artista que faz este trabalho, eu entendi como funcionava. Peguei então algumas imagens fotografadas em outros tempos e resolvi tentar. Imprimir fotos em plantas leva dias e dias. Folhas
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coletadas em beiras de mato, expostas por três dias ao sol do dia todo, onde uma imagem deveria ficar gravada naquela superfície, pela ação dos raios que desbotam as folhas onde a luz passa pela imagem sobreposta a ela. Neste experimento, no qual a tentativa era com seis imagens, somente três finalmente ficaram impressas nas minhas folhas retiradas da natureza com respeito e carinho. Três imagens. Três folhas da natureza. Três dias para ficarem prontas. O tríptico dos dias
e
das
coisas
estavam
aparecendo
ali
diante
dos
meus
olhos
incrédulos
e
um
pouco
assustados. Na manhã que eu ouvia a música sobre a embarcação, eu olhei as fotos nas folhas e vi que era aquela trinca que estava pronta. De alguma maneira, eu só aceitei. Estava pronto. De olhos fechados respirando e ouvindo a canção, eu vi em uma folha a imagem de um barco. Eu vi na outra folha a imagem de alguém que se ergue na frente da embarcação e conduz aquele corpo flutuante. Eu vi na terceira folha um rio formado por pequenas flores um pouco apagadas, mas incrivelmente fortes no sentido de indicar um caminho. No momento da canção onde tambores contam a história de uma mulher, um corpo no mundo, vagando e encontrando seu caminho, se entregando à magia do permitir, eu morri um pouco, chorei um tanto e sorri depois. A sensação foi de estar flutuando em um rio desconhecido. Aquelas folhas fotografias, três folhas, três fotografias, dos três dias, me mostraram que é algo que fica dentro que traz as respostas que às perguntas que estão fora. As perguntas pareciam tristes demais, para respostas tão alegres. O barco a gente conduz um pouco, mas o rio, a correnteza, o vento e o relevo que fazem o rio desaguar nalgum lugar, são muito mais fortes do que um leme ou um remo. Nesta embarcação chamada vida, o remo tem lá sua importância, no entanto, é o rio que conduz o barco. O rio está dentro e está fora também. Um rio-paradoxo, no qual eu me deixei aquele dia, navegar pela via dos afetos, das dores, das dúvidas e também das sensações e das intuições. Sem controle: era deixar ir, embarquei. Dar sentido talvez seja muito mais sobre experimentar e permitir, do que buscar com voracidade
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respostas que só vão aparecer se nos distrairmos com a canção. Naquele dia os tambores e a embarcação da canção ajudaram a revelar, assim como o sol revela nas folhas as imagens, que era preciso permitir, sem controle, a vinda de dentro da generosa resposta para as perguntas da alma: “eu estou aqui”. Enfim... Este tríptico de imagens reveladas em fitotipia fizeram parte da primeira produção proposta pelo grupo após a leitura da primeira parte do livro “A Busca do Sentido” e a provocação inicial foi proposta ao grupo no dia em que mostrei as imagens em minha singela apresentação. Foi muito lindo ouvir o que cada uma/um tinha a oferecer a partir de suas sensações e sentimentos, ao observar o que eu lhes mostrara naquele dia. O que as imagens trouxeram à tona para cada um dos participantes, deu laço final ao sentido daquilo que, dias antes, surgira de maneira tão espontânea. Uma vez ouvi de um sábio que todo observador é coautor de nossa obra. Isto se concretizou naquele dia, para mim. Aquela troca foi tão intensa e verdadeira que eu tive certeza de que estava adentrando um espaço que meu coração desejava – deste desejo que a gente ouve tanto falar, mas pouco nota quando acontece. No fim das contas, nosso grupo, tão heterogêneo e tão coeso ao mesmo tempo, resolveu que o título deste e-book iria carregar o nome desta obra. Talvez porque, de alguma maneira, todos aqui estejam no mesmo barco, que quer navegar por estas águas do desconhecido e encantador universo da busca. Uma busca pelo sentido, da qual fala Von Franz, da busca por este almejado mito pessoal, da busca pela confiança nos sonhos e nas
suas
preciosas
mensagens...
Esta
busca
nos
colocou
em
contato,
fez
com
que
nos
encontrássemos em um ano de confinamento e abriu uma janela de comunicação virtual e afetos verdadeiros. Se você sentiu algo ao ver estas imagens, considere-se uma coautora ou um coautor desta obra. Obrigada! Texto e imagens (fitotipias e fotos): Jheynne Scalco
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MUDANÇA E TRANSFORMAÇÃO Hoje eu começo por aqui sabendo um pouco sobre o que quero fazer e dizer, mas nem sempre foi como está sendo hoje, por isso, me
deixem
contar
algo
sobre
o
começo.
Um
dia
diante
da
encruzilhada que apresentava meus caminhos, possibilidades e consequências, eu me vi perdida. Quando pedi ajuda entendi que a escolha deveria ser “somente” minha, então, eu segui por uma via denominada “extroversão”. Ao longo desse percurso muita coisa tem acontecido e eu continuo esperando uma maneira de negociar com o deus da comunicação e senhor da encruzilhada para poder entender o que venho experienciando e aprender a transitar pelas vias em segurança, com precaução e, sobretudo, compreensão. Eu acredito na mudança e na transformação, não é à toa que escolhi essa forma de caminhar. Um dia lendo coisas aleatórias durante o isolamento social, esbarrei em um livro que eu havia ganhado há alguns meses, mas ainda não tinha tido tempo de ler. Pensando na possibilidade de me livrar do tédio que me consumia resolvi começar a ler o livro em questão. Algumas páginas mais tarde encontrei explicações sobre o simbolismo do tubo de ensaio e do vidro, segundo a autora, Marie-Louize Von Franz, em geral, o vidro é transparente, mas um péssimo condutor de calor. Foto: Jheynne Scalco (2020)
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Pode-se dizer que isso tem a ver com a racionalidade, que representa um sistema intelectual que permite ver algo com total clareza, mas que isola o afeto e o sentimento. "(...) um tubo de ensaio é um lugar de transformação. Qual é a condição para qualquer tipo transformação psicológica? É olhar profundamente para dentro de si mesmo”. Oi, intelectuais, tudo bem? Eu penso que este é e não é o caminho pelo qual eu quero seguir. Aprendi também com essa autora que “é preciso romper a fronteira entre fantasia e ação”. Estudar sobre o sentido e o caminho que leva a essas transformações é o meu objetivo. Entender as vias que se cruzam e o movimento das avenidas é o aspecto que me deixa em estado de euforia e satisfação.
Mas eu não quero e não posso fazer isso sozinha. Aprendi nesse período
que “o impulso mais forte é aquele de se tornar aquilo que se é (...) mas a natureza faz desvios e às vezes a mão esquerda desfaz tudo o que a mão direita fez, com pequenos truques o indivíduo acaba enganando a si mesmo”. É preciso ficar atento e ser fiel aos comandos do inconsciente... sozinha o sentido se perderia. Jung e sua obra me acompanham e me ajudam a enxergar o meu processo e os demais processos que acontecem ao meu redor. Eu entendo que sozinha não é possível ir muito longe, não existem vias vazias, o movimento é constante e eu preciso saber lidar com os que estão na mesma direção e na direção oposta a minha.
Foto: Jheynne Scalco (2020)
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Foto: Ecrisol por Pixabay
Durante a leitura do livro: A busca do sentido, eu me senti muito afetada e fui invadida pelo desejo de querer compartilhar e aprender sobre conhecimento que ali se encontrava. O sentido da vida ainda é um enigma pra mim, eu não sei qual é o meu mito pessoal e tenho uma “relação instável” com o inconsciente. Entendi durante a leitura que “a pior neurose é não ter sentido pra viver”, essa frase me fez lembrar de uma música do Luiz Gonzaga que diz o seguinte: "Mas o pobre vê nas estrada O orvaio beijando as flô Vê de perto o galo campina Que quando canta muda de cor Vai moiando os pés no riacho Que água fresca, nosso Senhor Vai oiando coisa a grané Coisas qui, pra mode vê O cristão tem que andá a pé". Estrada de Canindé Luiz Gonzaga Talvez, pra mim, o sentido de viver esteja relacionado com a terra, a minha terra. Sigo com a expectativa de me tornar mais acessível, sensível e/ou humana, torço para que a intuição me ajude
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quando a racionalidade quiser se ocupar de tudo. Que eu entenda e valorize as pequenas sincronicidades da vida e o poder que advém do contato com a ancestralidade, os sonhos e a relação verdadeira com inconsciente. E por último, eu gostaria sempre de lembrar que nesse grupo é possível ir além do livro, dos conceitos, da autora e do suposto saber. Tivemos muitos compartilhamentos que poderão contribuir para o processo de compreensão do viver para além das determinações.
Texto: Aparecida Silva
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UM PEQUENO EXEMPLO PESSOAL... “Há, ainda, para Jung, o impulso da individuação, de você se tornar você mesmo, que é mais marcante do que todos os outros. O impulso mais forte é a necessidade de se tornar aquilo que se é. Além de tudo, cada planta, cada árvore quer ser ela mesma, para falar poeticamente. A totalidade dos instintos de uma raposa é ser uma raposa e viver a vida de uma raposa; e o homem deve ser homem na sua totalidade. Jung dizia sempre: “Somos muito infelizes, ao passo que os animais não têm problemas: um tigre não come maças!” Mas o homem é pervertido, e sua curiosidade, que herdou dos seus ancestrais primatas, o faz desviar de seus instintos. A noite corrige isso pelos sonhos. É por isso que damos tanta importância aos sonhos.” – Marie-Louise Von Franz em A busca do sentido, p. 17-18.
Após a leitura e discussão do livro “A busca do sentido”, de Marie-Louise Von Franz, cada participante do grupo de estudos foi convidado a representar livremente suas impressões e sensações advindas do texto. Assim, optei por elaborar um desenho, no qual eu procurava conectar aquilo que eu estava vivendo com os trechos do livro que mais chamavam a minha atenção. Mas, mesmo antes da leitura, eu já tinha sido capturada pelo título do livro... A busca pelo sentido da minha vida era um assunto no qual eu estava envolvida desde o início da minha adolescência.
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Um pequeno exemplo pessoal de como a consciência toma melhores decisões quando está relacionada com seus instintos...Uma consciência sozinha não decide bem e um inconsciente apartado “não existe”.
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Assim comecei a buscar o sentido da minha existência nos livros de astrologia, numerologia, cabala, eneagrama, budismo e magia – sim, eu fui uma xóven mística, rsrs! Eu estava tentando encontrar a minha essência, o meu lugar nesse mundo.
No entanto, esse não foi um caminho
legal. O que eu encontrei foram muitas regras, dogmas e imposições. Quanto mais eu mergulhava, mais eu era obrigada a me afastar daquilo que eu sentia, daquilo que eu queria. Felizmente a submissão a essas ordens externas não duraram para sempre. Foi então que eu conheci Nietzsche e me apaixonei: por ele e pela sua filosofia. Foi uma revolução pessoal. Eu poderia argumentar, contestar e pensar por conta própria! Juntei isso ao bom e velho rock’n’roll e a combinação foi explosiva, kabooooom! Essa nova fase, apesar de muito diferente da anterior, era tão unilateral quanto. Eu estava muito focada em defender esse ponto de vista acima de todos os outros. O resultado dessa independência é o isolamento – uma solidão forçada, um sentimento de ser incompreendida pelo mundo... Emoções nada agradáveis! Porém, a minha história ainda não havia terminado! Eu decidi me reinventar e me tornar uma pessoa normal e adaptada à sociedade – não é uma ideia genial e inovadora? #SQN, kkk!!! Estudei, passei num concurso e me casei. Porém, alguma coisa ainda não estava certa. Eu não estava muito feliz, sabe? Faltava alguma coisa. E eu não poderia passar o resto da minha vida daquele jeito. “A pior neurose não são os sintomas, mesmo que sejam muito desagradáveis, mas a pior neurose é ter o sentimento de que minha vida não tem sentido. Hoje em dia, tem muito mais gente que sofre disso do que sintomas verdadeiramente neuróticos, ou seja, de sintomas compulsivos ou algo assim. Eu tenho muitos analisandos, que não apresentam sintomas psiquiátricos
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ou psicopatológicos, mas que vêm simplesmente porque dizem: “Minha vida não tem mais sentido, está vazia.” Marie-Louise Von Franz em A busca do sentido, p. 23. Eu precisava descobrir qual era a minha vocação! Já sabia que os astros não poderiam me ajudar, nem a razão da filosofia. Era hora de ouvir meu coração e me perguntar sobre o assunto que realmente o tocava. Nessa conversa comigo mesma, me dei conta que sempre curti entender como a gente “funciona” psiquicamente. Então comecei a ler muita coisa sobre psicologia, mas não era isso ainda. Li uma ou duas obras do Freud e cheguei bem perto do que queria. Até que o conceito de inconsciente coletivo fez total sentido para mim. Estava decidido: iria me dedicar ao estudo da obra de C. G. Jung. E desde então, é o que venho fazendo com paixão. Mas encontrar o que amo fazer, não foi suficiente! Eu precisava me envolver com o que eu estudava, então começar uma análise com um(a) terapeuta junguiano(a) era uma condição necessária. A consideração pelos meus sonhos e pela mensagem que eles me traziam, me indicavam que eu não tinha nem ao menos iniciado a jornada em busca do sentido da minha vida. Então, eu comecei a me perguntar o que era aquilo que eu estava buscando – que sentido era esse que eu esperava encontrar? Será que eu estava procurando encontrar algo parecido com uma essência? Um conceito, uma chave, um símbolo imutável que explicaria e conduziria a minha vida? Foi então que eu comecei a perceber que o sentido – pelo menos para mim, não entenda isso como uma regra, ok? – não era algo escondido numa caixinha esperando para ser descoberto e fim! Mas, era sim, algo que contava com a minha participação para se tornar criativo, de fato. Até então, a busca tinha sido apenas externa. A jornada apenas começava! Toda essa história faz parte da imagem que elaborei a partir do livro da Von Franz. Talvez esta imagem não seja capaz de transmitir completamente o que eu vivi, mas a minha intenção foi a de
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demonstrar o nascimento de uma relação entre a consciência e o inconsciente e, a partir dela, uma transformação que lentamente se manifesta em mim: um sentimento de confiança em mim mesma e de aprovação interior para aquilo que eu sinto e desejo fazer. Até então eu me encontrava extremamente dependente do reconhecimento exterior. Para mim, ainda é importante ouvir o que os outros têm a dizer, mas a opinião deles não tem peso maior do que a minha própria decisão. Continua...
Texto e ilustração: Fabrícia Bernardes
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FIGURAS DOS MEUS SONHOS, QUE ME CHAMAM PARA SER
Colagem: FabrÃcia Bernardes
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O GRITO DE MERLIN
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o grito de merlin o rugido do tempo é anúncio. segundos são anos e passa. a vida se recria e estilhaça mediocridades de que somos o nós feito nó. dogma é como dois e dois mesma lógica. onde cabe a lógica? engolida pela serpente-natureza que faz dois questionamentos e os que param para responder se perderão nos labirintos de atena. o rugido do tempo é anúncio anjo te convida para ver a grande prostituta vestida de púrpura e ouros sentada à beira de muitas águas o titulo do capítulo é: o mistério do mal
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você consegue ouvir os gritos? os gritos feitos em silêncio quem grita? a senhora do lago que guarda o segredo diz: o rugido do tempo é anúncio. as duas torres serão engolidas pela serpente. volte para o futuro e se torne aquilo que você foi e não lembra. deixa viver.
Ilustração e poema: Dênis Peixoto Araújo
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A BUSCA DO MITO PESSOAL
Ilustração: Dênis Peixoto Araújo
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O QUE VOCÊS SENTEM QUANDO EU ME MOSTRO EM TOTALIDADE?
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O que acontece quando deparamos com as representações da totalidade? A busca do sentido da vida e os desafios determinados pelo destino me levaram ao questionamento que deu origem ao texto que pretendo aqui desenvolver, usando como paralelo heurístico o simbolismo da serpente. A Von Franz, no livro do Puer, explica que esse símbolo pode ser entendido como: “uma parte do psiquismo instintivo, mas é um instinto completamente banido da consciência (Von Franz, MarieLouise. Puer Aeternus – A Luta do Adulto Contra o Paraíso da Infância. p.96). E Jung, no livro "Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo", fala que “os vertebrados inferiores desde a antiguidade têm sido os símbolos preferidos do substrato psíquico coletivo, que é anatomicamente localizado nos centros subcorticais, no cerebelo e na medula espinhal. Esses órgãos constituem a cobra. Os sonhos com cobra geralmente ocorrem, portanto, quando a mente consciente está sendo desviada de sua base instintiva” (JUNG, OC IX, parágrafo 282). A escolha por esse paralelo deu-se pelo meu interesse pessoal em procurar uma imagem que pudesse representar, para mim, a questão conflitante e que pudesse, ao mesmo tempo, ter um sentido coletivo semelhante. As serpentes caminham comigo desde sempre, não é à toa que sou acompanhada por tal símbolo há tanto tempo nos sonhos. Ele (o símbolo) faz parte das principais lembranças da minha infância e sua dualidade tem sido apresentada a mim, através do contato direto com os animais em situações reais e sonhos recorrentes. Entendo, a partir do que disse Von Franz, que não é possível esgotar um símbolo e por esse motivo tomarei cuidado para que não haja uma interpretação equivocada sobre as motivações que me levaram a considerar válido seguir pelos caminhos que foram apontados, considerando os produtos do inconsciente. Quando a Von Franz diz que “sonhar com cobras é sinal que a consciência está separada do instinto, mostrando que a atitude consciente não é natural e que há uma personalidade dual que parece ser, de certa maneira, muito bem adaptada e muito atraída pelo mundo exterior e, ao mesmo tempo, inclinada a falhar completamente em momentos decisivos”, eu penso que é preciso refletir a respeito disso, uma vez que, apressadamente, alguém pode tentar querer solucionar um problema de maneira rápida e se perder em um dos lados. É preciso cautela para tentar lidar com
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tais conteúdos e negociar, na medida do possível, para não permanecer com atitudes que fortalecem a unilateralidade. A serpente é essencialmente dupla na mitologia, Jung afirma que ela causa medo, traz a morte com seu veneno, é inimiga da luz e ao mesmo tempo o redentor em forma de animal. Um símbolo do Logos e de Cristo. Talvez seja muita ousadia propor discutir tais questões e dizer que o objetivo será alcançado com sucesso, uma vez que este ensaio está sendo escrito por alguém que acaba de iniciar a jornada no mundo junguiano e que ainda está aprendendo a se equilibrar para dar os primeiros passos em direção ao longo percurso rumo à compreensão do pensamento de Jung e do seu nominalismo culto. Eu entendo que é necessário fazer algumas amplificações para tentar compreender melhor a complexidade desse símbolo, por exemplo, se pensarmos no símbolo da serpente a partir do cristianismo. É possível observar uma relação da serpente com a imagem da mulher que se faz presente desde o princípio, na era cristã, como aponta a passagem do texto bíblico no livro de Gênesis 3-15: “Então Deus determinou à serpente: Porque fizeste isso, és maldita entre todos os animais domésticos e o és entre todos os animais selvagens! Rastejarás sobre o teu próprio ventre, e comerás do pó da terra todos os dias da tua vida. Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o descendente dela; porquanto, este te ferirá a cabeça, e tu lhe picarás o calcanhar”. Devido ao “pecado” cometido por Eva ao comer o fruto da árvore proibida, as duas criaturas, mulher e serpente, tiveram sua relação determinada e agora estariam para sempre ligadas uma a outra. A sentença estabelecida para as mulheres depois desse acontecimento foi lançada no corpo, por isso, damos a luz através da dor e do sofrimento. Passamos a ser julgadas após esse episódio e condenadas
a
ouvir
sobre
os
“erros
da
mulher”,
nos
dizem
que
Eva
foi
inocente,
vaidosa,
desobediente, manipuladora e se desviou dos caminhos do Senhor, como afirma a seguinte passagem: “O que receio, e quero evitar, é que assim como a serpente enganou Eva com astúcia, a
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mente de vocês seja corrompida e se desvie da sua sincera e pura devoção a Cristo" - 2 Coríntios 11-3. Na mitologia cristã, a serpente aparece em vários momentos apresentando suas características duais e sendo responsável, direta ou indireta, pela salvação e/ou condenação daqueles que atravessam
seus
caminhos.
As
seguintes
palavras
das
sagradas
escrituras
confirmam
tais
afirmações: “então o Senhor enviou contra o povo serpentes peçonhentas, cuja mordedura queimava como brasa viva, e muitos foram os que morreram envenenados, entre o povo de Israel, O Senhor disse a Moisés: Faça uma serpente e coloque-a no alto de um poste; quem for mordido e olhar para ela viverá. Moisés fez então uma serpente de bronze e a colocou num poste. Quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, permanecia vivo"Números 21:8-9. “Se tentarem se esconder no topo do Carmelo, lá os caçarei e os prenderei. Se buscarem as profundezas do mar para se ocultarem dos meus olhos, darei ordem à grande Serpente, e ela os morderá”. Segundo Von Franz, "os pais da igreja sempre interpretam isso como uma
prefiguração
de
Cristo,
como
os
gnósticos
faziam.
A
serpente
possuía
as
mais
altas
qualidades salvadoras (...) isso mostra como qualquer símbolo, com o tempo, acaba se tornando unilateral e destrutivo. Aquilo que antes fora o fator de salvação - elevar a serpente ao mundo espiritual, esse gesto simbólico que foi enfatizado no cristianismo, como já era em épocas anteriores, agora perde suas qualidades redentoras e se torna destrutivo”. Durante a interpretação do livro “O Pequeno Príncipe” (autor Saint-Exupéry), Von Franz faz uma longa explicação sobre esse simbolismo, pois a serpente foi o primeiro ser vivo que o pequeno príncipe encontrou quando chegou à terra. Uma serpente dourada cumprimenta o pequeno homenzinho e de cara lhe faz uma proposta na tentativa de mostrar o quanto ela é poderosa, gentil e companheira. A serpente diz ao pequeno príncipe que ele se encontra no deserto e que a terra dos homens é um lugar perigoso, logo, alguém tão puro e vindo de uma estrela, não merecia viver em tal lugar, tão sombrio. A cobra é bastante inteligente, pois exatamente quando o pequeno príncipe chega à terra e está a ponto de enfrentar a realidade, ela aparece e diz: “Oh,
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você sabe, a vida é muito dura e muito solitária na terra, tenho um segredo e posso ajudá-lo a cair fora”. Ela é muito ambígua, o aspecto mais venenoso não nota sua reserva: esta o controla, não deixando que ele perceba (Von Franz, Marie-Louise. Puer Aeternus – A Luta do Adulto Contra o Paraíso da Infância p.99). É possível perceber que a cobra nessa história tem o mesmo papel duplo. Ela se oferece como exterminadora do pequeno príncipe, libertando-o do peso da vida, mas a oferta só pode ser compreendida de duas maneiras: como suicídio ou como portadora da sorte de livrar-se da vida. É essa atitude psicológica radical que afirma que a morte não é uma catástrofe ou um azar, mas um modo de escapar definitivamente de uma realidade intolerável que pode destruir a pessoa. No Pequeno
Príncipe
também
temos
a
“serpente
boa”,
que
segundo
Von
Franz,
nesse
caso,
especificamente, é uma imagem do inconsciente que sufoca a vida e impede o desenvolvimento do ser humano. É a introjeção dos aspectos regressivos, a tendência à regressão, que surge em uma
pessoa
quando
ela
é
dominada
pelo
inconsciente,
que
sufoca
a
vida
e
impede
o
desenvolvimento do ser humano. (...) a serpente boa representa a pulsão de morte, ela é o monstro da viagem noturna marítima, mas aqui, ao contrário de outros similares mitológicos, o herói devorado não se liberta. O herói supera grandes obstáculos, mata o dragão etc., mas, no caminho de volta, adormece e tudo se perde de novo, ou o tesouro lhe é roubado, como no épico de Gilgamesh, em que a cobra lhe rouba o elixir da vida enquanto ele nada (Von Franz, MarieLouise. Puer Aeternus – A Luta do Adulto Contra o Paraíso da Infância p.24). Essa difícil questão é colocada de forma vívida, no livro Mitologia dos Orixás (autor Reginaldo Prandi p. 114), numa história da terra iorubana (África Ocidental), relativa à divindade Oxóssi, também conhecido como Odé. No mito é relatado que: "Naquele dia a caça era proibida e ninguém podia trabalhar. Era um dia de ir à casa de Ifá levar as oferendas. Mas Odé queria caçar, como fazia todos os dias. Odé não se importou com o interdito. Odé tranquilamente foi caçar, seguiu o caminho da floresta. Oxum, sua esposa, cansada de ver o marido quebrar os sagrados tabus, abandonou a casa e o esposo. Caminhando pela mata, Odé escutou um canto que dizia: “eu
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não sou passarinho para ser morta por ti...”. Era o canto de uma serpente, era Oxumarê. Odé não se importou com o canto e atravessou a cobra com a lança partindo-a em vários pedaços. Odé tomou o caminho de casa e, no percurso, continuou escutando o mesmo canto: "Eu não sou um passarinho para ser morta por ti...". Ao chegar em casa, Odé foi para a cozinha preparou uma iguaria com o fruto de sua
caça e comeu a saborosa comida imediatamente. Pela manhã, Oxum
retornou à casa para ver como estava o marido caçador. Para seu espanto, encontrou morto o seu Odé. Odé estava morto, o corpo caído no chão. Ao lado de Odé, Oxum viu um rastro de serpente que se alongava até a entrada da floresta. Desesperada, Oxum foi procurar Orunmilá e ofereceu muitos sacrifícios. Orunmilá ouviu o pleito da dolorosa Oxum. Orunmilá deixou Odé viver de novo. Deu a Odé o cargo de protetor dos caçadores. E Odé foi transformado em Orixá" (Reginaldo Prandi. Mitologia dos Orixás, p.114). No livro “Símbolos da Transformação da Libido” Jung faz uma longa discussão sobre o herói que é morto e transformado pela serpente, ele argumenta que o inconsciente se insinua em forma de serpente quando o consciente sente medo da tendência compensadora do inconsciente, o que geralmente
acontece
na
regressão.
Mas
quem
assume
uma
atitude
afirmativa
para
com
a
compensação não regride, e irá ao encontro do inconsciente através da introversão (Jung, OC V, parágrafo 587). No mito citado anteriormente, Oxóssi desobedece as regras, os tabus e mata, se alimenta e é morto pela serpente. No entanto é a partir desse movimento que surge uma transformação em sua vida. Como diz Jung, o herói que precisa realizar a renovação do mundo, vencer
a
morte,
personifica
a
força
criadora
do
mundo
que,
chocando-se
a
si
mesma
na
introversão, como serpente envolvendo o próprio ovo, ameaça a vida com mordida venenosa para conduzi-la à morte, e desta noite, vencendo-se a si mesma, a faz renascer. O herói é serpente para si mesmo, seu próprio imolador e imolado, razão por que Cristo se compara com razão à serpente sagrada de Moisés e o redentor dos ofitas cristãos era uma serpente (Jung, OC V, parágrafos 592/593). Após sua morte, é Oxum, sua esposa, quem negocia para tentar salvar sua vida e conseguir o per-
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dão de Orunmilá através dos sacrifícios. É interessante pensar que essa questão do sacrifício também é facilmente encontrada na tradição cristã, como afirma Jung, uma vez que, a ideia cristã de sacrifício, representada pela morte de um ser humano, exige uma entrega do ser total, portanto, não só uma domesticação de seus instintos animais, mas uma renúncia total a eles e, além disso, uma disciplinação de suas funções espirituais, especificamente humanas, para um fim espiritual transcendental (Jung, OC V, parágrafo 674). Nesta perspectiva, Oxóssi se torna um Orixá e recebe a missão de proteger as florestas, os animais e prover sustento, o alimento para seu povo. Eu fico pensando na relação entre as duas penalidades dada a serpente e a mulher. A condição que a mulher é coloca na sociedade, por exemplo, parece reforçar que ela esteja sempre rastejando, sempre para baixo, sua cabeça pode ser esmagada a qualquer momento, sem que haja hesitação. Mas o que significa estar sempre tocando o chão? Parece existir um certo medo do que o Ser-Mulher possa ser capaz de fazer, mesmo estando nessa situação. As serpentes são temidas pelo seu veneno e suas habilidades. Elas são versáteis e podem ser quase invisíveis, silenciosas, rápidas, grandes, pequenas... Rastejar deveria ser a maior das humilhações, a marca da derrota e do castigo eterno, pois alguém nesta condição parece ser frágil e incapaz, no entanto, quando a serpente surge, as coisas mudam. Muita coisa surge junto a essa imagem. Quem foi a primeira a conseguir ir contra as ordens estabelecidas por Deus? Quem mostrou a verdade? Me parece interessante pensar na relação de inimizade que nos foi lançada. Mesmo estando no chão, as pessoas temem, gritam, choram, pedem socorro e imploram por ajuda quando uma serpente se aproxima. Seria a marca da maldição ou da representação da totalidade que espanta? Afinal, não é uma atitude inteligente encarar a face de uma divindade de frente. A
serpente
quando
aparece
nos
meus
sonhos,
me
faz
experienciar
muitas
sensações.
As
interpretações não são exatas, me dá muito trabalho entender a dualidade e compreender o sentido dos sonhos, junto ao meu processo de “autoconhecimento”. É, na maioria das vezes, como ter a sensação angustiante de lidar com algo desconhecido e maior do que eu.
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Totalidade, paradoxos e incertezas. Talvez seja isto o que eu sinto quando ela se mostra enquanto representação. Nos meus sonhos, eu já sei que ela é indestrutível. Não importa o que eu use para tentar me livrar dela. Ela escapa, cresce, se fortalece e retorna. Parece ter poder sobre todos os objetos e dominar todos os segredos, se eu tento segurá-la, desliza entre meus dedos. Quando eu me esforço para atingir as transformações que podem ocorrer a partir do confronto verdadeiro e cuidadoso da consciência e o inconsciente, ela, a serpente, me espera na beira do rio, me olha, me desafia, sorri e segue. E assim, eu sigo.
Texto e ilustração: Aparecida Silva
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RESSURREIÇÃO
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eu é que sou a ressurreição quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá e todo aquele que crê em mim não morrerá jamais (Jó 11) eu sou o caminho a verdade e a vida linha passo dado o que fica? o que vai? eu. não! verdadeiramente Eu? o inconsciente crê numa vida futura. os sonhos apontam para uma continuação...
Ilustração e poema: Dênis Peixoto Araújo
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DEUSAS E O DEUS
eu não acredito em Deus neste dos cristãos este
que
vigia
a
gente
até
quando a gente faz xixi mas descobri que tem um que mora dentro de mim Ele sou eu e eu sou Ele Ele está em toda parte e em lugar algum e eu gosto mais deste do que daquele do começo
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Brotou de algum lugar, de dentro de mim, uma imagem que deveria juntar várias que a memória, de algum jeito autônomo, começou jogar para fora, para um lugar que eu aprendi que se chama consciência. Aqui neste lugar bem restrito. Neste lugar, a tal da consciência precisa estar atenta para “ouvir” estes sussurros. Veio uma foto antiga, veio outra, veio um céu de estrelas não tão antigo, veio a árvore, vieram os olhos. Eram trechos de histórias e de acontecimentos que aparentemente não fazia o menor sentido juntar, mas enfim, resolvi seguir uma trilha semelhante a da primeira produção – Em-barco. As imagens estavam guardadas já em um lugar (pasta do arquivo das produções) seguro. Tinha que fazer delas uma só. Só que antes disto, vieram palavras, todas lidas, todas lançadas também para fora da memória aparentemente de forma aleatória. Tomei nota: sacrifício – espiritual – self – Deus – corpo sutil – morte – vida – luz – tempo – destino – arquetípico – sentido da vida. Em uma tarde quente, com as palavras no caderno de notas e a imagem na cabeça, surgiu a primeira colagem digital com imagens de outrora e com reflexões de agora. Não sei explicar, nem quero, mas só contei esta história porquê... também não sei. Só queria mesmo compartilhar, acho. Talvez para fazer sentido para mim. Compartilhar é uma das melhores palavras e uma das melhores ações. Talvez este e-book
seja
isto:
um
compartilhar
de
sentimentos,
sensações,
pensamentos e intuições. Em um ano de poucos abraços, porém, de encontros valiosos, mesmo que mediados por uma tela, criar estas páginas digitais foi um presente de nós para nós mesmos e agora, para quem se arriscou a chegar até aqui. Acho também que ter concluído esta obra, tenha sido uma coisa da ordem do divino, um divino que mora dentro da gente e com o qual tenho feito as pazes. Adentrando o universo junguiano, lendo palavras ditas por Marie-Louise Von Franz (acho este nome a coisa mais linda!), aprendi uma palavra nova: “numinoso”. Ainda estou aprendendo o que
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ela significa, mas, do pouco que pude compreender, considero que este fazer junto deste livro seja algo de numinoso - "estado de alma: influenciado, inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade". Foi uma alegria e uma honra chegar até aqui. O barco seguirá e continuaremos remando juntos neste navegar de águas tão complexas e encantadoras.
Colagem digital, poema e texto: Jheynne Scalco
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O FIM DO COMEÇO COM-SENTIDO O que chega de surpresa, talvez já tenha sido anunciado. Cumplicidade das conversas, ideias que precisam de uma e depois tornam-se de todas, porque antes de tudo foram oferecidas.
Apresente-se,
diga
seu
nome
e
seus
interesses. Aos poucos fomos sendo, para que o nome ganhasse rosto, depois podia até virar apelido. “Vou falar do
que
aconteceu
comigo,
tá?”,
partimos
do
eu,
partilhamos. Têm pouco romantismo e mais gritaria. Não é doce, mas também não é amargo. Há quem guarde a porta, preste atenção. Se você estuda psicologia analítica, há pouco ou muito tempo, pode ser que tenha passado pelo que eu passei: a angústia. Aquilo que se espalhou, enquanto eu entendi que não se pode estar à parte do que se estuda. Mudança do que é óbvio na cabeça e não no corpo, foi o começo. Aqui
não
é
o
final,
mas
o
início
do
que
ainda
não
podemos afirmar. Eu vou começar a remar, porque o barco já partiu. Foto: Jheynne Scalco (2020)
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Uma lembrança que tenho quando penso no caminho sério que é necessário para estudar e compreender a psicologia analítica, é a experiência de correr o mais rápido que eu conseguia e ficar enganchada no arame farpado ao tentar pular a cerca ao invés de passar pelo portão. O portão ficava um pouco à frente, e eu queria chegar antes do meus irmãos.
Desde cedo entendi
que algumas situações não podem ter atalhos, o preço é alto e, no mínimo, além do atraso consequente, restam as cicatrizes pelo corpo que são complicadas de esquecer e/ou esconder. A conversa em grupo, os encontros, a convivência ajudam a compreender melhor os processos da vida e por vezes auxiliam no entendimento de conceitos práticos. Assuntos em meio às leituras, livros e vidas, um pouco de tudo vivido e compartilhado durante esses meses. A sensação de poder errar e não ser apontado, diminuído, desconsiderado, cancelado. O comprometimento com o
estudo
sério,
não
passando
por
cima
do
que
não
conseguimos
procurando outras referências e discutindo. Diálogo produzindo sentido.
Foto: Jheynne Scalco (2020)
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entender,
mas
sempre
Foto: Jheynne Scalco (2020)
Gosto de pensar na força do acaso que faz a gente trombar nas coisas. Coisas cercas, coisas arame farpado, coisas pedra, coisas pessoas. No meio do caminho, chamado 2020, tinha umas pessoas. Cada uma de um canto, cada uma de um jeito. Sem querer, de repente, estávamos todos ali, numa janela virtual, no início um pouco tímidos, com palavras comedidas, depois mais
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falantes e de repente, compartilhávamos segredos. Sem perceber saltamos sobre a cerca e ignoramos os arames farpados – medos do desconhecido, e nesta janela já não éramos mais somente pessoas em que se tropeça. Já éramos uma coisa nova que ainda não tem nome, mas que toda semana causa um quentinho no coração, antes do quentinho da sopa da janta (janta mesmo, deste jeito que é a refeição de quem trabalha todo dia e estuda e se esforça para alçar novos vôos). Tinha umas pessoas no meio do caminho. Trombar pessoas no meio do caminho é mais macio do que trombar pedras, mas tanto as pessoas, quanto as pedras, são parte deste gigantesco universo de coisas simbólicas que ganham sentido quando a gente olha de perto. Ando gostando muito de olhar de perto. Ando com vontade de abraçar estas pessoas e o que tenho aprendido a cada página lida junto. Assim a gente segue, toda semana, começando, mais uma e mais uma. Não sei aonde vamos chegar, mas uma coisa é certa, a gente junto fica persistente, que nem aquelas flores que abrem todo dia para no dia seguinte murcharem, e depois no outro dia começar tudo de novo e de novo. Como você pode perceber, leitor, não somos muito diferentes de você. Basta olhar de perto para perceber o quanto somos parecidos: nos sentimos inseguros quanto ao domínio de um conteúdo tão vasto quanto o da Psicologia Analítica, sentimos medo de errar e tentamos desesperadamente correr, achando que assim conseguiremos nos aperfeiçoar e evitar falhas. Felizmente a realidade se impõe e percebemos que o estudo deve ser saboreado lentamente e não engolido com pressa. Aprendemos que uma refeição é mais gostosa quando a vida é convidada para fazer parte e, assim, tudo ganha mais sentido. E finalmente, para uma festa estar completa, é preciso reunir os amigos para uma boa conversa! Texto escrito à oito mãos: Aparecida Silva / Dênis Peixoto Araújo / Fabrícia Bernardes / Jheynne Scalco Fotos: Jheynne Scalco
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EM-BARCO UMA CRIAÇÃO COLETIVA
O próximo e-book será baseado na obra: Os sonhos e a Morte de Marie-Louise Von Franz
Acompanhe as novidades no Instagram: @em_barco Conte o que sentiu lendo este e-book no: grupoestudos.vfranz@gmail.com
Foto: Jheynne Scalco (2018)