INTER MAGAZINE 269

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Humberto Mouco, Cais do SodrĂŠ, 2019

Alexandre Silva, Metro de Madrid, 2008

Mรณnica Musoni, Bruxelas, 2020

editorial

Fundada em 1989 por António Esteves inter magazine

É o que é Lisboa mestiça, aberta, como sinal de uma sociedade que olha para si mesma e reconhece a sua diversidade. Mestiça, mista, aberta. As gentes de África, das Américas, Ásia, Oceania e Europa. Em Lisboa e no país. A todos. ¶ Recentemente, num pequeno almoço de cozinheiros, depois de muitos já efectuados em quase todas as regiões do país, tive oportunidade de suscitar o tema. Na boca dos jovens cozinheiros a resposta ao que é para si a identidade.

Fiz a pergunta e um a um coube o tempo para responder. ¶ Se, pelas regiões fora – Porto incluído, claro está! – se faz uma natural afirmação do seu entorno, o mesmo se passa em Lisboa. Porém Lisboa convoca menos o território e mais as culturas presentes, essa dinâmica cosmopolita que as outras regiões, e a experiência individual de cada um. Daí que seja um grande caldo de cultura com um cozido numa porta e ramen noutra. Não é mau, nem bom. É o que é. × paulo amado

Director: Paulo Amado Chefe de redacção: Sónia Alcaso Fotografia: Humberto Mouco Fotografia capa: Cristiana Morais Design gráfico: RPVP Designers colaboram nesta edição Catarina Amado, Cristiana Morais, Dave Palethorpe, Destroy Trash, Fabrice Demoulin, Jaques Ribeiro, João Rodrigues, Júlia da Costa e Vital Lordelo, Lee Guimarães, Luís Antunes, Luís Ferraz, Olavo Silva Rosa, Ricardo Dias Felner, Theo Gould, Vânia Rodrigues e Virgílio Nogueiro Gomes.

Propriedade: Paulo Amado Rua Pereira Henriques, 1, espaço 11H 1950-242 Lisboa, Portugal Nif. 182 809 110 contactos eg@egosto.pt www.egosto.pt +351 218 822 993 publicidade comercial@egosto.pt +351 218 822 993 venda por assinatura assinaturas@egosto.pt +351 218 822 992 Publicação trimestral Tiragem: 4000 exemplares Impressão Acabamento: Grafivedras Artes Gráficas Lda. design@grafivedras.pt Estrada Nacional 247, Km 36, n.º11, Escravilheira, 2560-191 S. Pedro da Cadeira, Torres Vedras venda por assinaturas mj/sg/nrocs n.º113499 depósito legal: 21.947/88, issn: 0873-53 lx Membro aind — Associação Portuguesa de Imprensa redacção e edição Edições do Gosto Publicações, Unip, Lda npc: 505 957 221 Registo na Conservatória Comercial n.º 10787 Capital social: 100.000 euros Rua Diogo do Couto, 1, 6.º Frt, 1100-194 Lisboa, Portugal +351 218 822 992 consultar estatuto editorial em: http://www.egosto.pt/ estatuto-editorial-inter-magazine/ edições do gosto Ana Gouveia, Andreia Gomes, Catarina Amado, Paulo Amado, Rita Cupido, Sílvia Alves, Sónia Alcaso, Susana Hurtado.

Com Humberto Mouco, Mário Batista, Vânia Rodrigues e Vítor Paulino. interdita a reprodução de textos e imagens sem o devido consentimento

destaques

12 Marlene Vieira veio agitar as águas de Lisboa, à beira Tejo. O Zunzum já abriu portas e o «ruído» tem-se ouvido! Leia a entrevista à chefe e mentora do projecto.

20 Comida simples e despretensiosa, muito focada nos sabores e com bons produtos, são os ingredientes usados por uma nova geração de cozinheiros que tem mostrado o caminho a seguir para ultrapassar esta crise. inter magazine

34 As caras da nova geração de bar em Portugal mostram-se agora mais unidas do que nunca. Conheça quem anda a matar a sede dos portugueses.

86 Edy Lobo é um dos entrevistados na rubrica Entrevistas Mundanas.

Vive em Luanda e define-se como um polígamo literário – escreve poemas, crónicas, artigos de opinião, contos, e tudo o mais que lhe apetecer.

42 A febre da padaria caseira pôs muitos amadores auto-didactas excessivamente confiantes.

Uma dessas pessoas foi Ricardo Dias Felner. Aqui se dá conta da sua experiência na padaria Isco.

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e a u m

Lisboa à beira Tejo tem um novo vizinho que veio para agitar as águas. É o Zunzum, o ruído que se quer e já se sente. Em breve, colado a ele, virá o Marlene,.

Tempos houve em que restaurantes abriam à velocidade a que nascem cogumelos. Hoje, em tempos de pandemia, fecham! Mas há sempre excepções. Há quem sonhe e realize.

O restaurante, que teria aberto portas em Março se o confinamento obrigatório não o tivesse impedido, apenas adiou a sua inauguração. A palavra «desistir» nunca fez parte do dicionário de Marlene Vieira. Recuperou do susto, muniu-se de forças e entusiasmo, esperou a tempestade acalmar e abriu o seu Zunzum. ¶ Marlene despertou bem cedo para a cozinha, aos 12 anos, enquanto o pai fazia entregas de carne nos restaurantes. A energia que se vive numa cozinha, esse caos desorganizado, fascinou-a.

Contudo, foi especialmente um restaurante, onde a chefe, muito jovem, fazia uma cozinha clássica francesa, que a fez ter a certeza de que o seu mundo seria aquele. Os sonhos de menina de ser professora ficaram por terra e Marlene entregou-se de corpo e alma a construir o seu futuro.

Começou por passar as férias de Verão nesse restaurante e, aos poucos, foi ficando cada vez mais tempo. Praticamente, dos 12 aos 18 anos cresceu nessa casa, ajudando em tudo, desde lavar casas de banho, a descascar batatas, a servir à mesa. Aos 15 anos, ingressou na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira. Foi o início do percurso profissional de uma das grandes defensoras dos produtos portugueses na nossa cozinha. Por ironia, foi em Nova Iorque que Marlene teve contacto com a cozinha portuguesa ao trabalhar num restaurante português, em Manhattan. Já em Portugal, passou por vários hotéis, fez cozinha molecular com produtos portugueses com os chefes Vítor Claro, em Matosinhos, e depois com Luís Baena. Abriu o Avenue, em Lisboa, e o espaço no Mercado da Ribeira. Outros projectos lhe passarão pelas mãos. ¶ Actualmente, mantém o seu espaço no Mercado da Ribeira e está entregue a este novo desafio. Porquê a escolha do nome: Zunzum? A primeira inspiração para este nome foram os cafés, cervejarias e restaurantes dos anos 70, em Lisboa (como o Tic Tac

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ou Zig Zag). Nomes engraçados e apropriados para uma espécie de cervejaria moderna que era o que queríamos fazer. E chegámos a este nome Zunzum por causa do ruído, do «querer criar barulho». A azáfama. Fizemos uma parceria com uma empresa que nos faz toda a parte de design e branding (RPVP Designers) e foram eles que nos ajudaram a escolher este nome. E, ao lado teremos, em Outubro, o Marlene. Sim, o Marlene, até foi escolhido um pouco contra a minha vontade, porque um sítio onde trabalham várias pessoas deveria ter um nome geral e não o de uma só pessoa. Mas a equipa argumentou que as pessoas que trabalham comigo cresceram muito ao meu lado e fazem parte de mim. E, portanto, esse nome englobaria aqui um projecto de sonho. Eu ainda não estou muito convencida, mas o nome já está lá fora… não há nada a fazer (risos).

Haverá, no mesmo espaço, dois tipos diferentes de restauração e, inclusive, uma loja de produtos portugueses.

Como é gerir todos estes conceitos? O Marlene, será um restaurante de fine dining. Já o Zunzum é um gastrobar, com vários eventos a acontecerem nesse espaço, nomeadamente um cocktail bar com um dessert bar. Depois, temos a loja, também online, que representa os melhores produtos que se fazem no nosso país e serão, no futuro, exclusivos Zunzum. Nós representamos aqui os produtores com quem trabalharemos no futuro. Há ainda, claro, a parte de petiscos, salgados, snacks e pratos que o Zunzum tem.

A ideia para o Gastrobar é as pessoas criarem o seu próprio menu de degustação. São 21 opções de salgados! Há pratos que se partilham, como o arroz de pato ou a feijoada de carabineiro. É de referir ainda o papel que a música terá aqui com uma DJ ao fim de semana. O objectivo deste projecto é sempre gerar felicidade nas pessoas, zunzum, seja através da comida, da bebida, do design ou da música. O teu bar de sobremesas será o primeiro do país. Porque é que decidiste trazer esta novidade para Portugal? O que haverá neste dessert bar? Já há muito tempo que eu queria implementar cá

entrevista este tipo de bar, desde o Avenue. Nesse restaurante, tínhamos uma zona de bar que era muito pouco aproveitada e eu sempre estive ligada às sobremesas e parecia-me aliciante juntar as duas coisas. A pastelaria envolve grande rigor no que toca a receitas, na cozinha podemos ser mais criativos. As combinações na pastelaria são mais previsíveis.

No dessert bar teremos um menu de degustação de sobremesas e sugestão de bebidas harmonizadas. Para já ainda não está a funcionar porque não podemos ainda, claro.

A ideia é ser um momento para o final da noite, entre as 22h e as 2h da manhã. Também poderá ser um momento para o final da tarde, pois estará em funcionamento a partir das 18h.

Foi este lugar, junto ao Tejo e com o terminal de cruzeiros de Santa Apolónia ao lado, que te inspirou para este projecto ou tu já tinhas pensado em todos estes conceitos antes e estavas à procura do lugar ideal para os concretizares?

Foi este espaço, sim. Eu queria apenas abrir um fine dining.

E quando chego aqui percebo que o espaço era grande demais! E automaticamente começou-se a pensar em criar uma estrutura que permitisse concretizar o meu sonho de abrir um fine dining aliado a outro conceito que valorizasse também esta zona. Este projecto pôs-me à prova também enquanto empresária. Há muitas áreas técnicas, muita gente para gerir. Tive um grande apoio do meu subchefe que é a minha alma gémea no trabalho, o Mário Cruz, que é uma pessoa muito criativa e que me conhece muito bem.

E formámos equipas muito coesas. Antes da pandemia, a minha empresa, que fez seis anos em 2020, tinha 58 funcionários. O Zunzum estava para ser inaugurado no dia 23 de março. Como foi trocarem-te as voltas, assim de repente? Foi um grande mergulho sem garrafa de oxigénio! Fiquei sem fôlego! Mas nunca ponderei não abrir.

Nós tínhamos aqui um investimento de um milhão de euros, portanto, tinha chegado a um ponto em que não poderia andar para trás. Podia ser adiado e tive de entrar em negociações com os meus senhorios para conseguir aguentar o barco. Foi basicamente isso que fiz: definir prioridades. ¶ Primeiro, fugi. Levei a minha filha, que é o meu ponto de abrigo, e fui respirar para longe. Fui reorganizar-me, precisava desse tempo. Sem ruído. Depois recuei, andei um pouco para trás, fiz take away, levei comida aos clientes e isso foi muito encorajador! As pessoas viam-me à porta delas, muitas conheciam-me da televisão, e ficavam emocionadas!

Posso dizer até que, estar junto dos clientes salvou-me de morrer afogada. Claro que ainda sinto que não cheguei a terra, ainda estou a nadar para me salvar… todos os dias tenho de gerir muita coisa! Que novos desafios são estes, para estes tempos? É altura para equilibrar contas. Ainda não consigo fazer aquilo que queria, por exemplo, inaugurar o dessert bar. Mas podemos (e devemos) fazer zunzum com aquilo que temos. A empresa Marlene Vieira tinha uma segurança muito grande que era o Mercado da Ribeira.

Tinha um fluxo de entrada de dinheiro bem avantajado, trabalhámos para isso, claro! Mas hoje, com todas estas mudanças, o panorama mudou. Há que continuar a lutar, fazendo uma gestão de recursos. Não conseguimos manter os 58 funcionários e isso é o mais difícil. Mas, infelizmente, não dá para salvá-los a todos. Daqui para a frente, prevê-se uma gestão muito apertada a nível financeiro, evitando o desperdício e criando dinâmicas novas adaptadas aos novos tempos! É uma prova de fogo para todo o sector, para todas as empresas. Apesar de ainda seres nova, já tens na tua vida vários momentos de tensão. Estavas a trabalhar em Nova Iorque quando aconteceu o 11 de Setembro. O que recordas dessa altura? Sim, fui para lá com 21 anos. Fui com o meu melhor amigo para trabalharmos num restaurante português. Servíamos os dois cerca de 70 jantares por noite.

Era uma loucura! Depois aconteceu o 11 de Setembro e andei no meio de tiroteios e outras confusões. Era uma adrenalina constante, pura e dura. O pós 11 de Setembro foi muito difícil. Estava-se no metro e, de repente, toda a gente se deitava para o chão por se ouvir qualquer ruído estranho; na rua, éramos revistados a toda a hora; fugimos muitas vezes da polícia porque estávamos ilegais. Enfim, foi uma época de grande turbulência! Foram dois anos nessa vida louca, vividos na idade certa. Há outro desafio desde sempre no mundo da cozinha: tornar o papel da mulher mais evidente. Porque é que achas que, hoje em dia, as chefes de cozinha continuam em minoria? Eu acho que é porque os homens se sentem mais fascinados por este tipo de vida do que a grande maioria das mulheres. O nosso país é muito machista, mas isso nunca me impediu de fazer o que quer que fosse. Eu cresci numa aldeia, como em todas as aldeias de Portugal, em que as mulheres serviam os homens.

Eles vinham do trabalho, sentavam-se no sofá e descansavam. Elas vinham do trabalho e tinham mais trabalho em casa. Eu não me identificava em nada com aquilo. E neguei essa vida para mim. As mulheres têm sempre opção de escolha, tal como os homens. Esta sociedade pode criar muitos obstáculos às mulheres (e cria), mas os homens enfrentam também outros obstáculos. A vida pessoal complicada ou os filhos, quando surgem, não podem ser impeditivos de se realizar um sonho. Há outras coisas que interrompem sonhos, como agora esta pandemia ou um acidente ou problemas de saúde, agora o facto do mundo ser machista vai impedir-me de alguma coisa? Nem pensar! ¶ Na minha opinião, o que se passa é que as mulheres, no geral, gostam de tranquilidade, de terem tudo controlado, de não saírem da sua zona de conforto. E a cozinha é, muitas vezes, pura adrenalina, muita pressão e exposição. Embora também possa haver serenidade numa cozinha. Acredito que as mulheres, quando conseguirem criar o seu mundo na cozinha, terão o seu equilíbrio e irão conquistar um lugar neste sector, tal como os homens. ×

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Jaques Ribeiro, exposição Helena Almeida «Corpus», Paris, 2016

Jaques Ribeiro, Neves, 1995

nova geração cozinha texto sónia alcaso fotos humberto mouco

NOVA GERAÇÃO À VOL inter magazine

Comida simples e despretensiosa, muito focada nos sabores e com bons produtos. Conceitos democráticos que agradam a todos, revigoram corpos e almas e trazem bom astral. ¶ 2020 tem sido um ano cheio de surpresas e mudanças. E o mundo da gastronomia é dos mais afectados. Há novos actores no palco a rasgarem elogios e conquistarem aplausos. São um conjunto de jovens chefes de cozinha, ousados e cheios de força para fazer frente às intempéries actuais. São já considerados, pelo meio, como a nova vaga de cozinheiros que dita as modas da cozinha em Lisboa. ¶ Formados nas escolas e com experiência em restaurantes nacionais (e internacionais) decidem agora unir-se e abraçar e partilhar projectos pequenos, com comida simples e saborosa. ¶ A INTER magazine foi entrevistar quatro destes chefes; em comum têm a simplicidade, a luta pela sustentabilidade e a evidente cumplicidade entre si.

TA DOS FO GÕES 21

Leonor

A paixão de Leonor Godinho pela cozinha começou a notar-se através de um blog de receitas, criado em 2011, e que a tornou conhecida. Tinha, na altura, 20 anos. Dotada de uma destreza autodidata para a cozinha, foi desenvolvendo paralelamente diversas iniciativas nesta área, como cozinhar em casa de pessoas, caterings com star-ups, workshops privados, eventos e até casamentos. Em 2014, decidiu inscrever-me no Masterchef Portugal e ficou em terceiro lugar. Desde então, decidiu abraçar esta paixão de uma forma profissional e propôs-se a um estágio de três meses no Feitoria. A sua dedicação não passou despercebida e foi contratada, ficando mais quatro anos no Altis Belém, durante os quais, passou por todas as secções do hotel. «Foi a aprendizagem mais completa da minha vida e não podia ter sido mais enriquecedora. Cresci muito lá dentro», confessa Leonor que, hoje, está à frente da cozinha da Musa da Bica.

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Godinho

nova geração cozinha

Estás à frente da cozinha da Musa da Bica. Como vieste aqui parar? Comecei por fazer eventos/pop-ups na Fábrica da Musa em 2018 e tornei-me quase uma residente dos eventos gastronómicos lá. Por essa altura começaram os Almoços de Domingo na MUSA, que juntou muita gente da área e que ajudou a expandir mais esta ideia de que a MUSA também poderia ser associada a boa comida.

Quando surgiu a oportunidade de abrir um taproom mais central surgiu também a questão de ser um bar que tivesse mais foco na comida do que a Fábrica (uma cozinha maior e melhor equipada, mais comunicação nesse sentido).

Convidaram-me para ir tomar conta da cozinha e aceitei quase automaticamente. Como definirias a carta da Musa da Bica? Mais informal, baseada em petiscos? O que salientas desta carta para o Verão? É uma carta essencialmente focada em petiscos, para comer com as mãos e para beber com muita cerveja. Sabores fortes, intensos, picantes, salgados, doces. Tudo o que pede cerveja. Com algum foco em fermentados também. Para o Verão sugiro uma boa PINT e uma dose de falafell de tremoço com molho de iogurte e menta fresquinho. A que achas que se deve o sucesso desta cervejeira artesanal? Em primeiro lugar, as pessoas envolvidas são muito dedicadas e acreditam realmente no que estão a fazer. Em todos os departamentos. Em segundo lugar, a atenção que é dada ao desenvolvimento das receitas das cervejas, a frequência com que surgem cervejas novas e novas colaborações e a forma como isso é comunicado é excelente. Por fim, este «novo» enfoque na gastronomia veio reforçar ainda mais o estabelecimento da MUSA no sector da restauração, com a Bica e agora também a Fábrica (Pedro Monteiro) mais estabelecidas. Que consequências tiveram estes meses de encerramento para a Musa da

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Bica? Quando voltou a abrir portas? Nós nunca fechámos totalmente. Estivemos sempre a trabalhar com regime de take away e delivery. Ou seja, não senti o peso de ter fechado portas. Mas claro que foi dramático em termos de facturação para os bares. Voltámos a abrir no final de Maio, assim que pudemos. Nestes tempos de pandemia, como está a afluência das pessoas à Musa da Bica?

A afluência está muito boa na verdade, desde que conseguimos os lugares de esplanada que temos agora está cada vez melhor. É importante que as pessoas entendam que estamos todos a fazer o nosso melhor para respeitar as normas impostas pela DGS, para nos protegermos a nós e aos nossos clientes e que não tenham medo de ir para os restaurantes e apoiar a indústria. Estamos todos a dar o nosso melhor. Na tua opinião, de que forma os restaurantes se poderão reinventar perante esta crise sanitária?

O que vou dizer são mais coisas que tenho pensado serem muito importantes para nos aguentarmos todos: Apostar fortemente na comunicação. Juntar pessoas da área para cozinhar e assim ajudar a divulgar espaços/pessoas mutuamente. Apostar em take away, focados agora mais no Verão (marmitas para a praia, etc.). Limitar as compras ao essencial, trabalhar quase numa base diária. Tentar ao máximo aproveitar qualquer espaço que possa surgir fora, nem que seja para pôr só duas cadeiras e uma mesa. ¶ Pedir ajuda. Não tem de haver vergonha nenhuma em pedir ajuda. Aos pares na restauração, aos amigos, à família.

Temos esta ideia de que quando são «amigos» temos de fazer o descontinho ou oferecer alguma coisa. Agora é a altura de irmos todos aos restaurantes/bares uns dos outros, aos restaurantes dos nossos amigos, da nossa família e apoiar. ×

Pedro

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Abril

Ele próprio se considera uma «espécie em vias de extinção»: nascido e criado em Lisboa, há 29 anos, e com quase toda a sua família de Lisboa. Pedro Abril desde muito pequeno que sempre gostou de cozinhar, ou melhor, de colocar mãos na massa — ajudar a fazer bolos e pão. Não há nenhuma história romântica de passar as tardes a cozinhar com a avó ou a mãe, a razão porque começou a cozinhar é muito mais insólita: «Aos 14 anos o meu pai inscreveu-me num curso de cozinha no Instituto Vaqueiro que se chamava ABCozinha, era um curso que tinha uma duração de 1 mês e meio, um dia por semana, onde aprendíamos algumas bases de cozinha (estufar, cozer, fritar,…).

A razão porque o meu pai o fez foi porque recentemente se tinha separado da minha mãe e percebeu que pouco ou nada sabia cozinhar, então disse-me: “Vais aprender a cozinhar para nunca teres de depender de ninguém para comeres como deve ser!”

Escusado será dizer que hoje em dia ele é um cozinheiro de mão cheia». ¶ Depois desse mini curso, foi sempre cozinhando em casa como hobbie e fazendo formações, mas nunca ponderou seguir cozinha profissionalmente até aos 20 anos, dois anos depois de ingressar na faculdade no curso de Direito. «Foi aí que tive de pensar no que queria para o meu futuro e para não cair no mesmo erro que cometi antes, mandei-me de cabeça para um estágio no Hotel Dom Pedro com o chefe Gil Martins. Aprendi imenso naquele sitio e gostei tanto que me inscrevi na EHTL».

O resto é história. Passou no Bairro Alto Hotel, pela Casa da Comida, pelo Lekker, pelo restaurante Expressões e seguiu para um dos grandes desafios da sua vida — a Taberna do Sal Grosso.

Actualmente, é no Chapitô à Mesa que o podemos encontrar.

Bandeira

nova geração cozinha

És o novo chefe de cozinha do Chapitô, que alterações/ novidades podemos esperar na cozinha deste restaurante?

Quero um espaço com muita dinâmica, muitos eventos, muitos convidados, muita vida. O Chapitô à Mesa divide-se em 3 vertentes ou em 3 espaços distintos, a Esplanada, o Panorâmico e a Cantina. Todos têm uma oferta diferente mas com um conceito que os liga a todos, cozinha e produto português. Na Esplanada a oferta é mais relaxada, é um ambiente muito informal e onde imperam os petiscos e os pratos pequenos para partilhar. Aqui trabalhamos exclusivamente com grelha a carvão, não temos nem forno nem fogão. No Panorâmico quero ter um serviço um pouco mais cuidado e atento, os pratos são um pouco mais trabalhados mas não quero inventar nada, não vou inventar a roda, quero fazer cozinha portuguesa boa, honesta e com sabor. ¶ Na Cantina o desafio foi outro, servir por um preço mesmo muito acessível todos os alunos e colaboradores

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do Chapitô, assim como todos os nossos funcionários que aqui trabalham. Na Cantina só servimos pratos tradicionais, escolhi ser assim por uma razão muito simples, por uma questão pedagógica tanto para os miúdos da Escola como para os meus funcionários, até porque uma grande parte da minha equipa é estrangeira e a única maneira de os expor ao que quero fazer aqui é comendo, é provando.

Achas que tens algum estilo de cozinha definido? Não sei como definir, se calhar era mais fácil para outros cozinheiros que trabalharam comigo definir. Não acho que tenha nenhum estilo muito definido, sou um miúdo ainda, estou ainda a aprender a moldar o cozinheiro que quero ser, não tenciono ser o melhor do mundo nem o melhor do bairro, quero apenas sentir que melhoro a cada dia que passa. Gosto muito de comida do dia a dia, coisas simples mas com muito sabor. Onde te inspiras nas tuas experiências gastronómicas?

Apesar de ler muito, sobretudo livros técnicos, acho que o

nova geração cozinha que mais me influencia são as coisas do dia a dia, pessoas, experiencias… ¶ Gosto muito de comer e de estar à mesa, nunca me tirem isso. O restaurante encerrou e iniciou um serviço de delivery e take away, já com o teu cunho. Como correu essa fase? Não teve uma adesão muito grande, serviu sobretudo para começar a criar dinâmicas com a equipa e para começar a casa que estava parada há algumas semanas.

Em que data reabriste o restaurante? Abrimos dia 26 de Maio. Fala-me sobre o projecto Friendly Fire. Com que objectivo foi criado este projecto? Esta ideia surgiu de um grupo de Whatsapp que criei há uns meses atrás com alguma malta que considero muito boa e que está quase toda neste line up do evento. É um grupo onde discutimos problemas e soluções, onde partilhamos trabalho ou trabalho de outros, onde cruzamos oportunidades de emprego, onde discutimos todos os temas relacionados com a nossa área, mais tarde deu jeito para nos mantermos em contacto durante a fase inicial da pandemia. Após o inicio do desconfinamento começámos a sugerir uma churrascada entre todos para podermos estar juntos, partilhar experiências, comer bem após esta fase dificil. Então pensei, porque não abrir a possibilidade a todos de comer o que queremos cozinhar entre nós? Paralelamente já se estava a desenhar uma nova vaga de gente nova a fazer coisas boas e que eu quis juntar numa mega dream team, acho que um dos starters para esse movimento começou na Fábrica da Musa no dia 8, na festa de encerramento do Pura Sede. Foi uma festa de nós para nós e foi por isso que o FriendlyFire ficou ás segundas, é por ser na folga da malta da área. ¶ Criei este evento para estar com amigos, para comer bem e sobretudo para aprender com quem é melhor que eu. Como tem sido o feedback destes eventos? Podes nomear alguns dos chefes convidados? Tem sido inacreditável, tenho sentido muito amor e muito apoio, sinto que está a surgir uma comunidade muito unida, para onde vai um, vamos todos. É muito mais que apenas X cozinheiros a cozinhar para o publico, é muito mais que isso, é dar as mãos em tempos de extrema dificuldade, é dinamizar os espaços de todos e em ultima instancia, ganhar dinheiro com isso. É ingrato nomear só alguns dos amigos que convidei, fiz questão de equilibrar

a balança, quer na diversidade cultural, quer no sexo, quer nos diferentes skills que cada um tem. Como definirias estes chefes jovens que estão a mudar a cozinha portuguesa?

Gente sem medo de por as mãos na massa, de sujar as mãos.

Gente com muita vontade de fazer mais e melhor, com vontade de aprender. Gente que não tem medo de arriscar, que não liga ao status quo e se manda de cabeça para desafios novos, gente que admiro muito. O Chapitô, apesar destas dificuldades, tem estado a aguentar-se, certo? Tenho falado muito sobre isso ultimamente, temos tido bastante gente mas que não chega para manter uma máquina destas à tona de água. Às vezes passam por mim e dizem-me que não me posso queixar porque nunca tenho menos de meia casa, mas a verdade é que este negócio não é feito para meias casas, é feito para ocupação a 100% e com mesas a rodar. Portanto, sinto-me abençoado por ter clientes e por nesta fase tão difícil continuar a ter adesão mas não chega, venha a vacina rápido que o que tenho planeado para este sitio vai surpreender muito. Qual é a tua perspectiva diante deste cenário de readaptação dos restaurantes a esta nova realidade? Não sei se reinventar é a palavra, talvez adaptar ou diversificar. Eu acho que o delivery é uma oportunidade incrível mas que só vai fazer sentido quando deixar de ser feito em massa, neste momento são tantos a fazer que um restaurante fica diluído em milhares de outros, quando esta necessidade acabar abre-se ai uma oportunidade muito fixe para poder diversificar e melhorar o sistema de delivery, a verdade é que aqui só funcionam pizzas, hambúrgueres e sushi mas o cliente durante a pandemia ficou mais exigente, percebeu que é possível receber outro tipo de protudos em casa com outra qualidade. Acho que pode ser uma forma de diversificar fontes de receita sem um grande aumento de investimento. A possibilidade de catering para eventos externos por parte dos restaurantes também pode ser uma hipótese ou até mesmo o desenvolvimento de produtos de despensa personalizados para o cozinheiro amador dar um upgrade nos seus cozinhados diários. Acho que o truque será colocar mais ovos em cestos diferentes em vez de focar única e exclusivamente no modelo tradicional de restaurante.

Mas eu sou apenas um miúdo, que sei eu… ×

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nova geração cozinha Nasceu em Juiz de fora, interior de Minas Gerais, há 36 anos.

Formou-se em Gastronomia, no Brasil, e começou por fazer jantares particulares e trabalhar em eventos com alguns amigos.

Veio para Portugal somente para fazer um mestrado em Ciências Gastronómicas mas, quando se deu conta, percebeu que não queria mais voltar. E cá ficou. ¶ Pedro Monteiro passou pelos restaurantes Via Graça e Taberna Sal Grosso, e hoje, para encontrar a sua cozinha, basta ir até Marvila, à Fábrica Musa, e, juntamente com a já famosa cerveja artesanal, pedir alguns petiscos como pastéis de vento de berbigão, pães de queijo, empanadas, sandes de jaca ou frango ou uma barriga de porco crocante. ¶ A acrescentar a esta boa vibe, desde o início de junho que Marvila tem uma nova esplanada, com um quiosque mesmo ao lado da Fábrica. O espaço, de 130 metros quadrados, tem bancos coloridos e mesas corridas.

Pedro

Monteiro

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Esta cozinha que fazes, aqui na Fábrica da Musa, é a cozinha com a qual te identificas? Sem dúvida! Uma comida sem pretensão. Para petiscar a acompanhar as cervejas que estão nas torneiras da Fábrica (utilizando-as, inclusive, no preparo). No Brasil chamamos: comida de boteco ou botequim. Sendo tu brasileiro, a carta tem também pratos do Brasil? Sim, tem. São petiscos que costumava comer quando me sentava nos bares do Brasil. Mas procuro referências de toda parte e tento sempre adicionar um ingrediente português. A Fábrica Musa tem sido um sucesso desde que abriu. Achas que, em Portugal, já se rompeu a barreira do vinho? Romper a barreira do vinho foi muito difícil, mas a curiosidade é muito forte. O português é muito tradicionalista e não olhava para a cerveja como uma bebida para acompanhar um jantar. Hoje já o faz! O cenário cervejeiro português está ainda no começo, mas já há muita malta boa a fazer grandes cervejas por aqui. Durante o

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Estado de Emergência, como se manteve a Musa? Foi muito difícil! Tentámos trabalhar com plataformas de entrega, mas não funcionou. Como a Fábrica está situada em Marvila, não conseguiu competir com as zonas mais centrais. Depois, com a abertura, a Musa decidiu aumentar a esplanada e isso está a trazer-nos mais gente. Estamos a tentar voltar ao normal. O golpe para a restauração (e não só) foi forte, mas, na tua opinião, como é que se pode dar a volta? Foi muito forte, sentiu-se. Ainda estamos a tentar entender o que virá por aí. Mas se tivermos a sensibilidade de olhar quem está à nossa volta, puxar, trocar ideias para dinamizar o cenário e fazer a roda girar. Mantermo-nos unidos. ¶ Convidar a malta para trabalhar junto foi uma saída. Estamos criando muito, mais rápido e com muita gente nova a aparecer, despidas de egos e orgulhos. Estamos trabalhando juntos e a partilha nunca foi tão grande. ¶ Unido a gente fica em pé, dividido a gente cai. ×

Tiago Lima

Nasceu em Lisboa, há 32 anos, filho de pais cabo-verdianos.

Formou-se em cozinha e aprendeu com figuras de peso da nossa gastronomia: estagiou com João Sá, no Assinatura, passou pelo Feitoria, do João Rodrigues, e pelo restaurante de Alexandre Silva, no Time Out Market. Depois, decidiu que precisava de mais mundo e foi trabalhar para Nova Iorque. O Per Se, restaurante com três estrelas Michelin, foi o escolhido. Em 2016, regressou para abraçar outro tipo de ambiente: um restaurante familiar, com comida de tacho feita com produtos nacionais — a Taberna Sal Grosso. ¶ Com o final da quarentena, Tiago saiu da Taberna Sal Grosso e tem andado a fazer pop ups com amigos cozinheiros, enquanto aguarda a altura certa para ingressar num novo projecto.

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Cruz

nova geração cozinha

Como surgiu a paixão pela cozinha? A paixão pela cozinha começou quando era mais miúdo, ao passar imenso tempo com os meus pais e com as minhas avós na cozinha. Foram momentos de ligação, essenciais até hoje em tudo o que faço.

Já trabalhaste em lugares de fine dining (Feitoria e Per Se) e na Taberna Sal Grosso. São conceitos opostos. Fala-me sobre este contraste de experiências. Os três restaurantes são muito diferentes mas, ao mesmo tempo, muito parecidos. Todos têm conceitos totalmente diferentes, mas o nível de foco – a dedicação, o rigor e a disciplina – são iguais.

No Feitoria, a minha primeira experiência Michelin, tudo tem o seu sentido e vemos um projecto focado no produto português no conceito de fine dining. Depois, o Per Se tem um conceito de fine dining de um nível estratosférico, onde a minúcia é ao nível mais extremo e onde existe o melhor do melhor que há no mundo! Lá, também se aprende algo todos os dias por ter mudanças diárias! A Taberna Sal Grosso tem um rigor similar aos outros dois, mas numa escala mais pequena e num conceito de taberna onde se eleva tudo o que são receitas portuguesas e onde temos uma directa interação com o cliente. Hoje em dia, acho que esse parece ser o futuro da nossa gastronomia. Como definirias o tipo de cozinha que mais gostas de fazer? Neste momento não consigo dizer uma cozinha que mais goste de fazer, pois considero sempre que aquilo que gosto de fazer é o que gosto de comer. À minha volta, há várias influências culturais, logo tenho de considerar que talvez seja a dura comida de conforto que mais me inspira, a comida típica portuguesa, africana, asiática e sul americana. Fazer escolhas

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mais sustentáveis dos produtos é uma tendência futura?

Sim, fazer escolhas de produtos mais sustentáveis será o futuro, pois a tendência é elevar os produtos ditos menos nobres, tornando-os soberbos. Como viveste estes meses de quarentena? Durante estes meses de quarentena tive a oportunidade de ir para o Baixo Alentejo e ficar num «monte» onde tinha animais, forno de lenha, árvores e ar puro. Consegui não ter tanta percepção da quarentena como se tivesse ficado em Lisboa. Acabei por fazer umas «férias» trabalhando, enquanto não descurava da minha profissão e da paixão pela gastronomia. O que tens feito neste último mês, após a reabertura dos restaurantes?

Com o final da quarentena, abandonei o projecto da Taberna Sal Grosso e, agora, tenho andado a fazer pop ups com os amigos e mostrando e aprendendo coisas com outros cozinheiros, enquanto aguardo a altura ideal para ingressar num novo projecto. Como vês, neste momento, o futuro?

O futuro já esteve mais sombrio do que agora, mas ainda temos que nos habituar às novas regras e ao «novo normal».

Mas, com esta nova vaga de novos cozinheiros que estão a aparecer com «ganas» de vencer isto, acho que estamos no bom caminho! Na tua opinião, que desafios trará este «novo normal» para a restauração? Os restaurantes vão sofrer, no início, até se adaptarem ao «novo normal». Com as restrições, terão de pensar não só nos seus menus e equipas, mas também na nova visão e abordagem que necessitam adoptar com os seus clientes. Só os que tiverem uma visão moderna é que irão entender a nova temática da restauração daqui em diante. ×

nova geração bar texto catarina amado fotos humberto mouco

NOVA GERAÇÃO À VOLTA DOS SHA KERS As caras da nova geração de bar em Portugal têm em comum um forte sentido de responsabilidade para com o produto, a criatividade, a sustentabilidade, o cliente e sobretudo para com o sector que graças a estes novos actores, mostra-se agora mais unido que nunca. ¶ A par da cozinha, o mundo do bar cresceu nos últimos anos e Lisboa tornou-se numa espécie de meca dos cocktails com a abertura de projectos entusiasmantes, fora da caixa, em que a qualidade e a sustentabilidade dos ingredientes e dos destilados, bem como a satisfação do cliente tornaram-se nas principais prioridades do bartender que, em boa parte dos casos, também é proprietário do espaço. Nota-se uma comum fome de arriscar entre a nova vaga de profissionais, comprometidos com os mesmos ideais, com um mundo em comum e, sobretudo, com uma solidariedade e entre-ajuda que nunca se viu igual — inclusive com os chefes de cozinha. Os três nomes que de seguida a INTER magazine apresenta são três bons exemplos do que aqui foi descrito e espelhos daquilo que será o futuro do sector no nosso país. inter magazine

Formada em Ciências da Comunicação, Cheila Tavares apaixonou-se por shakers e jiggers numa experiência num cruzeiro, onde se iniciou como bartender. A experiência na área foi sendo consolidada a nível internacional, em Sidney e Londres, cidades fortes no sector e onde viveu vários anos. «Ver a diversidade de bares, criatividade e sentido de comunidade ajudou-me a crescer, assim como desejar ter um espaço meu no futuro», começa por explicar Cheila que destaca a sua passagem pela Drinks Factory de Tony Conigliaro, «um verdadeiro laboratório de sabores», como uma experiência marcante. ¶ Quando em 2018, voltou a Portugal juntamente com o seu companheiro de vida e profissão, Semi M’Zoughi, para trabalhar na Toca da Raposa, ao lado de Constança Cordeiro, encontrou uma realidade muito díspar daquela que deixou e bastante mais evolutiva.

«Tem-se assistido a abertura de vários espaços, cada um com a sua identidade e conceito que vieram acrescentar ao país mais diversidade e estilo», comenta. Uma dessas

abertura foi encabeçada pela própria que, em conjunto com um grupo de sócios, abriu em 2019 o bar Machimbombo, na Bica, um espaço «para toda a gente» e que nas palavras da responsável conjuga qualidade nos cocktails, no serviço, no ambiente, na música e no prato – sim porque este bar também tem uma cozinha que até agora tem funcionado através de pop ups com chefes convidados mas que já em Setembro terá um cozinheiro residente. «A maneira como trabalhamos o cocktail e os ingredientes é muito similar ao modo como os chefes desenvolvem os seus pratos e é só natural que ambos os mundos se juntem para criar a verdadeira experiência sensorial.» Afinal, pertencem todos à mesma comunidade de pessoas «que não ficam de braços cruzados, que querem fazer mais e melhor». Exemplo disso são as demonstrações de apoio por parte do setor, como a divulgação dos bottled cocktails que o Machimbombo fez chegar a casa em delivery. Como Cheila diz e bem «há espaço para todos» e diversidade é o que não falta. ×

Tavares Cheila 35

nova geração bar Um estágio no icónico Foxtrot foi o ponto de partida para um mundo de possibilidades. Uma delas foi a abertura do seu primeiro bar no início de 2020. Após seis anos a trabalhar no bar lisboeta, Frederico Falcão, em conjunto com quatro amigos da área da hotelaria, decidiu abrir no bairro do Príncipe Real, o Imprensa – um bar de cocktails de autor… com ostras. «Um dos sócios trabalhou num espaço em Nova Iorque que também tinha esta componente.

A ostra é um bivalve underrated. Na minha opinião é um excelente produto com um sabor incrível», começa por dizer o barman que atribui o significado do nome Imprensa e do logótipo do bar ser uma máquina de escrever à rua onde está localizado o espaço, na Rua da Imprensa Nacional.

E com uma inspiração tão forte em letras, é claro que os nomes dos cocktails do bar de Frederico são tipos de letra que todos nós conhecemos. Arial Black, Verdana e Times New Roman são algumas das criações presentes na carta de bar que também conta com cocktails clássicos, uma vertente vínica e ainda opções de referências de espumante,

champanhe e cerveja. «A ideia é introduzir novas fontes a cada três meses e tentar reproduzir o tipo de letra num cocktail, contando a sua história em sabores. A delicadeza, a acidez o aspecto – tudo tem que estar num drink», conta. ¶ Na opinião de Frederico, no mundo do bar não existe um «caminho correcto» e essa é a característica que mais o apaixona no sector. «Penso que tudo é válido na indústria, há espaço para todos e um mundo por explorar. O que diferencia um bar de outro é o human ware. Uma espirituosa é igual em todo o lado, mas a percentagem de sucesso de um bar está nas pessoas», explica o responsável. Relativamente à transformação do produto e à criatividade, há um conjunto de profissionais a tentar oferecer a melhor qualidade possível aos clientes e essa é a grande mais-valia desta nova geração que se caracteriza também pela sua entre-ajuda.

«Não vejo razão para que não exista ainda mais [entre-ajuda] até porque não vamos ser nós os cinco que vamos revolucionar o mundo. Precisamos todos de mais contacto e de mais ideias.» ×

Frederico

Falcão

inter magazine

Resende João Para João Resende, iniciar-se no mundo da mixologia pela vertente «mais clássica» – o bar de hotel – foi crucial no seu percurso, sobretudo para adquirir as bases de bem servir e ganhar consciência dos detalhes a fim de prestar um bom serviço aos clientes. O bartender começou no Myriad by Sana e, anos mais tarde, mudou-se para Espanha, mais precisamente para o W Barcelona, um hotel com um conceito de bar totalmente diferente e mais arriscado. «Era uma marca mais internacional, a exposição era bem maior e o volume de trabalho era inexplicável. Aprendi muito e nos primeiros meses evolui de forma rápida e efectiva», começa por contar. Ao fim de três anos, João decidiu voltar a Lisboa para abrir o seu primeiro bar, Café Klandestino, com mais dois sócios: o seu irmão, Marcelo e o amigo António Romero. «A ideia surgiu de forma muito natural e fluida. Queríamos um local com cocktails, descomplexado e divertido», comenta. A escolha do nome não surgiu apenas pelo facto dos sócios serem amantes de café e de isso se reflectir fortemente na decoração e nos cocktails, mas também porque segundo afirma o responsável, «café tem um significado social muito forte e o ir ao café serve muitas vezes de desculpa para nos reunirmos com os nossos amigos». Já a palavra Klandestino surgiu pelo facto de o bar estar inserido no Intendente, um bairro de Lisboa

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«mais marginal» mas que na sua ótica é uma das zonas «mais carismáticas e trendy» da cidade. ¶ Como não sabia o que esperar nem que tipologia de clientes iria encontrar, João optou por primeiro conhecer o seu público e depois adaptar-se e arriscar. Afinal «o que importa é o produto final apresentado e se o cliente saia satisfeito». Pouco a pouco, o Klandestino foi vincando a sua identidade dando sempre prioridade aos produtos. Pelo meio, Resende acolheu as ‘Batalhas Klandestinas’, em que convidou vários bartenders portugueses e internacionais para pop ups de um dia. Para ele, este tipo de iniciativas é o que faz sentido no panorama atual do bar que pensa em uniformidade. «Sinto que faço parte de uma geração que dá muito valor à qualidade do ingrediente e que se interessa em saber qual é a melhor forma de fazê-lo brilhar num cocktail». E que geração é essa? João explica: «Vejo de há dois anos para cá, que a comunidade ficou mais unida. Claro que no final queremos que o nosso espaço tenha sucesso mas sem estarmos de mãos dadas penso que não será tão gratificante.» O que importa é que a comunidade em conjunto consiga fazer de Lisboa uma cidade mais atractiva, inaugurando conceitos distintos e que acrescentem novidade. Tal como diz João: «Lisboa fica mais cosmopolita com uma vida nocturna mais bonita e colorida». ×

LuĂ­s Ferraz, Porto Food Week, 2020

reportagem texto ricardo dias felner fotos humberto mouco

MĂŁos na inter magazine

a Massa 43

reportagem A febre da padaria caseira pôs muitos amadores auto-didactas excessivamente confiantes. Uma dessas pessoas foi Ricardo Dias Felner. Aqui se dá conta da sua experiência na padaria Isco. Uma tareia das antigas.

Vendo a minha hesitação, Matthieu avança. Com o seu 1,92 metro de altura e umas mãos do tamanho de abanos de fogareiro, enterra os dedos por baixo da massa. Depois, iça-a em direcção ao peito e, com um impulso dos dedos para baixo, fá-la rolar como se fosse um yô-yô. Repete isto quatro vezes e, no fim, a almofada dengosa tem o dobro do volume e uma consistência tensa, qual goma gigante.

Quando cai, vibra, mas logo retoma a forma. «É facíle.

Começás pórr uma pontá, depois virras e dásse otrra voltá», diz Matthieu, oriundo da Bretanha, Noroeste da França. ¶ Não, não é fácil. Como em todo o artesanato, a padaria requer prática. É um ofício feito de detalhes e de mãos.

E não há mãos como as de Matthieu Raud. ¶ Mas isto eu já sabia. Depois de deixar a Time Out, o Isco tornou-se a minha padaria e a minha redacção. Praticamente todos os dias, sento-me ali a tomar o pequeno-almoço e a trabalhar.

Nos intervalos de olhar para o portátil, espreito os padeiros em volta da masseira. Já vi muito pão a ser feito – e croissants e pains au chocolat e tartes. Por vezes, consigo identificar quem fez o quê. Não há duas peças iguais. De alguma forma, é como a olaria. Se pedirmos a duas pessoas para moldar um copo, esse copo vai ser sempre diferente.

No pão, o mesmo. O Levi faz uma baguetes finas e esguias.

O Fábio mexe nas massas com dedos de veludo. O Ricardo usa uma técnica diferente a cada dia. O Matthieu faz sempre os country loaf crescer mais do que os outros. ¶ A questão, agora, era: E como seria o meu pão? Como seria o pão de padaria de um padeiro doméstico? ¶ Voltemos atrás. ¶ Quatro e meia da madrugada. Há uma paz extraordinária nas ruas. Em Alvalade, um ou outro passarinho chilreando.

De resto tudo imóvel, silencioso. A quietude é adensada pelo semi-confinamento do país. Noutra altura, haveria carros de regresso da noite do Cais do Sodré, um ou outro ébrio caminhando precariamente na calçada, autocarros suburbanos de vultos negros e estáticos em direcção aos escritórios dos brancos. Agora, ninguém. Uma escuridão parada, a mais estranha e bela das paisagens urbanas.

Em dois minutos chego à Rua José d’Esaguy, normalmente atolada de carros lutando por estacionamento, hoje vazia e com lugar à porta. ¶ A padaria fica numa dessas perpendiculares da Avenida da Igreja cheias de lojinhas de tudo. Boutiques convivem lado a lado com ateliês de design de interiores, agências de viagens, lojas de colchões,

de brinquedos, de antiguidades. É comércio de quotidiano, de proximidade, não particularmente glamoroso: toldos incaracterísticos, imagem sem padrão nem estilo. ¶ Não seria o primeiro sítio onde pensaríamos que se iria instalar o mais hipster dos padeiros artesanais. Mas foi aí mesmo que, em 2018, Paulo Sebastião decidiu abrir uma padaria. ¶ Autor do influente blogue Zine de Pão, engenheiro informático de formação, Sebastião apaixonou-se pela panificação em Estocolmo, na Suécia, onde trabalhou na Bageri Petrus, em Estocolmo. A Petrus é uma loja de bairro maravilhosa, com uma dúzia de lugares e música indie, que combina técnicas importadas de São Francisco (Tartine, pois claro) com pastelaria nórdica. ¶ Sebastião sonhou ter a sua Petrus em Alvalade quando Alvalade ainda não tinha um Prego da Peixaria e era sobretudo um bastião de cervejarias antigas e snack-bars. Não tenho a certeza porque o fez.

A resposta simples seria: porque as rendas eram mais baixas do que as do Chiado ou de Campo de Ourique.

Mas pode bem ter sido por outra razão: no Chiado ou em Campo de Ourique ou em Marvila seria fácil demais para Paulo Sebastião. Seria evidente demais. Sebastião queria explorar um bairro novo. Queria clientes que fossem vizinhos, que se tornassem amigos. Queria dar-lhes a ouvir Beastie Boys e pô-los a beber vinhos naturais. ¶ Ao seu lado, teve outros dois Paulo como sócios. Sebastião era o homem do pão, Paulo Pina e Paulo Neves entravam com dinheiro e gestão. Hoje, são os dois Paulo os garantes da estabilidade do barco. Estabilidade era uma questão complicada para Sebastião. Lembro-me de o entrevistar, na altura em que ainda preparava a abertura, e de me falar de como fazer pão era algo difícil de controlar. «O pão é sempre diferente. Nunca sai igual.» Para ele isso representava uma das maravilhas do ofício, fazia parte da beleza da padaria artesanal. Mas até que ponto estaria disposto a aguentar a inconsistência natural das coisas e das pessoas? E até que ponto queria mesmo ser chefe? ¶ O perfeccionismo, a vontade de fazer sempre melhor, de oferecer sempre o melhor, a responsabilidade de gerir pessoas, acabaria por o levar a um burn out. A crise foi por ele anunciada no Instagram como um grito de alerta.

A indústria respondeu massivamente, saindo também ela do armário com solidariedade e conselhos materializados em centenas de mensagens na sua caixa de comentários. ¶

inter magazine

Fรกbio Santos

Paulo Neves

Paulo Pina

Matthieu Raud e Natalie Castro, fotografias de Ricardo Dias Felner

reportagem Em 2019, Paulo Sebastião deixou o Isco e a padaria. Cedo demais. Ainda estava a crescer, ainda queria inventar muitas coisas. Queria cozinhar, tinha ideias para pizzas, tinha uma cultura gastronómica vasta. Mas partiu novamente para a Suécia. Matthieu Raud ficou então responsável pela panificação. Se Sebastião fora o mentor e o pedagogo da padaria, Raud era «a máquina». Tinha escola francesa de pastelaria, trabalhara numa crêperie em Oslo (faz as melhores tartes de frangipane e os melhores crepes de trigo sarraceno). Era mais rápido do que ninguém, fosse a moldar bolinhas de trigo, fosse a varrer farinha. E era rigoroso.

E disciplinado. Paulo respeitava Mathieu, Mathieu respeitava Paulo, mas eram dois talentos distintos: um mais delicado e arty e perfeccionista; o outro pragmático e com mãozinhas de ouro. Com os dois aprendi muito sobre padaria artesanal.

Mas nenhum me tinha ainda ensinado a sua técnica para dar voltas à massa.

«Só tens quê pegarr pórr baixo e puxarr», instrui Mathieu Raud, padeiro chefe do Isco, ainda o sol não levantou no bairro de Alvalade. Eu tinha passado a quarentena a cozer pão. Dera muitas voltas à massa. Mas isto é outra coisa.

Olho para a massa. Em vez da tigela de quilo que me habituara a manipular em casa, tenho pela frente 15 quilos de espelta. Um caixote de espelta. Dar voltas a um pãozinho, faz-se com uma mão. Agarra-se na tigela com a mão esquerda e com a direita agarra-se a massa por baixo, puxa-se, dobra-se por cima, já está. Dar voltas a um volume fluído com o peso de uma criança de quatro anos requer mais membros, mais força, mais jeito. ¶ A outra grande diferença é a consistência das massas. A massa das padarias parece sempre tesa.

Podemos atirá-la contra uma parede que ela solta-se e volta à forma inicial. Uma massa caseira, em quantidades caseiras, é um bicho fluido e pegajoso se devidamente hidratada.

O que significa devidamente hidratada? Há uma espécie de competição na matéria, no registo a minha pilinha é maior do que a tua. Quanto maior a percentagem de água da massa, mais técnica o padeiro tem de ter, mais ufano fica o indivíduo. Muita água resulta em alvéolos grandes (pilinhas grandes). Podemos estar a falar de 75, 80, 85 por cento de hidratação. Ou seja, se um pão tiver 1000 gramas de farinha, 80 por cento de água significa que levou 800 gramas de água (em padaria, a percentagem mede-se por referência ao peso total das farinhas). ¶ Ultrapassado o desafio das voltas à massa, surge outra etapa clássica da panificação.

Fazer bolinhas. «Agora é que vai ser», brinca Fábio Santos.

Fábio Santos andou por muitas cozinhas de fine dining, incluindo o Vila Joya, duas estrelas Michelin. Foi contratado já com a perspectiva de abrir a padaria à noite, para jantares gastronómicos. E isso acabou por acontecer. Mas depois veio a pandemia e ele regressou às madrugadas de farinha e água. Fábio é bom nas bolinhas. Sem surpresa, eu não. No curso de padaria que fizera com Mário Rolando (o padeiro das barbas, o padeiro poeta, o padeiro profeta – pai da nova padaria artesanal portuguesa), há uns anos, tinha praticado bolinhas. Mas não ao ponto de as saber fazer. Começo por tentar só com uma mão, uma de cada vez. Olho para Fábio e para Matthieu e em menos de nada eles têm bolas de hóquei perfeitas. As minhas achatam-se contra a mesa, parecem cubos. «Não faças tanta prressão», sugere Matthieu.

Vou melhorando. Ganho confiança. Tento depois com as duas mãos aos mesmo tempo. Complicado como aqueles desafios de coordenação: uma mão em círculos na barriga, outra em círculos no cucuruto. Nunca consegui. Continuo a não conseguir. As bolinhas são de brioche, a massa está impregnada de manteiga (manteiga a sério). Como demoro a arredondá-las, a massa aquece com a temperatura da mão e começa a derreter-se, a colar-se à mesa, às mãos, mãos de manteiga. ¶ Entretanto, o dia clareia. Da mesa de amassar vê-se a rua, mas os olhos estão sempre na massa.

Agora é preciso também tratar de outras coisas. Varrer.

Bastante. A toda a hora. As farinhas são voláteis e insidiosas, não há cantinho onde não se impregnem. São o terror do empregado de limpeza. Matthieu também é uma máquina a varrer. E a limpar a banca. E a tudo. Há pessoas que fazem tudo com intensidade. A intensidade treina-se, mas está na pessoa. Jorge Jesus haveria de gostar de Matthieu. ¶ Chega depois um fornecedor, dois, três. Não são tantos quantos os fornecedores de um restaurante convencional. A operação de uma padaria, mesmo que seja uma padaria com outras comidas, é mais simples. O pão, o bom pão, é feito de apenas três ingredientes: farinha, água e sal. Depois há acessórios, mas nada que não caiba numa prateleira. No caso do Isco, que também tem pastelaria, usa-se cardamomo moído e canela, amêndoa, cevada partida, sementes de papoila e de tudo – entre outros. Mas as farinhas é que são as estrelas e nelas reside parte do segredo do sucesso. Pode-se fazer pão com farinha de supermercado, até com farinha de supermercado para bolos. Mas uma boa farinha, com força, com proteína – com muito glúten – facilita muito a tarefa e dá resultados mais saborosos. No Isco, não se anunciam pães de farinhas especiais, biológicas ou xpto. Sempre houve um

inter magazine

Levi Romovil

reportagem certo pudor em vender nomes e marcas e certificações.

Mas eu vejo as sacas. E as sacas não são das marcas lá de casa.

Quem Morde o Isco Matthieu Raud Embora tivesse passado por outras padarias no estrangeiro, este bretão trabalhava num bar lisboeta quando foi contratado para o Isco. Haverá poucos padeiros com as suas mãos de ouro.

Cheira agora a pão. Uma padaria a cheirar a pão é outra coisa. Fábio dá conta do forno, Matthieu termina massas para cozer no dia seguinte. É preciso quem trate do front office. Pouco antes das nove da manhã, hora de abertura, chega então Natalie Castro. Natalie é porventura o elemento mais polivalente. Tanto domina a latte art, como o panisse e a frangipani. Já cozinhou em restaurantes gastronómicos e fá-lo maravilhosamente. Não mete a mão na massa, mas é responsável pelos almoços, uma carta curta sempre com sopas belíssimas e invenções frescas, como a recente barriga de porco com melancia. Culinária à parte, é também a maior distribuidora de abraços e boa energia por colegas e clientes. Voltamos à essência de uma casa de comidas.

Não é só comida, também é carinho. Natalie é carinho.

Em minutos, toda a gente está a sorrir à sua volta.

Faz isso mas faz mais. Mede a febre dos colegas. Depois, vê as encomendas do dia. Há vários restaurantes e mercearias a ir buscar aqui o pão. Natalie precisa certificar-se de que não falhou nada. ¶ Uma padaria – uma empresa – é também isto. Pessoas diferentes com qualidades diferentes. Levi Romovil é o contrário de Natalie. Guineense musculado, formado em Direito, é outro dos funcionários do Isco, mas é muito tímido e foge do contacto com os clientes. A dada altura, ficaram sem uma funcionária e ele teve de largar a masseira e ir para o balcão. Foi um martírio. Está bem é nos bastidores, gosta é das massas e dos fornos, ele e mais dois de volta da mesa, silenciosamente, uma piada ocasional, nada mais. ¶ Agora é preciso acelerar, mas para isso está cá «Mica», Amílcar Mota, um gigante ao balcão. Faltam cinco minutos para as nove e ele começa a arrumar o pão e a pastelaria na montra e nas prateleiras. «Qual é o pão especial do dia?», pergunta aos padeiros, a trabalhar atrás dele.

Espelta com centeio, um dos clássicos preferidos do Isco. ¶ Daí a nada, entra o primeiro cliente. Num dia normal, podia ser eu. É estranho olhar para aquela pessoa, descansada, sem os joelhos doridos de estar tanto tempo de pé. O dia começa para ela e ela pensa que o dia até começa cedo. Mas do outro lado do balcão há gente que acordou há cinco horas e já moldou dezenas de pães. Os minutos para o fim do turno começam a contar. No dia seguinte, há mais. E no seguinte e no seguinte. ¶ Fazer pão é giro, tem piada, é divertido.

Sobretudo ao fim-de-semana. Em casa. ×

Natalie Castro É a pessoa mais polivalente do Isco. Tanto está a falar com clientes, ao balcão, como a tratar de facturas, como na cozinha a preparar pratos de bistrô para os almoços.

Fábio Santos Andou pelos fine dinings mais exclusivos, mas tem dentro dele o campo e o apreço pelo produto.

Ah, e faz do melhor fiambre da cidade.

Levi Romovil O atleta do grupo gosta é de estar a trabalhar as massas. Peçam-lhe tudo, só não lhe peçam para servir cafés.

Amílcar «Mica» Mota É um monstro de rapidez e energia ao balcão.

Conhece todos os pães como se tivesse sido ele próprio a fazê-los.

inter magazine

Lee GuimarĂŁes, Trindade PĂŁo Artesanal, fotografia de Tiago Lessa, Porto, Setembro 2020

causas

inter magazine

Nas Beatas fala-se com as suas proprietárias sobre empratamentos, sabores, cores e inspirações mas também se fala sobre feminismo e as suas causas inerentes. Afinal, um restaurante pode almejar qualidade no seu produto e serviço e, ao mesmo tempo, ser um agregador de causas.

Aquele espaço no bairro da Graça, em Lisboa, aberto em Janeiro do presente ano, é prova disso mesmo. Telma João Santos, matemática, investigadora e performer e Diana Reis, chefe de cozinha, são os nomes das Beatas e as principais figuras daquilo que o espaço representa e que na verdade, surgiu numa primeira instância do projecto Cooking Landscapes – onde as artes performativas e a comida funcionam como algo agregador e sempre com protagonistas mulheres. «Na área das artes, os lugares de poder estão associados aos homens. Em conversa com a Diana, percebemos que na cozinha acontecia o mesmo, sobretudo na cozinha de autor. Decidimos fazer alguma coisa e abrir um restaurante onde pudéssemos ser apenas mulheres a decidir e onde novas formas de trabalhar, em torno da colaboração e da dedicação, bem como do respeito por horários de trabalho dignos, fossem possíveis», começa por explicar Telma. As responsáveis afirmam que existem diversos mitos ligados às chefes mulheres na restauração e, por isso mesmo, querem desmistificar essas crenças e criar diálogo em torno desse temas através do restaurante e do próprio projecto. «Há pessoas que consideram que as chefes mulheres fazem uma cozinha mais emocional e menos criativa e temos de acabar com esse discurso que, por vezes, provêm das próprias mulheres. Custa-nos quando dizem que mulheres só não têm mais visibilidade porque elas não têm necessidade de ser visíveis. Isso é mentira», consideram. ¶ O restaurante onde agora mora as Beatas pertencia a um casal de idosos, que já ansiava pela reforma, com uma base

de clientela habituada a um tipo de restauração mais tradicional e familiar. Quando as novas moradoras tomaram conta do novo espaço, a vizinhança ressentiu-se desde logo com o logo que evidencia um tronco nu de uma mulher, com um X colocado por cima de cada mamilo. «Havia quem pensasse que éramos uma casa de meninas e nós temos esta causa agregada do feminismo mas isto é um restaurante que faz parte de um projecto maior», esclarece Telma que durante 20 anos leccionou na Universidade de Évora. Por detrás deste logótipo, estava a tal causa, é certo, mas também a cozinha de Diana – uma ex-militar apaixonada por cozinha e que no seu percurso culinário conta com passagens pelos restaurantes Feitoria, Belcanto, Rabo d’Pêxe, Boi-Cavalo, L’and Vineyards e Tapisco. «Não gosto de estar numa caixa, sou uma pessoa em mutação. A base da cozinha das Beatas é cozinha portuguesa com técnicas e sabores do mundo», considera. ¶ Quando conversaram com a INTER magazine, ainda antes do inimigo invisível tomar proporções imagináveis, ganhar a atenção do mundo e ser tema de conversa dos nossos dias, as empresárias mostravam-se cheias de ideias para o futuro e, sobretudo, esperançosas naquilo que defendiam. Na altura, mal sabiam elas que iriam ter que encerrar um mês e meio depois de inaugurarem o seu sonho, de fazer take away para a sobrevivência financeira do seu projecto, de servir almoços a preço moderado na pós-abertura do restaurante e até de arriscar num tipo de cozinha mais tradicional para sobreviver. Foram tempos difíceis, mas a causa maior impediu que não desistissem e hoje seguem firmes, apenas aos jantares, com um menu adaptado mas com um comprometimento fiel ao produto, aos clientes e sobretudo ao seu manifesto maior que prometem não deixar morrer. ×

texto catarina amado foto humberto mouco

Beatas, um lugar para o feminismo 57

Cristiana Morais, ÂŤWater MeÂť, Lisboa, 2020

solidariedade

Mayu Ajudar para manter uma comunidade viva Muyu é um restaurante e bar, localizado na ilha de San Cristobal, em Galapagos, no Equador, inaugurado em 2017 pelas mãos da food writer e chefe Luciana Biachi e do director hoteleiro Pablo Mejía. O espaço nasceu com a missão de fomentar oportunidades de emprego no sector da hotelaria e de profissionalizar uma geração, independentemente da idade, sexo, orientação sexual, religião ou crenças. Um dos seus alicerces, além da veia educacional, é a sustentabilidade, o trabalho com a agricultura orgânica e os produtos locais. Dado à recente falta de turistas na ilha – que contém o famoso

texto catarina amado foto mayu

Parque Nacional Galápagos, com o selo da UNESCO – devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, este projecto tem sido fortemente afectado, estando em risco o seu encerramento e o fim de sustento de mais de 200 famílias. Apesar de actualmente ter zero casos confirmados de Covid-19, Galapagos é uma das regiões mais afectadas da América Latina, já que depende «100% do turismo» para sobreviver. ¶ Neste momento está a decorrer uma campanha de crowdfunding no site GoFundMe que visa a ajudar o restaurante, e consequentemente a sua comunidade, a ultrapassar esta crise. × As doações podem ser feitas aqui: www.gofundme.com/f/keep-the-muyu-community-alive

inter magazine

Vânia Rodrigues, Sopa Cozido, Taberna Antigo, Tabernas do Alto Tâmega

portugalidade texto virgílio nogueiro gomes

Reinventar os restaurantes?

Tive o cuidado de não me alongar em escritos sobre os efeitos da pandemia que a todos continua a incomodar.

Logo que os restaurantes abriram, rapidamente me consolei a fazer as minhas refeições fora de casa e, por duas vezes, escrevi incentivando o consumo das refeições em restaurantes. Entre outras coisas escrevi que comer em restaurantes seria mais seguro do que em algumas casas particulares, atrevimento consciente. ¶ Depois desta crise, poucas coisas ficarão como eram! Encerrados os restaurantes e de seguida autorizados a prestar alguns serviços, take away e delivery, muitos organizaram-se como a forma possível de continuar a trabalhar. E muitos descobriram uma nova forma de, também, fazer negócio. E foi surpreendente ver restaurantes como o DEGUST’AR, JNÇQUOI, NOBRE, POLEIRO, COLINA, e outros, preparando listas de pratos, procurando soluções de melhor embalagem e, também, as formas de a comida chegar a casa dos clientes. Mais complexa foi encontrar soluções para os buffets, mas que, mesmo assim, encontraram fórmulas corretas de servirem os clientes. ¶ Com uma leitura rápida por outras paragens, parei em Paris em restaurantes de prestígio, como o «Tour d’Argent», onde o proprietário, André Terrail, criou um serviço ao domicílio, mantendo uma prestação de alta gastronomia. As suas esquipas deslocavam-se a casa dos clientes onde terminavam o serviço de cozinha e empregados de mesa do restaurante serviam a refeição, um serviço que chamou «La Tour chez vous». Une expérience inoubiable, como escreveu Fanny del Volta, na edição de 8 de julho na revista Point de Vue. O restaurante transportava o cenário completo para a mesa, desde as toalhas, louças, vidros e talheres até ao requinte culinário. ¶

Mas em Paris não foi só o Tour d’Argent que reagiu ao negócio. Guy Savoy, Monnaie de Paris, com o melhor restaurante do mundo em 2020, Stéphanie Le Quellec e o seu restaurante La Scène, e Alain Ducasse que criou o serviço «Alain Ducasse chez moi», todos participaram num programa on line que tinha todos os restaurantes em Paris, e ainda um aplicativo para fora de Paris. ¶ Quando os restaurantes foram autorizados a servir no local, uma bem organizada «Orientação» – Procedimentos em estabelecimentos de restauração e bebidas – da Direção Geral de Saúde causou alguma perplexidade. A principal questão seria a reduzida capacidade, dos restaurantes, servirem a lotação do espaço anterior à pandemia.

O número de lugares teria de ser reduzido. Ora essa era uma falsa questão pois, infelizmente, veio a constatar-se que os restaurantes não enchiam…! A pandemia veio obrigar a uma reflexão sobre o serviço a prestar. E algumas sugestões até facilitavam o serviço! Deixámos, felizmente, de ver coleções de copos e talheres em cada lugar.

Sugere-se que se tragam apenas os necessários que, curiosamente, já era prática em alguns restaurantes de luxo contemporâneos ou até restaurantes «estrelados». A lista dos pratos também foi reduzida o que, teoricamente, parece permitir que as mise-en-places na cozinha sejam mais racionais. Preocupação, agora, é garantir o regresso ou fidelização da clientela que se consegue com brigadas de mesa eficientes e com a regularidade da qualidade de confeção. ¶ Uma grande campanha para assegurar aos portugueses que os restaurantes são lugares seguros deveria ser exigida ao Estado. ×

inter magazine

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O Festival SomSabor decorre no Espaço Espelho de Água em Lisboa.

Música, Literatura e Gastronomia. Mariana Cardoso e Rui Araújo cruzam-se com Bernardo Lobo e Maria João.

Foto de Tahys Peric, Setembro de 2020

Festival SomSabor, Espelho de Ă gua, Lisboa Foto de Tahys Peric, Setembro de 2020

projecto matéria texto joão rodrigues foto fabrice demoulin

Diário de Viagem

Início

Ao longo dos últimos anos tenho viajado de norte a sul de Portugal em busca de pequenos produtores e produtos autênticos, limpos e feitos no nosso País.

Para cada uma destas viagens muito contribuíram: amigos, desconhecidos, interessados, chefs, produtores, estudiosos, todo o tipo de pessoas das mais variadas áreas, mas em todos eles foi possível perceber um sentimento comum… O de pertença de algo maior que todos nós, o País em que vivemos.

Como povo, somos um tanto ou quanto bipolares: criticamos tudo e todos, mas nunca deixamos de ser apaixonados, orgulhosos de sermos Portugueses e estarmos sempre prontos a ajudar quem precisa. Mas o que mais me impressionou nestas viagens, para além das paisagens, das comidas, dos hábitos e claro está, das gentes… é que todos estes contributos e esta entreajuda, faz pairar no ar quase como um sentido de comunidade entre todos. O que falta, se calhar, é realizar que ela de facto existe e que a podemos materializar em algo maior. ¶ Ao longo destas próximas edições, trago um prato que teve origem em cada uma destas viagens e que colmataram em visitas a pessoas incríveis, na génese de tudo isto estão os tais contributos. ¶ Nesta primeira revista, fica um dos mais emblemáticos do Feitoria de 2015: «Portugal num só Prato».

Simboliza a importância do cozido no nosso País, prato, que para mim, mais o simboliza. Feito com fumeiro de norte a sul, logo um prato transversal a todos nós. Nesta interpretação, fiz um caldo intenso de cozido com as carnes e os legumes e a acompanhar com uma pequena tosta de farinheira e cachaço de porco Alentejano com a forma do mapa de Portugal. A ideia é que as pessoas tenham literalmente Portugal num só prato. × inter magazine

Fotografia de capa de Cristiana Morais, com Marcelo Rodrigues, Lisboa, 2020

crónica

‫‏‬Um passeio ao dicionário priberam

texto olavo silva rosa ilustração júlia da costa vital lordelo

porco | s.m. | adj. s.m porco|ô| (latim porcus, -i) s. m.

1. [Zoologia] Mamífero da família dos suídeos.

2. [Figurado] Carne desse animal. adj. s. m.

3. [Informal, Depreciativo] Que ou quem tem pouca higiene ou apresenta sujidade. = BADALHOCO, JAVARDO 4. [Informal, Depreciativo] Que ou quem tem comportamento considerado obsceno ou sem pudor. = INDECENTE

Antes do tal passeio ao dicionário, deixo-vos duas palavrinhas acerca desse homem que nos recebeu em sua casa na – praticamente deserta – aldeia do Zambujal.

O Rui Jerónimo é criador de porcos desde 2014. Pouco antes, fora empregado bancário – trabalhava numa sucursal do Banco Espírito Santo (sim, esse mesmo), de onde se demitiu para ir tomar conta de uma vara. Hoje produz carne, enchidos e presuntos. Serve este aviso para precaver o leitor, há uma curva íngreme e apertada ali à frente, e o passeio acaba num ápice. ¶ Na categoria n.° 1 [Zoologia], encontramos um quadrúpede de focinho afunilado e levemente narigudo, subscritor de um regime alimentar omnívoro, em tudo semelhante ao do seu preceptor, essoutro conhecido por sapiens sapiens (duplamente sábio e infinitamente modesto…) No que toca à dieta, ele vai de feijoada, vai de grão com mão de vaca, e até leite com cereais ao pequeno-almoço… não é nada esquisito o nosso suíno.

Dá-se bem no «montado» (nome chique que a aristocracia alentejana arranjou para designar o mato), mas resigna-se igualmente ao andar de baixo das frugais casas de granito e de xisto que abundam no norte de Portugal. ¶ A respeito do n.° 2 [Figurado], seria interessante cartografar a presença da carne suína no mapa-múndi. Se colocássemos pioneses sobre cada país consumidor de porco, encontraríamos um enorme vácuo entre a Turquia e o Paquistão, perpassando todo o Médio Oriente (Israel incluído),

com pequenos hiatos em África e no sudeste asiático.

Duas das cinco grandes religiões proíbem o consumo do animal mas, espantem-se os incautos, é a carne de porco a mais consumida no mundo. ¶ O porco n.° 3 [informal, depreciativo] é na verdade um primata sobre o qual poderia dissertar largamente, posto considerar-me, eu próprio, um dos seus mais verosímeis exemplares; contudo, é-me totalmente impossível expressar ortograficamente a robustez nauseabunda dos meus arrotos, e vendo-me assim desprovido de ferramentas literárias para vos elucidar, não aprofundarei o n.° 3. ¶ E eis que chegamos ao porco n.° 4, sem dúvida o que mais prolifera. Pode ser encontrado no campo, mas também nas cidades, nas igrejas, nas mesquitas, na fila das finanças, nos supermercados, na Assembleia da República, na aviação comercial e na força aérea, na comunicação social e na banca. Estes porcos dão-se literalmente em todo o lado. São tantos que nos esquecemos deles com enorme facilidade. Com certeza algum banqueiro corrupto do séc. xix terá quebrado a banca e conduzido muita gente à miséria, mas em 2020 ninguém se lembra desse banqueiro… Se a nossa memória já é curta demais para lembrar os heróis, que dizer dos carrascos? Uma coisa é certa: a vida é a única oportunidade que temos de praticar a virtude. Para a posteridade do ex-banqueiro Ricardo Salgado, não ficará, nem a eterna ignomínia, tão pouco a eterna glória, mas sim a mais contundente penumbra do esquecimento. ×

Olavo Silva Rosa e o Tiago Antunes estão a produzir uma série com o apoio da INTER magazine.

Humberto Mouco, Jantar a 4 mãos José Avillez e João Rodrigues no Belcanto, 2020

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Gostas de vinho? Principalmente de vinhos naturais, acho os tintos portugueses fortes, não reajo bem. Sou mais de cocktails, de preferência negroni clássico. Dá-nos uma sugestão para um pequeno almoço tardio. Panquecas de bacon com maple syrup. Faço a massa, ponho uma primeira panqueca, depois bacon já frito e mais massa. Acompanho com café.

O que mais gostas de cozinhar? Carapaus alimados, um prato argarvio. Também faço umas boas asinhas de frango no forno, temperadas com gengibre, mel, molho de soja, sementes de sésamo, alho, flocos de malagueta. E mais sugestões ou receitas? Há uma receita secreta na minha família, que passou da minha bisavó para o meu pai: linguados recheados com puré de batata, são feitos no forno. O meu pai ainda me vai dar a receita, a técnica para resolver o problema principal, que é o linguado ser um peixe muito estreito. A minha avó materna também tem alguns segredos a passar-me: faz doces algarvios típicos como Dom Rodrigos ou bolinhos de amêndoa. Espero herdar o caderno preto onde ela guarda as receitas todas, em particular o bolo de aniversário da minha infância: bolo de coca-cola. Qual o teu restaurante preferido? O Prado, mas suponho que seja o preferido de muita gente.

Então sugere um restaurante secreto, pode ser no Algarve. Taberna da Maré, na zona antiga de Portimão. É um restaurante de pescadores, que foge dos grelhados típicos para turistas.

Diz-nos uma boa descoberta tua nos vinhos naturais. Vinhos Aparte. É uma marca que descobri no bar Vino Vero, gosto muito dos vinhos e do facto de o projecto incluir rótulos muito interessantes, feitos por ilustradores portugueses. ×

Cristiana Morais nasceu em Portimão em 1987. Estudou artes na Escola Secundária de Portimão e fotografia no Instituto Português de Fotografia, em Lisboa. Com a crise decidiu estudar ainda conservação e restauro de pintura na Fundação Espírito Santo, mas nunca chegou a trabalhar na área. Desde 2004 que é fotógrafa free-lance, principalmente na área da moda e para redes sociais. Faz auto-retratos de nu para impor normalização corporal na sociedade, um projecto que tem encontrado boa recepção, com clientes a pedirem sessões fotográficas no género, e também a espoletar trabalhos como modelo fotográfica. Look her up.

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Edy Lobo nasceu em Luanda em 1983. Estudou língua e literatura inglesa, e tornou-se professor de inglês no Instituto Médio de Administração e Gestão. A sua outra ocupação é a de pai e esposo. Começou a escrever em 2013 e publicou o primeiro livro em 2018. Define-se como um polígamo literário, escreve poemas, crónicas, artigos de opinião, contos, etc. Além do livro de contos «O Esposo da Minha Mulher», publicou «O Diário de um Professor (A)Normal.» Vive em Luanda, e veio a Lisboa buscar os livros quando foi apanhado pela pandemia que parou a escola onde lecciona.

Em Angola bebe-se mais vinho tinto? Sim, mas eu não. Se beber três vezes por ano é já um exagero. Os meus vícios estão bem declarados: mulheres. Então qual é a tua bebida?

Sumos naturais: limão, laranja, maracujá. Num momento furtivo posso acompanhar os meus cunhados e provar um Porca de Murça, ou um Paulo Laureano. Não percebo, mas bebo uma taça, degusto e imito a mesma cara que eles fazem. Nem cerveja? Ainda menos. Então e comida, preferes pratos angolanos? Gosto de um funje de bombô (farinha de mandioca) com muamba de ginguba (amendoim). Com feijão de óleo de palma. A mulher já sabe, ao sábado isso não pode falhar. Há uma influência portuguesa forte na culinária angolana?

Sim, e eu também gosto muito desses pratos: cabidela, arroz de pato. Também não consigo resistir a um bacalhau com natas. Luanda tem fama de uma cidade muito cara. Consegue-se ir a restaurantes? Sempre se pode ir para bons restaurantes em Angola, principalmente em Luanda por ser a capital. As pouco definidas classes sociais é que definem e muitas vezes fazem confundir a frequência nestes sítios onde quem ganha pouco quer estar com quem ganha muito bem. A pandemia veio mudar de alguma forma a situação? O mundo está nas mãos do Coronavírus. A vida, literalmente, parou. Os responsáveis gastronómicos têm de se adaptar aos novos tempos. Há restaurantes para expatriados e uma outra rede de restaurantes para os locais? Não. Angolano é um povo muito acolhedor. O que poderia provavelmente definir isso seriam os preços praticados nos diferentes restaurantes. Ganhas um prémio literário importante e queres festejar (ou, o teu Benfica ganhou a Champions). O que fazes: escolhe um restaurante, o que comes e bebes? Ahhahahahahahahaha. Benfica ganha a Champions e logo, logo o parco salário será deglutido em benfeitorias desnecessárias.

A nossa forma de conviver varia segundo as nossas amizades. Dependendo do evento podemos sempre ir para um restaurante ou conviver com os amigos em local aberto (praia, festa de quintal ou festa em família). × 87

Patrícia Pombo nasceu em Lisboa em 1989. Estudou comunicação e design na Magestil, temas que continuou na London College of Communication, depois de viajar para Londres para trabalhar em publicidade. Por essa altura já tinha decidido voltar-se para os gráficos, não para a estratégia.

Em Londres, concretizou um interesse antigo, estudou sommelerie e trabalhou num bar de vinhos. Depois de 4 anos, regressou a Lisboa em 2017 e trabalhou na Garrafeira Nacional, depois no Restaurante Leopold, a seguir no Prado. Criou então o projecto Pour Decisions (eventos sociais para promover os vinhos portugueses) e o projecto ONA (experiências gastronómicas efémeras, com chefes de cozinha e vinhos escolhidos por si e pelo seu sócio Luca).

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Gostas de futebol? Não. Então de que desporto gostas? Para praticar, para ver ao vivo e para ver na televisão? Ténis e danças acrobáticas. Ténis. Desportos aquáticos, natação, natação sincronizada. O que gostas de fazer ao Domingo de manhã? Normalmente estou a trabalhar.

Quando não estou, gosto de tomar o pequeno almoço na rua, sozinha ou com um livro.

Como um croissant no Isco, primeiro um simples, depois um doce, bebo o óptimo café.

Também gosto de ir à Farmácia, tem uma vista incrível. Gostas de cinema? Gosto de ir ao Nimas, que não tem pipocas, vejo um preto-e-branco de vez em quando, gosto de comédias francesas, e também de realismos, nada de fantástico, mais dramas da vida.

Cineasta: Wes Anderson. Quais são as tuas férias perfeitas? Três semanas com os amigos, no Norte de Portugal, Trás-os-Montes, Gerês, uma viagem de carro a parar em vários sítios, mergulhar em cascatas, beber vinho em copos de 3. Convida um político (vivo ou morto) para jantar. Onde o levas e o que lhe dás para comer e para beber. Convido o Pedro Nuno Santos, ministro das infraestruturas e da habitação. Levava-o ao Afonso das Bifanas e enquanto jantávamos uma sandes e um copo de tinto da casa fresco ao balcão dizia-lhe «Pedro, este sítio é incrível, não é? Depois de pagar a renda todos os meses valha-nos o Afonso das Bifanas!» Diz-me uma música que gostes de ouvir quando estás mesmo deprimida. Nothing Compares 2 U pela Sinéad O’Connor. Muda uma lei.

Mudo a lei da venda de aguardente de fruto nos cafés e restaurantes. Passa a ser obrigatório comercializar pelo menos uma aguardente de medronho caseira por estabelecimento.

O rótulo seria sempre «água para beber.» Se as bifanas fossem feitas com peixe, qual seria o peixe? Pescada. ×

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«Apple and Eve» de Dave Palethorpe, Humberto Mouco, Cinco Lounge, Lisboa, 2020

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#interfoodanddrinks #269 / 2020 trimestral julho — setembro director Paulo Amado pvp continente ₏ 7,5 issn 0873-531x

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