Revista Ponto #15 - ABR/MAI/JUN 2018

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Assim, a leitura do que possa ser literatura – e ela é tanta coisa – é também um ato previsível, comum, tão trivial e, às vezes, até mesmo banal. Entretanto, é impressionante, ao menos para os leitores mais sensíveis, o seu poder de sugerir, de surpreender, de projetar na esfera do imaginário um mundo que se constrói, no trânsito de ficção e realidade, insistindo sempre numa vida mais feliz e melhor. É isto: ler é uma experiência essencialmente subjetiva e, quando lemos Shakespeare, Clarice Lispector, Julio Cortázar e tantos outros, passamos a ser os livros lidos e, como leitores criativos, guardamos e recriamos as palavras dos escritores e dos personagens no nosso universo íntimo, na construção da nossa possível visão de mundo, naquela enseada da nossa necessidade vital de fantasias e revelações. Somos felizes, enfim. A maioria dos escritores que, com paixão e entusiasmo, confessa a sua história de leitura, celebra a sua configuração mágica, não apenas como ato, mas como fonte de descoberta de mundos conhecidos e desconhecidos que, por vezes, não existiam e, pela força sugestiva das palavras, passam a existir no horizonte fictício e por natureza real da felicidade de imaginar e inventar. E também aquelas realidades, fantasias e aspirações que pairavam nas camadas mais subjetivas do ser e, pela força emotiva e reflexiva das palavras, acordaram e se tornaram vivências no lugar íntimo e existencial de cada um. É justamente por isso, por essa peculiaridade da arte de casar a realidade com a fantasia, que, no universo da literatura que se oferece para o exercício de ler, que um conto de Guimarães Rosa, um romance de Graciliano Ramos, uma crônica de Caio Fernando Abreu, um poema de Carlos Drummond de Andrade, todos eles propõem uma busca da alegria, mesmo quando fazem do sofrimento o seu tema aparentemente maior. A dor, a solidão humana, a injustiça social, os amores impossíveis, as mazelas da existência representados na arte nunca aparecem como o atestado de uma ordem imutável, como simples registro de uma realidade fatídica, como consumação definitiva de que viver se reduz à experiência de sofrer. Não que a literatura modifique imediatamente o mundo em que vivemos, mas ao menos ela aprofunda e inquieta a sensibilidade do leitor para uma vida que pode sempre ser humanamente melhor. E, por falar em Drummond, vejamos como o seu poema “Os Ombros Suportam o Mundo” – para mim o poema mais triste da Literatura Brasileira contemporânea – revela a carência, o estado de penúria, a falta de gestos mais humanos na sociedade dos nossos dias e, pela própria gravidade poética da denúncia, apela-clama-grita por uma existência menos atroz: 66


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