Asvitimasalgozes

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Desde muito tempo desejava que chegasse o dia do falecimento do senhor, calculando com a verba testamentária que o deixaria liberto: esse dia chegava enfim, ele dentro de si o festejava; mas, tendo acabado de conceber criminoso projeto, convinhalhe fingir-se compungido e triste, não afastar-se um só momento da casa. O sarcasmo grosseiro do vendelhão que provocara as gargalhadas dos vadios reunidos na venda, lembrara ao crioulo um atentado que se lhe afigurava de fácil execução. O escravo já não se contentava com a liberdade, queria também dinheiro. A morte, que se demorava, impunha-lhe privação de passeios, de deboches, e da prática dos seus vícios; não lhe seria difícil escapar-se da fazenda com pretextos fúteis, ou sem eles; Simeão, porém, não queria que o senhor morresse em sua ausência; conhecendo perfeitamente os escaninhos da casa, sabia onde Domingos Caetano tinha encerradas grandes somas de dinheiro, e planejara aproveitar a desordem e as convulsões da família na hora terrível do passamento para roubar quanto pudesse. Eis o segredo da aparente dedicação do escravo. Simeão velava, é certo, diante do leito de seu senhor moribundo: afetava tristeza e gravidade de dor concentrada; mas seus olhos fitos no corpo de Domingos Caetano somente procuravam os sinais do progresso do mal e da aproximação da morte, que lhe prometia liberdade e riqueza roubada. Nesse longo velar, olhando o senhor, Simeão às vezes lembrava os benefícios, as provas de amizade que recebera do velho que ia morrer; logo porém, sufocava o natural assomo de generoso sentimento, recordando o açoite que caíra sobre suas espáduas, e prelibando a liberdade que em breve devia gozar. Sem poder vencer-se, por momentos sensibilizava-se ao aspecto do corpo quase cadáver, e ao ruído abafado do soluçar da família; mas, só por momentos homem, era horas, dias e noites simples escravo, e ainda ao aspecto do corpo quase cadáver do senhor, e ao ruído abafado do soluçar da família ocultava sob a exterioridade mentirosa de compunção e tristeza, o gelo, a indiferença ingrata e os instintos perversos escravidão. O aborrecimento que ele já votava ao senhor dormia resfriado pela morte, que presumia próxima; a morte, porém, era condição do sono do aborrecimento, e o senhor moribundo somente podia merecer do escravo o olhar fixo de vigia, insensível ao doloroso transe, esperando com aborrecido cansaço a última cena de um caso fastidioso. Simeão foi ator nesse teatro de reais e despedaçadoras aflições, em que só ele tinha papel estudado. Os transportes de dor, em que se estorciam Angélica e Florinda, não o comoveram. Viu sem se enternecer as lágrimas que Angélica chorara de joelhos, abraçando os pés de seu marido quase agonizante, e em um momento supremo, em que a todos se afigurou derradeiro transe de Domingos Caetano, e quando Florinda nesse desespero que olvida tudo, tudo e até o pudor de donzela, quando Florinda descabelada, delirante se lançava no leito de seu pai, e era dali arrancada por parentes, contra quem se debatia em desatino, ele, o escravo, o animal composto de gelo e ódio, ele teve olhos malvados, sacrílegos, infames que pastassem publicamente nos seios nus, nos seios virginais da donzela que se deixava em desconcerto de vestidos pelo mais sagrado desconcerto da razão. Simeão, escravo, contando com a liberdade, e calculando com o roubo de sacos de prata e ouro, velava sinistro ao lado de seu senhor agonizante, estudando-lhe na desfiguração, na decomposição do rosto, e no arfar do peito os avanços da morte, que era o seu desejo. E a esposa e a filha do velho que parecia agonizante, e os parentes e os amigos que tinham acudido ao anúncio do grande infortúnio, diziam, vendo Simeão vigilante e dedicado junto de seu senhor:

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