Jornal da Arquidiocese de Florianópolis Janeiro-Fevereiro/2013

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Bíblia

Janeiro/Fevereiro 2013

Jornal da Arquidiocese

Conhecendo o livro dos Salmos (56)

Salmo 77 (76): angústia e louvor Divulgação/JA

Com este salmo estamos, provavelmente, no tempo do Exílio ou, mesmo, no pós-Exílio, antes de Cristo, quando Judá estava reduzido a uma pequenina província do império persa. Como haviam mudado os tempos, outrora tão felizes, em comparação com os de agora! E, o pior, nenhum lampejo de esperança. Toda a primeira parte do salmo (vv. 2-11) tem essa tônica do desalento. Será que Deus, o Deus da Aliança, não é mais o mesmo? Entretanto, ainda uma vez, é a memória do Êxodo, expressa na segunda parte (vv. 12-21), que vem reacender a chama, quase extinta. O Senhor vai “passar” novamente pelo Mar, à frente do seu povo, guiando-o como o pastor ao seu rebanho.

Vale a pena insistir? 12. Entretanto, vou ainda lembrar os feitos do Senhor, / vou recordar teus milagres de outrora, 13. refletir sobre todas as tuas obras / e meditar nos teus grandes feitos. Apesar do desalento da conclusão do v. 11, o salmista insiste em “lembrar” e “refletir”, como nos vv. 6 e 7, só que agora com uma diferença: ele não recorda mais um passado indefinido (“os dias antigos”), mas, concretamente, num lampejo de memória, quer lembrar “os feitos do Senhor”. E, como que esquecendo as graves acusações dos vv. 810, agora dirige-se diretamente a Deus, de certo modo provocandoo: “vou recordar teus milagres... tuas obras... teus grandes feitos” (vv.12-13).

Voz e mãos que buscam 2. Sobe até Deus a minha voz, clamando; / ergue-se a Deus a minha voz, para que me ouça. 3. Em minha angústia busco o Senhor; / a noite toda estendo as mãos, sem me cansar, / recuso acalmar meu anseio. Estes versículos iniciais, como os quatro seguintes, são dominados por verbos e possessivos na primeira pessoa. É o salmista que se expressa individualmente, embora por certo representando seu povo. É por isso que sua voz, antes, o seu clamor, sobe até Deus, esperando que Ele “ouça” (v.2). Nessa busca ansiosa de Deus empenham-se também suas mãos, estendidas sem parar, como que tateando a escuridão.

Gemidos, abatimento, vigília, mudez 4. Ao lembrar-me de Deus, solto gemidos, / medito, e meu espírito se abate. 5. Tu me seguras as pálpebras dos olhos; / fico aturdido, sem poder falar. A lembrança de um Deus aparentemente insensível, em vez de consolo, provoca gemidos e abatimento. Mais. É como se o próprio Deus não o deixasse dormir, intervindo agora de modo estranho: “segurando-lhe as pálpebras dos olhos” (v. 7)... Resultado: incompreensão, mudez do salmista.

Os dias antigos 6. Relembro os dias antigos, / recordando os anos de outrora.

ta triste conclusão do orante, ela se esconde, inativa, como no Sl 74,11. Pior ainda: teria “mudado”, tornando-se sinistra.

É santo o teu caminho!

7. De noite medito no meu coração, / reflito, e meu espírito se interroga. Entretanto, a vigília se volta para o passado, para os “dias antigos”, os “anos de outrora”, desencadeando uma reflexão que se interroga sobre o sentido desses “dias” e “anos”, não definidos. A interioridade é ressaltada pela referência, no v. 7, ao “coração” e ao “espírito” do orante. Esse detalhe faz-nos lembrar a observação feita duas vezes por Lucas, sobre Maria, a propósito dos acontecimentos ligados à infância do Senhor. Ela, diz o evangelista, “guardava todas essas palavras, meditando-as em seu coração” (Lc 2,19 e 2,51).

Será que, não mais? 8. Será que Deus vai nos rejeitar para sempre / e não mais terá compaixão de nós? 9. Terá acabado para sempre o seu amor / e a promessa feita para todas as gerações? 10. Acaso Deus vai se esquecer de agir com clemência, / ou fechou as entranhas com ira? Chegamos ao clímax negativo do salmo. As perguntas se multiplicam, parecendo esbarrarem numa parede ou muro intranspo-

nível. De fato, o salmista sequer levanta a hipótese de o povo ser culpado ou ter sido infiel à Aliança, fazendo então por merecer o abandono da parte de Deus. Pelo contrário, quem é questionado, ou pelo menos interrogado, é o próprio Deus, que não pode invalidar seu amor uma vez manifestado, e a sua promessa, uma vez garantida “para todas as gerações” (v. 9). Por isso, as perguntas: “Será que Ele vai nos rejeitar para sempre, e não mais terá compaixão de nós?” Mais ainda: poderá Ele “esquecer-se de agir com clemência”, ou, como mãe desnaturada, terá “fechado as entranhas”? Em certo sentido, segundo o corajoso salmista, Deus está, assim, negando-se a si mesmo... pois “não é mais” Aquele que se apresentou a Moisés como “rico em amor e fidelidade” (Ex 34,6). E o pior é que essa mudança parece definitiva: “para sempre” (vv. 8 e 9).

Conclusão: Ele mudou! 11. E concluo: “Meu sofrimento é este: está mudada a mão direita do Altíssimo!” A “mão direita” de Deus aparece em vários textos como operadora de prodígios, p. ex. no Sl 118,16. Aqui, pelo contrário, nes-

14. Ó Deus, é santo o teu caminho: / que Deus haverá tão grande como o nosso Deus? 15. És o único Deus que faz maravilhas, / cujo poder se conhece entre os povos. 16. Com teu braço resgataste o teu povo, / os filhos de Jacó e de José. Agora, já não são queixas angustiadas, mas exclamações cada vez mais entusiastas sobre o poder desse Deus maravilhoso, cujo “caminho” – seu modo de proceder – é “santo”, isto é, transcendente, único, acima de qualquer parâmetro humano. Como o Segundo Isaías, o salmista aqui insiste na incomparabilidade de Deus, “grande” como nenhum outro, “o único” que faz maravilhas, e cujo “poder” é reconhecido “entre os povos”. E é com esse poder, “com a força do seu braço”, que ele faz jus ao seu título de “Redentor”, libertando o seu povo. A menção especial de José, entre os filhos de Jacó (v.16), alude à inclusão das duas tribos que dele descendem: as tribos de Efraim e de Manassés.

A teofania do Êxodo 17. As águas te viram, ó Deus, / as águas te viram e tremeram / e se agitaram os mares. 18. As nuvens derramaram águas / os céus soltaram o fragor, e fusilaram tuas setas.

19. Teu trovão reboou no turbilhão, / teus relâmpagos iluminaram o mundo, / a terra tremeu e se abalou. 20. Abriu-se no mar o teu caminho, / tua senda na imensidão das águas, / mas tuas pegadas ficaram invisíveis, 21. enquanto guiavas teu povo como a um rebanho, / por meio de Moisés e de Aarão. Nesta conclusão magnífica, em poucos versículos o salmista antecipa a teofania, isto é, a “manifestação de Deus”, do Sinai, vendo-a realizar-se no Êxodo. Assim, o terremoto do v. 19 é precedido pelo “maremoto” do v. 17, provocado pela avassaladora intervenção do Senhor nas águas do mar Vermelho. E é nesse mar, assim tocado pelo Senhor, que se abre o seu “caminho” (v.20), que será o caminho da libertação do seu povo. As “pegadas de Deus”, porém, ficaram invisíveis, como tantas vezes, ao longo da história e da nossa vida. É preciso a atenção da fé para percebê-las. Por fim, apesar de toda a suficiência da intervenção divina, é ainda necessária a mediação humana: é “por meio de Moisés e de Aarão” que Deus quis guiar o seu povo. Pe. Ney Brasil Pereira Professor de Exegese Bíblica na Faculdade de Teologia de SC - FACASC email: ney.brasil@itesc.org.br

Para refletir: 1) O que é que faz o orante passar, do desalento da primeira parte do salmo (vv.2-11), para a reanimação e o entusiasmo da segunda parte (vv. 13-21)? 2) Qual a importância da reflexão, da memória “no coração”, à luz da fé, das coisas que aconteceram e acontecem em nossa vida? (cf v. 7 e v. 13) 3) Por que é que, parecendo ter abandonado seu povo, Deus estaria negando-se a si mesmo? Como interpretar as “demoras” de Deus? 4) Por que é importante “insistir” em lembrar as obras de Deus, sem desanimar? (cf Lc 18,1) 5) Que dizer das “pegadas invisíveis” de Deus, no Êxodo e em nossa trajetória?


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