Aptare ed.38 - fev/mar/abr 2021

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Aptare

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FOI ALGO EXTRAORDINÁRIO, PORQUE CRIAMOS UMA COMUNIDADE DE SOBREVIVÊNCIA. sa a respeitá-lo mais. Temos histórias de médicos que terminavam de higienizar o paciente e o paciente ter diarreia e ele ter que limpar de novo, duas, três vezes. Aí eles chegavam aqui dizendo: “Olha, nós temos que valorizar as pessoas que fazem esse trabalho”. Então todos tiveram essa integridade, essa dignidade de perceber que só daria certo se houvesse o envolvimento de todo mundo. Nós tínhamos o mesmo uniforme, então você chegava ao refeitório e não tinha como identificar quem era quem. Havia uma mistura absoluta de funções. Viver o que o outro faz foi um aprendizado absolutamente extraordinário. Com o tempo, estabeleceu-se aqui um clima muito interessante, de prazer, de academia, de música, de ioga, tai chi chuan. Tinham cultos evangélicos, católicos. Era uma minissociedade como toda sociedade – eu imagino – deveria ser. Tivemos uma passagem muito engraçada sobre a convivência. Numa de nossas reuniões, discutimos uma alegoria de Schopenhauer, que era o dilema do porco-espinho. Segundo a alegoria, uma comunidade de porcos-espinhos naufraga e vai parar no Polo Norte. Chegando em terra firme, eles começaram a viver um dilema: como era muito frio, eles tinham que se aproximar uns dos outros; mas com a aproximação eles se machucavam e tinham que se afastar

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novamente. Então o dilema para os funcionários era: “você prefere morrer ferido ou de frio?”. E aí vieram várias reflexões muito interessantes. Teve gente que falou “Eu prefiro morrer de frio, porque eu não quero ferir ninguém”. Outros disseram “Olha, eu quero morrer ferindo, porque eu odeio o frio”. No final, a conclusão dessa alegoria é que realmente todos nós temos nossa gama de espinhos, que são as manias, as vontades. Esses espinhos não vão desaparecer, mas faça de um jeito que eles se entrelacem com os espinhos do seu vizinho e vocês convivam. Não se machuque nem morra de frio. Essa dinâmica passou a acontecer duas vezes por semana. A sociedade acabou criando um mecanismo de peso e contrapeso muito interessante. Aptare – A Quarentena Solidária é uma iniciativa tão única que se transformou até em documentário. Você pode falar dessa experiência? Salman – O documentário nasceu

com a vinda da [jornalista] Juliana Dantas, que tinha feito um podcast no primeiro dia da quarentena. Em uma conversa, ela soube que a gente ia entrar em quarentena, veio pra cá e gravou um podcast. No final, ela perguntou se não poderia entrar no hospital nos últimos dez dias, seguindo todos os protocolos de isolamento. Quando ela viu o que estava

acontecendo aqui, nasceu a ideia do documentário, de registrar a expe­ riência. Dei autonomia para que a equipe entrevistasse quem quisesse. Falei “Não vai ter cena gravada aqui, vocês vão tentar captar a essência do que está acontecendo”. Aptare – Uma das cenas mais icônicas da Quarentena Solidária foi a das visitas no muro de vidro. Como foi explicar para as famílias que o acesso ao hospital não era mais permitido? Salman – Houve uma surpresa geral

quando avisamos sobre a restrição da permanência de familiares acompanhantes. As famílias foram comunicadas que eles só poderiam ficar se morassem aqui, e nós demos a oportunidade de transferir o doente se ela não concordasse. Mas houve uma adesão de 80% das famílias, e as que ficaram um pouco resistentes se convenceram da proposta na segunda semana. A questão da janela é uma daquelas coisas que acontecem sem querer. As pessoas queriam ver seus familiares e alguém sugeriu ir até a parte da frente do hospital, onde existe um grande muro de vidro. O engraçado é que aconteceu uma visita no muro no momento em que uma equipe da [agência internacional de notícias] Associated Press estava aqui – aquelas coisas que a gente chama de coincidência. Fotografaram e, para minha surpresa, a foto foi publicada em 25 países. Na verdade, as soluções foram sendo construídas. Não houve planejamento. No início do documentário a Juliana perguntou o que iria ser... Se

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