Do it! nº 8

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Crónica

«A economia que mata»

© Arlindo Pinto

Por Fernando Alves Jornalista

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Na primeira exortação apostólica produzida desde que se sentou na cadeira de Pedro, o Papa Francisco vem denunciar, sem falas mansas, a tirania do sistema económico assente nos mercados: a economia de exclusão. Francisco diz sem rodeios: «A economia que mata». É a também chamada «economia de casino» na versão «Poker Miséria». Não sei o suficiente de poker, nem das suas regras, para perceber se quem dá manda ou se quem manda dá, mas li a notícia da exortação apostólica pouco depois de ter sabido do caso de Ola Amundsgård, um campeão norueguês de poker cujos lucros com o jogo rondam os cinco milhões de dólares anuais. Amundsgård, conhecido entre os praticantes com o nome de guerra «Shark», abandonou estudos avançados de computação para se dedicar ao jogo e, portanto, provar que a habilidade é decisiva no poker, que não se trata de um jogo de azar. Por isso, ele acaba de oferecer 135 mil euros ao primeiro político que lhe ganhar ao poker. O desafio de Amundsgård acontece num país onde o poker é ilegal. É claro que o jogo prolifera nas salas on-line ou em clubes clandestinos, muitos deles controlados pela máfia. A atração dos noruegueses pelo poker é tal que um dos campeonatos noruegueses – entendadez 13/ jan fev 14

-se, destinado apenas a noruegueses – teve de ser realizado em Dublin, na Irlanda, e mesmo assim reuniu 1.200 participantes. Não sei se, tal como na economia, se pode aplicar aqui o conceito de deslocalização. Entretanto, alguém aceitou o desafio de Amundsgård. Sim, claro. Erlend Wiborg, deputado do Partido do Progresso, vai a jogo, diz que vai a jogo. Ele diz que é um adversário fácil, mas que aceita o desafio para discutir a necessidade de legalização do poker. Este Wiborg é conhecido por algumas tiradas de mau gosto contra os emigrantes. O curinga do Partido do Progresso, a que ele pertence, é uma peça daquilo a que o Papa Francisco também chama «o capitalismo selvagem». Sabe-se que vai crescendo o número de praticantes do poker eletrónico – entenda-se, gente que vive disso – e que nesse perfume do risco crê descobrir um modo de vida. E já não provocam grande espanto notícias como aquela de que o Deutsche Bank se tornou há tempos dono de um dos maiores casinos de Las Vegas. A operação não permite perceber muito bem quem dá e quem manda neste caso, ela é sintomática de uma espécie de «Poker Fechado». O banco começou por emprestar vários milhões ao dono do projeto de construção do grande casino. Este é apanhado pela crise em 2008 e o banco empresta ainda mais milhões, muitos mais, como se subisse a parada, e acaba por ficar com o casino ao colo, depois da execução da hipoteca, esperando vendê-lo mais tarde. É claro que há uma espécie de reverso da medalha, já há torneios de poker da caridade. O tenista Rafael Nadal, de quem gosto, vai participar num, por estes dias, em Praga. À luz desta exortação apostólica, creio que não será plausível um patrocínio do Banco do Vaticano, mesmo tendo em conta a tocante benemerência. Mas não haverá motivos de espanto se, um dia destes, lermos por exemplo que um país do sul, a braços com a crise, disponibiliza cartões «Gold» para os «Amundsgårds» do «Poker Miséria». «A economia que mata» não perde nunca uma boa mão. Nota: crónica emitida na TSF, a 27 novembro de 2013, no programa «Sinais» (www.tsf.pt).


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