Revista Semana da África na UFRGS v.4

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às crenças e culturas locais. Desse modo, os malinkés são mulçumanos, mas mantêm fortemente as tradições locais (CARMO, 2008. p. 36-37). Essa mistura cultural, esse islamismo praticado e ensinado por marabus1 que usam grisgris2 e fazem sacrifícios, essa cultura malinké híbrida, típica do “entre-lugar”, perpassa toda obra de Ahmadou Kourouma. Os temas da cultura malinké são caros ao autor e percorrem sua obra, mas sua formação como escritor vai além da iniciação dentro da tradição e da educação formal. Completou seus estudos na Escola Técnica Superior de Bamako – no Mali – e ao retornar para a Costa do Marfim foi recrutado pelas forças armadas coloniais. Desde cedo, o autor manteve uma postura engajada politicamente, a exemplo disso pode-se citar sua recusa em participar de um ato de repressão contra o R.D.A3 enquanto servia pelas forças armadas, essa atitude foi considerada como indisciplina e levou o autor ao exílio pela primeira vez. Posteriormente foi mandado à Indochina no corpo de guerrilheiros senegaleses, até que em 1954 foi para França no intuito de completar sua formação. Formou-se, casou-se e não tinha pretensão de voltar à Costa do Marfim, entretanto, foi levado a isso por um compromisso moral em relação à situação política de seu país. Retorna à Costa do Marfim no ano de 1960, meses antes da independência. Entretanto, a tal independência tornou-se mais uma decepção para um Ahmadou Kourouma que tanto apoiou a luta anticolonialista; foi preso em 1963, acusado de participar de um complô contra o presidente Houphouët-Boigny, mas não mantido na prisão, pois se temia que sua mulher alertasse as autoridades francesas e provocasse algum problema diplomático. É exatamente dentro de todo esse contexto que Kourouma começou a escrever seu primeiro romance, Les soleils des indépendances, o qual publica em 1970 e, com ele, recebe o Prix de la francophonie du Québec. Em 1972, escreveu a peça Tougnantigui ou le Diseur de vérité, na qual faz referência à Houphouët-Boigny e advertido por isso. Após ter perdido o emprego por causa da advertência, foi mandado para Camarões onde passa dez anos, mudando-se para Togo onde ficou por mais dez anos. Durante esse tempo, Kourouma não publicou nenhuma peça ou romance.

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1

Feiticeiros.

2

Talismã religioso.

PERFORMANCE, TEXTO E ORALIDADE

Após vinte anos de silêncio, em 1990, Kourouma publicou seu segundo romance Monnè, outrages et défis. Em 1998, publicou En attendant le vote des bêtes sauvages, com o qual ganhou o Prix du Livre Inter. Em 2000, publicou Allah n’est pas obligé. Com este romance recebeu os prêmios Prix Renaudot e Prix Goncourt des lycéens. Faleceu em 2003; na época trabalhava numa continuação para Allah n’est pas obligé, um romance que levava o título de Quand on refuse on dit non. O livro foi editado após a sua morte. Em 2004, o Salão Internacional do Livro instituiu o prêmio Ahmadou Kourouma para premiar romances ou ensaios sobre a África sulsaariana. “Eu digo a verdade”: literatura para responder ao silêncio A motivação de Ahmadou Kourouma encontrase na história e em seus silêncios, no sofrimento de um povo, nas coisas que ele viu e viveu. O escritor marfinense foi um garimpeiro que tinha sede por testemunhar as mazelas que ele via afligir os seus e que são, até hoje, ignoradas por boa parte do mundo. A sua maneira também é responsável por produzir uma contramemória da África e dos africanos. Redigiu seu primeiro romance porque seus amigos estavam na prisão e havia uma ditadura – com seus abusos de poder, abusos econômicos e sociais – a ser denunciada. Compôs uma peça de teatro, pois havia acabado de voltar a um país que havia se transformado num reino de mentiras e novamente precisava fazer sua denúncia. É por um posicionamento político e literário, por uma vontade de memória do autor, que a obra de Kourouma está tão atrelada à História, à realidade. Romances, realidade e ficção misturam-se a tal ponto que já não é possível saber até onde vai a criação literária, até onde se trata de um relato fidedigno do que acontece sobre as terras africanas. A preocupação de Ahmadou Kourouma com a realidade tornou-se bem evidente na sua narrativa, seja pela utilização de personagens históricos reais como personagens em seus romances, seja citando e datando acontecimentos históricos verídicos e suas reais consequências. A História está escrita em sua obra. Os depoimentos e entrevistas que deu enquanto vivo fortalecem esse fato. As frases Eu digo a verdade, eu apresento somente a verdade, eu mostro Rassemblement Démocratique Africain, antiga federação de partidos políticos africanos

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