Textos Literários

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Na portaria, Samuel fuma um cigarro. Ives tenta ensinar uns acordes de Trem das Onze para seu Zé, mas o resultado é pífio. Seu Zé, de modo engraçado, conta as peripécias sexuais de um caso que teve com uma mulher da rua, mas Ives não acredita (“... mas oito assim, direto? Que pilha é essa...”). Passo por eles, os cumprimento e subo as escadas lentamente. Entro em meu quarto e sento no computador para escrever um pouco. O cursor pisca sem que eu digite qualquer palavra. Me levanto, tomo um café. Sento no computador, leio o que escrevi e me levanto. Me deito e olho para o teto. Me levanto novamente, sento na cadeira, e escrevo: “Era uma noite fria...”. Tomo um gole de café. Me levanto e vou até um dicionário. Acho a palavra, me sento novamente e completo, batendo nas teclas com cuidado, como se escrevesse algo de grande importância: “Era uma noite fria e tempestuosa”. Ouço um carro se aproximando. Pela janela, eu vejo: é o Rodolfo, que traz Maria de volta. Ela entra no prédio, a ouço subir as escadas. Vou até a porta e, na hora em que ela chega, abro. Olho pra ela e peço: “sal”. Ela me olha esquisito: “Sal? Agora?”. “É, tô precisando. Eu gosto de cozinhar assim, de noite...”. Maria sorri, entra no apartamento e volta. Me entrega um saquinho de tecido amarrado com uma fita delicada. Deito e coloco o saquinho em minha cabeceira, com a certeza de que ele nunca será consumido no meio da alimentação comum.

Na portaria, Seu Zé toca os primeiros acordes de Trem das Onze, com a ajuda de Ives. Chamo ele em um lugar reservado, e confesso que estou apaixonado. “Por quem?”, ele pergunta. “Maria”, eu respondo. Ives se espanta e, depois de uma longa pausa, diz: “eu também”.

É uma reunião com um editor. Ele tem o meu livro, Edifício Solidão, 300 páginas encadernadas, em cima de sua mesa. É branco, um pouco gordo, usa terno e gravata. Me explica os motivos pelos quais não vai publicar meu livro. Diz que se trata de material muito bem escrito, de alta profundidade emocional, mas acha que é pouco vendável, muito pessoal e descritivo demais. Depois do papo furado de sempre, ele me olha nos olhos e pergunta: “Aquela 8


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