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ANO 7 - Nº 83 AGOSTO/2014
www.jornalfalandodedanca.com.br ISSN 2237-468X
Comportamento
Dar ou não dar,
na dança de salão profissional Meninas crescem querendo dar certo na dança, seja de salão, jazz ou ballet. Mas cedo percebem que dar certo na dança é tarefa das mais difíceis. Mesmo treinando muita técnica e tendo talento nato
Meninas desde cedo aprendem ballet ou jazz e são aplaudidas por seus pais quando pequeninas dançam. Meninos Marco Antonio Perna* ganham uma bola quando parecem estar dançando muito. Meninas crescem querendo dar certo na dança, seja de salão, jazz ou ballet. Mas cedo percebem que dar certo na dança é tarefa das mais difíceis. Mesmo treinando muita técnica e tendo talento nato. No mês de julho de 2014 a dança de salão brasileira foi sacudida com uma grave denúncia. Também foi o mês que assisti ao seriado australiano “Dance Academy”. Seriado juvenil passado na principal academia de ballet de Sidney, onde são formados bailarinos para as mais diversas companhias de ballet. Em vários episódios vi situações retratadas em filmes de dança como “Cisne Negro” e “Sob a Luz da Fama”, sobre os quais escrevi críticas publicadas neste jornal (Falando de Dança). No seriado foi mostrada exaustivamente a competição entre as alunas (e alunos) e o nível doentio a que essa competição chega, quando uma protagonista e professora de ballet força uma aluna talentosa até que coluna desta literalmente racha (lesão semelhante a do Neymar, na Copa do Mundo). A aluna esconde a dor e o sofrimento e continua na busca de seu estrelato. Não importa o sangue nas sapatilhas e as dores pelo corpo. O que importa é entrar para a prestigiada companhia de ballet. Mas essa maneira de agir quase a leva a perder os movimentos das pernas. A menina não soube discernir o momento de parar de mentir a todos e, principalmente, a si mesma, e admitir que estava gravemente ferida. Não só a professora invejosa criava situações, mas várias colegas estavam prontas para detonar sua carreira, das mais variadas formas. Num momento, era o sumiço ou destruição de um figurino, no outro, uma mentira para desestabilizar. Descrevendo assim, parece um péssimo seriado. Mas não é. O pior é perceber que, na maioria dos filmes de dança, de alguma maneira essa crença, de que se deva engolir dor e qualquer outra coisa para se tornar uma Top no mundo da dança, é
uma “invariável” constante. Por que isso? Por que tantos filmes abordam isso? Por uma razão muito simples: a realidade é igual ou pior em grande parte do universo profissional da dança. No recente escândalo no meio profissional da lambada zouk, um casal muito famoso se desfez sob acusações de abuso e desrespeito por parte do “cavalheiro”. A “dama” proferiu acusações gravíssimas em rede social e ainda deixou um grande mal-entendido, que levava o leitor a imaginar que sua grave lesão poderia ser culpa do partner. Analisando friamente os fatos, não podemos acusar nem acreditar piamente em nenhuma das partes. Mas ficam evidentes os problemas que existem no meio profissional do zouk. Com o exemplo do seriado “Dance Academy” podemos ter a certeza que em TODAS as danças esse tipo de coisa deve ocorrer em menor ou maior grau. Não é privilégio ou demérito de nossa dança. Apenas está sendo colocado no nosso ventilador. Temos que aproveitar essa denúncia para abrir a mente de nossos profissionais. Pois a parte principal a ser aprendida com esse escândalo não é a denúncia em si, mas o problema que ocorreu com essa dançarina profissional por não procurar tratamento correto após sofrer a lesão. Segundo a própria dançarina, ela foi proibida de dançar definitivamente devido ao agravamento da lesão em sua coluna. Quando sofreu a lesão, após um cambré mal feito por um dançarino desconhecido de baile (dito por ela), ela buscou apenas fisioterapia e aguentou a dor para se manter no “estrelato” do zouk. Depois de confirmada sua impossibilidade de dançar novamente, confessou que sofreu abusos e humilhações por parte de seu partner. Até que ponto pode-se ir para dar certo na dança profissional? Seja ela qual for. Alguns diriam que aguentar um partner que abusa e humilha é parecido com uma mulher casada que sofre agressões do marido e se mantém ao seu lado, mesmo apanhando. Mas e o caso de outras danças, onde o problema não é o partner e, sim, as concorrentes? Ou, mesmo sem ter concorrentes, o problema é o próprio profissional querendo a glória? Aguentar o partner canalha é a mesma coisa que fazer tudo para
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entrar numa companhia de ballet. Aguentar dor e humilhação é apenas a ponta do iceberg desse mundo competitivo da dança profissional. Afinal, no zouk e em todas as danças de salão, se a partner bobear, o partner a troca por uma das diversas novas meninas que surgem todos os meses. E sabemos que arranjar cavalheiro é muito difícil. Solução para o problema talvez não exista, mas com certeza é possível minimizar a ocorrência dele. Apoio dos pais, colegas de dança conversando e aconselhando. Acompanhamento psicológico para profissionais de dança. Enfim, são diversos caminhos para minimizar os “abusos”. Outro ponto importante citado na denúncia foi em relação aos cambrés. Foi relatado, ainda na rede social, nos comentários abaixo da denúncia, que um dançarino qualquer de baile fez um cambré sem a técnica correta e essa seria a razão real da lesão. A falta de técnica provavelmente indica um aprendizado ruim, a partir de algum professor ruim. Porém, rapidamente, os debatedores da rede passaram a “crucificar” o cambré e a lambada zouk. Mas cambré existe em outras danças, inclusive no ballet. Mais lenha na fogueira: isso dava a entender que o ballet é importante para o aprendizado de cambré. Assim, encontrei e li o excelente artigo da bailarina Izabela Lucchese Gavioli, “Cuidados com a coluna na dança de salão”, publicado na revista online Dança em Pauta e, em seguida, seu outro artigo, “Zouk, cambré e dor na coluna”, que contou, na área de comentários, com excelentes colocações de Luís Florião, do ponto de vista da nossa dança de salão em contraponto à visão de bailarina clássica de Izabela.
Vale a pena lê-los. A conclusão é de que cada dança tem suas próprias soluções para evitar lesões. Algumas podem ser coincidentes e outras, não. Nossa Lambada Zouk tem excelentes profissionais, assim como nossa dança de salão como um todo. O principal é aprender com profissionais sérios, que estudem técnica e fisiologia e saibam perfeitamente o que estão fazendo. Hum!!! Parece ótimo, não? O problema é saber como os aspirantes a dançarinos vão saber quem são os profissionais qualificados quando procuram uma academia. Para isso é importante certificação desses profissionais por órgão competente, formalização das nossas danças para acabar com essa política de inventar passos novos para atrair alunos e usar nomes diferentes para eles. O Lindy Hop, por exemplo, é a mesma dança em todo lugar do mundo. O Tango Argentino também. Nossas danças de salão devem ser organizadas para, pelo menos, diminuir a incidência de casos como o denunciado. Pois esse é o que soubemos agora, mas com certeza existem muitos mais podres do que nossa vã filosofia possa imaginar. _______ Marco Antonio Perna é analista de sistemas, pesquisador, colecionador de filmes de dança, autor de livros sobre dança de salão (dentre os quais Samba de Gafieira, a História da Dança de Salão Brasileira) e organizador da coletânea “200 anos da dança de salão no Brasil”. Site: www.marcoantonioperna.com.br Blog: www.dancadesalao.com/agenda (*) Excepcionalmente, deixamos para publicar na ed. 84 a continuação do artigo publicado na edição de julho (ed 82).