Revista Postais 02 - 2014

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Fátima Maria de Oliveira

1992, p. 119). A abertura para o outro, pela via da correspondência, no caso de artistas e intelectuais, é também um meio de voltar-se para o mundo e fazer-se visível na esfera pública. Escrever cartas é mostrar-se ao destinatário, que está ao mesmo tempo sendo “visto” pelo remetente, o que permite uma forma de presença (física, inclusive) muito especial (FOUCAULT, 1992, p.150). As cartas de Cruz e Sousa, ainda que em quantidade reduzida, constituem atos biográficos, cujo interesse converge principalmente para o empenho com que o jovem poeta negro da província busca produzir-se a si mesmo como artista e cidadão no recente sistema político republicano instaurado no Brasil, após séculos de domínio do sistema monárquico e de sua obra de escravização dos negros. As cartas de Cruz e Sousa, datadas entre os anos de 1896 e 1898, tornam-se um espaço privilegiado no qual caem as máscaras de toda a euforia em torno dos resultados da política abolicionista, comemorada então como o principal acontecimento do fim do século XIX. O próprio Cruz e Sousa, na sua primeira tentativa de fixar-se na Corte, para onde viajou em 1888, em uma carta remetida do Rio de Janeiro, no mês de junho desse mesmo ano, ao amigo Germano Wendhausen, refere-se a Abolição como “libertação do país” e, não apenas como libertação dos negros do processo histórico e econômico de escravidão. Dá notícias de sua alegria e entusiasmo pelos quais se sente física e emocionalmente afetado: Cá estou nesta grande capital que cada vez mais se distingue pelo movimento e atividade mercantil de que dispõe em alto grau. [...] Aqui, em alguns arrebaldes, também continuam, com bastante brilho, diferentes festejos em homenagem à libertação do país. Até 15 ainda assisti algumas manifestações de regozijo ao triunfante e heróico acontecimento que ainda me faz pulsar de alegria o coração e o cérebro (CRUZ E SOUSA, 2000, p. 821).

A escrita epistolar é uma “[...]prática eminentemente relacional e, no caso, das cartas pessoais, um espaço de sociabilidade privilegiado para o estreitamento (ou rompimento) de vínculos entre indivíduos e grupos[...]” (GOMES, 2004, p. 19). Através dessa prática, 144


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