Túlio Stafuzza - O Livro dos Pássaros

tulio_miolo.indd 1

5/3/18 10:31 PM

túlio stafuzza veio ao mundo em São José do Rio Preto em abril de 1988. Formado em Filosofia, tem pés que sempre o levam à música ou à beira d’água. Aprendeu com Mario Quintana que o poema é uma estranha máscara mais verdadeira que a própria face: Temos um amigo chamado Túlio. Túlio é bom de cutucar estrelas. Tem as mãos grandes e fortes, repletas de mansidão para com tudo o que existe. É um Carlitos muito grande.

Túlio foi trazido por uma cascata. Túlio veio de terras onde existem borboletas do tamanho de crianças. — Alexandre Magno Jardim Pimenta

tulio_miolo.indd 2

5/3/18 10:31 PM

Livro dos Pássaros túlio stafuzza fotografias de nádia maria

outono [hemisfério sul] editora Urutau primeira edição 2018

tulio_miolo.indd 3

5/3/18 10:31 PM

editora Urutau rua adolpho arruda, 41 jardim das laranjeiras 12910 455 bragança paulista-sp brasil américa do sul Tel. [ 55 11] 94859 2426 contato@editoraurutau.com.br www.editoraurutau.com.br [editores] ana elisa de arruda penteado • tiago fabris rendelli • wladimir vaz

[revisão] beatriz regina guimarães barboza ©stafuzza & maria, 2018.

dados internacionais de catalogação na publicação (cip) de acordo com ISBD stafuzza, túlio S779l livro dos pássaros | túlio stafuzza & fotografia de nádia maria — bragança paulista-sp: editora urutau, 2018. 74 p.; 14x19,5 cm isbn: 978-85-69433-85-9

1. literatura brasileira. 2. poesia. I. maria, nádia. II. título. cdd: 869.1

cdu: 821.134.3(81)-1 elaborado por vagner rodolfo da silva — crb-8/9410 índice para catálogo sistemático: 1. literatura brasileira : poema 869.1 2. literatura : poesia, poemas 821.134.3(81)-1

tulio_miolo.indd 4

5/3/18 10:31 PM

sumário [7] Prefácio

por Augusto Meneghin [11] Autorretrato feito um rio [13] Hora outra [14] São Tomé [15] Ainda a chuva [16] Daqui se vê o zênite [17] Alegria [18] O cacto amanhece [20] Poema de esperança [21] Presença [22] Sobre os trilhos [23] Ramo de oliveira [24] Eu Sol [25] Emersão [26] João [28] Peito andaluz [29] Clamor [30] O riso triste [31] Alguma astrologia [33] Primeiro balé [48] Suspiros [49] Jardinagem [51] Silêncio [52] Trabalho de poeta [54] Luzir [55] A diminuta estrela que venceu a morte [57] O mar sempre avança contra a pedra [59] Último dilúvio [61] Oração matutina [62] Para onde olharão os elefantes [63] Estudo sobre a memória [64] Despedida [65] Elegia dos peixes [67] Paisagem [69] Posfácio

por Rafael Pellegrino

tulio_miolo.indd 5

5/3/18 10:31 PM

6

tulio_miolo.indd 6

5/3/18 10:31 PM

PREFÁCIO

por Augusto Meneghin

O desprendimento é o lugar da poesia porque a harmonia dos passos ressoantes e iluminadores do estrangeiro inflama a travessia obscura dos que seguem num canto em escuta. A travessia é obscura porque é somente seguindo que suas almas iluminam-se no azul.

— Heidegger

Quando um poeta inicia sua primeira obra como o autorretrato feito um rio, pode-se esperar que o desdobramento de suas águas caminhe para a inundação ou para a secura de um leito. Em qualquer caso, se a poesia lhe é essencial, se ela lhe é próxima, a alteração da paisagem exterior preencherá cada aposento de sua obra, revitalizando o já presente. Ele, embora estrangeiro em sua travessia, não está abatido pela relação dentro-fora, porque sua atitude é essencialmente abertura.

A união ou a conjunção dos contrários talvez seja a mais identificável das operações que a poesia realiza através dos desdobramentos da linguagem. Quando Túlio nos diz: “Irredutível e amplo, agora/ já não sou muito mais que tudo”, realiza por uma oposição a superação dos elementos contraditórios. A proximidade, o que está à mão é, neste caso, o mais amplo e

7

tulio_miolo.indd 7

5/3/18 10:31 PM

abrangente. A ausência de um lírio branco é o que mais se aproxima do pertencimento da origem.

Se esta é uma obra musical, em seu sentido antigo, ou seja, μουσική τέχνη (musiké téchne), então trata-se de uma poesia incomum para nosso tempo, embora ela seja plenamente atravessada por ele em um movimento contrário. Incomum porque nesta poesia não há idolatria alguma ao espírito do tempo, mas paira o essencial mistério do silêncio e da eternidade, a sempre presente inquietude de quem assume a posição de escuta. Não se trata de uma estruturação metafísica em versos, como se uma fé religiosa já conhecida e ultrapassada tentasse se impor ao leitor de um mundo sem Deus, mas talvez de uma poesia em que o ato físico de escrever é a própria interrogação e o interrogado. Estamos diante da conaturalidade, ou o conhecer sendo a própria coisa. Ao ler estes poemas, podemos sentir que se trata de uma caminhada sempre nova pelos mesmos lugares – o estado de recepção mais purificado: ver cada dia como um nascimento.

“Escrevendo pedra posso alcançar o mais leve da palavra”, o que seria esta afirmação senão a confirmação da materialidade da palavra, de seu peso e propriedade? Com isso, compreende-se que os grandes pesos sejam sempre as palavras mais diáfanas e abstratas: Deus, alma, imortalidade, infinito etc., porque não se encontram próximas e íntimas, mas habitam no oco ignorado de cada um. Desprender a nós, os estrangeiros e exilados, é um dos efeitos do rito da escritura. Fazer com que esses antigos deuses e deusas– a caixa de mil imagens – seja desalojada de sua prisão secular para vir até nós, para que caminhem como um de nós e nos alimentem e sorvam. Uma poesia que não traduz o clamor desta fenda paira sempre nos

8

tulio_miolo.indd 8

5/3/18 10:31 PM

limites mais externos da vida. Ela pode ser lida e apreciada, mas não promove nenhum descobrimento.

A poesia de Túlio Stafuzza promove a descoberta de um tempo em que a criança, tantas vezes simbolizada como o espírito divino e livre, era parte essencial da vida comunitária, e não um objeto terceirizado, destinado a alimentar uma ideia de progresso. Pode soar, por esse motivo, um pouco ingênua aos que procuram na poesia uma justificativa para suas próprias ideias. Complementando o já dito, ela é uma caminhada, por vezes circular ou esférica, em que “A memória é cama vazia./ (Algo a ver com o pássaro que esvanesce)”. Estamos, portanto, no domínio de uma jardinagem labiríntica, onde os acidentes naturais são incorporados à harmonia final.

Embora não se possa falar objetivamente sobre os resultados de um livro sem excluir tudo aquilo que ele nos deixa não-dito, parece-me que a leveza de um espírito livre se desprende dessas páginas, porque afinal “O mar sempre avança contra a pedra”, esta dura pedra chamada tempo, chamada mundo, chamada corpo. E sem este avanço repetitivo que busca nos dissolver, qual início seria possível? Como ele mesmo nos diz: “Romper o corpo em mil pedaços é o começo da alegria.”

9

tulio_miolo.indd 9

5/3/18 10:31 PM

Livro dos pássaros

Pois, com relação a coisas tão grandes quanto as aqui consideradas, independente de sua opinião sobre elas, o desprezo deve ser um erro. Em verdade o desprezo deve ser uma ilusão. Devemos invocar o tipo mais amplo e elevado de imaginação; a imaginação capaz de ver o que está logo ali.

— G. K. Chesterton

10

tulio_miolo.indd 10

5/3/18 10:31 PM

Autorretrato feito um rio

Havia andorinhas nas igrejas de minha infância.

Foi aí, meu bom Deus, que aprendi a me desviar em outras horas e elipses. É que havia um ovo por se abrir e por abri-lo em seu reverso encontrei do vento o perfume e da rosa o filho infinito.

Não se pode gastar nem a água nem o deserto, mas se pode consumir o silêncio: submergir até seu fim e extrair qual pérola a derradeira palavra que ao ser pronunciada fez girar, na grande festa, a ciranda dos meninos e dos peixes.

Havia andorinhas nas igrejas de minha infância.

Contudo hoje sou eu a voar

11

tulio_miolo.indd 11

5/3/18 10:31 PM

nos olhos assustados do grande pássaro da noite.

Como é você quem acende os olhos das estrelas.

E não há mais ninguém além de nós a dar laços, nós e costurar as correntezas desses dois grandes rios, para que centenas de tigres fizessem da pele a mais antiga morada da alma.

Havia miséria em mim.

E por acaso existe alegria maior?

12

tulio_miolo.indd 12

5/3/18 10:31 PM

Hora outra

Não tenho mais aquele lírio branco, tampouco aquele barco prenhe de horizontes.

Venho buscando o sorriso com o qual habitarei a minha próxima morte.

E devo confessar que ainda não conheço o fruto desta hora.

Feito pedra opaca permaneço estancado no seio da tarde.

Irredutível e amplo, agora já não sou muito mais que tudo.

13

tulio_miolo.indd 13

5/3/18 10:31 PM

São Tomé

Pergunte a Cristo o que foi mais difícil: arcar a cruz ou multiplicar os peixes?

Ele lhe responderá, seja o que for, admirando as próprias mãos fatigadas pelo pulsar da terra.

De certo, contará uma bela parábola, sem, entretanto, desviar o olhar dos antigos calos e das ruidosas cicatrizes – conquistados no ofício da carpintaria, infligidas nos tempos da Paixão.

A memória se agarra ao corpo como o trovão ao raio.

Imagine o espanto de Tomé, sanada a desconfiança da ressurreição, ao perceber que nem mesmo o firmamento redime os estigmas aqui apreendidos, que a eternidade não escapa das narrativas terrenas, que mesmo o céu possui algo do sal da terra.

14

tulio_miolo.indd 14

5/3/18 10:31 PM

Ainda a chuva

Por mais que as pedras expirem, novamente, aquele antigo frescor de eternidade recém-descoberta; por mais que se fechem os céus, o sol e as estrelas para que possamos reaprender algo sobre a distância que a tudo enovela; ainda assim a chuva escorre, intangível, entre as minhas minguantes palavras.

15

tulio_miolo.indd 15

5/3/18 10:31 PM

Daqui se vê o zênite

Não acreditaria num mar que não fosse sal também.

Crescer, quase sempre, acontece em círculos de sonhos: o rio, o peixe, a mesa e a visita que não tarda a aparecer.

O antes que agora é o novo.

Há, sim, outros laços maiores, mas, mesmo assim, a criança é sempre a mesma que perdida vai pela primavera, como fantasia que já vai nascer.

Diz o sábio que é a sede quem solfeja o cicio da fonte.

A esperança é a última ainda a acreditar no presente.

16

tulio_miolo.indd 16

5/3/18 10:31 PM

Alegria

O segredo das flores é ter as pétalas tristes. É pela chuva que se resile o outono, e pela luz que se abandonam as coisas vivas.

Assim, nada me explica melhor do que o ocaso.

Para que as crianças mortas também pudessem brincar nos jardins, a manhã nasceu para sempre da centelha de uma estrela que se apagou.

17

tulio_miolo.indd 17

5/3/18 10:31 PM

O cacto amanhece

Por que insistir se o horizonte é sempre o mesmo?

A noite avança como um diabo solto de hálito fresco.

Arbusto de fome, a terra já não frutifica.

Esta geração morrerá sem conhecer seus órfãos.

Então por que não choras?

Cantas tua mudez sem trégua, com a mesma voz dos poetas mortos.

E insistes em mais um sol, mais um dia, mesmo horizonte, não há segredos entre os espinhos.

Nada pegas nas mãos que não seja forte o bastante

18

tulio_miolo.indd 18

5/3/18 10:31 PM

para não se quebrar.

Nada cativas com os olhos que não cheire deserto e misericórdia.

Estás vivo? Morto?

Serás um anjo de Rilke?

E algo de irresoluto permanece entre a madrugada branca e o delírio armado de duras penas. Árvore sem verbo, no entanto, persistes: indômito, impassível, pleno de solidões antigas.

19

tulio_miolo.indd 19

5/3/18 10:31 PM

Poema de esperança à infância que amo ver crescer em ti, querida Luna

Sim, um fulgurante riso hoje transborda do cancro branco de meu peito.

A menina escondida me ensinou que somente quando se escreve para aqueles que ainda não sabem ler é que se conhece o segredo das palavras.

A poesia cavalga na crina do vento.

Quantas cores estarão contidas em sua alegria humilde e ampla?

Atravessaremos o arco do sol em busca de nova vida, contaremos a todos nossas proezas e aventuras (com a vantajosa certeza de não sermos levados a sério), dançaremos, dançaremos na luz que é morada do tempo e talvez alcançaremos a lua para provar que somos grandes.

20

tulio_miolo.indd 20

5/3/18 10:31 PM

Presença

Quantos mares se escondem entre as pontas dos dedos e a palma da mão?

21

tulio_miolo.indd 21

5/3/18 10:31 PM

Sobre os trilhos

I

O trem adivinha seu destino como um pêndulo manco no horizonte.

Marca o compasso ponto a ponto, inebria-se e cai rigidamente numa amplidão sem-tempo feita de ritmo branco como o músculo do sonho.

II

Se os trilhos são escadas para o ocaso, cair é aranhar-se no céu. É preciso ter uma fita azul no peito.

III

Equivocar o caminho é delírio poético.

22

tulio_miolo.indd 22

5/3/18 10:31 PM

Ramo de oliveira

Quem entre nós, sem poesia, poderá responder se há fé na pedra?

A vida, talvez capricho de uma existência que queria se ver, e nisso se perde para sempre no medo deste grande espelho.

Afinal, o azul é um dom do mar, um dom dos céus.

23

tulio_miolo.indd 23

5/3/18 10:31 PM

Eu Sol

Perceber que a beleza é irresponsável como solitária árvore sob um céu de agosto.

Saber o vento, a chuva que na tarde cai e parece não mais parar, brincando de saudades e devolvendo a imensidão ao corpo.

Ouvir de alguma pedra os medos e as fraquezas do tempo, que em nosso amor segue sempre tão assustado quanto perfume abandonado em escuro jardim.

E depois, sentar, pacientemente, sobre os saberes do mundo.

Chorar e recobrar a órbita perdida, o centro e o ponto nulo daquilo tudo que eu Sol.

24

tulio_miolo.indd 24

5/3/18 10:31 PM

Emersão

Um salto, um rodopio, um passo: não mais que isso para o universo se abrir em novos pássaros.

25

tulio_miolo.indd 25

5/3/18 10:31 PM

João

O barro cansado de viver no açude disse: Me acude!

Quero virar bola de gude1

E do barro João fez sua morada, Deus sua eterna partida.

Por mais que agora tenhas todo o céu, e o abismo não passe de palavra profunda e vazia, ainda assim, João, é imperioso retornar à terra e nela alçar um rutilo lar.

Andar, viajar, demudar e, depois, voltar. O que está em cima e o que está em baixo. A fé o pássaro traz na ponta das asas, não nas paredes do ninho.

A ave tem nome de homem, e sobrenome de origens.

1

Autor desconhecido.

26

tulio_miolo.indd 26

5/3/18 10:31 PM

O homem não tem mais nome, também não tem mais fim.

E do barro João fez sua morada, Deus sua eterna partida.

27

tulio_miolo.indd 27

5/3/18 10:31 PM

Peito andaluz

Ao queridinho do Whitman

Passos como migalhas, olhos como poemas não escritos, caminhava, pois raiz não era.

Cantava a antiga canção que sua terra lhe havia ensinado que sua terra havia esquecido.

Deitou-se sob a chuva e sentiu-se eterno, como uma gôndola de lágrimas cujo destino não está no testamento.

Assombro bom de paixão juvenil, odor de laranjeiras floridas, diáfana guitarra, mel de oliveira, do punho do poeta nascerá uma borboleta.

Aqui, entre as dores de um mundo que sequer ouviu seu pranto, sussurremos: para não assustar

o Amor que sereno em seu peito, ainda hoje e sempre, repousa.

28

tulio_miolo.indd 28

5/3/18 10:31 PM

Clamor

Como escrever a palavra silêncio para que nela seja possível alcançar um eco indizível de origens?

A terra que palpita partida, o oceano que vela os laços de suas solitárias chuvas, o sol e suas profecias vacilantes...

Apenas em completa quietude, o homem pode habitar esta morada.

A palavra areia parece não seguir o vento até que eu diga: “soprem as trombetas” e o nada se levante outra vez, como rocio sobre a alma, ainda tão cansada de tudo aberta, porém, ao mundo e algo de mar sobre a língua.

29

tulio_miolo.indd 29

5/3/18 10:31 PM

O riso triste

Vi colinas crescendo diante de meus olhos humanos.

Vi uma luz entristecida principiando o canto da primavera tardia: recomeçar o incêndio recolher as gotas Mas não me lembro quando foi que aprendi a rir.

30

tulio_miolo.indd 30

5/3/18 10:31 PM

Alguma astrologia

Alexandre olha as estrelas caminha para o oriente

No princípio, Deus jogou búzios com pedras de luz – leu a nossa sorte.

Leu que não tem fim o amor posto que sempre morto, posto que sempre vivo.

Em Sua Sapientíssima misericórdia permitiu que as pedras ficassem expostas executando a hora sem tempo, maturando segredos alquímicos em seu desvendado ventre, para que de noite pudéssemos admirar Sua Grandessíssima existência embaraçada com nossa própria sina e pequenez.

Por isso, todo aquele que, sendo noite ou manhã, ajoelhar-se perante a estrela

31

tulio_miolo.indd 31

5/3/18 10:31 PM

mais brilhante, mais bela, orando para que ela talhe seu rosto em nossa alma, com certeza será meu amigo.

32

tulio_miolo.indd 32

5/3/18 10:31 PM

Primeiro balé

A bailarina era plena graça no auge de seus poucos anos: rodopiava para o adverso enquanto, com seriedade, sorria.

A perna direita, toda solícita, insistia em fazer o passo da esquerda.

O chapéu, brincalhão por natureza, fugia da pequena cabeça para no palco docemente repousar...

Enfim, ensinava-nos que o riso claudica a forma e o encanto a todos pertence.

Atrás dela, a morte.

A morte para além da tristeza.

33

tulio_miolo.indd 33

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 34

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 35

5/3/18 10:31 PM

36

tulio_miolo.indd 36

5/3/18 10:31 PM

37

tulio_miolo.indd 37

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 38

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 39

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 40

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 41

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 42

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 43

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 44

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 45

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 46

5/3/18 10:31 PM

tulio_miolo.indd 47

5/3/18 10:31 PM

Suspiros

Bastou olhar meu próprio punho para afastar qualquer dúvida de que viemos mesmo do barro.

Um cavalo louco se lançou contra o mar.

Seria o infinito mais um de nossos tantos medos?

Escrevendo pedra alcanço o mais leve da palavra.

A luz nasceu com os olhos.

Somente ao pássaro coube saber da solidão do céu.

O concreto permanece áspero demais para repousar a sutileza do orvalho.

48

tulio_miolo.indd 48

5/3/18 10:31 PM

Jardinagem

O pacato jardineiro aprendeu a quietude dos lírios e o cantar dos sabiás. A luzir com o sol, a fome com as pombas portuguesas.

O perfume da lua conheceu com a dama-da-noite, e a tempestade, com a chuva.

Escrever lhe ensinou os insetos, prosa com as formigas.

Amou uma mulher, a mais bonita: nascer com o orvalho dormir com o ocaso.

Não tem terra para plantar, nem para chamar de lar.

No mar, já residiu, onde plantou melancias, orquídeas e tulipas.

Hoje em dia, pobre louco,

49

tulio_miolo.indd 49

5/3/18 10:31 PM

vaga por aí dizendo que seu jardim é um ovo por se abrir, tão bonito, mas tão bonito, que nunca ninguém vai achar.

50

tulio_miolo.indd 50

5/3/18 10:31 PM

Silêncio

Um silêncio para além das pedras e do ocaso.

Quente e brando, um silêncio de vergeis, de ternura ferido, que cabe inteiramente neste poema.

Um silêncio feito de espera, esperança sufocada, como mãos que tateiam e tremulam frente à amplidão da hora nua.

51

tulio_miolo.indd 51

5/3/18 10:31 PM

Trabalho de poeta

Abrir com as próprias mãos os olhos da manhã para que os pássaros possam ser vistos, e as janelas se ascendam para outras luzes.

Procurar embaixo das mangueiras as extraviadas cartas enviadas a si mesmo, e deixar a chuva descer sobre os guarda-chuvas e a terra amarga.

Não incomodar mesmo a chuva, deixar que ela cante sua profecia de água e assim acalante os nascentes pulsos do poeta.

Escrever a palavra amor e buscar compreender o que se escreve.

52

tulio_miolo.indd 52

5/3/18 10:31 PM

Envelhecer podando o pequeno jardim, controlando as obstinadas formigas e outras pragas.

Consentir que a morte seja contínua, como a chuva, e ler, em cada lembrança, a presença alegre de um futuro.

53

tulio_miolo.indd 53

5/3/18 10:31 PM

Luzir

A paz em corredeira desprende-se alegre de teus longos dedos, como sutil despertar de olhos abertos para o sonho.

Com os pés na água, tu, menina, floresces nas mãos: acalanto para um Deus que ama.

54

tulio_miolo.indd 54

5/3/18 10:31 PM

A diminuta estrela que venceu a morte

O último inimigo a ser vencido será a morte (1COR 15, 26)

Mirar-te, diminuta estrela, É ter nas mãos um milagre.

Longas ventanias encompridam a noite neste momento em que olhas para mim, mínima estrela, proferindo da distância unidade nova para meus velhos cacos.

Ter nas mãos um milagre, pequenina estrela, é ter na alma uma alegria.

E guias de um só lugar todos os caminhos, pois perpetuou-se um eco de luz de sua memória bailarina.

55

tulio_miolo.indd 55

5/3/18 10:31 PM

Ter na alma uma alegria, é ter o corpo em dança.

Talvez esse seja o velho segredo do fogo que não se apaga no infinito.

56

tulio_miolo.indd 56

5/3/18 10:31 PM

O mar sempre avança contra a pedra

Sim. Aberto, nenhum hiato.

Ação em oscilação.

Feroz e descoberto fere, avança...

A rocha cederá. vai ruir, perecer, cair.

Não mais ouviremos os sons do porvir.

Só cantará muda a maré inconsútil.

A água é unânime e brilhará.

De novo a vida volta ao princípio: e se desfaz, em movimento, se refaz.

Não mais pedra.

Nunca mais.

A água é o que há entre eu e você

57

tulio_miolo.indd 57

5/3/18 10:31 PM

quando não há mais eu e você.

58

tulio_miolo.indd 58

5/3/18 10:31 PM

Último dilúvio

Apenas algumas palavras sobreviveram ao meu último dilúvio.

Chovia muito naqueles dias, tanto que nem me lembro se carregava nas mãos um punhado de terra pulsante, ou se era meu próprio coração que convertia o silêncio em alguma nova oração.

Não pedi às pombas um ramo de oliveira, mas que piassem compulsivamente até romperem aquela ternura branca da chuva.

Pois era preciso começar tudo de novo: dizer aqui acaba o dia aqui começa a noite.

Pescar novos peixes e inventar outras canções, com aquelas poucas palavras.

E, apesar de tanta água, inventar a certeza de que sempre

59

tulio_miolo.indd 59

5/3/18 10:31 PM

carregaremos a sede como bem mais precioso.

E a coragem de desfazer as próprias pálpebras em dias de céu desnudo.

60

tulio_miolo.indd 60

5/3/18 10:31 PM

Oração matutina

Seus olhos se abriram como fósforo ao fogo.

Era dia e devolvias à manhã aquela matéria translúcida.

O ar em dança chama-se vento, A pedra em dança chama-se tempo.

Dai-nos forças, oh montes, para estendermos nosso mistério ao infinito: até que a primitiva lágrima estenda raízes em nossa face.

61

tulio_miolo.indd 61

5/3/18 10:31 PM

Para onde olharão os elefantes

Para onde olharão os elefantes quando as primeiras estrelas chegarem?

Os anjos se esconderam dentro dos sinos das igrejas a vigiar os grandes morros taciturnos e as pequenas cidades do interior, nas quais, aliás, os Anjos não têm lá muita coisa para fazer...

A não ser, talvez, andar por aí e contar algumas histórias às senhoras em espera no alpendre e aos homens bebidos nos bares, que depois as contarão para seus neto e assim se construirá a memória da família – porque, afinal, ninguém fotografou a velha tia de pernas doloridas que rasgava todos os álbuns de fotografia por não reconhecer mais ninguém.

E devo pensar que sempre fica o mistério, sempre fica o mar reverberando todos os sonhos, e as primeiras estrelas que procuram os elefantes.

62

tulio_miolo.indd 62

5/3/18 10:31 PM

Estudo sobre a memória

Seu corpo de maresias quentes seus olhos de negro relâmpago minha espera de nuvem pecadora: está na pele.

A memória é cama vazia.

(Algo a ver com o pássaro que esvanece)

63

tulio_miolo.indd 63

5/3/18 10:31 PM

Despedida

Dedico a ti essas horas de tristeza e esperanças.

A ti...

Que me ensinaste a dizer adeus, naquele pequeno acaso onde a dor reside.

64

tulio_miolo.indd 64

5/3/18 10:31 PM

Elegia dos peixes

Dos aquários já não nascem mais canções.

O silêncio parece ter se ocultado em sua robusta solidão.

O tempo não foi criado de esperas.

Não vês que os peixes partilham a mudez das flores, dos astros?

Os pássaros austrais desafiam

65

tulio_miolo.indd 65

5/3/18 10:31 PM

a primavera a contar a mesma história. É ainda imperioso coligir a porção mínima de todas as coisas: romper o corpo em mil pedaços é o começo da alegria.

66

tulio_miolo.indd 66

5/3/18 10:31 PM

Paisagem

Sonhei que me deitava sob a chuva.

De lá, ouvia-se um distinto enleio e a saudade de pertencer a todas as coisas.

Uma luz corria limpa, firme e solta, não era a morte, que já não existia, mas a solidão, que sempre fez de mim esse rebanho livre e infindo.

67

tulio_miolo.indd 67

5/3/18 10:31 PM

68

tulio_miolo.indd 68

5/3/18 10:31 PM

Posfácio

por Rafael Pellegrino

Nunca é fácil apresentar, depois de percorrido, o destrilhar-se da poesia. Ela, que, brotando de algum âmago impronunciável, assume um quê de coisa que se acha na estrada. Há nela, como uma pedra ou um riacho que se encontra pelo caminho, algo de acontecimento, cujo próprio modo de estar ali, por singelo que seja, toma posse da caminhada por inteiro. Não há espaço para acréscimos onde o todo solenemente pousa e, assim, todo o trabalho de escrever um posfácio para um livro de poesia é a transgressão de uma quietude necessária: o silêncio da poesia, paisagem singular e heterogênea, que não grita para um aparecer, pois o revela; que não visa tomar posse, pois se preenche por inteiro; que não é a boca, as mãos e os olhos, porque nua a poesia se reveste de corpo. É com a escusa de quem reconhece este silêncio necessário à limpidez poética que iniciamos a falatória do posfácio.

A todo instante, no entanto, uma pergunta ecoa pela pena do próprio autor do livro aqui apresentado: Como escrever a palavra silêncio para que nela seja possível alcançar um eco indizível de origens?

69

tulio_miolo.indd 69

5/3/18 10:31 PM

É por este sentimento que a lírica de Túlio Stafuzza nos conduz. Singelo sobrevoo de um espírito que em sua sutileza não desdenha da solidez das pedras, nem da austeridade dos cactos, os poemas deste Livro dos pássaros são de sol e sal, de desertos, de oceanos, de tempos e crianças, de Deus e das estrelas. Suas paisagens, todas desenhadas pelos pássaros que habitam as alturas daquele que vê precisamente o que está diante dos olhos, alçam voo elas mesmas carregadas pelas andorinhas e pelas memórias do primeiro ao último poema do livro. Abre-se uma dimensão onde tudo é tempo, e onde todo aparecer, espelho fluido, revela-se em um Autorretrato feito um rio cujo destino é desaguar-se em Paisagem. O eu lírico se afirma aí, mas não sem fundir-se ao Outro, o leitor, que respira em sussurros as palavras de sua rítmica sutil: as andorinhas são as memórias de Túlio, mas também são um outro tempo onde o leitor vem inserir-se com seu próprio passado. A imagem dos pássaros coabita com as imagens da criança por toda a obra, como infâncias continuamente revivificadas pela experiência poética do mundo. São memórias, mas não apenas aquelas dos cacos já cristalizados, fragmentos de espelho recolhidos no tempo em vitral: são, antes de tudo, o passado que acontece no tempo atual, no tempo vivo e que, por isso, ressuscitam nele. A presença da criança por todo o livro não nos aponta um sentido fixo, não é mero signo de passado; por ela se constrói um campo de imagens em que o passado adere por vivência a um mundo que é sempre renascente, por isso é também sempre criança. O poema Alegria termina justamente deste modo: Para que as crianças mortas também pudessem brincar nos jardins,

70

tulio_miolo.indd 70

5/3/18 10:31 PM

a manhã nasceu para sempre da centelha de uma estrela que se apagou.

Passado sempre revivente, presente sempre renascente, a pena de Túlio é a própria dimensão poética de si e das coisas; é o viver de uma temporalidade aberta e por isso criadora, que se derrama ao futuro sem, contudo, envelhecer. É desse modo que a dedicatória inicial de Poema de esperança versa: “à infância que amo ver crescer em ti, querida Luna”. Crescer, não envelhecer: a imagem da criança talvez venha aí ser preenchida com seu sentido mais profundo. Precisamente a esperança, que em suas ingênuas brincadeiras com a morte, a supera ao infinito. O poeta habita, pela criança, essa verdadeira Hora outra, única condição para que se busque o sorriso com o qual habitará sua próxima morte. E assim continuamente, em um eterno exercício de vida, eterno esforço de poesia, enfim, de eterna juventude.

Ele convida também o leitor a essa morada em si mesmo, a esse desvelar-se poético, pelo qual será eternamente infante enquanto durarem os versos. Pois se a criança é o poeta enquanto rege sonhos com a batuta nos dedos, também o leitor é criança com os sonhos nos versos dos olhos. Cada palavra escrita com fogo pelo punho de barro de Túlio Stafuzza canta seu silêncio; ecoa no falar da chuva ao musgo umedecido sobre a pedra, no triste segredar das pétalas das rosas para a Cruz, no seco canto dos desertos ao gorgolejar da fonte oculta. Versos feitos de tempo, a linguagem é um relógio afrouxado que escorrega pelo braço do poeta. Com a ternura de mãos gigantes que segurassem o mar como um pequeno e tremulante peixe, a voz de Deus emerge lá do fundo, com os sussurros da infância. As lembranças correm, por vezes, com 71

tulio_miolo.indd 71

5/3/18 10:31 PM

as crianças que fomos nos dias passados, por vezes jorram na esperança da criança presente. Pelo fato, talvez, de o céu não ser imune ao sal dessa terra, voam, pássaros que são, como a luz, que chega sempre antes de tudo; como o amor, que nunca chega e já partiu; como a vida, que colore tudo isso...

72

tulio_miolo.indd 72

5/3/18 10:31 PM

nádia maria nasceu em Bauru, interior de São Paulo, no ano de 1984. Aos sete anos de idade teve seu primeiro contato com a fotografia, registrando suas bonecas e descobrindo a imagem como uma forma de expressão. Autodidata, foi através de seu relacionamento com a câmera, seu mergulho no universo visual e na poesia, que teve início seu rico portfólio. Aos dezoito anos cursou Fotografia pelo Senac/Brasil, onde pôde aprimorar sua técnica e linguagem. Suas obras poéticas são um diário íntimo de sentimentos, reflexões e transformações através de sua vida, e ganharam reconhecimento por parte de muitos países, sendo apontadas por grandes publicações. No ano de 2016, foi considerada uma das mestras da fotografia da nova geração pela Fashion Industry Broadcast.

Nádia vê a fotografia como poesia, suas fotos como seus poemas, refletindo desta forma as sombras e as luzes de sua vida.

Seu trabalho é atualmente licenciado pela Art+Commerce/Vogue Itália, Getty Images e representado pelo The Print Atelier em Montreal.

tulio_miolo.indd 73

73

5/3/18 10:31 PM

A presente edição virtual do Livro dos pássaros, lançado fisicamente em 2018 pela editora Urutau, foi viabilizada através do Edital 04/2020 - Ações de Difusão Cultural de Bauru – Lei Aldir Blanc promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Bauru, SP. Tal edital, por usa vez, foi fundamentado no inciso III do artigo 2º da Lei Federal nº 14.017, de 29 de junho de 2020, no Decreto Federal nº 10.464, de 17 de agosto de 2020.

Assim, dedicamos essa edição à memória de Aldir Blanc.

primeira edição

maio de 2018

tulio_miolo.indd 74

5/3/18 10:31 PM