Cai o Pano

Page 3

Capítulo I Quem não sentiu um súbito baque no coração ao reviver uma antiga experiência, ou ao sentir uma velha emoção? «Já passei por isto, antes...» Por que razão estas palavras nos emocionam tão profundamente ? Foi a pergunta que fiz a mim próprio, quando me sentei no comboio, olhando para a paisagem plana de Essex. Há quanto tempo tinha eu já feito esta viagem? E pensava então (ridiculamente) que o melhor da minha vida já tinha passado. Ferido nessa guerra que, para mim, fora sempre a guerra... a guerra que estava agora a ser fustigada por uma segunda e ainda mais desesperada guerra. Ao então jovem Arthur Hastings parecera, em 1916, já ter atingido a maturidade. Nessa altura não podia aperceber-me de que a vida apenas estava no início. Conquanto não o adivinhasse, nessa primeira viagem, ia ao encontro do homem cuja influência viria a modificar e moldar a minha vida futura. Concretamente ia apenas passar uns dias com o meu velho amigo John Cavendish, cuja mãe, recentemente casada em segundas núpcias, tinha uma casa de campo com o nome de Styles. Esperava encontrar aí pessoas minhas conhecidas, numa estada agradável e nunca mergulhar, como então aconteceu, nas malhas tenebrosas de um misterioso assassínio. Era novamente em Styles que ia encontrar agora o estranho homenzinho, Hercule Poirot, que tivera ocasião de conhecer, pela primeira vez, na Bélgica. Que bem recordava a estupefacção que senti ao ver o seu rosto bojudo, ornado por um grande bigode, vir ao meu encontro na rua da aldeia. Hercule Poirot! Desde esses dias em que se tornou o meu mais querido amigo, a sua influência alterara-me a maneira de ser. Foi na sua companhia, na caça de um e, depois de muitos criminosos, que conheci minha mulher, a mais verdadeira e doce companheira que um homem poderia encontrar. Jaz agora em solo argentino, tendo morrido como sempre desejara, sem sofrer a pena de uma longa doença, nem o depauperamento da velhice. Mas deixara, neste mundo, um homem muito solitário e infeliz. Ah! Se eu pudesse voltar atrás, viver toda a minha vida, novamente... Se a tivesse conhecido logo nesse dia de 1916, quando, pela primeira vez, viajei até Styles... Que mudanças se teriam operado em toda a minha existência! E quantas faltas notaria, agora, entre os rostos familiares com que iria deparar de novo! A própria casa Styles fora vendida pelos Cavendish. John Cavendish morrera


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.