Corte Seco - Segunda edição

CORTE SECO 1

Carta ao leitor A CORTE SECO: Revista de Audiovisual chega, em sua segunda edição, reafirmando o compromisso de pautar e debater cinema e audiovisual em suas variadas dimensões. Nascida a partir de encontros e debates entre estudantes e professores do Fórum de Audiovisual, do Cineclube UFCA e do Laboratório de Cultura e Visualidades, - todos projetos de Cultura da Universidade Federal do Cariri – UFCA , a Revista estende seu diálogo com profissionais e interessados de outros percursos e instituições, na rica tradição visual brasileira.

Vivemos num momento histórico em que as utopias e as soluções para os grandes dilemas da vida, e da vida em comum, têm se transformado de uma forma muito radical. E as previsões e soluções de médio e longo prazo se esfumaçam continuamente no ritmo midiático.

O capitalismo segue promovendo e transitando em suas crises com respostas muito pobres para os desafios criados.

O bem-estar das pessoas, cada vez mais submete-se ao bemestar das (grandes) corporações, que vão se ‘subjetivando’, criando vida e insistência, enquanto as pessoas vão automatizando sua renúncia ao mais banal, à rica potência dos afetos, esquecendo de sua humanidade por conta

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do curto circuito entre a melhor forma de sobrevivência e qualquer sonho de vida inteira.

Nesta edição da CORTE SECO: Revista de Audiovisual Audiovisual nosso tema de abordagem, que perpassou os textos, foi a resistência.

O cinema como resistência e as formas de resistência no/ do cinema serão debatidos aqui. Os enfoques são plurais, e a perspectiva que conduz a trama da palavra é reconhecer e problematizar, de forma crítica, as iniciativas e ideias de se contrapor, de fazer valer a força ou a imagem (ou a força da imagem) para dizer não, para encontrar outra forma de dizer, de si e do mundo.

Não há um consenso mínimo em como resistir ao grande mapa das opressões de governos, instituições, classes, raças, gêneros e etc. As contribuições recentes dos movimentos, que se agitam na linha emancipatória, alternam-se entre a denúncia e o conteúdo programático das ações. De toda forma, é fundamental se organizar, não desistir, identificando e denunciado os abusos de poder, sem abdicar da alegria de viver e insistir em ser feliz... É isso! Resistir é preciso!

Boa leitura a todas e todos!

Ricardo Salmito

EXPEDIENTE Edição 2 Março 2020

SUMÁRIO CINEMÁFRICA AO LUAR 12 20 32 bacurau 58

Redação

pela descolonização do olhar

Alexia Mesquita Bárbara de Alencar Guilherme Figueirêdo Joedson Kelvin

Manoel Cunha Matheus Moreira Natalia Alves Paulo Junior

Paulo Rossi Ricardo Salmito Rodrigo Capistrano

um contraponto

colaboradores Bibiana Belisário Sarah gomes Carlos Antônio Thiago Florencio Natália Pinheiro

Vera Chytilová

Yago Pontes Ythallo Rodrigues

e a Desconstrução do Cinema Tcheco

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EDITORa

07

Júlia Marques

20 26

Revisão PAULO JUNIOR Paulo Rossi Vitória Guimarães

Diagramação e Projeto Gráfico júlia marques

38 40 44 52

ilustrações E FOTOGRAFIAS FELIPE OLIVEIRA

Jade Luiza

Júlia Marques

PROFESSORES ORIENTADORES RICARDO SALMITO Rodrigo Capistrano

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Sem horário definido, ela, simplesmente volta Eisenstein: Em tempos de URSAL, um pouco de cinema soviético Pedro Costa: um cineasta português Ilha das Flores de Jorge Furtado Cine Eldorado: Resistência e amor ao cinema Central do Brasil: O presente da professora e do menino TRAINSPOTTING: ESCOLHA A VIDA “Inferninho”: um ousado e inventivo cinema contemporâneo cearense O México além da fronteira O Sertão Neon: e a Resistência na obra de Mascaro Democracia em Vertigem Dr. Fantástico

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resenha

Sem horário definido, ela, simplesmente volta Por Paulo Junior

A

lgumas obras definem quase que um marco temporal, sendo depois utilizadas para demarcar determinado período, fazendo com que a história de uma área, em algum momento, possa ser separada como antes e depois de sua existência. Talvez haja nesse texto o pecado do exagero, no entanto, Que horas ela volta? define seu tempo, marca seu momento na história, traz um debate que vai além de uma comédia escrachada.

Val, brilhantemente interpretada por Regina Casé, que faz desse trabalho um verdadeiro divisor em sua carreira, é uma

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empregada doméstica, que mora na casa dos patrões, uma família paulista de classe média alta. Val tem sua origem ligada ao nordeste, tendo saído de Recife-PE há mais de uma década, período que dedica quase que exclusivamente a família na qual serve como empregada. Tratada como “quase da família”, a personagem representa essa dicotomia discursiva que existe em parte da classe média, ao passo que a boca profere o quase da família, a realidade conjuga a segregação da empregada, sempre ao quarto mínimo, apertado, separado aos fundos da casa, situação representada com primor no filme em questão.

Muylaert desenvolve uma brincadeira extremamente interessante no que tange às diferenças sociais, fator constante em seus filmes. Entretanto, neste ela traz um questionamento mais duro, incisivo e menos estereotipado.

Que horas ela volta? é dramático, emotivo e tem sua perspicaz dose de humor. Somos passeados pelo filme, ganhos no jeito simples de Val, desde a primeira cena somos preenchidos por seu doce olhar.

A tranquilidade inconteste da família é interrompida pela chegada de Jéssica, papel de Camila Márdila, atriz jovem, porém não menos encantadora que Regina Casé. Jéssica, filha de Val, chega para reencontrar a mãe e vai morar junto com ela

na casa dos patrões. Essa nova personagem surge como o ente da dúvida, ela desconstrói a beleza da família perfeita, Jéssica indaga, sem medo, se o seu lugar é no quarto dos fundos da casa. A seu modo escancara a fragilidade daquela estrutura que, momentos antes, pareceu tão concreta e natural.

Dentro do jogo de cena, há um belo equilíbrio dinâmico, Regina Casé se desfez de seus gestos largos e expansivos e deu lugar a alguém contida, de semblante leve e sorriso preso, acostumada a repetir as mesmas tarefas cotidianamente. O casal de patrões, interpretado por Karina Teles e Lourenço Mutarelli, se apresentam muito bem às câmeras. Ele, extremamente introspectivo, ela exibida, montam a fachada de família descolada, apesar de estarem amarrados às conversões sociais de sempre.

Que horas ela volta? vem recheado de ardores que falam em alguns momentos de silêncio, como na separação do sorvete - um para os patrões, outro para os empregados, na simbologia expressa através do café e do presente que Val leva a Bárbara, sua patroa. O filme se desenha em sutilezas, como na piscina que surge nas primeiras cenas, e caminha com o espectador até o fim, desde da observação afastada de Val, até sua alegria indescritível ao entrar e molhar seus pés.

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Jéssica muda-se para São Paulo para estudar para o vestibular, obtendo aprovação, algo que Fabinho (Michel Joelsas), filho dos patrões, não consegue. Dentro deste aspecto, reside um dos poucos problemas do filme, entretanto perdoável. Nesta construção, o vestibular aparece como meio de libertação, no entanto, a libertação não pode ocorrer apenas por esse meio, além do fato de que esforço e determinação não são os únicos fatores que determinam oportunidades entre o filho do patrão e a filha da empregada. O debate e o diálogo entre Jéssica e Fabinho deve ir mais fundo, pois é de uma profundeza quase que oceânica.

Todavia, não cabe ao filme o estabelecimento de todas essas problematizações. Diante do que ele se propõe, entrega muito mais. Ver Que horas ela volta? é um presente ao espectador, é ser envolvido, cativado, é rir nas falas irônicas de Val, é se apaixonar por Val. Que horas ela volta? fala de muita coisa, mas, sobretudo, fala de gente, de povo, quem vê o filme se reconhece, e neste reconhecimento é difícil que não haja lágrimas sobre o rosto.

ILUSTRAÇÃO: JÚLIA MARQUES

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Ensaio

Eisenstein Em tempos de URSAL, um pouco de cinema soviético Por Matheus Moreira

C

onsiderado um dos pais da montagem e linguagem cinematográfica, Eisenstein se mostra um diretor necessário a ser resgatado pelos entusiastas do audiovisual e pessoas que propõem algo para além da política que temos hoje.

Fazer um panorama geral da Rússia do início do século XX é algo complicado, já reescrevi este parágrafo algumas boas vezes, seja por um perfeccionismo ou baixa autoestima com minha escrita. Em nenhuma delas acreditei conseguir definição satisfatória, por isso, achei melhor resumir os anseios da época em três palavras: pão, paz e terra1 - no entanto, existe algo simples de entender sobre aquele momento: fazer cinema não era das tarefas mais fáceis!

Sendo uma arte muito nova, ainda monomídia, com pouca coisa criada em matéria de linguagem além dos formatos copiados do teatro, porém, com tanta coisa acontecendo

naqueles instantes, alguém precisava sobre a ótica das câmeras retratar todo processo e ideias borbulhando naquele momento. Era preciso inventar, saber criar, ou melhor, montar.

Um pensador embasado no método marxista sempre usa a realidade material para produzir suas obras e reflexões, no Cinema Soviético não foi diferente. Aluno de ninguém menos que Lev Kuleshov2, o diretor Serguei Mikhailovitch Eisenstein entendeu o contexto em que se inseria e assim o fez. Nascido na cidade russa de Riga, no ano de 1898, cresceu

1 Pilares fundamentais das teses de abril, publicadas por Lenin em 1917, com função de orientar as movimentações dos sovietes na Revolução Russa.

2Renomado diretor e pesquisador do Audiovisual, criador do chamado “efeito Kuleshov”, técnica empregada até hoje pelos diretores. Nele, nos é dado uma situação seguida de diferentes formas na sequência que fazem o sentido da primeira cena mudar sempre em decorrência da apresentação da segunda.

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com o borbulhar das revoluções russas no início do século XX, sendo estas as principais inspirações e combustíveis para criação dos seus filmes, fazendo com que ao longo do tempo acabasse se tornando um dos nomes mais proeminentes da história do audiovisual, reconhecido por ser um dos fundadores da montagem e linguagem do cinema, revolucionando essa arte em vida e também nas telas.

Sua filmografia oficial é extensa, e bem, é impossível comentar sobre todas estas obras, por isso, meu destaque vai para sua primeira fase, onde boa parte da produção se concentrava em mostrar na tela toda a organização de trabalhadores vivenciadas na época. Esta distinção é feita por um critério nada sofisticado, apenas acredito intuitivamente existir uma segunda fase deste diretor, que após retornar de uma viagem aos Estados Unidos teve de encarar represálias do regime Stalinista, tendo feito, logo após seu retorno, longas-metragens centrados em um ideal mais “propagandístico”.

8 ENSAIO

Nas produções iniciais, suas ideias centrais são inspiradas em uma corrente específica, a cultura proletária, sendo estes filmes vanguarda do movimento já na época de lançamento.

Na maioria dos casos, o método é sempre o mesmo: casado com ideias revolucionárias, a preocupação primordial do diretor é sempre igual, a de que é preciso comunicar e se articular! Uma lição para a esquerda atual.

A construção do Sujeito coletivo Talvez produzir na década de 1920 tenha sido o grande acerto dele no final, já que as taxas de analfabetismo de boa parte da população da URSS pós revolução era imensa, fora os anos de domínio ideológico e imperialista do Czarismo, fazendo com que uma leitura crítica do capital por todos não fosse dos desejos mais plausíveis para os revolucionários da época. É neste momento que o cinema entra em cena.

O próprio Lênin reconheceu este valor nos filmes, sendo a ele atribuída a frase “O cinema, de todas as artes, é a mais importante para nós comunistas” - Fico surpreso de até hoje, nenhum olavista/conspiracionista de plantão ter descontextualizado essa frase, para acusar o cinema no geral como coisa de “Marxista cultural”.

ILUSTRAÇÃO: JÚLIA MARQUES

“É necessária a luta das narrativas e memórias nas telas! Que a verdade dos oprimidos sejam contadas por eles! ”

Rompendo com a escola Teatral, o camarada Eisenstein criou uma linguagem única para o cinema. Partindo de uma concepção dialética, surgia a montagem como criação de sentido, fugindo do senso comum ocidental e sua montagem como construção da narrativa. O diretor dentro daquilo que lhe era dado agora conseguia, através de uma série de jogos com a imagem, fazer daquele espectador um ser com potencial de imergir na obra, sentindose como parte do jogo de frames. Era genial! Através do choque de situações diametralmente opostas, somadas a uma sobreposição - efeitos avançadíssimos para a época - esse diretor era capaz de compartilhar em tela o desejo de um povo. Aquelas três palavras iniciais: paz, terra e pão.

Desta forma nos é dado um personagem muito diferente - mesmo daqueles vindos depois dos filmes de Eisenstein. Não havia herói principal, haviam heróis principais, o povo, a classe trabalhadora, os oprimidos. Não que

fosse inexistente ou um crime haver personalidades, porém, a história era contada como um sujeito coletivo, percorrendo através dos atos uma busca incessante pela libertação de seus grilhões.Para quem está acostumado com a jornada do herói estes filmes se tornam uma experiência nova, onde a evolução do personagem é feita de forma conjunta. É preciso refletir em cima disto: o cinema veio de encontro às necessidades da mudança, não foi preciso, como muitos comunicadores adoram replicar, “furar a bolha”. Muitas dessas falas, mesmo que sem querer, partem de uma concepção elitista de um saber fazer, ou saber pensar.

Ninguém mais do que o povo sabe sobre seus anseios e contradições. Claro, ainda irão existir discordâncias, é impossível haver homogeneidade de pensamento, porém, na hora do “vamos ver”, em que o sapato do opressor está sobre a garganta do oprimido, pensar em como nós “intelectuais detentores do saber” iremos chegar às “massas”, é uma ideia absurda, ninguém precisa chegar em canto nenhum! Devemos ir além, é imprescindível se articular! Esta é a função do cinema que os diretores russos descobriram antes de qualquer um: da organização de massas, a micropolítica. O trabalho de oposição e resistência perpassa uma necessidade fundamental. Na hora de se

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comunicar, o desejo de indignação é evidente, é preciso mudar, e no filtro das ideias, a maioria deve ficar para trás, dando lugar para uma centralidade do devir-revolucionário pautado pela ótica popular.

Reivindicando signos É um engano acreditar à primeira vista que a arte sempre se reproduz em cima de uma individualidade. Para além disto, todos somos produtos do nosso meio e dos signos que nos rodeiam: quando estes são retratados de determinada maneira em tela, somos levados a acreditar no potencial além destas, é como sentir um mundo ficcional não distante daquilo chamado de real.

Todo signo é ideológico! Foi a esta conclusão que Mikhail Bakhtin3 - linguista conterrâneo e contemporâneo de Eisenstein - havia chegado em suas pesquisas no Círculo de Moscou. Os cineastas soviéticos entenderam isso, e reivindicaram os seus! Souberam usar a seu favor as contradições já explicitadas no factual. Suas narrativas nada mais eram do que lembretes, mesmo irreais, dos efeitos de potenciais inexplorados de poderes populares e opressões frequentes, sendo esta última, nem tão 3 “Marxismo e Filosofia da linguagem” Voloshinov, Bakhtin.

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“ O método é sempre o mesmo: casado com ideias revolucionárias, a preocupação primordial do diretor é sempre igual, a de que é preciso comunicar e se articular! Uma lição para a esquerda atual” atual” irreal assim para o contexto - assim como os Yankees do séc XX, que usando seu soft power propagaram histórias de guerras sem motivo e jamais vencidas pelo herói hollywoodiano, com seu padrão de macheza e sangue frio, ou seus dramas que tentam nos convencer na superação individual, onde qualquer pessoa sob qualquer circunstância pode vencer as adversidades e fundar sua multinacional, como uma espécie de neoliberalização do fazer viver.

Isso nos leva a uma pergunta hoje em dia: quais são os nossos signos enquanto resistência? É necessária a luta das narrativas e memórias nas telas! Que a verdade dos oprimidos sejam contadas por eles! Como uma

O resgate e a perduração da memória dos nossos não podem ficar a mercê dos livros de história, pois há aqueles que nunca os lerão; o audiovisual, portanto, será sempre a porta mais fácil. Parafraseando Nildo Ouriques, nunca existiu essa bobagem de “Onda Conservadora”, o que aconteceu foi um desarme da Esquerda, e isto se reflete no cinema. Por favor, não me interprete mal, existem obras fantásticas lançadas ultimamente, e muita gente boa e nova trabalhando, só que atualmente é preciso mais do que nunca a presença destas produções. Por isso, precisamos de mais sujeitos coletivos ou que representem esta coletividade, como as guerrilhas de oposição nos anos de ferro da Ditadura! Necessitamos de mais Bacurais e obras que instiguem o espírito de resposta popular, mesmo que violenta, contra o opressor! E sob uma ótica de vitória e justiça em perspectiva futura, por mais Marielles, Marighellas, ALN’s e os diversos companheiros

que hoje fazem da política cotidiana resistência contra todo obscurantismo posto em prática.

ILUSTRAÇÃO: JÚLIA MARQUES

construção e correlação de forças coletivas. Não se pode relegar ao cinema revolucionário apenas uma mudança nos paradigmas de montagem da época. É preciso entender o porquê do sucesso de A greve (1925), Encouraçado Potemkin (1925), Outubro (1927) para além de mera propaganda do estado socialista. Encontremos quais são as nossas “greves” e “encouraçados”.

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FOTO: JADE LUIZA

Destaque

CINEMÁFRICA AO LUAR pela descolonização do olhar Por Thiago Florêncio

THIAGO FLORêNCIO

inemáfrica ao Luar é um encontro mensal que reúne três experiências visuais: lua cheia, fogueira e cinema africano. Assumir essas manifestações de forma integrada enquanto experiências cinematográficas ajuda a solidificar algumas compreensões sobre o sentido do cinema em sua forma expandida, enquanto vivência da imagem pela sua continuidade e contiguidade em relação aos elementos primordiais da luz natural: a luz do sol refletida na LUA, esse grande telão celestial, e a combustão da madeira que desprende calor e luz na atmosfera: FOGUEIRA.

Professor Adjunto de História na URCA (Universidade Regional do Cariri).

Coordenador do NEDESA (Núcleo de Estudos de Descolonização do Saber) e membro do FICINE (Fórum Itinerante de Cinema Negro)

C

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O evento acontece toda noite de lua cheia na Casa das Pretas, residência das gêmeas Valéria e Verônica Neves Carvalho, fundadoras do GRUNEC (Grupo de Valorização Negra do Cariri), principal movimento de militância negra do Cariri Cearense. A convite delas, o NEDESA (Núcleo de Estudos de Descolonização do Saber) começou a pensar a curadoria dos filmes africanos. A proposta de abrir a residência para as sessões de cinema africano surgiu do desejo de fortalecer um espaço de trocas de saberes, de afetos e principalmente de cura. A dimensão da cura direcionada para as feridas decorrentes do racismo, do sexismo e de todas as formas de opressão estruturadas pelo sistema colonial em suas matrizes hegemônicas de poder: branca, classista, machista e heteronormativa.

Lidar com essas feridas estruturais não é simples, demanda uma ação integrada que começa com o gesto mais importante: abrir as portas de casa. Um gesto pequeno e grandioso. A generosidade de abrir a casa é por onde começa toda e qualquer possibilidade de abertura para o outro: uma afetuosa estratégia de luta antirracista.

Segundo a escritora Toni Morrison é a necessidade de identificar o outro como estranho, ou estrangeiro, que configura a formação de uma identidade excludente (MORRISON,2017). Identificar o outro como estranho é determinar que ele não pode frequentar minha casa, não pode comungar o princípio de existência. A matriz colonial do poder ocidental, narcísica por excelência (FANON;

“Nós fechamos bem os olhos e lá dentro no escuro, tem faíscas, tem uma luz.

Nós então inventamos aí as estórias, belas estórias.

O escuro se torna uma tela branca e nossa bela história acontece.”” acontece.

KILOMBA), opera na incapacidade de enxergar o outro, reduzindo-o sempre à condição de espelho (reproduzir o ego colonizador), e/ou de “corpo de extração” (sua força corporal a serviço dos desejos do colonizador) (MBEMBE, 2018). Quando essas condições de espelho e/ ou extração não são atendidas, o sujeito colonizado é aniquilado. A matriz colonial de poder movimenta-se na contramão do princípio ubuntu, “sou porque somos”.

Abrir as portas de casa é um gesto ubuntu de reciprocidade: se abro minha porta, é porque acredito viver numa dimensão co-existencial ao outro. Esse princípio da reciprocidade acontece também na proposta do lanche solidário. A cada edição os participantes levam seus alimentos para serem compartilhados, com destaque para o chá ABC (Alecrim, Boldo e Camomila) feito a cada edição pelas Pretas Valéria e Verônica e que nos proporciona degustar o saber-sabor de cura das folhas.

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FOTO: JADE LUIZA

A cura está também na fogueira: sua combustão de calor e luz que tem poder de queimar as impurezas e negatividades. A fogueira, sempre bem preparada pelos irmãos das gêmeas, Luciano e Luiz Fernando das Neves Carvalho, tem se consolidado como espaço de vivência posterior à sessão de cinema e debate. Vivências variadas são organizadas pela atriz Maria Joaquina Carlos, do Grupo Ninho de Teatro, envolvendo geralmente contação de história, música e percussão.

A cura da lua cheia é um espetáculo a parte. Antes da projeção do filme, quando apagamos as luzes da casa, a lua geralmente já está brilhando por trás da tela e por trás da serra da chapada do Araripe.

Na última sessão um dos participantes pediu pra adiar o início do

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filme para poder ficar mais tempo contemplando a luz da lua, e quase chegou a lamentar quando o filme começou. Essa dupla projeção simultânea do telão de cinema e da tela-lua cria um efeito de complementaridade: confere tanto uma dimensão cinematográfica ao luar, quanto uma dimensão de encantamento à projeção do filme.

No meu entender, essa complementaridade entre fogueira, lua e cinema fortalece uma conexão de encantamento e ancestralidade, não por acaso princípios estruturantes do cinema autoral africano. O primeiro filme projetado no Cinemáfrica ao Luar foi Mossane (Senegal, 1996), longa-metragem de Safi Faye. É a história de uma menina cuja beleza é tão grande que passa a ser desejada pelos espíritos ancestrais da aldeia. A indiscernibilidade entre o mundo espiritual e o mundo material, entre o mundo dos mortos e dos vivos, do visível e do invisível fundamenta as relações existenciais. Nas sociedades tradicionais africanas, a morte é uma espiritualidade e não o fim da vida. O fim da vida é o esquecimento. É a partir dessa clave da continuidade entre morte-vida que se compreende o complexo de trocas entre humanos e natureza, humanos e animais, já que todos partilham do mesmo princípio existencial. Essa conexão estruturante é a ancestralidade.

A dinâmica da natureza encantada pela força da ancestralidade atravessa diversos filmes africanos. Nha Fala (Guiné-Bissau, 2002), de Flora Gomes, é um musical cuja protagonista Vita sofre uma maldição familiar de

Desde as primeiras produções cinematográficas africanas, que acompanham as independências do início da década de 60, a necessidade de usar o cinema a serviço de uma construção identitária nacional fez com que esses primeiros cineastas se voltassem para a consolidação de expressões culturais locais.

Nesse sentido, desde o início e ao longo das décadas de formação do cinema africano, o universo da espiritualidade sempre teve um lugar central nas narrativas, ainda que de modo diverso. Na primeira década, em função da intenção progressista dessas nascentes nações, prevaleceu um tom crítico ao universo das crenças tradicionais. É principalmente a partir da década de 70 que o cinema africano se volta de forma positiva para o universo das espiritualidades africanas, uma fase que tende a afirmar o lugar do encantamento e da ancestralidade ao mesmo tempo em que rejeita toda e qualquer presença ocidental. Segundo Boughedir, é somente a partir dos anos 80 e 90 que esse retorno às tradições

espirituais opera na síntese entre os elementos vivos da tradição e as contribuições do ocidente (BOUGHEDIR, 47).

O que desejo destacar aqui, embora a escolha dos filmes do Cinemáfrica ao Luar não tenha como tônica a questão da espiritualidade, é que o ato de assistir a esses filmes em meio ao cenário da lua cheia, da chapada do Araripe e da fogueira, entre lanche solidário e chá de folha, acentua um lugar de encantamento – abertura ao outro (vivo ou morto) envolvimento afetivo – que costuma estar presente em diversos filmes africanos. No entanto, não

FOTO: JADE LUIZA

não poder cantar, sob pena de ser levada pelos ancestrais. Sua decisão de seguir carreira de cantora na França e quebrar essa tradição seria sua morte anunciada? Em Wallay1 (Burkina Faso, 2017), do diretor Berni Goldblat, o menino protagonista, filho de burquinenses que cresce na França, é enviado pelo pai a sua aldeia natal e descobre o lugar da ancestralidade em sua vida. Mas o que seria essa ancestralidade, qual sua importância nas cinematografias africanas?

devemos reduzir o cinema africano a categoria espiritual, isso seria extremamente limitador e colonizador, inclusive. Em consonância com Thiong’o, é perigoso os cineastas africanos agirem como se

1 Essa exibição foi feita numa parceria do Cinemáfrica com a II Mostra de Cinema Africano do Cariri Cearense, dentro do X Artefatos da Cultura Negra.

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“ Lidar com essas feridas estruturais não é simples, demanda uma ação integrada que começa com o gesto mais importante: abrir as portas de casa ” a única realidade na África fosse a de nossos anciãos sentados sob um baobá exsudando sabedoria, ou de elementos sobrenaturais da vida africana. A visão de mundo africana parte do princípio da existência de uma conexão entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer. Os três elementos personificam a realidade das interconexões entre o passado, o presente e o futuro, e essa visão de mundo conecta a vida espiritual com a existência material. O domínio do espiritual não está divorciado da materialidade da economia e da política das nações e entre as nações (THIONG’O, 30).

Chegamos aqui ao último princípio de cura proposto por Cinemáfrica ao Luar: Luar: a cura da mente. Assistir a filmes africanos é ter contato com narrativas, cenas e imagens cujo protagonismo é de sujeitos negros. É ter contato com lugares, territórios, presenças e histórias de vida de um continente apagado de nossas referências. Contam-se nos dedos as pessoas que já assistiram a algum filme africano, o que nos leva a pergunta inevitável: por que essas cinematografias são tão ignoradas por nós?

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Um dos grandes vetores de manutenção do poder supremacista branco está no controle da produção e circulação das imagens, principalmente aquelas veiculadas nas mídias de massa (hooks, 33). Não se reconhecer nas imagens veiculadas é uma realidade perversa da matriz colonial de poder, e condição estruturante do racismo. Nesse sentido, trazer para perto imagens e narrativas de um continente invisibilizado de nosso imaginário, de nosso sistema de referências, de nossos horizontes de expectativas enquanto construção de subjetividades, de corpos e protagonistas diferentes do que vemos em geral nos sistemas de representação carregados de valores estéticos da supremacia branca brasileira, pode ser considerado também um trabalho de cura.

Em consonância com Thiong’o, penso a importância do Cinema Africano também em sua ação descolonizadora das mentes. Não basta pensar descolonização política e econômica se não trabalhamos conjuntamente a descolonização do espaço mental, que segundo Thiong’o se dá no plano da psique, da construção da auto-imagem e da imagem da comunidade. Assistir a filmes africanos é também uma oportunidade de descolonizar as mentes. Nesse sentido, a partir das demandas do GRUNEC, o NEDESA tem buscado filmes com acento no protagonismo de mulheres negras. Não à toa começamos com Safi Faye, considerada a primeira cineasta mulher africana. Em Virgem Margarida (Moçambique, 2013), de Licínio Azevedo, o protagonismo das mulheres na guerra de independência de Moçambique é contado através da história de um batalhão de mulheres que sofrem com o

Gostaria de fechar com uma fala de Mambety. Cercado por crianças numa cena do documentário de Mohamed Challouf para seu filme Ouaga, capital do cinema (2000), diante da pergunta de como se faz cinema, ele começa a resposta sugerindo que as crianças fechem os olhos. Palavras dele: 2 Essa exibição foi feita numa parceria do Cinemáfrica com a II Mostra de Cinema Africano do Cariri Cearense, dentro do X Artefatos da Cultura Negra.

FOTO: JADE LUIZA

machismo estrutural do país. O clássico A negra de (Senegal, 1966) de Ousmane Sembene, conta a história de Diouana, uma senegalesa que consegue emprego na casa de uma família francesa e se muda com eles para a França, onde se vê enredada num tipo de escravidão moderna. Essa sessão foi muito impressionante em termos de recepção, principalmente pela fala de Verônica Neves, que compartilhou conosco os dramas e dificuldades que sofreu em São Paulo na condição de migrante, quando se viu em situações muito parecidas à da protagonista do filme. O curta Phatima (Moçambique, 2010), dirigido por Luiz Chave e projetado no Quilombo dos Souza, no terreiro de Mestra Maria de Tiê2, com roteiro da escritora Paulina Chiziane, retrata o empoderamento da protagonista que dá nome ao filme. Ela vive numa aldeia em Moçambique e deseja fazer valer os princípios de igualdade de direitos entre homens e mulheres num lugar em que o homem tem voz de comando sobre as mulheres.

No já citado Nha fala, fala, a narrativa gira em torno da protagonista em busca da afirmação de sua voz cantora. E finalmente, o último filme, A pequena vendedora de sol (Senegal, 1999), do senegalês Djibril Diop Mambety, nos revela a história de luta de Sily, uma menina com deficiência física em situação de rua que começa a vender jornal, ofício até então feito apenas por meninos.

REFERÊNCIAS BOUGHEDIR, Ferid. O Cinema Africano e a Ideologia: tendências e evolução. evolução. In: MELEIROS, Alessandra. (org.) Cinema no Mundo: Indústria, Política e Mercado – África.

São Paulo: Escrituras Editora, 2007.

FANON, Franz. Pele Negra, Máscaras Brancas.. Salvador, EDUFBA, 2008.

Brancas HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação.. São Paulo, Elefante, 2019. representação KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação.

Plantação.

Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.

“Nós fechamos bem os olhos e lá dentro no escuro, tem faíscas, tem uma luz. Nós então inventamos aí as estórias, belas estórias. O escuro se torna uma tela branca e nossa bela história acontece”3.

A escuridão é para Mambety o princípio criador do cinema, pois é com os olhos fechados que somos capazes de enxergar essas pequenas faíscas, essas pequenas estrelas que nos habitam.

Mas ao mesmo tempo em que parecem tão próximas, coladas em nossas pálpebras, elas estão distantes anos luz de nosso corpo, inatingíveis. Assistir a filmes africanos na Casa das Pretas nos permite fechar os olhos e fazer das estrelas que habitam o escuro de nossas pálpebras, as invenções de mundo possíveis, mundos que brilham como a lua, que aquecem como a fogueira, mundos que descolonizam mentes e olhares como os cinemas africanos, mundos de luta e resistência.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra, Negra, São Paulo, N-1 Edições, 2018.

MORRISON, Toni. The origin of Others.

Others.

Cambridge, Harvard University Press, 2017.

OLIVEIRA, Janaína. Djibril Diop Mambéty em primeiro plano reflexões sobre um cinema africano extemporâneo. extemporâneo. In: CASTRO, Tiago. (org.) Grandes Clássicos do Cinema Africano, Caixa Econômica Federal, 2017 THIONG’O, Ngugi Wa. A descolonização da mente é um pré-requisito para a prática criativa do cinema africano? In: MELEIROS, Alessandra. (org.) Cinema no Mundo: Indústria, Política e Mercado – África. São Paulo: Escrituras Editora, 2007.

3 Cf. OLIVEIRA, Janaína. Djibril Diop Mambéty em primeiro plano reflexões sobre um cinema africano extemporâneo. In: Grandes Clássicos do Cinema Africano, Caixa Econômica Federal, 2017.

18 Destaque

FILMOGRAFIA A negra de,1966.

20

O Herói, 2004.

Direção: Ousmane Sembene

Direção: Zezé Gamboa

20

A pequena vendedora de sol,1999.

20

Phatima, 2010.

Direção: Djibril Diop Mambety

Direção: Luiz Chave

Mossane,1996.

20

Virgem Margarida, 2013.

Direção: Safi Faye

Direção: Licínio Azevedo

Nha fala, 2002.

20

Wallay, 2017.

Direção: Flora Gomes

Direção: Berni Goldbla

20 20 20

Pedro Costa um cineasta português Por Ythallo Rodrigues

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urante todo o ano de 2019 venho me dedicando em pesquisar sobre o cineasta português Pedro Costa. Em meus estudos

mais específicos, busco me aprofundar nas categorias memória, identidade e exílio em dois de seus longas-metragens Casa de Lava (1994) e Cavalo Dinheiro (2014), que aqui cito, inicialmente, apenas como uma curiosidade. Neste texto o foco é outro. Convido-os para um breve passeio descritivo, a partir de minhas impressões, sobre o realizador e seus filmes.

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Pedro Costa nasceu em Lisboa, Portugal, em 1959, sob o signo de capricórnio. Filho do jornalista e realizador de televisão Luís Felipe Costa, que esteve diretamente envolvido nas transmissões radiofônicas do 25 de abril de 1974 (Revolução dos Cravos), que pôs fim à longa ditadura portuguesa. Na juventude Pedro esteve fortemente ligado ao movimento punk lisboeta, o que ao meu ver, reverbera em sua obra e no seu modo de realização cinematográfica. Inicia estudos em História, na Faculdade de

Letras, da Universidade de Lisboa, posteriormente, abandonando o curso para se dedicar aos estudos e trabalhos relacionados ao cinema.

Por algum tempo trabalha como assistente dos cineastas Jorge Silva Melo e João Botelho. Pensamos que é desse lugar a essência do trabalhador de cinema Pedro Costa, desta forma ele se vê refletido no espelho, a partir do trabalho é de onde surgem os mistérios do seu fazer cinema, numa busca laboriosa e artística incessantes.

Costa fora aluno, na Escola Superior de Teatro e Cinema, do Instituto Politécnico de Lisboa, do realizador António Reis, que junto a Margarida Cordeiro, realizou filmes que consideramos influentes em sua obra, principalmente o longa-metragem Trás-os-Montes (1976). Em 2010, pude acompanhar a Mostra Pedro Costa, realizada no CCBB no Rio de Janeiro, em que o citado filme de António Reis e Margarida Cordeiro fora exibido a pedido do cineasta, como parte de suas principais influências cinematográficas. É um filme belíssimo.

Seguindo a partir de seus filmes, em 1989, Costa realiza O Sangue, um filme incomum quando nos debruçamos sobre sua “obra irregular”, segundo o próprio cineasta. É um filme que parte de influências cinéfilas, as quais percebemos um pouco de Bresson, um tanto do casal de realizadores Straub e Huillet, e ainda um outro tanto de cinema clássico estadunidense dos anos de 1940 e 1950, por exemplo, o obscuro filme The Night of the Hunter

“Eu gosto muito da montagem. Gosto de juntar coisas diferentes, mundos aparentemente contraditórios. Verificar se aguentam estar juntos, se há zanga ou harmonia.” harmonia.”

(Mensageiro do diabo, de 1955), único trabalho dirigido pelo grande ator Charles Laughton, em Hollywood. Os acontecimentos da trama se resumem a uma série de tragédias pessoais na vida de Vicente (Pedro Hestnes), um jovem de 17 anos, que forçosamente é defrontado com o mundo da vida adulta após a morte de seu pai (Henrique Canto e Castro). No entanto, neste filme Pedro Costa trabalha ainda em seu cinema, efetivamente tratando a ficção cinematográfica apenas como ficção, e se é que isso faz algum sentido... porém tentaremos explicitar o porquê de tal impressão. É a partir de 1993, e se efetiva em 1994, o momento de virada em sua ainda pequena filmografia (o curta É Tudo Invenção Nossa e o longa O Sangue), com o lançamento de Casa de Lava, filme praticamente todo filmado em Chã das Caldeiras, na Ilha do Fogo, em Cabo Verde – país-arquipélago formado por dez ilhas na costa oeste do continente africano. No filme a enfermeira portuguesa

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FOTO: DIVULGAÇÃO (CAVALO DINHEIRO)

Mariana (Inês de Medeiros) recebe a missão de levar Leão (Isaach de Bankolé), de volta ao seu vilarejo de origem, em Cabo Verde.

Ao se deparar com diversos reveses Mariana se perde, de corpo e alma, naquele lugar estranho para si, em que a vida não existe sem o abandono – os moradores estão em constante movimento de partida – e sem a sombra da morte, reportada por um cachorro morto de forma brutal e pelo peso da lembrança do campo de concentração do Tarrafal. Estes são os fantasmas do presente e do passado, respectivamente, que permeiam o itinerário dramático da personagem.

A partir dessa experiência em Cabo Verde, Costa passa às vezes de missionário, já que é solicitado pelos moradores do vilarejo cabo-

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verdiano a entregar cartas aos conterrâneos que vivem em Lisboa, em seu retorno a Portugal. Desta forma, o cineasta conhece o bairro das Fontainhas, na periferia da cidade, local que assume uma importância fundamental em seus filmes e onde filma a trilogia de Fontainhas, formada pelos longas Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000) e Juventude em Marcha (2006). No primeiro filme nos envolvemos no drama de misteriosos personagens: Clotilde (Vanda Duarte), o pai (Nuno Vaz), Tina (Mariya Lipkina), Eduarda (Isabel Ruth) e a prostituta (Inês de Medeiros). Há algo que não se resolve nas relações que se estabelecem na trama. Neste filme há um trabalho inicial entre a ficção e o documentário, no entanto, é no filme posterior que tal relação se radicaliza com potência.

Em No Quarta da Vanda, tais bordas extrapolam, desde o mais radical da ficção ao mais intenso do documentário. Passamos quase três horas, juntos e imersos no mundo de Vanda Duarte e sua irmã Lena, ouvimos com angústia a sua tosse insistente, sentimos no peito o estupor da fumaça dos cigarros, da droga consumida, que nos arrebenta e nos mantêm lá, absortos, diante da obsessão daquelas meticulosas imagens. Ali, exercitamos nosso voyeurismo daquela autodestruição ou somos parte de uma auto-ficção insana? É uma experiência radical, deveras. Costa passou a viver seus dias em Fontainhas a acompanhar Vanda, a compartilhar com ela a vida no bairro, com sua pequena câmera

miniDV e por vezes com um técnico de som. Um filme radical em seus diversos aspectos de forma e conteúdo.

Pedro Costa, porém, afirma que o documentário como forma de realização pouco lhe interessa, tensionando sua forma de realização obsessiva, primordialmente, em relação ao trabalho com as imagens/sons e com o processo de montagem cinematográfica. Em uma entrevista concedida a Nuno Crespo para a edição do livro Casa de Lava - Caderno, em 2013, Costa afirma: “Eu gosto muito da montagem. Gosto de juntar coisas diferentes, mundos aparentemente contraditórios. Verificar se aguentam estar juntos, se há zanga ou harmonia”.

No terceiro filme da trilogia das Fontainhas permanece a sensação de cumplicidade de Costa com seu ator-personagem, no entanto, agora ao invés de estarmos com a Vanda em seu quarto, somos apresentados a Ventura, um velho migrante cabo-verdiano, expulso de casa logo no início do filme pela esposa Clotilde.

Iremos deambular com ele entre casas e escombros do bairro, ouvindo sua récita comovente de uma carta, a Carta de Ventura.

O texto que a compõe fora recitada primeiramente no filme Casa de Lava, doze anos antes (lá como um assombro dos tempos do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde e/ou ainda sob a influência da carta a Youki, do poeta francês Robert Desnos,

FOTO: DIVULGAÇÃO

morto pelos nazistas na segunda guerra mundial).

As promessas descritas: os cem mil cigarros, a dúzia de vestidos modernos, a casinha de lava e o encontro futuro etc, ecoam e vão nos guiando, alimentando-nos de alguma forma com alguma esperança que nunca se perfaz. Nesse período de realização de filmes com Ventura, Pedro Costa ainda realiza três curtas: Tarrafal (2007), A Caça ao Coelho com Pau (2007) e O Nosso Homem (2010).

Nesse ínterim de realizações nas Fontainhas e com migrantes cabo-verdianos, Pedro Costa realizou dois documentários em longa-metragem: Onde Jaz o teu Sorriso? (2001), a partir de onde também realiza o curta Seis Bagatelas (2003), e Ne Change Rien (2009). Ambos os longas acompanham os processos de intensa dedicação ao trabalho artístico. No primeiro, acompanhamos o

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trabalho obsessivo dos realizadores Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, no processo de montagem do filme Sicilia! (Gente da Sicília, 1999). Aqui, Costa filma o trabalho de cinema e artesanal de outros dois realizadores radicais na moviola, em que um fotograma a mais ou a menos entre-planos é tão importante quanto os próprios planos, podemos sentir um pouco do incrível mistério da montagem cinematográfica. No segundo filme, Pedro Costa filma de forma intimista ensaios e concertos da atriz e cantora Jeanne Balibar, em preto e branco, em que podemos adentrar, a partir da luz e do som, naquele universo musical.

Por fim, retornamos ao personagem Ventura, primeiro no curta Sweet Exorcist (2012) e, posteriormente, no longa Cavalo Dinheiro (2014). Em Cavalo Dinheiro, adensamos mais ainda a nossa relação com Ventura, estamos com ele a todo momento, em todo lugar, testemunhamos seus encontros com uma infinidade de personagens (todos velhos conhecidos caboverdianos), destaque para a comovente cena com Vitalina Varela, uma mulher que saíra de Cabo Verde para enterrar seu marido morto em Portugal, mas que não chegara a tempo.

Tais encontros com Ventura são estranhos, ele é um homem

FILMOGRAFIA

longas-metragens 1994

2000

Casa de Lava

1990

1989

O Sangue

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1991

1992

1993

1995

1996

2

No Quarto da Vanda

1998

1997 Ossos

1999

2004

2001

J

2003

2002

Onde Jaz o Teu Sorriso?

2006

atônito de mãos trêmulas, que vaga entre-lugares como um espectro de si e de um povo, a memória de um povo exilado. Parece-nos que finalmente toda a brutalidade da colonização lhe pôs por um fio de vida prestes a se romper. É um filme em que o contraste entre o claro e o escuro é radical, inclusive, na construção narrativa. Em 2019, Pedro Costa estreou no importante Festival de Cinema de Locarno seu mais recente trabalho, Vitalina Varela. Com este filme ele fora premiado com o Leopardo de Ouro e a atriz que intitula o filme fora agraciada com o prêmio de melhor atriz do Festival. A nós, resta-nos aguardar ansiosos aqui no Brasil a chegada de mais este Pedro Costa.

2006

2014

Juventude em Marcha 2007

2008

Cavalo Dinheiro

2010

2009

2011

Ne Change Rien

2012

2013

2015

2016

2017

2018

2019

Vitalina Varela

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FOTO: DIVULGAÇÃO

curta um curta

Ilha das Flores de Jorge Furtado Por Guilherme Figueiredo

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lha das Flores é um curta-metragem dirigido por Jorge Furtado que foi lançado em 1989, há 30 anos atrás, mas traz uma mensagem que continua atual. Honrado em 1990, ano seguinte ao seu lançamento, no 40º Festival Internacional de Cinema de Berlim com o prêmio Urso de Prata, a obra retrata a desigualdade social existente no país nas entrelinhas de suas relações com o sistema capitalista.

O documentário de Jorge Furtado utiliza dos seus rápidos 13 minutos de duração para traçar uma trajetória que acompanha desde o cultivo de um tomate até seu descarte em um aterro sanitário na Ilha das

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Flores, em Porto Alegre. Dispõe de uma narrativa extremamente criativa e uma linguagem ácida, que através de uma narração construída a partir de termos científicos, traz definições sobre todos os elementos abordados durante sua execução.

Na história, o cultivo de um tomate, e sua venda para o supermercado, dão início a uma jornada por uma Porto Alegre de muitas faces distintas. A fruta que foi cultivada por um agricultor japonês chega ao supermercado onde é comprada por uma senhora de classe média, que vende perfumes.

Não há flores na Ilha das Flores. Não há esperança, também.

Tem porco, mas tem fome. Tem muita gente passando fome.

Mulheres e crianças que, apesar de sua condição financeira extremamente pobre, ainda são seres humanos com telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor, o que os concede a capacidade de fazer o movimento de pinça com as mãos.

A denúncia feita pelo diretor Jorge Furtado há 3 décadas atrás foi bastante eficaz. Uma parte da sociedade entregue, literalmente, ao lixo, teve sua realidade exposta para aqueles

que não a conheciam. Foi chocante e polêmico. Surpreendeu até aqueles que já sabiam da problemática da Ilha das Flores, mas fechavam os olhos.

Porém, após tanto tempo, as discussões sobre o filme, sua produção e o seu legado tornaram-se diversas. Muitos moradores da Ilha das Flores, por exemplo, acusam o curta-metragem de estereotipá-los perante a sociedade. Agora, além de sofrerem das mazelas da fome e da miséria, ainda tinham dedos apontados para si quando saiam da ilha. “Tá vendo aquele ali? É morador da Ilha das Flores, come lixo com os porcos”.

ILUSTRAÇÃO: JÚLIA MARQUES

Enquanto cozinha o almoço, ela descarta um dos tomates que não estava em tão boas condições para o consumo de sua família. Ao ser jogado no lixo, o tomate segue caminho no caminhão do lixo para a então Ilha das Flores. Lá, um criador de porcos utiliza dele, e de todo o lixo orgânico que chega junto, para alimentar seus animais. Os alimentos que não são utilizados para esse fim, por falta de qualidade para alimentar os porcos, são dados aos moradores da Ilha das Flores, que observam atentos a seleção do que vai virar comida de porco ou o que, talvez, vire o seu almoço. Quando todo o lixo orgânico que vai para os porcos é retirado, grupos de mulheres e crianças são convidados a catar o restante, podendo levá-los embora para as suas casas.

O curta, que ganhou da Abraccine o título de melhor curtametragem brasileiro da história, termina com uma citação de Cecília Meireles sobre liberdade e o sonho humano.

“Não há ninguém que explique, e ninguém que entenda”. A contemporaneidade da obra é alarmante e assustadora. Essa face da fome no Brasil ainda pode ser vista em várias Ilha das Flores ao redor do país. É a realidade de muitas pessoas, ao Sul e ao Norte.

E o que foi dito por Jorge Furtado há 30 anos atrás, não irá mudar com declarações vazias de um presidente, que negam a existência desse enorme problema social.

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Cine Eldorado Resistência e amor ao cinema Por Paulo Junior

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uazeiro do Norte resguarda em sua história muitos feitos, muitos lugares marcam seus afãs culturais, tornam-se detalhes inseparáveis da rotina em cidade, ou em lembrança. Assim, como quase todo o país, o Cariri viveu o apogeu do cinema de rua, grandes salas, exibições lotadas, ambientes que respiravam cinematografia. Os filmes despertavam ardores sentimentais, reuniam a cidade diante da própria cidade.

FOTO: FELIPE OLIVEIRA

Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha se destacam como as cidades que aglomeram o maior número de salas de exibição, desde o Cine Casino Sul Americano, até o Cine São José. No entanto, sem dúvidas, aquele que mais exacerba a memória e marca a rotina da terra Juazeiro, é o Cine Eldorado. Este, se mistura nas lembranças dos antigos com o dia a dia do centro, das suas ruas.

O Cine Eldorado foi inaugurado no início dos anos 1940 pelos irmãos Otacílio Almeida e José Almeida. Apaixonados por cinema

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e com grande tino empresarial, investem e abrem as portas daquele que era o maior cinema da cidade, aglomerando facilmente um grande público para suas exibições. Neste processo, o Cine Eldorado atinge seu apogeu entre os 1960 e 1970, chegando a realizar cinco exibições diárias. Nesse trajeto, filmes como O Ébrio de 1946 ou Os Dez Mandamentos de 1956 eram tarimbados como eternos sucessos, sempre que exibidos reuniam uma legião de assistintes.

Vivendo com a concorrência da televisão, o cinema de rua inicia seu processo de declínio, começa a perder público e as exibições passam, em alguns casos, a não mais sustentar as instalações. Diante de quadro semelhante, sofrendo com os novos meios de contato com os produtos audiovisuais, em 1982 os irmãos Almeida se desfazem do cinema. Este é adquirido por Expedito Costa, notório empresário do ramo de exibição cinematográfica da época, chegando a deter um total de dezessete salas de exibição em diversos estados do nordeste, com a maioria no Ceará. Expedito reaviva o Cine Eldorado, dá-lhe um novo fôlego, novo ânimo a viver e resistir.

Essa resistência segue duradoura, estende-se até os prólogos dos anos 1990. Entretanto, o cinema se reconfigura, a vida em cidade se molda em outros formatos e o Eldorado vai, aos poucos, se esvaindo. Expedito Costa tentou de diversas formas manter o ambiente vivo, como cinema, teatro ou ainda, centro cultural, no entanto, a falta de apoio fez com que o antigo cinema de

FOTO: FELIPE OLIVEIRA

Juazeiro se fechasse totalmente. Seu espaço deixou de abrigar cadeiras em 2007. No vazio que elas deixaram, instalaram-se carros que ocupam o estacionamento Eldorado, entretanto, sem o brilho que havia outrora.

Todavia, tal qual teve início esse texto, reafirma-se, o cinema é ardor de paixões, afetos. Ele próprio demanda sensações e as desperta. Defronte a isso, em 2008 ressurge aquele que parecia morto, renasce o Cine Eldorado. Senhor Edimilson Martins, aos hoje 86 anos, cuida pessoalmente das exibições. Sua fala cálida e apaixonante denota seu fervor pela arte da fotografia em movimento.

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Uma união que incluiu senhor Edimilson, Francisco Humberto Bezerra e o próprio Expedito Costa traz de volta o cinema de rua.

Francisco é o primeiro a trazer à tona o desejo de remontar um cinema nas ruas de Juazeiro, Senhor Edimilson vem em seguida, assume o cargo de cuidador e curador do cinema. Expedito, em uma ação de reavivação do passado, ainda presente, cede as cadeiras do antigo Eldorado e permite o uso do nome secular.

Assim, renasce um ano após decretado seu fim, aquele que parecia inanimado.

Senhor Edimilson conta que a proposta sempre foi reencontrar naquela pequena sala, agora para cinquenta pessoas, um lugar de afago e afeto, ambiente de quem gosta de cinema, de conversar sobre. Assim, ele o faz. Em 2019, ao ir a Cantina Zé Ferreira, atual local do Cine Eldorado, é impossível não subir as escadas e enxergar a sala de exibição, seu ar rústico, antigo, marcado tacitamente pelo tempo, pelo agora. Lá, a tela segue intacta, os assentos têm luz privada, particular. Ao fundo senhor Edimilson senta e projeta o filme do dia. É possível ver seu sorriso, ver seu olhar de amante que não tem fim. Amante do cinema preto e branco, legendado, moderno. O professor aposentado se reencontra em sua paixão original.

Conta que já foi dono de cinema, o Cine Odeaon, em Várzea Alegre. Mas teve que deixar o Odeon no passado ao mudar-se

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para Juazeiro do Norte e ingressar na profissão de professor.

No entanto, nunca deixou o cinema, tornou-se frequentador assíduo do Eldorado. Sofreu com seu fim, sofreu com o cinema de shopping que, segundo ele, preza por uma socialização vazia.

Senhor Edimilson diz que “o cinema sempre viveu com dificuldades, desde que começou”. Isso se repete na atualidade, ele conta que se decepciona ao ver algumas sessões do cine Eldorado quase que vazias, mas não desiste, se decepciona e exibe novamente. Pede indicações e deseja que aqueles que indicaram os filmes venham vê-los, algo que ainda não aconteceu. Senhor Edimilson é a vida deste novo Eldorado da cantina de Zé Ferreira.

FOTO: FELIPE OLIVEIRA

Enquanto no térreo ouvem-se alguns barulhos, o som da cidade que vibra no primeiro andar é diferente. Rima em outros tons, tons de presente e passado. O olhar deste simpático senhor é cativante, é um convite ao retorno.

O novo Cine Eldorado é um lampejo de esperança, senhor Edimilson o vaga-lume que conduz essa pequena luz em meio a grandes clarões. Resiste ali na Avenida Padre Cícero, 158. Resiste em uma cidade que, vez ou outra, parece não notar sua existência.

Resiste em alguns olhares que de tão frequentes já são íntimos do curador. O novo Cine Eldorado não encontra o mesmo sucesso, mas guarda entre as suas características marcantes a perseverança.

Senhor Edimilson diz que, talvez, seja preciso divulgar mais, tanto espaço, quanto os filmes escolhidos. Mas, por hora, é importante dizer, há um cinema de rua em Juazeiro do Norte. Vamos ao cinema? Vamos, diga que sim. Vamos sentar-nos em poltronas de madeira, ver os filmes que marcaram época, antes e agora, vamos conversar com senhor Edimilson, ouvir suas histórias, sentir o ar do Eldorado de outrora. Vamos ao cinema?

ILUSTRAÇÃO: JÚLIA MARQUES

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bacurau um contraponto Por Paulo Rossi

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Corte Seco acredita na potência do diálogo e no importante papel que a proposição de ideias, principalmente contrárias, desempenha na formação crítica de seus leitores. Por isso, a seguir apresentamos dois textos sobre Bacurau, filme de 2019 de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. O primeiro é a estreia de uma nova sessão da revista: a contraponto, criada com o intuito de provocar e abrir novos olhares para além dos já consolidados a respeito de alguns produtos audiovisuais.

Ricardo Salmito dá o ponto de partida escrevendo um texto que, diferente do que grande parte da crítica e público pensa de forma geral, enxerga problemas em algumas perspectivas reafirmadas em Bacurau para solucionar questões inerentes ao nosso país. O segundo desenvolvido por Sarah, cumpre com o formato de resenha, abordando especialmente o aspecto social e a relação com a cidade e comunidade presentes no longa.

32 FOTO: DIVULGAÇÃO

Destaque

Faltou água (Ao Redor) Por Ricardo Salmito O Som ao redor (2012) figurou na minha lista pessoal dos melhores

Os primeiros momentos do filme me capturaram de forma muito

filmes brasileiros do período, e a expectativa era muito alta com

positiva. Havia uma série de mistérios particulares e coletivos

a chegada da novidade de seu diretor, Kleber Mendonça Filho.

rondando os personagens. Não estavam fechados em suas missões

Surpreendente foi saber que a péssima programação do cinema do

aparentes. A falta (ou o confisco) da água no sertão nordestino, a

Cariri Garden Shopping, de Juazeiro do Norte-CE, iria abrir espaço

chegada de uma moradora e o velório da matriarca importante

para a pré-estreia de Bacurau (2019). Nas vésperas da exibição, esforços para ingressos e, chegado o dia, havia gente de fora tentando entrar sem ter mais assentos disponíveis. Lá de trás, da penúltima fileira, acompanhei bastante motivado uma sala cheia para ver cinema nacional fora do circuito mainstream, este que

de uma família do vilarejo, aparentemente, conduziriam a trama. Bela fotografia, boa expectativa com as atuações e aquele Nordeste híbrido de tecnologia, comunitarismo e tradição que é mais difícil de ver nas telas. Acostumadas à revisita horizontal do cangaço, da seca e lugares imantados de estereótipos.

normalmente assume a via de produção pelas comédias ligeiras ou

Tudo ia bem aos meus olhos até o momento em que se vislumbra,

apêndices televisivos.

com direito a disco voador, uma trama para dizimar a população

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de Bacurau por uma milícia gringa em conluio com o prefeito (a saber depois). Daí, o longametragem se transforma num thriller com muitas balas de todos os calibres, realizado sob diálogos pobres, compatível com a programação regular da Orient filmes que seleciona o que deve acompanhar as pipocas e o consumo ligeiro do shopping center. E ser visto, lado a lado, com Exterminador do futuro: destino sombrio, Brinquedo Assassino, etc...

A cena em que o personagem Damiano reage aos ataques ao vilarejo com arma de grande calibre e retira parte da cabeça do inimigo, devidamente mostrada pela câmera, conseguiu o delírio da plateia, com palmas efusivas. A reação da sala de cinema foi a mesma quando acompanhei, com a minha filha, a virada dos heróis em Vingadores: guerra infinita...

Bacurau segue com tiros e mortes – de parte a parte.

Apesar de óbvio, importante esclarecer que a violência em si no cinema não é um problema. Temos em clássicos e contemporâneos, realizadores que encaminharam suas narrativas com muitas balas e efeitos especiais, muitos destinos de violência em sua resolução dos conflitos. O problema é que a violência no/do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles não recusa as fórmulas do

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espetáculo corriqueiro, neutralizando qualquer brecha revolucionária da perspectiva da (ou para ou contra) a violência. Bacurau aceita e assina a violência regular, já reconhecida e identificada nos produtos culturais da indústria do entretenimento. Não a tornou alegórica, nem desdenha dela. Ao contrário, com ela se motiva para dar em mesma linguagem, o troco...

Há uma pobreza de experiência fílmica, quando aposta na banalidade dos diálogos e deixa de lado a trama cotidiana do vilarejo, deixa de lado a água e tudo o que a envolve no sertão, e quando não desdobra a personagem vivida pela Lia de Itamaracá.

Deve ter sido apenas uma homenagem do recifense litorâneo da praia de Boa Viagem...

Na condução da trama, está presente um ressentimento nordestino pueril contra o sudeste (paulista e carioca aliados dos estrangeiros nessa grande trama para exterminar o vilarejo) e contra os gringos. Nesse sentido, os vilões, o político aproveitador e a milícia norte-americana, são um conjunto de caricaturas muito frágeis, marcando essa coisinha que a gente se acostumou nas narrativas de estabelecimento de bem e mal com muita simplicidade. A complexidade dos personagens prometida no início vai se perdendo naquele interior do Nordeste. O filme ‘esquece’ a água e sem querer tornar nada muito ampliado, de maneira descompromissada remexe num

caldo visual, mas sem fôlego, o cangaço e a Casa Grande... Em tempos bolsonaristas colou bem.

Entretanto, não há mais espaço no meu humanismo (?) piegas nem no meu vocabulário literário, cinematográfico ou vivencial para a violência (demorada e) extremada como única maneira de resolução dos conflitos, seja por eliminação ou violação do corpo do outro. E isso ser acolhido com tranquilidade pelo artista ou por seu público. É indigesto brincar de arma no Brasil (sim, Bacurau é ficção, não precisa explicar!), país já tão cotidianizado de uso, valorização, reconhecimento de pistolas e fuzis; de tentativas sem fim de liberação do porte e da posse de armas; da glorificação do armamento como entendimento de segurança, além da tranquilidade para se empunhar uma arma.

O filme é catártico. No fundo, tudo o que o expectador quer mesmo é essa passagem ao ato contra os inimigos, reais ou imaginários. Há a identificação. E a cada nova conquista de índices de exibição e bilheteria de Bacurau, mais fica demonstrado que ele está

Já ampliamos, enquanto sociedade, o nosso padrão de tolerância ao horror e à violência nas imagens fartamente construídas no imaginário via pseudojornalismo policialesco televisivo, via cinemão hollywoodiano, via séries da Netflix, via grupos de extermínio, via milícias etc. E o filme segue o fio nessa direção.

O próprio personagem do ex-‘criminoso’ Pacote não sensibiliza nenhuma contradição com seu retorno ao regular do nome/prática de assaltante. Lunga vem aclamado ‘para resolver’. Na urgência, vamos todos de violência mesmo. Até porque, a violência é um sistema infinito (Roland Barthes)...

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integrado ao fluxo regular do que tem disponível no mercado do audiovisual. Tem conquistado boas bilheterias em seu início de exibição, pois serve a dois públicos e isso chega ao sucesso logo: aquele grupo inquieto e enclausurado no noticiário catastrófico de Brasil, carente de saídas possíveis para ação política e ética. E aquele que se satisfaz com a dinâmica da narrativa e boas trocas de tiro na telona.

Bacurau, sem compromisso, de forma um tanto simplória até (tudo pode ser ‘contra-argumentado’ pela distopia: se não aprofundou é porque se tratava de uma distopia; se você não entendeu é porque é uma distopia; se você não gostou é porque é uma distopia), nos faz pensar no binômio existência-resistência. E de como essas dimensões se sobrepõem. Aliás, boa parte da crítica o tem saudado como uma peça de resistência. Aquela resistência cotidiana que tem que provar a existência em primeiro lugar.

Talvez, uma possibilidade importante de resistência e de vida regular seja a aproximação que a arte possa fazer com o cotidiano. Já que é o cotidiano que marca nossa inserção sensível no mundo e nossa presença frente ao outro. Essa aproximação com o cotidiano foi buscada pelas vanguardas,

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porém não tiveram êxito pela exaustão do experimentalismo formal e pela forte tendência conceitual, que desativou esse comum, essa partilha invisível de ligação (comunicação) entre as pessoas.

Outra aproximação com o cotidiano é a operada pelos ou com os meios de comunicação de massa e a sistemática do espetáculo.

Daí, podemos dizer que vivemos em uma cultura, em que o espetáculo dita as normas de cidadania, organiza as relações sociais, estabelece valores e formata identificações. Essa se mantém operando a alto custo simbólico e cultural. E uma espécie de terceira via pode olhar melhor o cotidiano. A delicadeza (Denilson Lopes). Delicadeza como atenção ao redor, deixando abertas as portas da percepção.

Claro que não se trata de indicar o que o filme poderia ter sido e não foi. O filme fez opção por narrativa e linguagem e se sustenta.

Entretanto, a gente sempre espera que o cinema nacional, o cinema autoral nacional mais precisamente, possa dar a volta e nos oferecer um plural de experiência ou, no mínimo, outra via (estética) para seguir adiante...

Bacurau, se for política, não é resistência, mas desistência.

Desistência de palavra, de convivência e de linguagem.

Bacurau, se for, vá sabendo que as ruas vivem e ardem Por Sarah Gomes Bacurau (2019) desenhou um mosaico do agreste com elementos da cultura pop pelo caleidoscópio de uma série de ismos e fobias.

O filme pariu uma atriz, retratou o deserto da sede e apresentou o cangaço como um bicho que ruge entre nossas costelas. O longa transformou dor em espetáculo e contrapôs a necessidade de justiça com os cortes secos de um facão sanguinário.

Produzido e filmado por centenas de técnicos, artistas e demais trabalhadores de seis países, Bacurau é uma peça meio antropofágica. Embora nasça sob o olhar colonizador de uma equipe majoritariamente externa às vivências retratadas, a potência da estória preenche o vazio do comum em cena. Bacurau apresenta uma série de personagens marcantes, mas nenhuma é tão marcante quanto a cidade que dá nome ao longa.

Bacurau é uma encruzilhada. Estrela principal de uma trama meio desamarrada, a cidade ganha vida própria ao retratar a relação

mística que quem nasce no Nordeste estabelece com o território.

O nordestino é filho do chão. Essa terra de tardes modorrentas é pai, mãe e parteira. O sol que parece nunca se pôr faz borbulhar as coisas misteriosas que rompem por entre as veias de quem vence a morte por não pedir muito da vida.

Sob a mira da agenda exterminista do prefeito Tony Jr., personagem de Thardelly Lima, Bacurau é vítima de um desvio existencial. No entanto, a cidade é reinventada pela própria população, que opera nas frestas dos vazios, preenchendo espaços e reinventando a si e ao mundo.

Desse modo, Bacurau é fruto de uma

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construção comunitária potencializada pelos conflitos e afetos do vínculo social cotidiano.

Quase tudo que acontece em Bacurau acontece na rua, como se cada via fosse uma bifurcação do fim do mundo. Território de encanto, berço do movimento e via da diáspora urbana, a rua é um palco de desconfortos potentes. É na rua que as tensões criadoras subvertem as cidadanias negadas pelas estruturas castradoras.

Em um primeiro momento, a potência da rua é evidenciada na cena em que os moradores de Bacurau partilham e debatem sobre os livros, alimentos e medicamentos despejados pelo prefeito na principal via da cidade. Em especial quando Domingas, personagem de Sônia Braga, pede desculpas pelo comportamento adotado no enterro de Carmelita, personagem de Lia de Itamaracá.

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A cena aponta a importância do espaço público na manutenção da tensão dos contrários, que estabelece uma lei de discórdia capaz de desenvolver uma dinâmica conflitiva de aproximação das diferenças. Neste cenário, a ocupação das ruas é um ponto fundamental nos processos de subjetivação que possibilitam que os moradores de Bacurau estabeleçam um laço enquanto comunidade.

Invisível, o laço comunitário é responsável por transformar os espaços concretos em lugares. Tal transformação possibilita que os indivíduos preencham o vazio do comum e estabeleçam uma aliança com que se sintam confortáveis para identificarem-se como cidadãos. Todos esses atravessamentos acontecem simultaneamente e são fundamentais para a construção e manutenção do Museu de Bacurau e da Escola Municipal João Carpinteiro como territórios de segurança e memória para as personagens.

Ainda que banhado pelo sangue da morte, o chão de Bacurau reverbera a vida. Por trás das alegorias e escatologias, o filme

reflete as precaridades e potências das comunidades que resistem às lógicas e violências coloniais, imperialistas e subimperialistas.

As relações estabelecidas a partir das ruas do longa desenham a importância de reinventar afeições, reencantar cidades, subverter territórios e manter um diálogo aberto com quem mora ao lado.

No fim das contas, quem venceu o medo não foi a semente de marcela que adormeceu a ponta da língua dos moradores de Bacurau, mas o sentimento de pertencimento de quem sabe que quem nasce lá é gente. As possibilidades antropofágicas do filme abrem caminho para interpretações outras, capazes de apontar para o relógio que marca a hora de transformar a rua, esse lugar de passagem, em um terreiro de encontros. Afinal, é pela rua que Pombagira arrasta a barra da saia e é na esquina que Exu gargalha.

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vestígio

Central do Brasil O presente da professora e do menino Por Paulo Junior

O

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cinema é uma arte fluida, o tempo cabe e descabe em seus contextos. Em moldes ele se desmolda. O tempo é amigo, mas também inimigo, pois ele é o responsável pelo esquecimento, por fazer filmes que eram intrigantes, belos, desnorteadores, se perderem, esconderem-se em si mesmos.

Todavia, esse tempo também transforma obras brilhantes em clássicos. Clássicos que serão conhecidos e lembrados por um conjunto ímpar de gerações. Central do Brasil é uma dessas magníficas obras que não se encaixam no esquecimento, que não se moldam ao fundo da gaveta.

Em 2019 o filme completa vinte anos desde seu lançamento, e será remasterizado e relançado em formato DVD. O longa de Walter Salles chegou ao circuito internacional arrematando a crítica e o público, com atuações brilhantes e um roteiro articulado, ágil e

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emotivo, créditos à João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein.

Esses foram alguns dos ingredientes que alçaram o filme ao Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1998, quando Fernanda Montenegro foi reconhecida como melhor atriz. O filme esteve, ainda, no Globo de Ouro e no Óscar, nas categorias de melhor filme estrangeiro e melhor atriz.

anos atrás exigia que Dora escrevesse cartas, o de hoje, exigiria que Dora as explicasse. A sociedade tornou-se funcional, e neste processo encontrou alguns desvios que a encaminharam em direção a uma série de pausas. Atualmente, na escrita de Dora, ela estaria parada diante de uma vírgula. Nesta pausa, Dora olha o que veio antes, e se questiona o que haverá depois.

Central do Brasil é aglomerado de questões, notar que as discussões do filme ainda são atuais, perceber que a sociedade de vinte anos atrás segue por passos semelhantes é, no mínimo, assustador. A caminhada de Dora (Fernanda Montenegro) e Josué (Vinicius de Oliveira) não findou após as poucas mais de duas horas de filme, ela persiste. Persiste densa, importante e atual. Dora é uma mulher amargurada, sofrida, uma professora aposentada que escreve cartas no terminal central do Rio de Janeiro. Dora abarca muitas dores, angústias. É uma mulher que sente medo, do passado e do futuro. Dora escreve para quem não escreve e, assim, ela se inscreve em muitas vidas.

Entretanto, ninguém se inscreve na sua.

O filme é sutil, trabalha questões tácitas como papel de fundo a suas tramas principais. Irene (Marília Pêra) brilha, ela é o conforto de Dora, seu porto seguro, sua companheira. Entre as múltiplas camadas que o filme oferece, esta, talvez, seja uma das mais belas. Dora e Irene são duas e, ao mesmo tempo, apenas uma. Os olhares das vizinhas, o afeto que recobre cada gesto, a preocupação que perpassa cada segundo é plural, é diversa. As amigas, provavelmente, eram mais que amigas. Todavia, a vida e o corpo social do fim do século XX as postularam ao subentendido, as entrelinhas. No Brasil de 2019, da segunda década do século XXI, a sociedade ainda quer conjugar o afeto na segunda camada. Central do Brasil o conjuga assim, no entanto, não retira sua beleza, nos oferece uma outra face de entendimento, de olhar, de perspectiva.

O analfabetismo de Central do Brasil ainda existe, ele ainda ocupa espaços amplos no seio da vida e da sociedade. Evoluímos, quanto a isso não há o que se negar. No entanto, escrever, ler, não é apenas rabiscar símbolos sobre uma folha de papel, não é unicamente decodificar palavras escritas em um livro. O analfabetismo de vinte

A estrada do filme é adotada automaticamente pelo espectador, aquela viagem não é só de Dora e Josué, é de todos, é minha, é sua, caro leitor. Reside naquela viagem uma centena de convites.

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Convidados à paisagem, vê-se a transformação da fotografia, antes urbana, passa a ser rural. Nesta mudança, Walter Salles entrega uma referência de Nordeste e de Nordestino. Ora estigmatizante, ora sinônimo plural de resiliência e resistência. A imagem do Nordeste é interior, é privada, é conhecida. Um convite à reflexão, a percepção das dores que tanto marcavam e, ainda marcam essa terra. Há no campo de diálogo do filme um debate sobre pobreza, sobre segregação, sobre ausência. Ausência de um Estado que se permitiu a cegueira e o esquecimento. Esqueceu de sua gente, do povo que fez e se faz Brasil.

Quanto a isso evoluímos, hoje o silêncio é menor, a ausência não mais tão sentida, a entrada do século trouxe mudanças,

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Salles precisaria atualizar sua imagem, recompor sua fotografia.

Entretanto, existe uma estranheza neste momento: ao completar vinte anos, Central do Brasil pode voltar a representar a dor de outrora, pois neste tempo, o tempo passou, a política mudou, os nomes mudaram. Hoje, Dora também teria medo do futuro, medo do que aconteceria com o menino Josué.

O filme é um laço de encontros e de apoios. Dora e Josué são os companheiros maiores da caminhada, e não é possível falar deste filme sem falar de mudança. Os protagonistas são o arauto da transformação. Dora sofre, sofreu a vida inteira, foi marcada pela saudade, pela orfandade, pela tristeza, tudo a amargurou.

Josué, irritadiço, é o afã do medo. Ele tem medo da ausência, do amanhã, da dor e mais recentemente, medo de perder Dora. Eles se entregam um ao outro, a estrada que os leva do Rio de Janeiro à Pernambuco é luminar, os aproxima, os encontra. Ao final, Dora é outra transformada por Josué, e ele também é outro transformado por ela. Ao final do filme, não há mais medo, há saudade. Saudade do que viveram, do laço que criaram, da amizade fincada. Saudade do que não virá.

Central do Brasil é um grito denso, forte, cortante. Penetra no espectador, agarra-se em questões de cunho subjetivo e as amplifica. O filme não envelheceu, ele é jovem, ele é o hoje com alguns detalhes de passado. Central do Brasil é também, um abraço

de esperança, de otimismo, de doçura. Ao final Dora chora e sorri, em um aglomerado de sensações. Josué faz o mesmo.

Ambos olham por um pequeno monóculo e se veem no passado e no presente. Dora e Josué são poesia e em 2019, ainda fazem qualquer um erguer as mãos ao rosto e secar as lágrimas diante da professora e do menino.

Premiações Urso de Ouro Prêmio BAFTA de Cinema Melhor Filme Estrangeiro Prêmio Globo de Ouro Melhor Filme Estrangeiro National Board of Review Melhor Atriz

Satellite Award Melhor Filme Estrangeiro Círculo de Escritores Cinematográficos Melhor Filme Estrangeiro Silver Condor Award Melhor Filme Estrangeiro Prêmio do Júri Ecumênico

Urso de Prata Melhor Atriz

Los Angeles Film Critics Association Award Melhor Atriz

National Board of Review Melhor Filme Estrangeiro

Nastro d’Argento Best Female Dubbing

INDICAÇÕES Oscar Melhor Atriz Melhor Filme Estrangeiro Globo de Ouro Melhor Atriz em Filme Dramático

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César Melhor Filme Estrangeiro Satellite Award Melhor Atriz em Filme de Drama Prêmio Independent Spirit Melhor Filme Estrangeiro Prêmio David di Donatello Melhor Filme Estrangeiro

National Society of Film Critics Award Melhor Atriz Prêmio Amanda Melhor Filme Estrangeiro Satellite Award Melhor Roteiro Original Guldbagge Award Melhor Filme em Língua Estrangeira Chlotrudis Award Best Atriz Online Film Critics Society Award Melhor Filme em Língua Estrangeira

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Ensaio

TRAINSPOTTING ESCOLHA A VIDA Por Manoel Cunha e Yago Pontes

E

scolha a vida, escolha bater palmas para qualquer decisão autoritária e censuradora do presidente, escolha viver na ilusão de que apenas um grupo é o culpado por toda a desgraça nacional, escolha o preconceito, a homofobia, o machismo e o racismo, escolha os extremos que separam e a harmonia que dissoa, escolha demonizar religiões desconhecidas e escolha a violência como forma de resolver todos os problemas.

Trainspotting - Sem limites é um filme de 1996 baseado no livro homônimo de Irvine Welsh. Tudo se passa na Escócia, onde Mark Renton, seus amigos viciados em heroína (Spud e Sick Boy) e seus amigos não viciados (Begbie e Tommy), tentam achar algum significado na vida de uma juventude radical e perigosa. Vamos sair do enredo da Wikipédia e partir para o ponto principal: a transgressão de cada um dos personagens.

Esse é o conceito básico do discurso inicial e que rodeia todo o primeiro filme, ou seria, caso Renton vivesse no Brasil de 2019. Ainda assim dialoga muito bem com o período original.

Mark Renton, ou Rent Boy para os mais íntimos, é o personagem dual e problemático que protagoniza a história. Renton tem uma família acolhedora e presente, teve aparentemente, uma formação

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normal e uma vida de todas as formas possíveis, enquadrada no cotidiano ordinário escocês.

Mark é o Vazio. Renton representa a classe operária estrangulada pelos projetos Thatcheristas que assolaram o Reino Unido, e cresceram sem propósito e sem esperança de alcançar qualquer paz interior ou significado. A realidade de um dia após o outro, o prazer fácil e excessivo trazem conforto com o vício em heroína.

A jornada se desenvolve enquanto ele tenta desesperadamente e sem sucesso acabar com a dependência.

Renton tenta parar o vício desde o começo do filme e a cada tentativa acontece um novo fracasso. Mas, mesmo com toda essa dificuldade de se manter sóbrio, ele vai ser a alma mais transgressora da história. E como transgressor, todo o discurso do “escolha a vida” ou “choose life”, no original, vem da sua boca, como uma paródia de um slogan antidroga dos anos 80. O texto vem carregado do sarcasmo e desilusão que permeia a mensagem em si: seja só mais um, escolha o conforto cegante ao invés da realidade libertadora. Essa ironia imunda e fadada ao desespero é o mote central do tema da obra de Irvine Welsh.

Esse cenário decadente traz o arquétipo do personagem principal: Renton é sujo, dissimulado e arrogante. Um personagem que trai os próprios amigos para conseguir sucesso em sua vida que se via

“A transgressão jovem, importante para mostrar a busca pelo preenchimento do vazio social e existencial, traz suas consequências, por vezes mortais. ” arruinada, não pode ser considerado uma boa pessoa, mas nós simpatizamos e empatizamos com suas dores. Essa traição é a maior transgressão do personagem na trama, já que se mostra o mais fiel dos amigos, emprestando o dinheiro para comprar as drogas, mesmo depois de já ter parado de usar para tentar viver uma vida normal em Londres. Este é o ápice da questão da lealdade e felicidade sonhada por Renton e descoberta no seu período longe do bairro do Leith, até a chegada de Begbie e Sick Boy na sua casa, após uma tragédia ligada ao passado, gatilho este para Renton largar o seu emprego e voltar ao ambiente perigoso das drogas que tanto tentara fugir.

Dessa visita, Simon Williamson, o infame Sick Boy (melhor amigo de Renton e talvez o melhor imitador de Sean Connery da Grã-Bretanha), é o arquétipo da superação da liberdade e desprendimento das amarras sociais. Sempre bem vestido preferencialmente de terno - e com fala formal, na tentativa de

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se tornar o próprio James Bond que Connery interpretou. Esse personagem se assume traidor, podendo fazer qualquer coisa para obter o sucesso que deseja. Sick Boy é mais que um braço direito orgulhoso e calculista: ele é manipulador, um títere em busca da satisfação pessoal através dos outros com seus planos mirabolantes de vender drogas. Por vezes Sick Boy briga com Renton devido às discordâncias dessa âncora moral que separa e gradualmente afunda os dois amigos. Quase como imãs, a atração entre eles é imediata, porém por vezes repulsiva. A sua transgressão é a mais pura possível, sendo ele, dentro de seus próprios interesses e pouco resquício de valor moral/social, o responsável pelo ato final do filme original, quando oferece a oportunidade de dinheiro fácil para os amigos traficando drogas e quando transgride sua própria lei pessoal: ao herdar a moralidade de Renton, ele se abstém da ação óbvia do seu personagem ao não roubar o dinheiro, e aprofundar suas relações.

Os olhos caídos e lânguidos de Daniel Murphy, Danny ou Spud, mostram o personagem que mais sofre por causa da droga, ao mesmo tempo

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“ É assim que se cria a discussão dos filmes: a necessidade da transgressão enquanto superação do sistema, a busca por felicidade e as consequências que podem vir por conta de tais atos.” atos.” que expõem a fragilidade da sua alma gentil e essencialmente boa. Tendo problemas decorrentes disso e um descontrole sobre o próprio corpo e ações que fazem com que perca sua namorada, família, e vida da forma mais geral possível. É o alvo de piadas mais fácil do grupo, já que sua postura é lenta e ele quase sempre está em alguma viagem por causa da heroína. Renton sente pena de Spud, em parte por conta da sua inocência e lealdade aos amigos, como também por saber que o sistema social corrompe os mais fracos, empurrando-os à miséria. Esses fatos trazem compaixão ao plano, fazendo com que seja ele o único personagem a receber a parte do dinheiro após a traição no fim do longa. Pelo merecimento e lealdade. Danny é preso, é solto e volta às drogas, futuramente perde sua esposa e sua filha no divórcio, sofre de depressão, tentando se matar por não ver mais solução para sua vida, destruída pela heroína. A transgressão de Spud se revela com a quebra da revelação do crime, sua prisão, e no fim, a volta a uma prática de atos ilícitos para reerguer o seu vício.

Um pouco em segundo plano há Tommy. Atlético, inteligente, gentil e que ama sua namorada, que não usa drogas de nenhum tipo, lícitas ou ilícitas, mas ainda assim não julga os amigos que usam: o arquétipo da perfeição no ambiente destruído. Esse é o personagem ideal, que serve de experimento social de como a ruptura com o padrão e a ausência de esperança levam a um espiral decadente. Tommy se transforma quando uma fita de sexo com a namorada desaparece (essa que foi roubada por Renton), causando uma briga e o término dos dois. Assim, ele perde o chão e sanidade, para de se exercitar, encontra conforto e escapismo na heroína e vira um espectador da própria ruína da vida. Tommy é uma baixa causada pela transgressão dos amigos, principalmente enquanto é o mais recente dos usuários de heroína e provavelmente o mais desregrado. O personagem em destaque sai de modelo para apenas mais um número na lista de doentes da calamidade pública causada pela heroína. A transgressão jovem, importante para mostrar a busca pelo preenchimento do vazio social e existencial, traz suas consequências, por vezes mortais.

A transgressão do personagem é perder o senso de realidade e se deixar cair no mesmo problema de seus amigos.

Por fim, e talvez o mais curioso: Francis “Franco” Begbie. O personagem mais contraditório do enredo do filme. Não usa drogas ilícitas, pois é “coisa de idiotas que envenenam o corpo com essas merdas”, porém sofre de alcoolismo, de um descontrole

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de temperamento descomunal advindo de traços psicopatas que se traduz no seu maior vício: violência indiscriminada. O personagem representa o dilema do homem branco frustrado.

Destinado a coisas boas diante do histórico social, Begbie falhou na vida. O temperamento agressivo se molda a partir da falta de controle sobre todos os aspectos da sua vida, e também pela sua homossexualidade reprimida. Sim, conforme explicado pelo ator Robert Carlyle - e também endossado agora pelo autor Irvine Welsh - Begbie destila seu ódio como resposta à própria existência, ao passo que não se permite ser quem é em razão da pressão social da classe média operária.

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Ele se torna o estereótipo do homem paradoxal que necessita afirmar sua masculinidade a todo momento, mostrando os ideais de um “homem de verdade”, contrário às drogas, machista, homofóbico, temperamental, mentiroso e extremamente violento. No fim do filme, Begbie surta após a traição de Renton e ao destruir o quarto do hotel em que estavam hospedados é finalmente preso. A transgressão do personagem aparece na negação da própria identidade e a busca por se encaixar nos “elevados” padrões que a sociedade impõe. A frustração que advém disto se converte em ódio e brutalidade, ainda que se importe, minimamente, com seus amigos.

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Então vamos para a segunda parte da história: as consequências adultas da transversão.

T2 - Trainspotting é uma sequência inusitada e muito bem feita, mostrando muito bem o efeito que cada um dos personagens tem 20 anos depois do ocorrido no primeiro filme. A história é centrada no reencontro de Mark Renton com seus ex-amigos ao voltar para Edimburgo, em como cada um lidou com o evento de cisão há 20 anos atrás e suas vidas atualmente.

O filme dialoga muito com as experiências passadas. A existência atual de cada um dos personagens está ligada diretamente aos momentos de auge da juventude. Temos um Renton que percebe que o vazio continua lá, um Simon que luta para ser alguém indo contra a maré do sistema e que falha repetidamente; um Spud suicida com a vida que o afastou de seus entes queridos; e um Begbie que está preso há “20 malditos anos” na Penitenciária Real de Edimburgo.

Passado. Todos eles são figuras com sonhos congelados da juventude, que não conseguiram superar as próprias questões e desafios pessoais em oposição ao sistema opressor da classe média. Ao mentir sobre a sua vida quando em seu primeiro encontro com um já calvo Sick Boy, Renton mente ao fantasiar uma vida perfeita. Um misto de rivalidade com o seu melhor amigo e

esperança numa renovação. Sim, Renton está finalmente livre das drogas, e sim ele é um contador, porém demitido, sem família, sem amigos, que retorna para sua cidade após um ataque cardíaco que o faz repensar a vida. O ideal de vida que Mark Renton tenta construir não consegue ser realizado, e por esse motivo a volta para Edimburgo tem que ser definitiva. Toda a história de T2 é contada pela volta do personagem e as consequências que isso traz para a vida dos seus ex-amigos, todas arruinadas de alguma forma pelas próprias escolhas e, acima de tudo, ressentimento. A ruptura de Renton com o próprio ideal de transgressão que foi cultivado durante sua vida a torna supérflua. Isso o faz reassimilar toda a ideia de “escolher a vida” que ele abominava na juventude, junto da revolução no estilo de vida, numa busca de entrar no meio social e reaver uma vida semi-pacata que fora perdida na juventude.

O primeiro da sua lista de contatos é Spud, que se encontra divorciado, desempregado após um período semi-estável como trabalhador na construção civil. Daniel “Spud” Murphy nunca se recuperou. A sombra do “não se encaixar” o manteve preso ao conforto da autopiedade e autodestruição. Sem família, sem amigos e sem emprego, a depressão assola Danny, que tenta cometer suicídio no momento que o ex-amigo Mark vai visitá-lo.

Após salvar Spud, uma briga se inicia, muito frequente no filme, e esse é o momento em que este revela que Renton estragou a sua vida quando deixou a parte que lhe cabia do dinheiro. A raiva

“ Os olhos caídos e lânguidos de Daniel Murphy, Danny ou Spud, mostram o personagem que mais sofre por causa da droga, ao mesmo tempo que expõem a fragilidade da sua alma gentil e essencialmente boa.”” concentrada em seus próprios fracassos faz com que Spud culpe Mark pelos próprios problemas.

O próximo da lista. Sick Boy, agora apenas Simon Williamson, é proprietário e administrador do Port Sunshine, bar da tia, um lugar decadente na parte fracassada do fracassado Leith na Escócia.

Sem clientes além de um ou outro idoso, fica claro que o local não possui futuro. Além disso, o imitador de Sean Connery aperfeiçoou seus golpes, e junto com a “namorada” Veronika, produz sex tapes incriminadoras de pessoas importantes em Edimburgo.

Simon se recusa a aceitar que foi deixado para trás. Os anos de beleza e juventude se foram, dando lugar a um calvo e mal resolvido homem de 40 anos. Ainda na busca de não se render ao sistema, ele continua à margem da sociedade ao mesmo tempo em que quer ser um dos líderes dessa sociedade, o que o torna

frustrado e apegado a última grande oportunidade de 20 anos atrás. Depois da briga com Renton, todo o rancor que foi guardado por Sick Boy durante esses 20 anos é espalhado, principalmente pelo fato de que não foi ele o trapaceiro, fazendo-o se sentir fraco e impotente. Ao passo que começa a se envolver novamente com Renton, seu caminho cruza com o de Begbie, que permite que sua luta contra a compaixão ganhe o centro duelando com o amor de irmão que sente por Mark.

Por fim, o já citado Franco Begbie passou todos esses anos na cadeia, e após ter sido enganado por Renton e perder o seu dinheiro, o ódio e rancor tomam formas mais determinadas. Begbie arquiteta um plano e consegue fugir da cadeia após uma colega de cela espetá-lo de forma não letal, mas eficaz o suficiente para que Franco tenha de ir para o hospital, de onde ele foge. Voltando pra casa, Begbie conhece o filho e

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volta a falar com a esposa. Além do ódio, agora ele vê problemas familiares, com um filho que escolhe ser um membro efetivo da sociedade, rejeitando o modo de vida violento do pai e a recém descoberta impotência sexual.

Sobre esta última, ela dialoga com o arco da homossexualidade de Franco e seu prazer na violência. Sua mulher não o excita, tabletes de Viagra não são suficientes para instigar a sua virilidade masculina em caráter sexual. Mas ao reencontrar Renton, no auge de uma perseguição e com agressão física real, begbie se vê vivo novamente, no auge de sua potência sexual canalizada pelo homem oposto e a fixação da violência como conjunção entre os personagens.

A história na sequência mostra homens que não sabem seus lugares no mundo e que não podem mais almejar nada além da morte. Congelados em seus dilemas e problemas não resolvidos

da juventude, esse quarteto luta para ser relevante enquanto o passado ainda joga uma sombra larga e escura sobre cada um deles. A reminiscência sobre a morte de um amigo e uma filha, uma sessão de injeção de heroína ilustram a covardia em fugir das questões mais profundas da alma buscando apenas o próximo momento de prazer ou escapismo.

segurança do conforto do lar ou o abraço de um ente querido.

Escolha a transgressão, escolha lutar pelo que acha certo e no final abra uma cerveja e celebre a vinda de mais um dia, de mais uma luta. Escolha o futuro. Escolha você mesmo. Escolha a vida.

É assim que se cria a discussão dos filmes: a necessidade da transgressão enquanto superação do sistema, a busca por felicidade e as consequências que podem vir por conta de tais atos. O pertencimento, a dúvida, os medos e o ressentimento são forças motrizes dessa história tragicômica que faz repensar a sociedade que não está no mesmo lugar dos 3% que detém a riqueza. No meio de tanta riqueza, esquemas, ódio, perdão e traição, a verdadeira felicidade, como mostrada nos minutos finais de T2 - Trainspotting é a aceitação de quem somos, e a paz de espírito que vem com ela.

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A reflexão de Begbie, ao ler os relato de Spud - excertos inteligentemente retirados da obra literária que dá origem ao filme - mostra um leve insight num dos raros momentos de introspecção e ponderação que surgem da história do encontro do grupo de amigos com um bêbado na estação de trem do Leith.

Escolha o que você precisa, o que te faz feliz ou o que te faz sobreviver, escolha a rebeldia de não aceitar as imposições, a

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Inferninho um ousado e inventivo cinema contemporâneo cearense

Por Bárbara de Alencar e Rodrigo Capistrano Ilustrações por Júlia Marques

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Cinema Contemporâneo Cearense Atualmente observamos uma grande diversidade temática e estilística entre os filmes realizados no Ceará, assim, podemos afirmar que o estado encontra-se em um momento ímpar da sua produção audiovisual, além das constantes atividades de cineastas, coletivos, produtoras e cineclubes, que desenvolvem sistematicamente ações voltadas para a produção, exibição e reflexão do audiovisual no estado.

Muitos filmes tem se destacado no cenário nacional e internacional, especialmente nos festivais e circuitos alternativos de exibição, fazendo com que o cinema desenvolvido no Ceará seja alvo de muita curiosidade e debates acalorados, se afirmando como um importante núcleo de realização, e demarcando um espaço na produção cinematográfica nacional. Acreditamos que esse poder de alcance está ancorado na própria diversidade das obras. É de toda uma pluralidade

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de realizadores jovens, e veteranos, que surgem caminhos e interesses distintos. Os filmes dirigidos e produzidos no estado englobam desde obras com aporte e apelo comercial, até filmes autorais e de maior experiência de linguagem.

Nos últimos quinze anos foram muitas as realizações cinematográficas cearenses de longa-metragem produzidas.

Destacando aqui, apenas as obras com caráter narrativo ficcional, podemos elencar filmes de reconhecimento do público e da crítica, como os trabalhos de Karin Aïnouz: Céu de Suely (2006), Praia do Futuro (2014) e A vida invisível (2019), este último premiado no Festival de Cannes de 2019, e escolhido como o pré-indicado para representar o Brasil no Oscar 2020; obras arrojadas e inovadoras dentro do cenário cinematográfico nacional, como aquelas realizadas pelo veterano Rosemberg Cariry, Cine Tapuia (2006), Os pobres diabos (2013) e Notícias do fim do mundo (2019), e seu filho Petrus Cariry, O grão (2007), Mãe e filha (2012) e Clarisse ou alguma coisa sobre nós dois (2015); longas-metragens de maior apelo comercial que renderam boas bilheterias, caso das comédias de Halder Gomes, Cine Hollywood (2013) e Cine Hollywood 2: a chibata sideral (2018), e os trabalhos de temática espírita Bezerra de Menezes: o diário de um espírita (2009), dirigido por Glauber Filho e Joe Pimentel e As mães de Chico Xavier (2010), de Glauber Filho e Halder Gomes; além de obras de realizadores

que construíram suas carreiras ocupando diversas funções no meio audiovisual, e que demonstraram grande ousadia e sensibilidade em seus primeiros longas, caso de Roberta Marques, Rânia (2011) já exibido no Cineclube UFCA -, Alexandre Veras, Linz: quando todos os acidentes acontecem (2013), Armando Praça, Greta (2019) e Allan Deberton, Pacarrete (2019).

Além da produção já relacionada, os trabalhos que identificamos com maior radicalismo estético, em se tratando de experimentalismo na linguagem audiovisual, são os filmes assinados pelas produtoras Alumbramento e Tardo Filmes, destacando-se: Estrada para Ythaca (2010) e Os monstros (2011), dirigidos por Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti; Doce amianto (2013), de Guto Parente e Uirá dos Reis; A misteriosa morte de pérola (2014), de Guto Parente e Ticiana Augusto Lima; Medo do escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo; O animal sonhado (2015), longa-metragem em episódios realizados por Breno Baptista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto Lima e Victor Costa Lopes; Com os punhos cerrados (2015) e O último trago (2017), com direção do trio Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti; O estranho caso de Ezequiel (2016) e “O clube dos canibais (2018), ambos de Guto Parente; e Inferninho

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(2018), com direção de Guto Parente e Pedro Diógenes. Todos esses filmes assinados pelas duas produtoras cearenses tiveram boa circulação nacional e internacional em festivais de cinema, alcançando em maior ou menor escala elogios e reconhecimento da crítica especializada, faltando apenas maiores possibilidades efetivas de distribuição destas.

Inferninho foi uma das poucas obras citadas que chegou a ser exibido em salas comerciais de cinema do país, filme que consideramos um dos mais instigantes e inventivos dessa recente safra cinematográfica cearense.

Inferninho (2018) My Own Private Hell, ou Inferninho (2018), é uma produção de longa-metragem cearense, 100% independente e de baixo orçamento que acabou ganhando o Brasil e o mundo, conquistando reconhecimento nacional e internacional.

O filme já foi exibido em mais de dez países e teve estreia mundial no Festival de Rotterdam, na Holanda. Na bagagem, a produção já coleciona quase 10 prêmios: em Portugal foi o Melhor Filme no Festival Queer Lisboa; em Recife o grande

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vencedor da XI Edição do Janela Internacional de Cinema, conquistando os prêmios de Melhor Filme e Melhor Imagem, do Júri Oficial, e de Melhor Filme, do Júri da Crítica; em São Luís foi aclamado na Mostra Internacional de Cinema como Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Ator; e no Festival do Rio foi agraciado com um prêmio especial do Júri, da Première Brasil – Novos Rumos, e o Prêmio Félix.

A produção do filme foi executada através de uma parceria entre a produtora de audiovisual Alumbramento e o Grupo Bagaceira de Teatro. O projeto iniciou-se ainda em 2013, como parte da primeira edição do Laboratório de Cinema do Porto Iracema das Artes, chegando a ser pensado como uma peça teatral, transformandose em uma série de TV dividida em quatro episódios e, por fim, tornou-se um longa-metragem. A partir desse laboratório a primeira proposta de roteiro foi desenvolvida, tendo o filme finalmente viabilizado através de recursos do Edital de Cinema da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará e da Ancine/FSA. Os dois grupos artísticos envolvidos são de Fortaleza, valendo reforçar, também, que os diretores Guto Parente e Pedro Diógenes trabalham juntos desde o início de suas carreiras: “Uniram um grupo de teatro e um coletivo de cinema que, em um processo de intensa troca e contaminação, construíram juntos o Inferninho para falar do amor e da fantasia, como possibilidades de resistência dentro de um contexto atual, onde direitos básicos são negados,

as minorias são rechaçadas e o moralismo se torna cada vez mais dominante”, revela Guto Parente em uma entrevista para o site do Dragão do Mar. Ousado e inovador, Inferninho traz sutileza e leveza diferenciadas para as narrativas de resistência. O filme apresenta personagens enigmáticos, verdadeiros marginalizados, que acabam despertando grande empatia com os espectadores. O bar que dá título ao filme, e onde se passa toda a trama, é o lugar em que os sonhos e fantasias podem ser vividos, sendo ao mesmo tempo um refúgio e uma forma de libertação. Em uma “pegada emocional/ melodrama” o filme conta a história de Deusimar, travesti interpretada por Yuri Yamamoto, que é a dona do estabelecimento. A chegada do marinheiro Jarbas, vivido por Démick Lopes, altera a vida de Deusimar, que inicia um romance com ele, e também a dos demais frequentadores do bar. Através de um forró “melódico brega” acontece o desenvolvimento do enredo, embalando também a vida dos funcionários, especialmente Luizianne (Samya de Lavor), a cantora que acaba exercitando vários idiomas durante a trama, Coelho (Rafael Martins), o garçom atrapalhado, e Caixa-Preta (Tatiana Amorim), a faxineira carrancuda apaixonada por Luizianne.

Através desse processo híbrido entre o cinema e o teatro, o Bar Inferninho se torna um grande palco, e os clientes e funcionários, personagens dessa história. Envoltos em uma suposta fantasia, o filme trata de ganância financeira a partir da especulação imobiliária.

São realidades que penetram no enredo de forma áspera e se tornam mais atuais que nunca, apontando que é preciso resistir pela continuidade desses nossos espaços de refúgio.

Inferninho nos mostra que, além de toda a necessidade de viver os sonhos, também é importante entender nossas origens, de onde viemos e qual nosso propósito nesse mundo.

Deusimar sonha em ir embora para um lugar distante, conhecer o mundo, até conhecer Jarbas, que deseja fincar raízes. Dessa forma, o filme fala muito sobre conhecer o seu local e os seus sonhos, e nos permite entender que muitas vezes não precisamos abandonar nosso lugar de origem para poder ir atrás daquilo que queremos. O Inferninho é a casa de Deusimar, o lugar ao qual ela pertence e se sente reconhecida. Naquele bar todos podem projetar aquilo que desejam ser, fugindo das amarras de padronização da sociedade. É naquele pequeno e misterioso Bar Inferninho que aquelas personagens podem viver suas fantasias, projetando seus próprios desejos e delírios. Ou, simplesmente, todos podem ser aquilo que bem querem e pretendem ser.

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OA representatividade México além da fronteira do cinema mexicano em hollywood Por Natalia Alves

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epresentatividade. Palavra que nos dias atuais está em pauta, seja no meio musical, na literatura e principalmente no cinema. A busca pela representatividade dentro do cinema é assunto que se discute há muito tempo, e que todos os dias tem maior impulsionamento, a partir de novos produtos áudiovisuais que criam um novo espaço dentro do cinema.

56 CORTE SECO

O cinema mexicano chega a hollywood como um dos impulsionadores da criação de um novo espaço dentro do cinema como nós conhecemos, dando voz e vez para novos produtos e discussões. Grandes produtores mexicanos como Guillermo del Toro, Alfonso Cuarón e Iñárritu – conhecidos como “los tres amigos” – abrem espaço dentro do cinema

hollywoodiano, com filmes no gênero de ficção científica dentre outras produções famosas.

Guillermo del Toro marca sua carreira dentro do cinema hollywoodiano com o filme O labirinto do Fauno, fazendo uma dura crítica ao fascismo espanhol, o que rendeu ao longa a indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Roteiro Original em 2007. Em 2018 o diretor volta a ser indicado a premiação nas categorias de Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor e Melhor Filme com o longa A Forma da Água, onde o mesmo leva duas estatuetas, sendo uma delas a de Melhor Filme.

Em seu discurso no Oscar de 2018, Guillermo fala da importância do reconhecimento de que o cinema mexicano pode contribuir para cultura e arte dentro do cinema hollywoodiano. O diretor também falou sobre a confiança das pessoas umas nas outras, principalmente em momentos de grande medo. O discurso foi visto como uma mensagem para os imigrantes mexicanos dentro dos Estados Unidos, que sofrem com os preconceitos e diversos problemas da política Trump.

Em 2019, o filme Roma do diretor Alfonso Cuarón leva o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, sendo o primeiro filme mexicano a ganhar o prêmio nesta categoria. O longa foi indicado a 10 categorias da premiação, levando as estatuetas de Melhor

Fotografia e Melhor Diretor. O filme é baseado na própria vida do diretor, dando visibilidade a vida das empregadas domésticas dentro de uma sociedade racista, levando em consideração questões sobre imigração.

Diversas produções mexicanas fazem história no cinema em Hollywood, trazendo a cultura e a representatividade para além do seu país. Filmes como Birdman e Gravidade aclamados pela crítica em todo o mundo, são produções de diretores mexicanos que batalham todos os dias para mostrar um México além de suas condições de vivência. A partir do cinema mexicano, diversos outros produtores e diretores fora dos Estados Unidos veem a possibilidade de levar suas produções para além das fronteiras de seus países.

Críticos afirmam que o cinema mexicano tem um grande desafio: fazer com que as pessoas se interessem por filmes além dos chamados “comerciais”, aqueles que trazem discursões importantes sobre representatividade e visões além do que é colocado por produções estadunidenses. O preconceito com produções de outros países existe ainda hoje, dado ao fato da falta de oportunidades para o crescimento dessas produções. O cinema mexicano em hollywood cresce a cada dia, a partir da luta de um povo silenciado por anos.

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Destaque

Vera Chytilová e a Desconstrução do Cinema Tcheco Por Alexia Mesquita

Da autora Eu só sei fazer duas coisas na vida: escrever e falar de cinema, e é isso o que farei neste texto. Pensei em começar de forma mais pessoal, já que o assunto é tão importante para o momento político em que nos encontramos.

Tem quem diga que o fazer jornalístico não é compatível com o audiovisual, que Fulano estuda Jornalismo, mas só fala de Cinema. E quem disse que essas áreas estão em lados opostos?

Se a arte imita a vida e vice-versa, a sétima arte também se FOTO: DIVULGAÇÃO

trata de uma análise antropológica, política e sociológica do contexto em que o autor e/ou a sociedade da época se inserem (uma opção não exclui a outra).

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Certa vez ouvi em um documentário (Janela da Alma) a frase “Antes de conhecer a vida, eu a vi nos filmes” e sinto que contempla a mim e a meu texto da mesma forma. No entanto, esse texto não é só meu, não deve ser só meu. É também daqueles que vieram antes de mim e dos que virão após; é daqueles que se arriscam a falar, pensar, filmar ou escrever sobre o que vivem, amam, sentem. É um texto para qualquer um que um dia já procurou refúgio na arte.

Uma ode a quem lutou contra a censura e os olhares tortos, contra deportações e até risco de vida. Cinema é risco, escrever é risco. Mais uma vez os tempos sombrios pairam sobre nós. Coragem.

Foi com coragem que se fez tantos artistas segurarem uma câmera e foi pelo medo que muitos de seus nomes foram apagados; mas alguns, nem o tempo conseguiu apagar, talvez nem se façam tão presentes no contexto da indústria cinematográfica, mas seus trabalhos ainda resistem.

Vera Chytilová é uma dessas que não passam batido. Mulher, cineasta e um dos maiores nomes da Nouvelle Vague tcheca nos anos 60. Tachada como transgressora, muito criticou o regime socialista e a misoginia da época, abordou temas fortes e proibidos, ousou falar sobre o lugar da mulher na sociedade, denunciou o estupro e a violência.

Certa vez ouvi em um documentário (Janela da Alma) a frase, “Antes Biografia de conhecer a vida, eu a vi nos filmes” e sinto que contempla a mim e a Vera nasceu em Praga e foi uma das idealizadoras da meu texto da mesma forma. No entanto, esse texto não é só meu, não Nouvelle Vague da antiga Tchecoslováquia no início dos deve ser só meu. É também daqueles que vieram antes de mim e dos anos 60. Estudou Filosofia e trabalhou como desenhista que virão após; é daqueles que se arriscam a falar, pensar, filmar ou iniciar uma carreira como modelo, que a aproximou do escreveraté sobre o que vivem, amam, sentem. mundo cinematográfico. Logo, torna-se diretora assistente É um texto para qualquer que um diaFAMU já procurou refúgio na arte. e consegue entrarum na renomada (Escola de Cinema Uma ode a quem lutou contra a censura e os olhares tortos, contra e TV da Academia de Artes Cênicas de Praga), o que a leva deportações risco decom vida.outros Cinema é risco, escrever é risco.

Mais a fazere até parcerias diretores, como Milos Forman uma vez(Um os tempos sombrios pairam sobre nós.

Coragem.

Estranho no Ninho).

Foi comAcoragem quefoi se considerada fez tantos artistas segurarem uma Nová Vlna a Nouvelle Vague dacâmera antigae foi pelo medo que muitos de seus nomes foram apagados; mas, alguns, nem Tchecoslováquia (hoje, República Tcheca e Eslováquia), o tempo conseguiu apagar, talvez nem se façam tão presentes no contexto ou seja, foi um movimento que objetivou criar uma da indústria cinematográfica, mas seus trabalhos ainda resistem. nova estética cinematográfica, que cortasse com tudo o que foiéproduzido anteriormente.

O movimento Vera Chytilová uma dessas que não passam batido. Mulher, aconteceu outros países, como a França cineasta e um dostambém maiores em nomes da Nouvelle Vague tchecae teve como um de seus precursores. nos anos 60.Jean-Luc TachadaGodard como transgressora, muito criticou o Já na regimeTchecoslováquia, socialista e a misoginia da época, fortes Vera Chytilová foiabordou uma dastemas diretoras de e proibidos, falar sobre o lugar da mulher na sociedade, maiorousou influência. denunciou o estupro e a violência.

Seu primeiro filme de maior repercussão, As Pequenas Margaridas, acompanha a rotina de duas jovens tchecas que decidem se adequar ao caos do mundo sendo tão caóticas

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e destrutivas quanto ele. O longa-metragem criticou o governo, a censura e a própria forma de fazer filmes da época.

Sendo uma desconstrução do imaginário popular do feminino e uma desconstrução do próprio ser, foi considerado pelas autoridades locais como “depravado” e em desacordo com os ideais do Partido Comunista, o que fez Vera ser proibida de trabalhar em seu próprio país, assim como outros diretores, que se viram forçados a sair dele. No entanto, ao contrário deles, a cineasta ficou, tornando-se símbolo de resistência na Tchecoslováquia.

O longa foi banido e até 1975 o governo tornou quase impossível para a diretora fazer mais filmes. Ainda assim, Vera mais uma vez decide desafiar as normas e lança o controverso Fruto do Paraíso, em 1969. Subversivo, é uma releitura satírica do Jardim do Éden que irritou ainda mais o governo.

“Todo momento político deve ser questionado e a arte nos serve como ferramenta questionadora, denunciativa ou apenas para nos ajudar a entender.””

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Entre seus outros filmes, a grande maioria de cunho questionador e político, Trap, Trap, Litlle Trap (1998) que aborda o comportamento misógino nas agências de publicidade, Teto (1961), sobre a exploração do corpo feminino no mundo da moda e Calamidade (1981), que trata, de forma íntima, a vida cotidiana no final da Tchecoslováquia.

.As Pequenas Margaridas Crítico, satírico e psicodélico, As Pequenas Margaridas foi consagrado como um dos maiores filmes de sua carreira. Usando do humor e do ritmo acelerado para entreter o espectador e burlar a censura, o filme faz uma crítica ao regime comunista da época em um cenário conturbado do pós-guerra, o que é perceptível já nos créditos iniciais, com os nomes da equipe oscilando entre cortes de imagens de guerra e destruição.

A escolha pelas imagens chocantes dos créditos iniciais contrastam com a primeira cena, em que podemos ver as personagens principais de biquíni, tranquilas e até ‘entediadas’ em uma espécie de clube, apesar do que acontecia lá fora. Niilismo ou desinteresse?

A resposta vem segundos depois.

Em um dos primeiro diálogos, as garotas - cujo relacionamento ou maiores informações não ficam claras durante todo o filme

- resolvem que “se tudo está mal com o mundo, seremos más também”, uma clara relação com o cenário político-social da época e o desvio comportamental como resposta.

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No filme inteiro, percebemos que se trata, também, de subversão. Personagens mulheres com atitudes não tão femininas, tais quais comer demais ou colocar o dedo no nariz.

O corte com a “prudência” e as normas sociais fica ainda mais claro quando uma das personagens põe uma coroa de flores na cabeça - símbolo de pureza - e diz agora estar interpretando uma virgem, de modo caçoado.

A partir de então, o espectador pode seguir ambas as personagens em sua jornada disruptiva, que se inicia com uma cena bastante significativa das duas caindo em um jardim com uma grande árvore cheia de frutos, bem no meio do local. Cenário esse que muito se assemelha ao de um dos outros filmes da diretora, Fruto do Paraíso, o que pode significar que elas se encontravam em uma espécie de Jardim do Éden, comendo do fruto proibido e brincando por ali.

A coroa de flores, simbolizando a virgindade e a inocência no filme, é jogada em um lago com as maçãs do Éden todas as vezes em que as personagens decidem assumir novas personalidades, performando uma postura de feminilidade e pureza para

conseguirem o que querem. É o poder e a subversão feminina entre sedução e táticas de desconforto. O mundo de acordo com suas próprias regras.

Hedonístico, o longa-metragem está cheio de bebidas, danças, risadas e desperdício de comida, o que choca ainda mais pelo contexto do pós-guerra. Em contraste a isso, discussões entre as duas garotas e questionamento do ser. Quem são elas? De onde vem? Não sabemos seus nomes ou grau de relacionamento. Uma sabemos que trabalha, a outra sequer possui algum registro. Em algumas cenas, elas mesmas se perguntam sobre a sua existência.

“Como sabemos que existimos?”e a outra aponta para as espigas

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de milho deixadas por toda a rua, “Existimos!”. Para elas, a sua existência é provada pela destruição que causam.

As mudanças bruscas de fotografia e paletas de cores estão presentes durante todo o filme, o que ambienta o espectador em um cenário ainda mais catastrófico e até psicodélico. O apartamento onde moram, por exemplo, sempre está cheio de recortes de revistas, comida espalhada e uma aparência de sujo.

Recorte é o hobby das personagens, que chegam até a ingerir partes das revistas. Em certo ponto, recortam a si mesmas em uma cena de cunho bastante surrealista. É a reconstrução e a desconstrução do ser.

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Há um diálogo extremamente memorável no filme quando uma das personagens é questionada sobre suas pernas tortas, “não sabe que essa é a essência de toda a minha personalidade?”, responde.

A pergunta que fica é: elas são, de fato, mulheres “tortas” ou a sociedade as corrompeu?

Um retrato da situação socio-política da época, as personagens já não se importam mais com o que acontece ao seu redor ou consigo mesmas. A tentativa de suicídio de uma delas é mostrada de forma quase cômica e sem importância. Qual era a importância do cidadão na Tchecoslováquia dos anos 60? E hoje? E no Brasil atual?

Na visão de Chytilová, o niilismo e o absurdo permeiam o filme e também a época.

A cena final é um grande banquete à la Homero em que as personagens esbanjam, comem e quebram tudo, mas será que, para a sociedade da época elas mereciam aquele banquete?

Ou apenas os cidadãos de bem, que frequentam seu trabalhos, possuem seus registros e “existem”?

Enquanto as personagens se afogam e pedem ajuda aos gritos, repetindo que haviam sido, de fato, más, o texto final do filme questiona: “há apenas uma forma que elas poderiam acabar. Há algum meio de reparar o que tem sido destruído?”, o que leva o espectador a um tipo de final alternativo em que as personagens

tentam reparar seus erros e serem pessoas diferentes. Enquanto limpam a sala do banquete envoltas em recortes de seus jornais e revistas - talvez simbolizando um ideal do belo e perfeito? repetem “quando somos trabalhadoras e boas somos felizes”. Após colocarem tudo no lugar, dizem que tudo está belo de novo porque trabalharam muito e agora estão felizes.

Isso é um jogo?

Não. Estamos felizes de verdade.

Todo momento político deve ser questionado e a arte nos serve como ferramenta questionadora, denunciativa ou apenas para nos ajudar a entender. Assim como Chytilová, muitos foram aqueles que sofreram as consequências e até perderam tudo o que tinham para que suas vozes fossem ouvidas. Não nos esqueçamos deles.

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Mas não nos importamos.

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Oe a Resistência SertãonaNeon obra de Mascaro Por Bárbara de Alencar e Bibiana Belisário

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o filme Boi Neon (2015), do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, a vida é dura e o trabalho não dá descanso, mas os sonhos fantasiados na traseira do caminhão cortam as áridas estradas do semiárido nordestino. A obra estreada no Festival de Veneza é uma espécie de road movie brasileiro e se alimenta dos bastidores das vaquejadas. O aspecto mais evidente da produção é a legitimidade, esta que fez o Mascaro receber o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Marrakech.

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Estrelada pelo ator global Juliano Cazarré, Maeve Jinkings, Vinicius de Oliveira, Samya de Lavor, Alyne Santana e Josinaldo Alves, a obra vive o imaginário do Iremar (Juliano Cazarré), um vaqueiro de curral que viaja de caminhão pelo Nordeste do Brasil e trabalha preparando o gado para os vaqueiros locais que estão dispersos pelo estado. Seus colegas de trabalho são sua família, que logo se caracterizam como peças fundamentais para contextualização do longa.

Gabriel apresenta um jogo de opostos cuja reflexão de papéis de gênero ganha enfoque e os personagens se desprendem de corpos socialmente construídos sob a ótica do sertão nordestino. A partir disso, situações de delicadeza e brutalidade são mescladas sendo tratadas de modo surpreendente, que ao ver de muitos seria impossível. Os planos abertos nunca focando no rosto dos personagens e nem fazendo o jeito “novelão”, plano/contraplano, nos possibilita criar nossas próprias conclusões da cena.

A sensação é que estamos acompanhando a história, dando o sentimento de observação, sem cortes, esperando mudar a figura.

Um fato interessante é a aproximação dos personagens com os animais dentro das cenas. No mesmo local em que os bois são transportados, as redes em que as pessoas dormem são armadas, causando uma harmonização desconfortável pelo compartilhamento de condições semelhantes. Adentrando ao universo animal, duas cenas atípicas, que causaram notoriedade a obra, surgem. Uma envolve um animal reprodutor em uma cena cômica e outra de sexo explícito que foi filmada com toques de elegância e realismo. Estas se colocam em um lugar de conforto a classe consumidora de tal, que construíram um apelo a narrativas inusitadas para satisfação com o produto. Contudo, um filme de tamanha sensibilidade seria merecedor de mais atenção por suas qualidades intrínsecas e presentes de sua narrativa.

Dentre os ambientes de resistência e tradição, propõe-se expandir o lugar da representação dos vaqueiros em um nordeste rural e tipicamente machista, mostrando as sensibilidades que permeiam as identidades dos personagens e os corpos contraditórios que se manifestam sutilmente, cujo masculino e feminino se confrontam e conciliam constantemente. Paradigmas são quebrados e um cenário de transformação de ideais exemplifica a relação de um Nordeste que está em rápido desenvolvimento e ao mesmo tempo preserva suas tradições.

Os personagens secundários também se destacam na trama, dentre eles a vendedora de perfumes Geisy (Samya de Lavor).

Geisy é uma vigilante noturna de uma fábrica de roupas e está grávida. A personagem desempenha uma função erótica na trama, quebrando todos os clichês atribuídos às gestantes.

Nesse contexto, sua gravidez é usada como elemento de sedução, da cena e de seu corpo, indo contra o lugar-comum da mulher grávida como passiva.

Gabriel Mascaro quebra a perspectiva estereotipada de uma terra seca, marcada pelo cangaço, coronelismo e pobreza, fazendo a crítica estrangeira venerar o longa e tendo Boi Neon como um exemplo de obra de arte contemporânea. Assim, transita na ambiguidade dos personagens e de seus desejos.

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LUL A 1981 - FOTO: JESUS CARLOS (JORNAL EM TEMPO)

Democracia em Vertigem imagens de um movimento oscilante da história Por Joedson Kelvin

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emocracia em Vertigem é um documentário narrado e dirigido pela cineasta Petra Costa. A narração apresenta os principais fatos históricos em torno da democracia brasileira, desde a redemocratização, após o fim do Regime Militar, até a ascensão e prisão do ex-presidente Lula, a eleição e impeachment da primeira presidenta eleita do Brasil e de uma extrema direita que levou Jair Bolsonaro ao posto de presidente do país.

“Temo que a nossa democracia tenha sido apenas um sonho efêmero”. É com esta frase que se inicia o documentário que retrata a democracia do Brasil como um sistema passageiro, que nunca se firma, ou melhor, não possui uma estabilidade, logo é vulnerável a uma condição política frágil de ser. É imerso nesse movimento circular que o documentário é permeado de imagens que registraram momentos importantes da história política do Brasil. Imagens essas que também são circulares em sua essência, que

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refletem a incapacidade de estabilidade na nação e ao mesmo tempo da repetitividade de cenas que colocam o senso oposto, controverso e conflituoso da política brasileira.

Cenas se repetem, personagens também, apenas os contextos mudam e ao mesmo tempo se integram à proposta estabelecida. A montagem se apoia em imagens que se movimentam no sentido da vertigem presente na democracia do país. Por exemplo, traz a personagem Dilma Roussef, e as imagens que a situam na história são aquelas que ela está sob julgamentos. Na primeira, a ex-presidenta sendo julgada na Ditadura Militar, quando vivia na clandestinidade. Na segunda, por sua vez, apresenta Dilma em julgamento de última instância no plenário do Senado Federal, o que confirmaria o seu impedimento de continuar governando o Brasil, em agosto de 2016.

Essas imagens, apesar de terem sido produzidas em tempos distintos, se integram numa só unidade. Situam momentos emblemáticos em uma perspectiva de repetição, de uma personagem da história inserida nos acontecimentos que a envolveu. É como se a cena se repetisse, mas o contexto em que ela se configura é diferente.

Durante todo o percurso temporal vertiginoso, uma série de imagens transitam de forma oscilatória. Outro exemplo se dá com

outro personagem histórico da política brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva. Seguindo a linearidade, o expresidente surge em imagens de quando ainda era um sindicalista, numa manifestação da Greve do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, no ano de 1979. A cena mostra Lula sendo carregado pelo povo, representando um momento de ascensão, enquanto uma nova voz do povo. Na sequência, Petra destaca a sua prisão que se consolidou em abril de 2018, e Lula mais uma vez sendo aclamado pelos seus correligionários.

As imagens oscilam, podem ao mesmo tempo representar avanço e decadência, cada uma delas se movimentando tal qual o percurso temporal da história. A ideia de vertigem, para explicar o estado da democracia no Brasil, também se configura nos registros de imagens (fotografias, vídeos e até manchetes

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para a estaca zero, sob uma perspectiva emergente, que nunca se estabiliza. E esse fenômeno é anunciado por imagens que, embora documentalmente fixadoras do tempo, se reconfiguram na produção de novas páginas.

de jornais), que demarcam o movimento sem fim, e cíclico, da política brasileira.

São essas imagens que estão sempre repetindo as mesmas cenas que dão um sentido de continuum para a história. Elas documentam o passado e o presente, e apontam, no documentário, reflexões para o futuro. Democracia em Vertigem, para o sentido da imagem, enquanto atestado dos fatos que marcaram o Brasil, traz representações que se as congelarmos e olharmos para elas conjuntamente, teremos uma imensa colcha de retalhos, de tecidos e cores semelhantes, que se comunicam entre si.

Dentre tantos aspectos, o documentário mostra a democracia no Brasil que percorre caminhos que a direciona continuamente

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O roteiro composto de imagens sinalizam também para o fechamento de um ciclo. Cronologicamente, a diretora Petra Costa lembra em sua narração o período da Ditadura Militar, que com o fim desse regime em 1985, o Brasil viveria a volta da democracia. No final da produção, é apontada a fragilidade e a impossibilidade desse sistema democrático se perpetuar, diante da polarização entre ideologias políticas no país.

Imagens mostram brasileiros nas ruas pedindo a volta dos militares para direção do país, visto como uma das “únicas” soluções para a crise política e governamental. É centrado nesse conflito que um velho-novo cenário se instaura: a escalada de Jair Bolsonaro, um político de extrema-direita, ex-capitão reformado e autor de várias declarações que fazem apologia ao tempo de ditadura no país. O documentário finda com cenas dos primeiros momentos após a eleição de Bolsonaro, e deixa em aberto a continuidade do futuro da nação.

Democracia em Vertigem nos dá a abertura de acompanhar a história com os nossos próprios olhos, destinando atenção as

LUL A 2018 - FOTO: RICARDO STUCKERT

próximas cenas, para as imagens que se prosseguem, na intenção de nos atermos aos fatos que elas estarão representando. Talvez, dessa maneira, fazendo esse exercício de olhar para imagens, conheceremos quais episódios da história se repetem e que, assim, determinam esse movimento oscilante e instável da democracia brasileira.

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Dr. Fantástico ou Nós realmente paramos de nos preocupar com a BOMBA E PASSAMOS A AMÁ-LA? Por Guilherme Figueirêdo

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visão de mundo de Stanley Kubrick é admirada majoritariamente por amantes de cinema e especialistas da área. O cineasta é considerado um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos, e suas obras são aclamadas por público e crítica. Stanley Kubrick teve uma carreira curta, mas foi de tempo suficiente para entregar obras que tornaram-se clássicas, e estão presentes no conhecimento popular.

ou a distopia ácida Laranja Mecânica, estão sempre marcando presença em listas e rankings de melhores filmes. Influência direta para os diretores da nova geração, o legado de Kubrick para a sétima arte é majestosamente reconhecido. Em suas obras, passeou por temáticas e gêneros distintos. Abordou a solidão humana, o avanço da tecnologia, o desejo quase sexual pela guerra e o egoísmo de nossa sociedade.

Filmes como o monumental 2001: Uma odisséia no espaço, aeletrizante adaptação homônima do romance de Stephen King O Iluminado,

Em 1964, o diretor lança Dr. Strangelove or: How I learned to stop Worrying and Love the Bomb, traduzido no Brasil como Doutor

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Fantástico. Trata-se de uma sátira política sobre a ambição militar nos tempos de guerra. No trono das melhores comédias de todos os tempos, o filme sempre é encontrado marcando presença em altas colocações. Gravado sob o contexto da Guerra Fria, o longa entrega um possível conflito nuclear entre a União Soviética e os Estados Unidos, conflito este que começa por acidente.

Na trama, o General Jack D. Ripper (Sterling Hayden) é um homem completamente paranóico, que vê ameaças comunistas em todos os lugares. Baseado em uma conspiração, ele acredita, por exemplo, que os comunistas envenenaram a água americana com flúor. Por conta disso, ele só toma água de fontes extremamente confiáveis. Em uma crise de loucura, ele ordena que uma frota aérea americana ataque o solo inimigo com bombas nucleares.

A única maneira de ter o ataque cancelado é por um código que apenas ele sabe.

Cabe então, ao Capitão Lionel Mandrake (interpretado juntamente com personagens Dr. Strangelove e o presidente americano Merkin Muffley por Peter Sellers) tentar conversar com o lunático para descobrir o código secreto. Ao saber disso, o presidente Merkin Muffley, chefe de Estado dos Estados Unidos, tentar entrar em contato com o Premier russo, com o objetivo de abater os aviões americanos e evitar o início de uma guerra nuclear entre as duas potências.

“ Há uma ameaça comunista fantasma que põe sob risco o futuro da nação, quem nós somos e quem estamos caminhando para ser. Ele não teria fundamentos ou provas, é claro, mas teria bastante convicção[...] ” Grande parte da história é desenvolvida na Sala de Guerra do Pentágono americano. Em sua assessoria, o presidente americano conta com funcionários de personalidades peculiares, e que definem o seu papel na trama humorística de forma categórica.

Em seu vasto conselho de guerra, três homens têm destaque: o General Buck Turgidson (trazido à cena majestosamente pelo ator George C. Scott), o líder da embaixada russa nos Estados Unidos, Alexi de Sadesky (Peter Bull), e o cientista alemão bipolar, Dr. Strangelove. Em meio à discussões sobre quais ações devem ser tomadas para evitar a catástrofe, oficiais da Força Aérea americana seguem com sua missão de bombardear o solo soviético. A missão é liderada por um oficial texano, que usa um chapéu dentro da aeronave, simbolizando a figura do cowboy americano. Ele se mostra extremamente determinado a completar sua missão e se tornar um herói de guerra para o seu país.

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A partir daí, a história ganha vida em três cenários distintos: a Sala de Guerra, a base militar americana, de onde saiu a ordem de ataque, e os aviões que seguem à caminho da URSS. O filme de Kubrick permite que os confrontos ideológicos causados por discordâncias políticas venham à tona através de um humor sátiro e preciso, direcionado à estupidez que a paz armada da Guerra Fria representa. Em um dos diálogos mais famosos do longa, o presidente americano separa uma briga entre um general dos Estados Unidos e o embaixador russo com a seguinte frase: “Senhores, vocês não podem brigar aqui, isso é a sala de guerra”. É uma comédia sutil, inteligente, e precisa como uma operação cirúrgica.

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Ao desenrolar da história, o lado americano não consegue impedir o ataque à União Soviética. Perto do fim do filme, o peão que liderava a missão aparece montando uma bomba nuclear que cai em direção ao solo russo. É uma sequência muito bem dirigida, tornou-se clássica. Com a conclusão do ataque, o lado soviético tem a máquina do Juízo Final ativada, que é um dispositivo programado para lançar uma bomba nuclear que acabaria com a vida na terra, em caso de qualquer ataque ao solo russo. O filme tem seu fim com uma belíssima sequência de explosões de bombas atômicas, acompanhada pela delicada música We’’ll Meet Again da cantora inglesa Vera Lynn. A contraposição de cenas drásticas que representam o fim do mundo com a voz suave de Vera Lynn, que canta sobre um romance de guerra, fecha com perfeição a obra sátira.

Kubrick é irônico até o último segundo de seu filme, e como é de seu feitio, dirige com atenção os mínimos detalhes que a mensagem de sua obra carrega.

Apesar de ter sido gravado há mais de meio século, a produção ainda permeia a atualidade. Por exemplo, alguns dos temas abordados pelo longa são: a hipocrisia dos políticos, teorias da conspiração e os perigos de conceder poder demais a homens com possíveis desequilíbrios mentais. E por incrível que pareça, isso não é uma descrição do cenário político brasileiro. Ou do mundo, na verdade.

Em meio à uma política tão conturbada, cercada de ideologias extremistas e políticos hipócritas, que não estão preparados para atuar em cargos importantes da sociedade, é quase impossível não absorver detalhes do filme e fazer conexões com o nosso dia a dia. Na trama, vemos que Dr. Strangelove sofre da Síndrome da mão alheia, condição que faz um dos seus braços ganhar vida própria. Por isso, ele constantemente faz a saudação nazista e não consegue controlar seus impulsos de se referir ao Führer ou de falar alemão. Funciona quase como se ele tentasse esconder sua verdadeira forma, quem ele realmente é, mas falhasse. É como seria, por exemplo, se um presidente de algum país da América do Sul tentasse se comportar em entrevistas a jornalistas, em reuniões importantes ou em congressos da ONU. É quase como se ele tentasse pôr uma versão limpa de si mesmo, imparcial e justa, uma versão que agradaria todos e seria correta. Porém, nosso presidente hipotético, assim como Dr. Strangelove, não tem controle de suas ações. Em questão de segundos, ele perde a linha e fala absurdos banhados de violência e estupidez, que não são esperados da boca de um chefe de Estado. Esse presidente, ainda, seria como o General Jack D. Ripper, um paranóico que vive em seu mundo de ideias irrefutáveis.

Ele veria uma ameaça a sua grande nação em todos os lugares, em livros infantis, grupos de mensagens, na televisão, no rádio, na

literatura e na arte. Tudo está em perigo. Há uma ameaça comunista fantasma que põe sob risco o futuro da nação, quem nós somos e quem estamos caminhando para ser. Ele não teria fundamentos ou provas, é claro, mas teria bastante convicção e, assim como o General Ripper, teria um exército que seguiria suas ordens, lutaria por elas e as tomariam como verdade absoluta. Além disso, o presidente não hesitaria em colocar o chapéu de cowboy na cabeça e lutar por aquilo que sua mente acredita que é certo para o país, como fez o oficial da aeronáutica americana durante o filme. Ele tomaria a frente, aparentando bastante coragem, e faria o papel de herói da nação. Podia ser um

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chapéu de peão, ou um de cangaceiro, ou até mesmo a camisa de um dos seus vários times de coração, mas ele não esqueceria suas origens, mesmo que isso pareça plural e confuso às vezes.

Quando se volta aos tempos da Guerra Fria, a grande ameaça era a bomba. Tanto o lado americano quanto o soviético à temiam. Era um artefato balístico tão poderoso que acabaria com a vida na Terra. Essa era a maior preocupação das pessoas, era um medo que os caçava à noite antes de dormir. Porém, com o passar do tempo, parece que as bombas mudaram. Ou pelo menos mudaram sua aparência exterior.

Não são mais grandes, oriundas de uma tecnologia desconhecida e que prometem nada além da destruição. Elas agora vêm com belos discursos, são recebidas à gritos entusiasmados e recebem apelidos carinhosos daqueles que um dia a temiam. Parece a descrição de um mito, não é?

As bombas agora aproveitam-se de tempos políticos incertos, da dúvida e do medo das pessoas. Elas conseguem enganar e vendem o sonho de um país melhor, perante à Deus e livre da corrupção, o que seria muito diferente da bagunça que os fantasmas do passado deixaram pairando sob o ar. Assim, a música de Vera Lynn, composta no contexto da 2º Guerra Mundial, que diz: “iremos nos encontrar novamente”, permanece bastante atual. Infelizmente, permanecemos encontrando bombas pelo caminho, Doutores Strangelove e militares paranóicos com uma sede infindável de poder.

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Enquadramento Por Carlos Antônio e Natália Pinheiro Entre nós Procuro desatar minha própria história Fragmentos no fundo de memórias Resgate daquilo que sobrou.

Na estrutura que se montou Quando existo, ainda sou o criminalizado Talvez até um empregado Daquele que sempre nos roubou.

Mas quando nas telas me encontro No reflexo de um espelho estilhaçado Me reconheço no desencontro Daquilo que fora normatizado.

E seguindo imerso em um mar De imagens, sons e discursos Com o peito aflito busco Onde existir e ancorar.

É que tenho um corpo com submersos nós Que o colonialismo fez questão de pôr E o meu peito aprendeu a gritar por nós Quando o silêncio nada mudou.

E quando esse corpo que é perpassado Por tantas questões, teias e celas Se vê e de fato se enxerga Em cenas e discursos não estereotipados.

Eis que surge uma silenciosa revolução No peito um reboliço No rosto até um sorriso Nos olhos fascinação.

De quem vê o caminho se abrir No baque, na força, na resistência E se é preciso reinvenção pra existir Resistiremos pela nossa existência.

Firmes.

Natália Pinheiro

Estudante de História na URCA, poeta e slammer integrante do Coletivo Camaradas e Slam das Minas Kariri, fascinada pelo atravessamento do tempo nas coisas, pelas trocas vindas com encontros e amante da poesia da vida.

Carlos Antonio Fluidez que deságua em poesia, estudante do curso de História na Universidade Regional do Cariri - Urca, membro do Coletivo Camaradas e Grupo de Valorização negra do Cariri- Grunec.

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