Celuzlose 08

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Caderno

Crítico

representação coletiva. Nesse lugar de passagem entre o Real e o Imaginário, entre a esfera privada e a representação coletiva, a noção autotélica e autônoma de indivíduo se liquida. Tal como o aórgico de Vicente Ferreira da Silva,3 conceito colhido em Hölderlin e que significa aquilo que não foi feito pelo homem, o mito é a voz do Real que emerge da mais radical heteronomia do sujeito, tal como formulada por René Girard. O mito nasce da outra voz, segundo Octavio Paz. Aquilo que nos ultrapassa e que só se revela em nós quando abandonamos qualquer pretensão de autonomia do desejo, ou seja, quando nos livramos dos pseudovalores de quaisquer humanismos canhestros. Se o homem foi, é e sempre será uma corda atada entre o nada e o infinito, se foi, é e sempre será tudo perante o nada e um nada perante o infinito, como queria Pascal, a defesa de qualquer substancialidade do sujeito se reduz a mero proselitismo. Assim, o próprio e o alheio se equivalem. A palavra nova e autêntica é sempre a mais antiga, a mais remota, de preferência sem data ou autoria: Logos Divino. O mito é o espaço no qual a Palavra se inaugura, e só o faz quando criação e citação se igualam. Quando, qual Uroboros, a hermenêutica morde o próprio rabo. Por isso, a Antropofagia é a razão mítica por excelência, por antonomásia. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Ser é imitar. Criar é deglutir. Lembrando Eliot, o mau poeta imita. O bom poeta rouba. A Polis e a Selva O leitor apressado pode se perguntar aonde quero chegar com essas divagações iniciais. Respondo: creio que, justamente por serem divagações, círculos em espiral que mais se afastam do que se aproximam do centro, elas possam nos conduzir ao cerne do pensamento de ambos os autores, bem como criar algumas pontes entre eles. E essa aproximação não se dá sem atrito, mas também não recua diante das convergências. Mesmo tendo abandonado a sua crença socialista inicial, Oswald não deixa de se fundamentar no marxismo dialético em suas formulações, embora essas se transformem bastante a partir de A Crise da Filosofia Messiânica, que é a obra de um Oswald já crítico do Partido Comunista e de boa parte do projeto soviético, sobretudo do jdanovismo. Para ele, a doutrina política da URSS era uma deformação do marxismo, justamente porque preservava, nas aristocracias bolchevistas, a essência do sistema de classes que não era capitalista, mas patriarcal. É importante notarmos aqui o teor crítico de Oswald em pleno desenvolvimento, fazendo jus a seu temperamento político e artístico baseado, antes de tudo, em um fundamental anarquismo. Assim, nessa fase, mesmo continuando marxista, Oswald é capaz de operar interessantes críticas a Marx. Elas não são contundentes e globais como as que Vicente delineia em ensaios mais abertos sobre o assunto, como 3. Para as citações da obra de Vicente Ferreira da Silva utilizo a edição de suas Obras Completas: FERREIRA DA SILVA, Vicente. Obras Completas. Organização, Introdução Geral, Bibliografia e Notas Rodrigo Petronio. São Paulo: Editora É, 2009-2010. Três Volumes: __________. Lógica Simbólica. Prefácio de Milton Vargas. Posfácio Newton da Costa. São Paulo: Editora É, 2009. __________. Dialética das Consciências. Prefácio de Miguel Reale. Posfácios Vilém Flusser e Luigi Bagolini. São Paulo: Editora É, 2009. __________. Transcendência do Mundo. Introdução Geral Rodrigo Petronio. Posfácios Julián Marías, Per Johns, Agostinho da Silva, Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Editora É, 2010. Tal como fiz com Oswald, optei por uma forma livre de ensaio, então evito identificar todas as menções à obra de Vicente por meio de notas de rodapé. Apenas friso em itálico a noção-chave com a qual ele trabalha.

90 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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