ANTES QUE SEJA TARDE #003

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an t es que seja tarde

set 32022

antes que seja tarde

Boletim bibliográfico da Companhia das Ilhas Número 3 - Setembro de 2022

Na capa: Virgílio Martinho

COMPANHIA DAS ILHAS | EDITORES

Rua Manuel Paulino de Azevedo e Castro, 3 - 9930-149 LAJES DO PICO Telemóveis 912 553 059 || 917 391 275 || Rede fixa 292 672 748 www.companhiadasilhas.pt | companhiadasilhas.lda@gmail.com

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Confissão [2.ª edição] Cláudia Lucas Chéu

É o seu primeiro livro de poesia confessional. Trata-se de um livro autobiográfico com um único poema longo. Quando relê o que escreveu, a autora fica assombrada pela possibilidade de ter deixado o rabo à mostra nas páginas de Confissão

ISBN: 978-989-9007-85-7

Dimensões: 13x18cm

56 páginas

Junho de 2022

Poesia Edição: # 267 azulcobalto 111 PVP: 12 €

Não se pode entender o pensamento esotérico de Fernando Pessoa sem um estudo mais cuidadoso dos seus textos herméticos. Por eles se vê como foi intenso o fascínio do misterioso, do oculto, sob todas as formas. E como se manteve, pela vida fora, a chama que lhe conduziu o destino, tecendo-o com a busca da palavra, iniciática tanto quanto poética, e transformada no puro desassossego de que nos foi dando conta.

«Trata-se para ele de dar corpo a vários corpos, a partir de um corpo só, de dar voz a várias vozes, a partir de uma só voz. A iniciação, única e sempre a mesma, que encontramos no pensamento filosófico como na actividade literária, é a do desdobramento que na Criação se verifica desde o primeiro ser, o Adão primordial de gnósticos, kabalistas, alquimistas — todos os que se dizem herdeiros de uma tradição hermética. Desdobramento, multiplicação, que só depois de assumidos e esgotados permitem a verdade.

O poeta, adepto por excelência, tem o desejo (ora mais ora menos reprimido) desse primeiro tempo de androginia perfeita.

Mas só quando esgotar o mundo do possível pode sonhar recuperá-lo.

Já que o mundo caiu, e caiu definitivamente, já que a infância se perdeu (na infância não há ainda consciência da divisão), é na obra literária que Fernando Pessoa-adepto procura realizar-se.

O poeta transcende o homem, a obra transcende a vida, e foi a essa transcendência que ele se ofereceu inteiro.»

ISBN: 978-989-9007-74-1

Dimensões: 14x22cm

108 páginas

Junho de 2022

Ensaio Edição: # 268

terceira margem 007 PVP: 16 €

O Pensamento Esotérico de Fernando Pessoa Yvette K. Centeno
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JUNHO

Árvores ao pé da porta

Árvores do Centro Histórico de Évora

Trees at your door trees of the Historic Centre of Évora Anabela Belo et alii (coord.)

Coordenação da edição | Coordination of the edition: Anabela D. F. Belo (afb@uevora.pt)

Autores | Authors: Anabela D. F. Belo, Carla Pinto-Cruz, Vasco M. A. Silva e Maria da Conceição Castro

Fotografia | Photography: Rui Belo

O inventário das árvores do Centro Histórico de Évora decorreu durante Maio de 2021 e consistiu no levantamento da sua localização exacta e na sua identificação taxonómica. Para cada árvore apresenta-se uma ficha da espécie com o nome científico, nome vulgar, família, origem e estatuto em Portugal, uma breve descrição dos caracteres diagnóstico (como folhas, flores ou frutos), o período do ano em que está em floração, o local onde pode ser observada e, nalguns casos, uma nota sobre factos curiosos. Foram identificadas 44 espécies, na sua maioria plantas exóticas introduzidas com propósito ornamental. Este é, evidentemente, um trabalho parcial, uma vez que não contempla todas as árvores presentes no Centro Histórico de Évora. De fora ficam as muitas árvores que existem em pátios e jardins particulares, cujo acesso não é generalizado, e as árvores do Jardim Municipal, cujo acervo se encontra já documentado. É um trabalho destinado aos eborenses que desejem conhecer as árvores das ruas do Centro Histórico de Évora, mas também aos muitos turistas que nos visitam, razão pela qual é bilingue. Foi feito um esforço assinalável para não usar vocabulário técnico, que não é acessível à maioria das pessoas, e por isso dispensámo-nos de incluir o glossário habitual neste tipo de obra.

ISBN: 978-989-9007-80-0

Dimensões: 14×19,5cm

Capa dura

106 páginas com mapa dobrado e integrado no livro, em bolsa de plástico Junho de 2022

Edição: # 269

mundos | Segunda Série Guia de natureza | Lugares PVP: 22 €

Quase Um Carimbo Leonor Sampaio da Silva

Autora premiada e multifacetada, Leonor Sampaio da Silva tem habituado o público a textos de gosto híbrido, onde humor, erudição, lirismo e ironia se entrelaçam num timbre seguro e peculiar. Com quase um carimbo poderíamos ser levados a pensar que o pendor lírico fosse favorecido – e não deixa de o ser em alguns momentos -, mas a verdade é que o conduz um fio irónico levando avante um exercício de teatralização do sujeito que o confirma como entidade plural(izável). A realidade serve-lhe sincronicamente de palco, bastidor, público, didascália. Reside nisto uma curiosidade escarnenta da nossa condição: para se conhecer, o sujeito precisa de ser actor de si mesmo, só pode realizar a sua aproximação do mundo por via de ficções e modos de representar a que o universo das artes serve de espaço privilegiado de meta-referência. A sua acção e, nisto, a sua realização, interrompe qualquer contemplação. Por sua vez, a contemplação impede-o de se realizar.

ISBN: 978-989-9007-81-9

Dimensões: 14x22cm

72 páginas

Julho de 2022

Poesia

Edição: # 270

transeatlântico # 045

PVP: 15 €

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JULHO - JULHO

AGOSTO

O Grande Cidadão

Virgílio Martinho

Segundo volume das Obras de Virgílio Martinho Texto precedido de O MEU VIRGÍLIO, por Vitor Silva Tavares, e, em jeito de posfácio, A MINHA PROFISSÃO, por Virgílio Martinho

Nota biográfica e Notícia bibliográfica por Carlos Alberto Machado

O Grande Cidadão é um romance de aventuras. O seu herói chama-se Alquimista pela simples razão de que, em criança, entre os seus companheiros de rua, se gabava de poder fabricar moeda de ouro. Mas ele não é de ouro nem de prata – é um criminoso susceptível de ser condenado por qualquer código penal.

O livro passa-se numa cidade imaginária onde a abjecção se tornou a moral comum. Talvez por este motivo flagrante o Alquimista, ao sair da penitenciária após vinte anos, verificou que encontrara uma outra cidade, mais vasta e complexa – onde todos os gestos humanos tinham de ser convencionais e o futuro, tal como o presente, sinónimo obrigatório de ideologia ou morte. Era uma cidade aterrorizada.

Mas o romance é ficção, não se passa em lado algum, embora a história seja antiga e se processe onde vive o homem que perdeu a coragem para resistir e salvaguardar os seus valores originais.

Devia tratar, ou trata, se acaso o consegui, de um tema simples como as pessoas podem ser reduzidas à condição de animais. Como, entre essa população mutilada, podem existir homens que emergem libertos e decididos a correr os maiores riscos, por leis que, além de misteriosas, são inexoráveis. Mas não é um livro messiânico, não é um livro político, embora se fale dos que podem salvar, dos que morrem, dos que mentem, dos que monopolizam o poder, dos que traem, sendo homens, os seus irmãos, regra geral distraídos e ingénuos. E na cidade esboçada no livro nada resta aos cidadãos, as suas vidas foram sujeitas, por um pequeno ou descomunal artifício, à sedução mais completa. Se é neste extremo que nos encontramos, ou nos podemos encontrar em dado momento, é lógico supor que os seres foram transformados em peças de um complexo e monstruoso sistema, que é afinal, paradoxalmente, o deles. Porque eles, os seres de O Grande Cidadão, ajudaram-no a erguer-se, alimentaram-no, e são incapazes de não se corromperem numa atmosfera onde tudo é corrupção. Se o livro é imaginário, os seus ingredientes são fidedignos.

É apenas uma crónica, um relato das aventuras de um fora-da-lei constitucional, da sua mãe, da velha e gorda ex-prostituta Mamã, de Benvinda, de Heliodoro, o homem dito positivo mas inquieto, de Salomão e das suas ideias de fraternidade, por fim de desespero, também de Agripina, a cartomante. E todos eles, que respiram entre monstros actuantes ou inertes, resistem, tentam, acabam por morrer danados. Mas que resta às pessoas, quando as insultam, senão a raiva? O Alquimista sobrevive. Esta sobrevivência é para mim, suposto habitante dessa cidade, a continuação do mistério magnífico que é o homem.

Não é um livro neo-realista, deve estar longe do “novo-romance”. Mas que é um livro neo-realista? O que é um “novo-romance”? De facto, o que será um livro? Seja como for, em O Grande Cidadão, a vida e a morte estão rarefeitas, erradas, inquinadas de raiz, a existência é caricatural, o Homem pode ser impunemente estropiado pelo outro homem. Para isso existe a máquina exterminadora de que a História nos dá testemunhos e exemplos sem conta.

| virgílio martinho

excerto de uma entrevista concedida ao Jornal de Letras, Artes e Ideias, em 15 de Maio de 1963.

ISBN: 978-989-9007-80-2

Dimensões: 14x22cm

290 páginas

Agosto de 2022

Ficção

Edição: # 271

obras de virgílio martinho # 002

PVP: 18 €

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Almanaque Fantástico, Cómico e Científico

... aberto a todos os ramos das artes, letras e saber actuais, com prosas dos melhores autores e notícia de tudo o que é medicina popular, comida racional, agricultura biológica e o mais que se verá realizado por Manuel João Gomes, Lisboa MCMLXXVII Manuel João Gomes

«Este almanaque é dedicado a Júlio César, não o tirano mas o sábio que dividiu o ano em meses de trinta dias, baptizando com o seu nome o mês de Julho, a D. Afonso X, o sábio poeta que em 1252 dividiu o ano em 365 dias, ao papa Gregório Magno que em 1752 estabeleceu a folhinha do Calendário, tal como ela hoje existe, aos revolucionários de 1793, que mudaram os nomes dos meses gregorianos por outros mais republicanos, a Alfred Jarry, pai do ubuesco Rei Ubu, que em 1889 congeminou o Almanaque Ilustrado de Ubu, mudando os nomes aos santos do Calendário, a todos os santos expulsos deste nosso Almanaque da Meia-Noite nos dias em que houver outras coisas a celebrar, a Bell e a Edison que há 101 anos inventaram respectivamente o telefone e o telégrafo.»

«Tal como a transformação da natureza, também a transformação da sociedade é um acto de libertação; são as alegrias dessa libertação que os almanaques da era científica têm de nos comunicar.»

bertolt brech: pequeno organon, § 56, excepto os almanaques que naquele tempo eram o teatro.

Muito Mais que Paisagem 100 anos de Pedro da Silveira Leonor Sampaio Silva et alii (coord.)

COORDENAÇÃO: Ana Cristina Gil, Leonor Sampaio da Silva, Madalena Teixeira da Silva e Urbano Bettencourt.

TEXTOS Alexandre Borges; Ângela de Almeida; Daniel Gonçalves; Eduíno de Jesus; Ivo Machado; João de Melo; João Pedro Porto; Joel Neto; Judite Canha Fernandes; Leonardo; Leonor Sampaio da Silva; Maria João Ruivo Nuno Costa Santos; Paula de Sousa Lima; Pedro Almeida Maia; Pedro Paulo Câmara; Renata Correia Botelho; Urbano Bettencourt.

ILUSTRAÇÕES Ana Piques; Anita Peixoto; Inês Carvalho; Isabel Frazão; Leonor Fernandes; Madalena Serpa; Margarida Cruz; Margarida Melo; Maria Oliveira; Natália Tavares; Natasha Brasil; Pedro Reis; Sara Kim; Sofia Sousa.

muito mais que paisagem lembra e celebra a passagem de cem anos desde o nascimento do poeta Pedro da Silveira. Estabelece entre o tempo presente e a sua obra um elo de reconhecimento, ao conter em si um conjunto heterogéneo de vozes da contemporaneidade literária açoriana, cujos textos, aqui, vêm vivificar o diálogo com a poética do florentino. As ilustrações dos alunos da Escola Secundária Antero de Quental resultam da mesma aproximação ao trabalho do escritor e retratam a reinterpretação com o que o podem fecundar as linguagens e perspectivas de actos artísticos de outras naturezas. Trata-se, assim, de um objecto de memória, este livro, que sinaliza a importância do vasto legado literário de Pedro da Silveira e que apela ao contacto com a sua obra também como modo de reler e de enriquecer a intervenção artística no presente.

ISBN: 978-989-9007-80-2

Dimensões: 14x22cm

300 páginas

Setembro de 2022

Ficção

Edição: # 272

obras de vmanuel joão gomes # 002

PVP: 18 €

ISBN: 978-989-9007-83-3

Dimensões: 14x22cm 72 páginas Setembro de 2022 Poesia e prosa Edição: # 273 transeatlântico # 046 PVP: 16 €

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Palpites para Má-língua e Sevícias (vol. Narciso Pinto

Novela fragmentada e escaqueirada em mitos, relatos, intrigas, ensaios, diálogos, curtas, boatos, arquivos e cartas, tendo por mote e desígnio o registo de uma era particularmente vizinha da que nos assombra a existência.

O autor não se coíbe de explorar exaustivamente o insólito, o grotesco e a violência que irrompem do quotidiano aparentemente mais comezinho, deixando todo e qualquer protagonista à mercê de si mesmo e da sua sina. Através da lente pícara e obsessiva do autor, que à distância devida observa o desencadeamento natural das tramas, constatamos que a vileza e predileção pela maledicência são forte apanágio de todos os participantes. Será plausível, porém, supor-se que boa parte do enredo seja até encenado. É um palpite.

O Terramoto Judite Canha Fernandes

A pessoa que me fez desejar este livro foi a Margarida. Melhor, alguém me falou da aventura peculiar da Margarida. Ela tem 74 anos e é, podemos dizer, a protagonista. O Terramoto começa porque ela toma uma decisão. Anuncia ao mundo que irá fazer-se explodir, se necessário, para que não a expulsem da sua casa. Esse seu gesto, como todos os gestos, é por muitos outros gestos precedido e motiva uma série de réplicas. Depois, e antes, O Terramoto vai atravessando um pedaço da vida – digo da, não de. Da vida que emana das plantas, dos sonhos, das pessoas, das paredes.

| judite canha fernandes

ISBN: 978-989-9007-88-8

Dimensões: 14x22cm

210 páginas

Outubro de 2022

Ficção Edição: # 274 azulcobalto # 112 PVP: 17,80 €

O Quarto do Pai Maria Brandão

Entre a realidade e o delírio, a memória e a ficção, a gravidade e o humor, o presente e o passado, a reflexão e o retrato do tempo, O Quarto do Pai é uma expedição ao labirinto da vida de um homem singular. Um homem caprichoso e exigente, aproveitador dos prazeres mundanos, obcecado pelas suas paixões e pela sua família, preso numa urdidura cruel que lhe rouba a dignidade e o suga para o abismo. Esmurrado, mas não vencido, sob o efeito de drogas instigadoras de grandes alterações de consciência, resiste tenazmente ao mais óbvio dos destinos e toma o comando de uma narrativa reveladora do mais íntimo de si.

ISBN: 978-989-900787-1

Dimensões: 14x22cm

302 páginas

Outubro de 2022

Ficção

Edição: # 275

transeatlântico # 046 PVP: 18,25 €

ISBN: 978-989-9007-86-4

Dimensões: 14x22cm

112 páginas Outubro de 2022

Ficção

Edição: # 276

transeatlântico # 047

PVP: 17 €

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2)
OUTUBRO

V irgílio M artinho

Enfarpelado de funcionário público-modelo (seja: absentista à escala inversa do salário), dir-se-ia extraído dum conto de Gogol roído de infortúnio, azamboado de sonhos não fora nele o conhecimento da dor, a consciência das disciplinas da revolta e o contraponto de irrisão com que salgava iras e convicções.

Atravessa, horizontal e neurótico, a noite e nevoeiro do fascismo lusitano: condenado a sonâmbulo?, também ele «homem sem qualidades» pardo e constrangido, só a espaços sacudindo o letargo cívico pelo recurso à objurgação, ao escárnio quem dera libertário? Ou isso; porém mais inco modado com o ritual do desgaste, conformista feitas contas, do que com o retrato a quem o visse de fora, com seus azeites.

A talvez infância de miúdo “remediado” (oh! grácil farpela da pobreza honrada!...), filho de ferroviá rio e de mãe a condizer, é-lhe fonte inextinguível de transfiguração poética e vinca, radicalmente, a inserção num corpus de classe que ilumina todo o seu itinerário: quando o nojo bate no fundo, é ele-criança (visionária de um novo mundo amoroso sem possidentes nem espoliados) que transmuta o sarro psicológico em questão política. E aí temos o Virgílio ao ataque, soberbo de exaltação subversiva, cândido e feroz à exasperação.

Será entre estúrdias de desintegrados, de putas a poetas, que se vê comparsa da única ficção liber tadora sonhada possível nos dias cinzentos da cidade: cu nas cadeiras dos cafés, fundir Marx e Rimbaud, comunismo e surrealismo, não por menos. E com outra ficção por dentro: em grupo, já que a acção poética, como a revolução, só feita por todos. Coisas de levar a sério, praticáveis a golpe de asa. Discussões esdrúxulas, ortodoxias e

heterodoxias em processo sumário, metalinguagens neófitas, ginásticas da utopia buscando espaço numa Lisboa sob ocupação. Porque a cidade “real”, de gerentes e clientes indiferentes, essa dormia um sono lento, sono lorpa, e o ar da respi ração, mesmo nos “Triângulos das Bermudas” da conjura imaginária ( Hermínius , Royal , Gelo ; Monte carlo , Bolero , Trindade ; Galega , Trave , After-Eight) , não passava de «um vómito» (Pedro Oom) além de que a falta de trocos, por endémica, não ajudava nada à elegância do estar, bem mais contribuindo, entre dívidas muitas acumuladas e biscates de aflição (horas-extra de espinha curvada ao estirador, tradu ções de fraco poder alimentício), para o «já agora tanto faz» dos vícios menores, ódio engolido a roda das de cerveja. No inferno, claro: a nenhuma esquina da Lisboa proletária a viragem para transformar o

« Que força é essa, amigo? Onde vais buscar a música venosa, a reserva de alegria, a pulsão amorosa que te faz mover a mão sobre o papel da escrita?»
8 | antes que seja tarde | boletim bibliográfico da companhia das ilhas | # 3, setembro de 2022 um autor

Homem, em nenhum antro da Lisboa pobretária a alavanca para mudar a Vida.

De modos que o que fazer, nos intervalos do «fazer de conta» (Sacadura Bretz, aforismando o que todos anda vam, andávamos a fazer), só na literatura encontrava, vá lá, resposta e sentido interventor. Festa Pública , Orlando em Tríptico e Aventuras , O Grande Cidadão : o sonho utópico pela escrita, a criação literária animada por um fluxo conceptual que implode do suporte estético, do maneirismo estilístico, por vir mais fundo do próprio coração indignado, do centro geométrico do desejo, e da necessidade, de libertação. Como uma ladainha: insistente, circular, recorrendo mais à fábula que à metáfora e mais ao símbolo e à analogia, que à pincelada tirada “do natural” desconstruindo a logicidade discursiva pelos efeitos do humor. Com gente à vista, sempre — ainda que sem “público”, ou muito pouco: estavam tomadas as praças da república das artes & tretas por figu ras de outro lustro e pendão alto. Para elas, também, algum verdete periférico e não alvo prioritário porque a lite ratura-enquanto-tal não merece tanto e até pode distrair. Ainda assim, como aceitar, na paisagem circundante, o cortejo de venalidades, manobras promocionais, alibis os mais bailarinos que com a intelligentzia pusilânime, sob o signo do anti-fascismo, tirava proveito da complacência do Sistema, se acomodava nele como-quem-não-quer -a-coisa-mas-abicha? Como aceitar sociedade, aval corporativo, numa confraria contempladora de espe lhos nas traseiras da barricada? Nada a esperar: e não se viu o Virgílio a almejar lugar sentado entre os douto res. Cáustico, implacável nos furores já que não afeito a cris tianas bondades, de sopetão escancarado ao que lhe cheirasse a acção conjunta (ei-lo na colecção de brochuras A Antologia

em 58 , no volume colectivo Surrealismo/Abjeccionismo antologia Grifo, nos folhetos do Jornal do Fundão onde faz publicar Rainhas Cláudias ao Domingo , na «equipa impossí vel» Luiz Pacheco dixit que integra comigo e o Nelson de Matos numa fase do magazine & etc , no livro antológico Coisas , em abaixo-assinados de facciosa pontaria crítica), nisso surrealista e comunista e idealista e só-à-lista à escala do minguado enquadramento, ao pulsar da veia tempera mental, prefere-se boémio entre boémios, seus, da casa, guarda-se escritor no esconso solitário dos franco-atirado res. Onde surge trincheira, por mais frágil já que a frente dos jornais e editoras se encontrava bem aviada de locatários claro que resistentes entre uísques duplos , lá distribui saraivadas de alfinetes para os globos oculares dos instalados à esquerda e à direita-volver do mesmíssimo batalhão. Mesmo quando acusado de «desvio ferroviário» pelo grão -mestre do Abjeccionismo (Pedro Oom, para quem o surrea lismo, sem liberdade pública, teria de escoar-se pelo curto alcance da liberdade individual de «nós, seres abjectos»), que entendeu ler no Relógio de Cuco uma lamechice neo-realis tona, ou um compromisso condenável com os postulados do “realismo-socialista”, vá de sacudir imposições canónicas e dissidências de renegado “estético”, para ferroar bojardas de insubmisso senhor do seu nariz e da sua fidelidade à matriz de infância propósito afinal surrealista nele, e como ele o praticava. Pouca paciência para cleresias de aviário. Ponto final.

*

A prisão no Aljube (com António José Forte), nas circunstâncias difusas que o(s) levaram lá (militantes do MUD, peito feito e inocência política), deixa-lhe um amargo de boca, um trauma de orfandade, que só o 25 de Abril, e o seu “regresso” ao seio do PCP, vêm aliviar. Teriam sido, ainda por cima, ou por baixo, criticados por “desvio esquerdista”? À repressão da PIDE ter-se-ia seguido uma depuração de modelo estalinista, semelhante às excomunhões eclesiásticas que quando não matam moem?

Segue-se que o António José Forte diz para sempre adeus aos discursos e práticas do aparelho do PCP e salta a uma convicção basista, autogestionária, do socialismo prole tário, sem mais sequelas ou sombras de pecado. O sopro romântico de amoroso nato, o ímpeto incendiário, o liberta rismo só condicionado à leitura que faz da emancipação dos trabalhadores por livre, se não espontânea, associação dos mesmos, livram-no de possíveis fantasmas, fornecem-lhe uma crença inabalável e com ela um optimismo à prova de contradita. Já depois do 25 de Abril estará na base da criação de um Sindicato, sem orientação “vinda de cima”. Coerente,

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, na

não há-de ser sócio de clubes partidários, não aceitará tese ou táctica de alinhamento parlamentar.

Virgílio Martinho, esse, andará e não andará nos antípodas de tais posicionamentos. Mais prosaico que o amigo de todas as horas e rezingas (era vê-los engalfinhados em discussões de chover merda no México...), equaciona as dualidades, digere não sem azia as argumentações dialéticas, inclina-se para exigências disciplinares, furta-se quando lhe dá para isso a dogmas papagueados por zelosos recém-chegados ao anti-fascismo de cartilha sempre de desconfiar. Perante as solicitações inerentes à construção do socialismo que os mais firmes capitães de Abril intentam promover, toma partido prático, entrega-se humilde ao que pensa justo, solta-se orgulhoso no demais que é território dos meninos novos, também o dele. Não deixará nunca de consubstan ciar, em drama ou intermezzo burlesco, o clássico dilema da esquerda socialista.

*

«Fazei mais o que souberdes» (Camões): desenhar projectos arquitectónicos para as Colónias* que jamais os hão-de ver? — É pouco; e se mal pago, nem a nobili tação-pelo-trabalho (velha quimera operária desde logo posta a render pelo patronato) serve para reabilitar o real quotidiano: na verdade avilta-o, com sua carga suplemen tar de desesperança e atrofia económica. Também não favorece a salvação-pelos-amores, dá-se mal o devaneio com a rigidez de vidas paralíticas, crispa-se em patolo gias directas todas à neurose, à misoginia, ao enfado-mais solidão, mais azedume, mais noite, mais tabaco. Então, e o trabalho intelectual, de preferência por conta própria?

Sequer paga um pifo dos baratos quanto mais renda de casa, mulher doméstica, filho no estudo. Soma que feitio para Pacheco, caça-óbulos, nem Pacheco o tem leiam-no.

Fazei mais o que achardes útil, nesta ressacada inutilidade: Filopópolus , A Caça , O Concerto das Buzinas , A Sagrada Famí lia , O Menino Novo , fora a monumental Antologia do Humor Português (de parceria com Ernesto Sampaio) que só por si lhe poderia garantir, fosse ele ao menos espanhol, mandar à fava o chefe da repartição e enfiar-se um lustro no Bolero , a amendoins e sagres de litro.

Que força é essa, amigo? Onde vais buscar a música venosa, a reserva de alegria, a pulsão amorosa que te faz mover a mão sobre o papel da escrita? Assumido “filho

Milhares de páginas e três linhas e meia na História da Literatura Portuguesa, dos bravos Lopes e Saraiva. Não sei quê do «surrealismo-abjeccionismo» e da «alegoria concen tracionária» (vá lá mas não será alegórico de mais?), não contando as jóias do pensamento crítico com que ornam, de parceria, as peças Filopópolus e 1383, para eles «sem preocu pações de fidelidade filológica» (!) «ou de distanciação histó rica». Boa malha!

*

Porque o Virgílio descobriu pelo teatro primeiro para as bandas de Campolide, depois e para sempre em Almada a carnalização da palavra (agora liberta do prelo de Guttenberg), o sonho feito voz, o projecto poético que se faz político por artes mágicas de cartão e purpurina. Não podia deixar de ser. A entrega ao trabalho dramatúr gico, a alquimia do palco, preenche por inteiro o preceito de Lautréamont e é no Virgílio o pico de um percurso cria tivo de obstinada, compulsiva coerência. Mais que escriba de casinha e horas vagas, quis-se operário em acção directa,

* Virgílio Martinho foi admitido como desenhador tarefeiro em 7 de Marçode 1956, na Direcção-Geral de Obras Públicas e Comunicações do Ministériodo Ultra mar; em 29 de Dezembro de 1979 é promovido à categoria de desenhador principal da Direcção-Geral das Construções Hospitalares do Ministério da Habitação e Obras Públicas; em 25 de Junho de 1986 passa à situação de aposentado da função pública. Informações recolhidas em Cadernos, revista de Teatro de Almada, n.º 10, Setembro de 1995, pp. 11-15. do povo”, assim mesmo em primário e tudo, é aos “filhos do povo”, à sua projecção mítica sal e sol da Humanidade que te diriges. Esse o amor, essa a alavanca. Com seu contra ponto fantasmático em jeito de grotesco, medonho carnaval: a choldra de arganazes abades, onzeneiros, letrados de genuflexório, ratos de gabinete, burguesada rapace, povo léu bronco como manda a lei, tiranos à medida que é o pano de fundo, a sustentação própria da ignomínia social: o fascismo, a treva nas cabecinhas, a cupidez dos argentários, a mão armada da “ordem”.

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entre os seus, para os seus. Com a arma que tinha à mão: a palavra, agora transubstanciada no corpo e gesto e berro e riso e pranto dos actores. A palavra pedagógica. A palavra solidária. A palavra de aviso, de denúncia, de exemplo. A palavra de fascínio, a palavra maravilha.

Narciso quando à defesa, é sobretudo através do palco que ele se desdobra em extroversão militante: a gaguez do circunspecto volve acusação e festa pública, a marreca do intelectual de café agiliza-se em pantomima, em solta acro bacia de homem, aí, livre entre homens que se querem livres.

Gostaria eu de acreditar ter o Virgílio encontrado alfim no Teatro de Almada — seu Benite, suas gentes daquém e dalém ribalta — a gota de mel suavizadora q.b. do todo ácido que lhe roeu literalmente o corpo da revolta, o sonho agrilhoado.

*

Chega o 25 de Abril e com ele abre-se a porta para a gente sair e algumas outras para cada qual entrar, é só tocar à campainha mais a jeito. Não chega a tempo o Pedro Oom: a 26 assaltava-se a PIDE cai-me ele em cima no 13 da Rua do Norte, fulminado e aí vou eu, com o Virgílio e o Forte (bizarras coincidências), a esbaforir atrás da ambulância militar rumo ao hospital de S. José. Um abaixo, o primeiro do arraial. No seguimento vejo-me, agora a sós com o Virgílio, a caminho da Guarda, nós e a tropa da “dinamização cultu ral” que se cifrou em apagar incêndios ateados pelos elpis tas campeões da liberdade democrática. Só mesmo ele, a sua calorosa persuasão, me levaria a tais andanças, como de volta me trouxe praticamente às costas, eu “heroicamente” ferido num desastre de Berliet militar. Foi a prova-dos-nove duma cumplicidade que nem a dispersão posterior cada qual de seu lado do rio logrou esvanecer.

Só mais isto: como é regra de ouro de Amizade, nunca o Virgílio usou para comigo de condescendência, ou sacrista tolerância. Escrevo e penso nisso. Não crendo em espí ritos iô-iô, imagino-o aqui à minha volta seu rosto de puto amarfanhado, seus olhos paradoxais de claridade a casquinar um riso não sei se de censura se daquela troça que serve para iludir pudores de tímido. Sei que de qualquer modo, e se ele em vida, o ouviria aplicar a súmula genial dos seus considerandos: troc-troc.

O acaso que nunca acontece por acaso fez o Virgílio atra vessar a minha geografia pessoal: aparece-me um dia na editora Ulisseia, onde eu fingia cumprir-me em editor, com os textos do Luiz Pacheco que haveriam de configurar a Crítica de Circunstância. Ele os compilara, para eles escrevera um prefácio peça tão solar como a que em tempos dedicara a António Maria Lisboa. Vinha apenas em serviço de ajuda a um amigo infortunado, nem pensar recolher benefício. A ele se deve, pois, na hora zero a edição do livro inau gural do Pacheco como se sabe apreendido de seguida pela PIDE apesar de «não conter uma única ideia» (Eduardo Prado Coelho). Depois foram só trinta anos de vidinhas partilhadas na corda bamba: dá-me a conhecer os então clandestinos Ensaios do António Sérgio, trago -lhe de Paris literatura vermelha escondida em caixas de pensos higiénicos, convida-me para panfletos caça-ratas literatas, abro-lhe colunas de jornais para ele verter vitríolo, emborrachamo-nos até à abstracção do fígado, embrulha mo-nos em intrigas de cueca e ciumeiras, trocamos dentes com os dentes do António Manaças, do Forte, da Aldina, da Lita, do Herberto, do Sampaio, do Dácio, tantos mais vaga bundos celestes dos antros de perdição que era aonde se garantia ainda alguma saúde, não obstante. Adiando “para um dia” uma qualquer razão redentora, uma outra liberdade sem miasmas de abjecção, desbastávamos uma decadência a vários títulos postiça, guerrilheiros de uma guerrilha forçada a autofagia. A guerra-a-sério escaldava longe, por aqui se desfazia o Império entre o medo e a omissão. Não daria para gargalhada o estertor do Regime, bem lhe conhecíamos a sanha vigilante: de modos que contentinhos só nos espelhos deformados desta feira de espectros. A queda vertical no vício (Cesariny) não passava duma maneira de dizer.

antes que seja tarde | boletim bibliográfico da companhia das ilhas | # 3, setembro de 2022 | 11

pré-publicação

A D ança da M orte

O CAPITÃO. Não queres tocar para mim?

ALICE (indiferente, mas não agressiva). Tocar o quê?

O CAPITÃO. O que tu quiseres!

ALICE. Não gostas do meu reportório!

O CAPITÃO. Nem tu do meu!

ALICE (evitando a resposta). Queres que as portadas fiquem abertas?

O CAPITÃO. Se tu quiseres!

ALICE. Então, deixamos estar!... (Silêncio) Porque é que não fumas?

O CAPITÃO. Para dizer a verdade, começo a não suportar o tabaco forte.

ALICE (quase amigável). Então, fuma qualquer coisa mais suave! Dizes que é a tua única alegria.

O CAPITÃO. Alegria! A alegria o que é?

ALICE. Não mo perguntes, sou tão ignorante nessa matéria como tu!... Não queres o teu whisky?

O CAPITÃO. Mais logo! O que é que tens para jantar?

ALICE. Como é que eu posso saber! Pergunta à Kristin!

O CAPITÃO. As cavalas deviam estar a aparecer; já estamos no Outono!

ALICE. Sim, é o Outono!

O CAPITÃO. Lá fora como cá dentro! O Outono, não fosse o frio que traz com ele, lá fora como cá dentro, uma cavala grelhada com uma rodela de limão, assim como um copo de borgonha branco não era nada para desprezar.

ALICE. Deu-te para a eloquência!

O CAPITÃO. Será que ainda resta algum borgonha na garrafeira da cave.

ALICE. Desde há cinco anos para cá, ignoro até se temos uma garrafeira!

O CAPITÃO. Ignoras... nunca sabes nada. No entanto, vamos mesmo precisar de nos abastecer, para as nossas bodas de prata...

ALICE. Mas tens mesmo a intenção de as festejar?

O CAPITÃO. Sim, naturalmente!

ALICE. Era mais natural escondermos a nossa miséria, os nossos vinte cinco anos de miséria.

O CAPITÃO. Querida Alice, foram certamente mise ráveis, mas bastante divertidos, por instantes! Temos de aproveitar cada instante porque depois, acabou-se!

ALICE. Acabou-se? Se pudesse ser verdade!

O CAPITÃO. Acabou-se! Uns restos que se levam num carro de mão e se espalham num canto do jardim!

ALICE. Tantos trabalhos por um canto de jardim!

O CAPITÃO. Mas é assim; não posso fazer nada. ALICE. Tantos trabalhos! (Silêncio.) Recebeste o correio?

O CAPITÃO. Sim! ALICE. Veio a conta do talho?

O CAPITÃO. Sim! ALICE. Quanto?

O CAPITÃO (tira um papel do bolso e põe os óculos, retira-os imediatamente). Lê-a tu! Eu já não vejo... ALICE. O que é que tens nos olhos?

O CAPITÂO. Não sei... ALICE. A velhice...

O CAPITÃO. Deves estar a brincar, velho, eu! ALICE. Sim, eu é que não!

O CAPITÃO. Hum!

ALICE (olha para a fatura). Podes pagar?

O CAPITÃO. Sim! Mas não agora!

ALICE. Mais tarde então! Daqui a um ano, quando receberes como recompensa uma pequena pensão, quando for tarde de mais. Mais tarde, quando a doença voltar...

O CAPITÃO. A doença? Eu nunca estive doente, apenas uma indisposição, uma única vez! Ainda posso viver vinte anos!

ALICE. Não é a opinião do médico!

O CAPITÃO. O médico!

ALICE. E pois quem para dar uma opinião fundamen tada a propósito de uma doença?

O CAPITÃO. Eu não tenho doença nenhuma, nunca tive. Nem nunca terei. A minha morte será violenta, como a de um velho soldado.

ALICE. A propósito de médico! Hoje à noite há uma receção em casa do doutor.

O CAPITÃO (indignado, perturbado). Sim, e depois! Nós não fomos convidados porque não frequen tamos a casa do doutor, e não a frequentamos porque não o queremos ver, porque eu os desprezo, a ele e à mulher dele. São uma escumalha!

ALICE. Isso dizes tu de toda a gente!

O CAPITÃO. Toda a gente é escumalha!

ALICE. A não ser tu!

O CAPITÃO. Sim, porque em todas as circunstâncias da minha vida soube estar à altura, é por isso que eu não sou escumalha!

Silêncio.

12 | antes que seja tarde | boletim bibliográfico da companhia das ilhas | # 3, setembro de 2022
[. . .] August Strindberg A DANÇA DA MORTE | novembro de 2022

um escuro tão minuciosamente iluminado

Uma leitura de A LIÇÃO DO SONÂMBULO por Hugo Pinto Santos

opinião

Uma

das primeiras coisas que se podem avançar acerca do livro de Frederico Pedreira é que este constitui um acto de coragem. Não é negligenciável a deformação que consiste em romancear uma autobiografia, ou tornar eminentemente autobiográfico um romance. Especialmente se o foco se encontra na infância. Porque nenhum dos géneros sai incólume dessa fusão. Paralelamente a esse facto, a narrativa centra-se na infância, e não, por hipótese, na adolescência, ou nesse dúbio capítulo da vida a que se chama, por vezes, o do “jovem adulto”.

Quando essas fases da vida surgem, é por contraponto ou antecipação, em certos flashes narrativos de A Lição, como esse em que se alude ao Lido e a Veneza, que se ligam a esse majestoso livro de poesia do autor, Presa Comum (2015). De resto, poderíamos recuar, ainda, a um livro anterior de Pedreira, Um Bárbaro em Casa (2014), para entrevermos já esse cruzamento de registos, a deliberada mestiçagem dos géneros (entre o diário e o conto, ou a novela), noutro notável livro de F.P. Por outro lado, não seria inverosímil conceber em A Lição de Sonâmbulo uma espécie de prequela da idade adulta, sombria e majestaticamente plasmada em Um Bárbaro. Mas, em A Lição, seria muito mais fácil cair nas armadilhas dos sentimentos mais baratos. O autor não caiu. Ou muito raramente “tropeçou de ternura”. Estudar a infância, ou fazer resumos sobre a matéria,

é, obviamente, perigoso em termos literários. Se essa infância é protegida, aparentemente isenta de tensões, perigos, ou acontecimentos, as dificuldades avolumamse, porque passam a faltar esses desafios e obstáculos, que intensificaram a tensão narrativa. Por conseguinte, não foi a nenhum desses ingredientes que Frederico Pereira pôde recorrer. O manejo da linguagem é uma das formas que este livro tem de se salvar de uma placidez insuportável — “ficava a trabalhar na minha imaginação como plantas exóticas cheias de ângulos proibidos” (p.62); “a febre subsidiava-me os sonhos numa nuvem lenta e fumegante que se adensava junto ao radiador o quarto” (p.122). Sem essa destreza, o que impediria o amolecimento de tudo, em redor de um sujeito que se expõe a rememorar (ou ficcionar essa rememoração, a certa altura, será indiferente) o que há de mais frágil em cada qual? Por acção dos excessos sentimentais, que se poderiam instalar, ou do relaxamento formal, que se poderia estender a todo o livro.

Apesar de o narrador avançar a sua “inaptidão para contar histórias” (p.107), reiterando a sua incapacidade para ser “um belo contador de histórias” (p.112), o acastelar de memórias e dados provenientes de um passado recriado (ou imaginado), no seu todo, complexo e prolongado, não deixa de ter algo de proustiano. Marcel Proust chega mesmo a ser mencionado, ao longo de A Lição do Sonâmbulo, pelo que não se pode

antes que seja tarde | boletim bibliográfico da companhia das ilhas | # 3, setembro de 2022 | 13

dizer que este romance oculte essa ideia, ou faça dela um mecanismo sub-reptício; mas também não acalenta qualquer filiação particular, nem por mimetismo, nem por qualquer estilização anacrónica, tão-pouco pela caducidade dos seus processos. Ainda assim, os parágrafos encorpados, o balanço imponente das frases — estiradas, de longa respiração —, às quais não faltam sequer retomas oralizantes, recordam inevitavelmente a matriz proustiana. Num romance que voga nesse rio em que se cruzam a autobiografia e a invenção, tudo se mantém num grau de comoção ínfimo, em certa mediania dourada do estilo, que se sustém nesse ápice em que tudo podia retumbar em derrame sentimental. Isso não significa, entretanto, nenhum utilitarismo na expressão.

Neste tipo de espeleologia das profundezas biográficas do sujeito da escrita a qualquer um poderá falhar o pé, ou bem pode suceder que algum imprevisto agite em demasia o percurso. Tudo por certo aconteceu a Frederico Pedreira; mas o que mais merece ressalva é que, a despeito dessas momentosas condicionantes, a construção de A Lição do Sonâmbulo não denuncia brechas preocupantes, nem que ponham em causa o edifício erguido. Pelo contrário, o que FP conseguiu alcançar bem nos pode parecer o resultado venturoso de um trabalho seguro, mesmo se não isento de riscos. Escavar em fundações biográficas próprias, recriá-las, ou forjá-las de raiz, é (repete-se) uma situação de perigo concreto. Não há oportunidade para voltar atrás, depois de se perceber que este livro investiga a infância de quem o escreve. Mesmo se esse período da vida tivesse sido completamente efabulado, nos seus pormenores, no quadro geográfico, no compor dos caracteres, na apresentação os enredos, nas relações, sobretudo, que se estabelecem entre essas e outras variáveis. Questão de somenos importância, saber se sim ou não. O que nos deve importar é o cerco emocional suscitado por este ponto prévio. E que o livro assume. Não há, realmente, grandes possibilidades de gizar tiradas que, com qualquer dose de cinismo, endurecessem o registo, protegendo o sujeito da posição de óbvia vulnerabilidade em que se encontra. Uma criança é uma criança, é uma criança.

Uma atenção irradiante e animosa, dispensada a minúcias aparentemente menores, confere uma especial acuidade a esta escrita, detenha-se ela num centro comercial “afogado no silêncio o ar-condicionado e das poucas plantas de plástico que morriam de tristeza no vazio dos respectivos canteiros” (p.78), num tique de fala de quem repete o estribilho involuntário “como quem cospe caroços” (p.79), ou na personagem que usa a expressão “sair do ‘serviço’” (p.84) para referir o fim do dia de trabalho. São elementos que enraízam no mundo concreto a prosa de A Lição, sem que esta resseque nesse gesto de captar certos segmentos do real. E é este tipo de esmero que funciona como a argamassa que aglutina as partes e os materiais da construção; e a memória tudo solidifica e erige.

O título de A Lição do Sonâmbulo retoma-se para nomear o último capítulo. Depois de algumas prolepses, que conduzem a narrativa à idade adulta, o narrador regressa ao centro nevrálgico do romance. A “casa verde”, sede do núcleo familiar, é o espaço privilegiado pela narrativa, local das tensões e dos conflitos que se levantam perante o correspondente do narrador na idade imatura. Tudo parte desse domicílio, e é aí que o narrador torna, para deixar uma pista de interpretação possível. O sonâmbulo do título é, por certo, o próprio narrador, e esse estado de sonambulismo é o traço de união entre a criança e o adulto. Este, afinal, e ao contrário do que o próprio narrador supusera ao longo de A Lição, carregará para a maturidade essa condição. Espécie de limite entre a vigília e a consciência, a sua lição talvez consista em assumir a possibilidade de nunca assumir um ser absolutamente consciente, absolutamente da razão.

texto inserto no jornal público, suplemento y, em 22 de maio de 2020
PRÉMIO UNIÃO EUROPEIA DE LITERATURA 2021 PRÉMIO FUNDAÇÃO EÇA DE QUEIRÓS 2021

Vitorino Nemésio

Obra Completa

Imprensa Nacional — Companhia das Ilhas Direção literária: Luiz Fagundes Duarte

POESIA

I. Poesia (1916-1940)

Edição de Luiz Fagundes Duarte

II. Poesia (1950-1959)

Edição de Luiz Fagundes Duarte

III. Poesia (1963-1976)

IV. Poesia Póstuma

TEATRO E FICÇÃO

I. Amor de Nunca Mais (1920)

Edição de Chloé Pereira

Paço do Milhafre (1924)

O Mistério do Paço do Milhafre (1949)

Edição de Urbano Bettencourt

II. Varanda de Pilatos (1927)

A Casa Fechada (1937)

Edição de Luiz Fagundes Duarte com a colaboração de Francisco Maduro-Dias

III. Mau Tempo no Canal (1944)

ENSAIO

I. Sob os Signos de Agora (1932)

Conhecimento de Poesia (1958)

Edição de Ângela Correia

II. A Mocidade de Herculano (1934)

Isabel de Aragão, Rainha Santa (1936)

III. Relações Francesas do Romantismo Português (1936)

Portugal e Brasil no Processo da História Universal (1952) O Campo de São Paulo —

A Companhia de Jesus e o Plano Português do Brasil (1528-1563) (1954)

IV. Vida e Obra do Infante D. Henrique (1959)

Almirantado e Portos de Quatrocentos (1961)

V. Quase Que os Vi Viver (1985) Vultos e Perfis (2003)

VI. Dispersos

CRÓNICA

I. Ondas Médias (1945)

O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos (1954) Edição de Cláudia Cardoso

II. Corsário das Ilhas (1956)

O Retrato do Semeador (1957) Edição de Leonor Sampaio da Silva

III. Viagens ao Pé da Porta (1967)

Caatinga e Terra Caída (1968)

IV. Jornal do Observador (1971) Era do Átomo Crise do Homem (1976)

V. Se bem me Lembro… (1969-1975)

VI. Jornal Disperso (1916-1978), (tomos i e ii)

MÁRIO T CABRAL

MÁRIO T CABRAL

LUÍSA FREIRE

LEONARDO CLÁUDIA LUCAS CHÉU HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO

JORGE PALINHOS RUI ALMEIDA

NUNO DEMPSTER

LUIZ FAGUNDES DUARTE MANUEL JORGE MARMELO

ANTÓNIO VIEIRA

HELDER BETTENCOURT URBANO BETTENCOURT JORGE AGUIAR OLIVEIRA SIMÃO DOS REIS

DIMAS SIMAS LOPES MAQUIAVEL CLÁUDIA LUCAS CHÉU YVETTE K. CENTENO ANABELA BELO et alii (coord.)

LEONOR SAMPAIO DA SILVA VIRGÍLIO MARTINHO MANUEL JOÃO GOMES

LEONOR SAMPAIO DA SILVA et alii (org.)

NARCISO PINTO

JUDITE CANHA FERNANDES

MARIA BRANDÃO AUGUST STRINDBERG MÁRIO T CABRAL

CARLOS J. PESSOA ANA LÁZARO

AS QUATRO ESTAÇÕES PARA ONDE VAMOS, IRMÃS?

IMAGENS (SELECÇÃO E PREFÁCIO DE RICARDO MARQUES) CONTAS DE CABEÇA ODE TRIUMPHAL À CONA NA CAMA COM OFÉLIA

A ACÇÃO E O PODER NO DRAMA CONTEMPORÂNEO CINCO CAVALOS ABATIDOS E OUTROS POEMAS LIMBO, INFERNO E PARAÍSO, TRÊS ESTADOS APÓCRIFOS AS FOGUEIRAS DO MAR

O QUE ACONTECE QUANDO NÃO SE PASSA NADA NO TEATRO ART’IMAGEM ELOGIO DA DESCRENÇA

O MEU CAMINHO SALA DE ESPELHOS (2.ª ED. REVISTA E AUMENTADA) ATERRO

O PASSADO É UMA ESPÉCIE DE FUTURO UM HOMEM DE CONTRADIÇÕES MANDRÁGORA CONFISSÃO (2.ª EDIÇÃO)

O PENSAMENTO ESOTÉRICO DE FERNANDO PESSOA ÁRVORES AO PÉ DA PORTA / TREES AT YOUR DOOR QUASE UM CARIMBO OBRAS II: O GRANDE CIDADÃO OBRAS II: ALMANAQUE FANTÁSTICO, CÓMICO E CIENTÍFICO

MUITO MAIS QUE PAISAGEM 100 ANOS DE PEDRO DA SILVEIRA PALPITES PARA MÁ-LÍNGUA E SEVÍCIAS

O TERRAMOTO

O QUARTO DO PAI

A DANÇA DA MORTE É PRECISO QUE TE LEMBRES DOS PASSEIOS COM O TEU CÃO TEATRO (IN)COMPLETO. VOLUME II CATAMARÃ

2022

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