Katherine webb a herança pt

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para isso. A chuva cai oblíqua, correntes de ar entram pelas chaminés. Trago Harry para dentro de casa e preparo-lhe uma chávena de chá doce. Ele senta-se à mesa da cozinha, sugando o chá da colher como se fosse uma criança. Pinga água no chão, enche a divisão com o cheiro de lã molhada. Mas não consigo encontrar Beth para lhe servir uma chávena de chá. Não a consigo encontrar para lhe perguntar o que é que ela quer jantar, se quer ir a algum lado, se quer alugar um filme na estação de serviço da estrada para Devizes. Sinto que agora é minha função preencher-lhe o tempo. O tempo que a estou a forçar a passar aqui. Mas ela desaparece na casa como um gato, e eu ando em vão de sala em sala. Uma vez, Henry deixou-a escondida durante horas. Deixou-a sozinha, encurralada, em pânico. Também dessa vez conseguiu que eu fizesse parte disso. Eu era pequena. Devia sê-lo, porque Caroline ainda estava viva. Mais cedo, naquele mesmo dia, ela fora empurrada na sua cadeira para o terraço. Ela tinha uma daquelas enormes cadeiras de rodas de verga. Nada das cadeiras de metal e plástico cinzentas do Serviço Nacional de Saúde. A cadeira chiava quando era empurrada, os aros finos das rodas a brilhar, mas Henry dizia que era Caroline que chiava, porque era tão velha e estava mumificada. Eu sabia que aquilo era um disparate, mas apesar disso, de cada vez que a ouvia, pensava em pele frágil como papel a rasgar-se; em cabelo que se transformaria em pó se lhe tocássemos; na língua que ficara rígida e dura numa boca mirrada. Nunca nos obrigavam a beijá-la se não o quiséssemos fazer. A minha mãe tinha muito cuidado com isso, e graças a Deus que era assim. Nessa altura, ela já passava quase todo otempo na cama, mas pusera-se um dia bonito e estávamos todos lá – Clifford e Mary, os meus pais. Ela foi empurrada até junto da mesa, e o almoço fora-lhe servido num tabuleiro que se encaixava na estrutura da cadeira. A governanta trouxe a sopa numa terrina de porcelana branca com o formato de uma couve-flor gigantesca, e havia batatas, salada e fiambre em cima da mesa. Repreenderam-me por estar a enfiar os dedos na manteiga que derretera no fundo da travessa das batatas. Meredith ajudou Caroline a comer, alimentando-a por vezes como se alimenta um bebé. Franzia a testa ao fazê-lo; apertava firmemente os lábios. O cabelo de Caroline era fino. Eu conseguia ver o couro cabeludo dela através dele, e, de facto, assemelhava-se a papel. A conversa prosseguia à sua volta, e eu mantive os olhos cuidadosamente fixos no meu prato. Só uma vez é que ela falou e, apesar de a


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