O Projeto PESCARTE centrou-se na investigação e desenvolvimento das técnicas artesanais associadas às atividades das comunidades piscatórias do concelho de Odemira: Vila Nova de Milfontes, Longueira Almograve, Entrada da Barca e Azenha do Mar, estas duas últimas na freguesia de S. Teotónio. Teve como objetivo inovar através do design e do envolvimento responsável de pescadores e artesãos. Deste modo, pretende-se re-introduzir o artesanato local à própria comunidade e ao “mercado” com uma nova imagem e futura perspetiva comercial. A conceção do projeto considerou a cultura tradicional do litoral do concelho de Odemira, concentrando-se nas técnicas, materiais, saberes e fazeres locais, e pretende promover interpretações contemporâneas dos mesmos, com o propósito de potenciar sinergias entre a produção artesanal, as instituições e o setor comercial.
O objetivo geral do projeto é criar oportunidades de diversificação da atividade piscatória pela via da conceção de produtos inovadores e com interesse económico, com base nas atividades artesanais das comunidades piscatórias de Odemira. Os objetivos específicos passaram por desenvolver uma linha de produtos, com marca registada, de uso utilitário, decorativo e lúdico, que seja inovadora em relação aos produtos atualmente produzidos localmente e desta forma apoiar iniciativas empresariais no setor do artesanato e promover os resultados obtidos a nível local, regional e nacional.
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OBJECTOS DO MAR BRAVIO
As pessoas que conhecemos no decorrer deste trabalho têm uma relação particular com as coisas, com o entorno, a natureza, e a natureza das coisas. Foi desde logo o que entendemos: que há outra realidade para além do que se vê, ouve e faz. Como o pescador que lê a profundidade do mar olhando a superfície.
Essa sensibilidade reflete-se na forma como se evidencia uma cultura material nos lugares onde vivem e trabalham os pescadores. Onde, ao início víamos despojos, percebemos ser armazéns de potenciais “outras coisas” ou materiais de onde se farão outras ainda. A criatividade que no mar, permite saber para além do que se vê, em terra também se aplica. Todas as coisas podem ser outras coisas. Um bidão pode ser um vaso, um alguidar pode ser um palangre, uma garrafa de plástico pode ser um lastro ou boia. A esta visão junta-se a capacidade de fazer com o que
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se tem à mão — a arte do desenrascanço. Nestas comunidades, que não têm mais de 70 anos, a escassez de bens materiais, mesmo os naturais como a madeira, assemelha-se àquela vivida numa embarcação, onde qualquer necessidade tem de ser resolvida com os meios disponíveis a bordo. A criatividade torna-se uma exigência, juntamente com a destreza necessária para fazer as artes de pesca — redes, nós e aprestos — estará na origem de tanta aptidão e tanto engenho. Porque os artefactos que encontramos transformados, para lá de uma visão, têm arte, têm saber e não respeitam regras — são livres. A lei aqui é a maré, o sol e a sorte.
Chegámos a estas comunidades expectantes por encontrar materiais naturais, objetos fabricados a partir de recursos naturais e autóctones, e uma memória coletiva, mas estas coisas não fazem parte deste universo atual da beira-mar. Em vez disso há um modo individual de fazer, de resolver, de acabar um apresto. Onde as soluções, apesar de terem a mesma essência funcional e um legado técnico de gerações ligadas à actividade piscatória, têm resultados diferentes, com cores, nós, formas e melhorias.
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O modo livre, espontâneo e consciente de usar materiais e produzir artefactos é a especificidade que define a cultura material destes portos e comunidades piscatórias. Como, mesmo respeitando certos códigos culturais, se cria de forma independente e autónoma, livre de regras formais ou estéticas, e respondendo somente ao imaginário individual de quem faz.
Este “engenho do improviso”, que funde constantemente a beleza natural do lugar e a beleza sintética dos materiais, foi o que mais nos marcou e acabou por orientar todo o processo. E possivelmente não nos abandonará mais.
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ARTES DE PESCA
Ofícios e olhares das gentes do mar
No sentido em que cada arte tem as suas formas de trabalhar, o que os pescadores exprimem pela frase, ando na vida do anzol ou faço a vida das redes, há uma ligação estreita entre os ofícios e o quotidiano, entre as pescarias que se praticam e o indivíduo, o corpo e as representações que se fazem dele. MATERIAIS E FORMAS COMPÓSITAS Com a madeira, cortada dos seiceiros ou seixos (Salicacease canariensis) nos barrancos da região, faziam-se nassas para a apanha da lagosta: mediam cerca de dois metros de comprimento por um metro de diâmetro, tinham a meio da secção cilíndrica, que era a sua forma, um andiche, por onde entravam as presas, e num dos topos, que se fechava com ripas ou com um pedaço de rede de pesca já fora de uso, um mecanismo que abria e fechava e que permitia recolher as espécies retidas. Estas guardavam-se vivas na água enquanto o barco estava no pesqueiro, em
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artefactos idênticos, mas com uma só abertura, para as colocar e retirar. Modernamente, as lagostas são apanhadas em redes. Os covos, nome por que são conhecidas as atuais armadilhas, pescam o polvo. São feitos com uma estrutura de metal paralelepipédica, que é envolvida numa rede de polietileno. Por esta ser bastante resistente, dura, conservar a forma e suportar os embates nos fundos
Os instrumentos de trabalho nas pescas são constituídos por materiais de origem vegetal, metais e matérias sintéticas, em misturas que têm variado na história das atividades da beira-água.
rochosos, José Maria, do porto da Entrada da Barca, começou a testar a utilização destas armadilhas sem armação de ferro. Estes foram pequenos exemplos de como os instrumentos de trabalho nas pescas são constituídos por materiais de origem vegetal (madeiras, bambus, caniço, cana-da-índia, algodão, linho e sisal), metais e matérias sintéticas, em misturas que têm variado na história das atividades da beira-água. Aros de madeira, de diâmetro variável, onde se entralha um saco de rede, os chalavares, eram manobrados nas praias e laredos da Azenha do Mar para Sul, por crianças, mulheres e homens, para apanharem as “algas arrojadas”. Aparelhos operados a partir de barcos fundeados, chamados ganchorras, feitos de uma chapa de metal munida de cinco dentes, que era soldada a um semi-arco, que se ligava a uma vara em madeira de quatro a cinco metros de comprimento, e com um saco de
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rede de nylon entralhado no conjunto formado
pelo arco e pela chapa, arrancavam a vegetação agarrada à pedra. Ao largo fazia-se a colheita por mergulho, à mão e com ferramentas cortantes. Ainda na beira-água, nas pedras das falésias e laredos, usam-se na recolha do percebe e do ouriço, instrumentos feitos de habilidade e lógica caseiras, com a forma de ganchos e lâminas de metal, encabados ou atados a varas, que se aplicam numa relação solidária com o corpo: arrilhadas, raspadeiras, facas e arames, bicheiros ou bucheiros. Tanto na constituição das ferramentas de trabalho, como nas representações, a pesca é um universo compósito: explora as reações óticas, táteis, olfativas e gustativas, das espécies marinhas, iludindo-as com alimentos, cheiros, brilhos, cores, luzes, sombras, ruídos e dispositivos que as levam para espaços fechados; as artes armam-se com materiais de origem vegetal, animal e industrial; perceciona-se o ambiente através da descoberta e memorização dos sons saídos do movimento das águas nas furnas, palheirões, pontas e pedras que andam
Tanto na constituição das ferramentas de trabalho, como nas representações, a pesca é um universo compósito.
“à reboleta” nos laredos, e que na quietude do nevoeiro e da noite indicam, a quem costeia, os rumos e os locais de destino: o pom – pom – pom, que se ouve na Furna do Padês, o chiar no Peal Manso, o schhhhh – schhhhhh dos peões de Vasco Eanes quando o barco curva e faz a aproximação do portinho do Canal pelo lado
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Norte; combinam-se matérias recolhidas no habitat e objetos manufaturados ou originários da produção industrial. PESCARIAS E AMBIENTE Para alcançar este conhecimento da natureza, produzir tais artefactos, criar imagens, foram
Derrete-se chumbo em moldes pisciformes, fixa-se num extremo uma coroa de agulhas ou anzóis, e no outro, achatado para fingir uma barbatana caudal, faz-se um orifício onde se ata a linha de pesca.
certamente precisas muitas gerações na história das comunidades costeiras. O conceito de que o mergulho do alcatraz (Morus bassanus) assinala a aproximação dos cardumes à superfície, que fogem dos predadores, que, por sua vez, sugere a noção de uma cadeia trófica em que a última presa é um pequeno “peixe”, peça de aproximadamente seis centímetros, para fazer a “pesca à batida”. César e Luís Baptista e José Manuel Nunes, na Azenha do Mar, descrevem este tipo de pesca para a captura do choco e da lula: derrete--se chumbo em moldes pisciformes, fixa-se num extremo uma coroa de agulhas ou anzóis, e no outro, achatado para fingir uma barbatana caudal, faz-se um orifício onde se ata a linha de pesca. A mesma pesca pode ser feita com um pauzinho de cerca de vinte centímetros de comprimento, e cinco milímetros de diâmetro, com uma coroa de anzóis apertada por um cordel fino numa extremidade, e a poucos milímetros do lado oposto um entalhe para enrolar a linha da pesca.
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Pesos e boias dão exemplos de como em todos
estes processos se conjugam as faculdades sensitivas e as racionais. Os “rebolos”, que pela dureza e resistência ao choque estão na origem de alguns dos sons acima referidos, são pelas mesmas razões reutilizados como pesos para fundear os aparelhos: os maiores chamam-se poitas e ficam no início e no fim das “caçadas”, e os pequenos nomeiam-se peões ou pedras e colocamse ao longo dos cabos, em número que depende da profundidade a que se pretende pescar. É na arte dos covos, e na do palangre ou aparelho de anzóis, que se usam em maior número. Nos primeiros são presos, com fios de nylon ou presilhas plásticas, na base interna da armadilha, conferindo-lhe maior estabilidade. No palangre aproveita-se o formato oval ou acentuadamente elíptico, que permite que se dê em torno da secção central três ou quatro voltas com um fio, técnica rematada com um nó – por vezes, para garantir que a pedra não desliza e sai do aperto do fio faz-se um ligeiro vazado onde este entra –, e atam-se à madre, a linha principal, ou aos estralhos, linhas secundárias onde se empatam os anzóis, de modo a fazer com que a arte pesque, numas secções mais elevada e a apanhar uma qualidade de pescado, noutras mais rasteira e visando outra qualidade. Entre os lastros encontramos também os chumbos moldados, ou cortados de barras adquiridas
Os “rebolos” […] são reutilizados como pesos para fundear os aparelhos: os maiores chamam-se poitas e ficam no início e no fim das “caçadas”, e os pequenos nomeiam-se peões ou pedras e colocam-se ao longo dos cabos, em número que depende da profundidade a que se pretende pescar.
no comércio, e os usados nos covos feitos com garrafas de plástico de 33 cl, cheias de cimento (Lapa de Pombas).
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As fragilidades das “burnosas” e das “taliscas” – as primeiras desfazem-se na água, es segundas, que abrangem as variedades de xisto abundantes neste litoral, por serem quebradiças –, que as excluem do concerto de sons que codifica locais e rumos na costa, tiram-nas igualmente da armação dos aparelhos. Tradicionalmente feitos com abóboras secas, bucho de gado suíno e bovino e casca do sobreiro (Quercus suber), os flutuadores têm uma existência e um devir simétricos aos pesos. Nas redes de emalhar e de enredar são colocados na “tralha das boias”, cabo que fica no lado oposto da rede ao dos pesos; no aparelho de anzóis são postos nos estralhos e ainda nos inícios e fins das caçadas, para posicionarem as artes, ou partes destas, na altura desejada ao longo da coluna de água. Os buchos são limpos, virados ao contrário, secam e recebem um banho de óleo de linhaça para ganharem flexibilidade, sendo em seguida cheios de ar e fechados com a ajuda de um
Tornou-se hoje comum reaproveitar as esferovites que embalam os produtos industriais, e os garrafões de águas, óleos e detergentes.
“carrinho de linhas” e de uma pequena rolha de cortiça, conjunto que faz de pipo. As cortiças são cortadas e recebem o nome segundo as funções: as pequenas, boinhos, as maiores, boiréus. Tornou-se hoje comum reaproveitar as esferovites que embalam os produtos industriais, e os garrafões de águas, óleos e detergentes.
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MODOS-DE-FAZER E CULTURAS PISCATÓRIAS Sob estes modos-de-fazer há o impulso de um olhar que busca e vê para além das “matérias”, de qualquer perceção e apreensão positivas. A cultura da beira-água é transformadora das pessoas e do entendimento que se faz da utilidade do que nos rodeia. O marítimo e o pescador, aqueles que prolongadamente vivem nela, tornam-se assim seres em constante alerta, preparados para descobrir
Sob estes modos-de-fazer há o impulso de um olhar que busca e vê para além das “matérias”, de qualquer perceção e apreensão positivas.
formas e funções naquilo que um observador comum verá, no essencial, objetos e coisas. Por isso, mais que uma racionalidade económica, que é evidente quando se reutiliza e se reaproveita aquilo que nos rodeia, queremos ver nestes procedimentos uma sensibilidade e uma intuição que constituem uma visão do mundo – a de um mundo em que, transmitir uma nova feição a algo existente é já inovar, inventar e progredir.
BIBL IOG RA FIA SILVA, António Arthur Baldaque da, 1891, Estado Actual das Pescas em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional. BRANDT, Andres von, 1964, Fish Catching Methods of the World, London, Fishing News (Books) Ltd. CABRAL, João de Pina, 2015, “A ambiguidade dos meios: ensaio ergológico sobre canoas de vinhático no Baixo Sul da Bahia”, in Caminhos e Diálogos da Antropologia Portuguesa, Homenagem a Benjamim Enes Pereira, Viana do Castelo, Câmara Municipal, pp. 81-96. COSTA, Paulo e Marta Sanches da Costa, 2010, Ciência e Técnica, Normas de Inventário (Normas Gerais), Lisboa, Instituto dos Museus e da Conservação. Encyclopédie Métodique, Dictionnaire de toutes les espécies de pêches, Paris, Chez H. Agasse, Imprimeur-Librairie, rue des Poitevins, nº 18, L’An Quatrième de la République Française, 1795. LEROI-GOURHAN, André, 1964, Le Geste et la Parole (vol. I) Technique et Langage, Paris, Bibliotèque Albin Michel, Sciences. LEROI-GOURHAN, André, 1964, Le Geste et la Parole (vol. II) La Mémoire et les Rythmes, Paris, Bibliotèque Albin Michel, Sciences. LÉVI-STRAUSS, Claude, 1962, La Pensée Sauvage, Paris, ed. PLON.
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ENTRE O MAR E A TERRA Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. ANTOINE LAVOISIER
É através da memória, e também do esquecimento, que poderemos imaginar as vivências das populações piscatórias do litoral de Odemira que estão na origem do engenho e dos processos criativos que lhes permitiram ultrapassar necessidades de subsistência e lidar com a incerteza do mar. As pessoas com que nos cruzámos contam histórias dum tempo não muito distante, dos anos 60/70 do século XX, em que viviam com muito pouco. Era o meio ambiente, a terra e o mar, que assegurava o seu sustento.
Uma cana, um fio, às vezes um carreto improvisado com um pedaço de madeira ou de cortiça, era o suficiente para trazer peixe para casa.
Com a proximidade do mar, desde a infância, alguns já iam à pesca, de pedra em pedra, a pé pela costa. Pescavam para comer, juntando o peixe aos frutos da terra. Uma cana, um fio, às vezes um carreto improvisado com um pedaço de madeira ou de cortiça, era o suficiente para trazer peixe para casa. Aprendiam com os pais e uns com os outros. Experimentavam iscos, engodos
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e diferentes formas de pescar para conseguir apanhar espécies mais apetecíveis, como o robalo e o sargo.
Esta sazonalidade desde logo marcou a criação de uma cultura móvel, ambulante, itinerante. Era importante ser fácil transportar, arrumar e adaptar a qualquer circunstância que pudesse ocorrer.
A pesca de barco a remos surge como uma alternativa ao trabalho nos campos, nas hortas e nos montes, que sustentava as famílias desde um tempo longo. As idas ao mar coexistiam com esses trabalhos, entrelaçavam-se e complementavam-se. Este meio ambiente singular, onde o mar impera, oferecia a oportunidade sazonal da pesca, da apanha de marisco e de algas. Mas só era possível ir ao mar nos meses de Verão quando as condições o permitiam. Nessa altura, pescadores oriundos de localidades diferentes reuniam-se em áreas onde o peixe se concentrava, pernoitando nos barcos em enseadas naturais. Esta sazonalidade desde logo marcou a criação de uma cultura móvel, ambulante, itinerante. Era importante ser fácil transportar, arrumar e adaptar a qualquer circunstância que pudesse ocorrer. Em dias em que o mar assustava, os pescadores protegiam as suas embarcações, içando-as para plataformas construídas por eles com varas de madeira e canas entrecruzadas, de uma extraordinária leveza, exigindo destreza e habilidade.
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Em algumas enseadas naturais concentraram-se as atividades marítimas e nasceram pequenos portos, como Entrada da Barca, Lapa de Pombas e Azenha do Mar. De Sines, Vila Nova de Milfontes, Odeceixe e Arrifana, portos mais antigos, já há muito partiam pescadores procurando bons pesqueiros perto da costa. A estes juntaram-se outros pescadores que iniciavam a aventura da profissão.
Na proximidade dos pesqueiros, para abrigo, eram construídas cabanas de forma triangular com materiais vegetais do meio envolvente: canas, junco e braceja.
Na proximidade dos pesqueiros, para abrigo, eram construídas cabanas de forma triangular com materiais vegetais do meio envolvente: canas, junco e braceja. Era importante saber a altura em que deviam ser colhidos e o tempo que levavam a secar para poder servir de forma eficaz a cobertura das cabanas ou a produção de cestos e de outros apetrechos. Estas construções eram abandonadas depois da safra e recuperadas no ano seguinte por altura do Verão, exigindo consertos e a substituição dos materiais vegetais utilizados. Para estar mais perto da sua fonte de subsistência – a pesca e a apanha do limo – homens e mulheres juntavam-se e vinham morar para as falésias, junto dos portos. Ali construíam barracas, onde cedo começavam a nascer os filhos, que cresciam por entre as rochas e o mar, ajudando os pais desde tenra idade.
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Mais resistentes do que as cabanas, as barracas
Além de materiais vegetais, a sua construção recorria a materiais que davam à costa, como as madeiras de barcos naufragados afeiçoadas pelo mar.
tinham paredes verticais, um telhado de uma água ou duas e, na sua fase inicial, apenas uma divisão. Além de materiais vegetais, a sua construção recorria a materiais que davam à costa, como as madeiras de barcos naufragados afeiçoadas pelo mar. Também eram recolhidas pedras para serem usadas sob diversas formas, por exemplo, para fixar o telhado com o seu peso. O conforto não fazia parte da vida dos pescadores. Tinham apenas o essencial para a alimentação, como um fogareiro onde cozinhavam. O lume ocupava um lugar central. Era onde comiam e se juntavam ao serão. O espaço era tão exíguo que em seu redor também se dormia. Quem podia, comprava tecido para fazer colchões de palha. Nem todos tinham essa possibilidade. O descanso tinha lugar sobre o junco ou tarimbas (estrado de madeira) com umas mantas. O pouco mobiliário de que dispunham era feito por eles, é o caso de pequenos bancos em madeira e de cadeiras com assentos de fibras vegetais entrançadas. Com parcos recursos, tudo era aproveitado, tanto o que a natureza oferecia, como também o que homens, mulheres e crianças, ao correr a costa, conseguiam descobrir trazido pelo mar. Canas, cordas, madeiras que encontravam, tudo servia para melhorar as condições em que viviam. Todos sabiam quando alguém tinha a sorte de encontrar
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coisas raras: Naquele tempo havia muito pouco.
Uma mulher lembra que um dia encontrou uma caixa branca de plástico enorme que devia ser de um navio. Logo a recolheu e passou a usá-la para transportar o peixe que o seu marido pescava. Ninguém tinha uma caixa como aquela. De enorme simplicidade, algumas destas barracas permanecem até hoje, agora convertidas em espaços para guardar e preparar as artes de pesca ou em lugares de convívio e petisco. Na Entrada da Barca e na Azenha do Mar pode observar-se a criatividade da sua construção, onde o reaproveitamento de materiais é engenhoso e o universo do mar e da pesca uma presença fundamental. Em finais dos anos 70, o município de Odemira iniciou um programa junto das populações piscatórias, promovendo infra-estruturas, água potável, esgotos, electricidade e o loteamento de terrenos para a construção de casas. Na Azenha do Mar e na Zambujeira ouvem-se memórias desse tempo em que se juntaram braços para construir as casas onde os pescadores e as suas famílias hoje vivem. Tinha de se trabalhar muito
O pouco mobiliário de que dispunham era feito por eles, é o caso de pequenos bancos em madeira e de cadeiras com assentos de fibras vegetais entrançadas.
para construir a casa. Só o mar não chegava, íamos para fora trabalhar no arroz. Com a certeza da reciprocidade, organizavam ajudadas com o apoio de familiares, amigos e vizinhos para ir fazendo partes da casa: Um dia íamos ajudar uns, outro dia vinham-nos ajudar a nós. O saber fazer nem se questionava. Aprendia-se. Ao longo
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do tempo, as condições das casas foram sendo melhoradas na medida das possibilidades. As barracas e casas de pescadores desde logo se reconhecem. Afirmam uma identidade. Por vezes, as artes de pesca adquirem o estatuto de elementos decorativos, sendo expostas ao lado
As barracas e casas de pescadores desde logo se reconhecem. Afirmam uma identidade. Por vezes, as artes de pesca adquirem o estatuto de elementos decorativos.
de búzios, conchas, pedras e fósseis. Entre estes, alguns são difíceis de encontrar e, por isso, considerados preciosos. Também se podem ver barcos ancorados em terra, aguardando reparação ou uso futuros. Pequenos jardins, com vasos e canteiros, envolvem as casas. Nos búzios fazem nascer catos. Ao seu lado, o plástico colorido ganha lugar: embalagens vazias enchem-se de terra onde cresce uma diversidade de plantas. Engenhosa é a ideia de acrescentar a estas embalagens umas alças feitas com um grosso fio de nylon de modo a facilitar o transporte, uma prática comum nos barcos e nos portos. Nas casas ou nos armazéns dos pescadores que ainda vão ao mar, dispostos de forma mais ou menos organizada, sobressaem ferros (âncoras), poitas (pedras usadas como pesos), boias, aparelhos, cabos, redes e covos que aguardam utilização. Num contexto muito vulnerável e dependente do mar, é a necessidade que determina a reparação e a renovação constante
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dos instrumentos e materiais, que facilmente se
degradam com a acção do sal, da água e do tempo. Os pescadores juntam uma série de coisas que um dia podem servir para consertar, acrescentar, remendar, inventar ou reinventar, encontrando soluções para os desafios do quotidiano. Usado no universo da pesca sobretudo a partir dos anos 70, o plástico hoje é rei. A construção das artes em plástico reproduz o que outrora era feito com outros materiais. Nas redes, nos covos, no aparelho é evidente esta alteração. As boias
Num contexto muito vulnerável e dependente do mar, é a necessidade que determina a reparação e a renovação constante dos instrumentos e materiais, que facilmente se degradam com a acção do sal, da água e do tempo.
chegaram a ser de vidro e de cortiça. Além das que são produzidas em plástico, improvisam-se outras com embalagens vazias. Estas também servem para fazer o bartedouro com o qual se retira a água das embarcações e que sempre foi de madeira. Utilizada em diversos tipos de contentores, a madeira deu a vez ao plástico. Também os cestos de esparto, palma ou empreita, que transportavam as artes e outros produtos, são agora substituídos por cestos feitos com tiras de plástico entrançadas. Os objetos refletem as motivações que estão subjacentes à sua criação. Espelham, por um lado, o meio em que são produzidos e a atividade a que estão associados e, por outro lado, uma cultura material globalizada, fruto do tempo em
Usado no universo da pesca sobretudo a partir dos anos 70, o plástico hoje é rei.
que vivemos em que o plástico e o descartável predominam. 55
Com o plástico, a pesca ganhou novas tonalidades de cor. Tornou-se também uma actividade que deixa um rasto de poluição nos oceanos. No presente, os pescadores já estão conscientes deste problema e procuram alterar práticas. Conhecendo a sua história de permanente imaginação, engenho e adaptação a novas situações, poderemos acreditar que se irão envolver na importante missão de recolha e de reciclagem dos plásticos que
A necessidade motiva o fazer e o transformar, assim como também o sonho de viver com qualidade um futuro melhor.
diariamente se perdem no mar que tanto respeitam. A necessidade motiva o fazer e o transformar, assim como também o sonho de viver com qualidade um futuro melhor. São infinitas as possibilidades.
BIBL IOG RA FIA AA.VV., 2012, TASA, Técnicas Ancestrais, Soluções Atuais, Faro, CCDR Algarve. MENDES, Paulo, 2013, O Mar é que Manda: Construção de Comunidade e Percepção do Ambiente no Litoral Alentejano, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. OLIVEIRA, Catarina, “Objectos para Usar, Recordar e Desejar – Que caminhos para a produção tradicional?”, Património.pt, em < http://www.patrimonio.pt > (consultado em Dezembro de 2015). PRISTA, Pedro Monteiro (coord.), 2013, Atas do Colóquio Ignorância & Esquecimento. Odemira 13, Odemira, Município de Odemira.
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Encontrou no mar a sua fonte de inspiração e é na costa alentejana que vai buscar o que as ondas trazem para terra, e que é a matéria-prima do seu trabalho. As suas peças juntam elementos naturais como cortiça, troncos e raízes, com o plástico dos aprestos da pesca, das boias, redes de nassas e cordas, gastos pelo sol e pelo mar. Esta procura pelos achados do mar levam-no constantemente ao convívio com outros pescadores, com o imaginário e o simbólico destas comunidades. 58
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Filho de pescador, artesão e curioso. Escaleira sabe o nome de todas as pedras, peixes, plantas, árvores e caminhos. Já reformou o barco mas continua com o bichinho da pesca e há dias que vai bem cedo, com a sua cana, tentar a sorte. É da história da sua própria família que vem a ideia de fazer talheres de madeira — “porque antes não havia, eram muito caros”. Transformou a necessidade em arte e agora ocupa grande parte do seu tempo com colheres em madeira de Urze. Para além de colheres de todos os tamanhos faz utensílios para a “cozinha moderna” e aprestos de pesca por encomenda. Assim como as próprias ferramentas, faz todo o processo sozinho, desde a apanha da Urze até à sua conservação em contentores herméticos e sem luz. Conhece a madeira ao ponto de ler a orientação do sol nas suas diferentes tonalidades e aceita novos desafios com a mesma naturalidade que inventa novas peças. 60
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Paulo Silva é um homem de muitos ofícios. Recebeu formação de eletricista, faz serviços como carpinteiro, pedreiro — pode construir uma casa sozinho com as suas competências. Para além de habilidoso, tem também uma dedicação enorme às artes da pesca. Passa grande parte do seu tempo na Entrada da Barca, está sempre a construir algo com ou para os outros. Coleciona boias, cordas, conchas e outras curiosidades que dão à costa. As boias decoram o seu alpendre no porto, envoltas em nós — o que os pescadores chamam engaiar — conferindo a cada uma o seu cunho pessoal, de quem gosta de experimentar e relembrar ensinamentos de outros tempos.
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Januário é um dos pescadores mais novos em atividade no Porto da Azenha. Curioso e atento, tentou terminar uma garrafa forrada com nós de corda que tinha ficado por terminar por um tio seu. Terminou a garrafa e assim aprendeu a técnica. Essa foi a primeira de muitas que se seguiram, de diferentes formatos e tamanhos, todas elas cobertas por pequenos nós coloridos que Januário faz com paciência e criatividade.
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Na sua família todos trabalham para a pesca. Maria ajuda a iscar os aparelhos que o genro e o neto levam no seu barco. Começou em tempos a remendar as redes que o seu marido levava para o mar. Assim como as outras moças da sua idade, aprendeu a costurar, bordar e a fazer croché. Sempre foi ela que fez a roupa para a família para os dias mais quentes e para as noites frias em alto mar. Hoje continua a fazer croché e tricot, principalmente os quentes gorros de lã.
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Aprendeu com a tecelã holandesa Helena Loermans o gosto pelo entrançar dos fios. Depois de uma formação decidiu levar mais além o que aprendeu, produzindo peças funcionais e decorativas. Gosta de aperfeiçoar os modelos conhecidos, recriando costuras ou alterando formas, utilizando sempre as técnicas dos lavores tradicionais como base do seu trabalho. É a alma alentejana que a inspira, procurando motivos e cores na natureza e na vida tranquila da região.
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Aprendeu com o último oleiro tradicional a trabalhar na Olaria Municipal de Odemira e decidiu dar continuidade ao ofício. Hoje tem a própria olaria juntamente com o seu marido Paulo, onde fabricam variadas peças de cerâmica utilitária e decorativa. Para além das peças produzidas com a tradicional roda de oleiro e forno de lenha, desenvolveram uma imagem própria de decoração/pintura cerâmica que diferencia o seu trabalho.
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Foi armador no Algarve durante muitos anos. Chegou a pescar com alcatruzes de barro, mas a sua principal arte de pesca é a rede, que desde cedo aprendeu a fazer. Passou a maior parte do tempo em terra a preparar e entralhar as suas próprias redes, mas também a partilhar a sua arte com os outros. Perfecionista e cuidadoso não deixa escapar nenhum detalhe.
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Aprendeu os lavores domésticos muito cedo, observando as outras mulheres e estudando o direito e o avesso das peças que lhe chegavam às mãos. Aprendeu sozinha e aperfeiçoa continuamente a arte do bordado, do crochet, do tricot, do ajour e de outras técnicas em que trabalha. Ainda hoje não descansa enquanto não perceber como uma peça se faz. É o seu espirito curioso e de marcar a diferença que caracteriza a sua atitude e valoriza o seu trabalho.
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Natural de Lisboa, estudou no Ar.Co e nas Caldas da Rainha, mas é no Brejão onde vive e fundou a sua Oficina do Barro. O seu trabalho abrange olaria, escultura, azulejaria, cerâmica figurativa e até mobiliário, com inspiração na cerâmica popular portuguesa e mediterrânica, na arte persa e islâmica. As suas peças são feitas artesanalmente, na roda de oleiro ou utilizando outras técnicas como a modelação, as lastras, a bola ou os rolos. Criou uma relação privilegiada com o lugar e com as pessoas
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Já pescou na Entrada da Barca, tem a embarcação na Lapa das Pombas, mas dedica-se principalmente a pescar à cana nas falésia de Almograve. Para além de pescador é habilidoso na arte da reciclagem. Transforma contentores em todo o tipo de recipientes, aplicando-lhes alças e pegas. Faz sacos e caixas com a rede usada para fazer os covos — tudo pensado e feito ao pormenor. Tantas são as histórias que conta que é difícil perceber realidade e ficção, começando pela sua alcunha que vem dos tempos em que jogava futebol. 78
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Uma artesã mestra nas agulhas e tesouras. Começou cedo a trabalhar em renda que aplica em algodão ou linho. Algumas das suas técnicas favoritas são as bainhas abertas e o macramé. Produz peças utilitárias de cariz tradicional, inspirando-se nos antigos enxovais, nas colchas, mantas, lençóis e nos bordados e aplicações que os personalizavam.
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A sua alcunha vem do avô que tinha um forno comunitário na Zambujeira do Mar. Reformado, passa a maior parte dos seus dias no Porto do Canal, onde prepara as artes de pesca, sobretudo redes, para a embarcação Neco. Nos tempos livres faz exímias miniaturas de redes e sacos de macramé, que aprendeu durante o serviço militar. Faz ainda redes de tresmalho. Tem prazer em ensinar a construção de uma rede, o coser a corda, o engaiar de uma boia ou fazer nós comuns das artes de pesca.
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Uma artesã que produz, em palma natural e tingida, diversos objetos de uso doméstico ou decorativo. Conhecida pelos animais que faz, como borboletas, gafanhotos ou peixes, a sua estética é facilmente reconhecida. Usa técnicas de empreita, origami e macramé para construir os seus objetos. Possui um espírito que desafia a sua criatividade no dia-a-dia do seu atelier, procurando sempre a criação de peças novas inspiradas no território do concelho de Odemira.
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PROJECTO PESCARTE CACO - Associação de Artesãos do Concelho de Odemira
playground.atelier
TAIPA, Crl (Paula Lourenço)
FERMENTA + THE HOME PROJECT DESIGN Álbio Nascimento Susana António
Ana Escobar Susana Gama
Município de Odemira
FERMENTA + THE HOME PROJECT DESIGN Álbio Nascimento Susana António Cláudia Freire Luís Sousa Martins playground.atelier Álbio Nascimento Carla Lopes Cláudia Freire (pág. 10 inferior, pág. 48) Kathi Stertzig Susana António
António Canelas António Reis Célia Teixeira Inês Viana Januário Nobre José Francisco Reis Manuel Porfírio Inácio Maria Baptista Gonçalves Maria Isabel Pereira Maria de Jesus Oliveira Jesus Maria Manuela Figueirinha Miguel dos Santos Paulo Manuel da Silva Rita Silvério Morais
Junta de Freguesia de Vila Nova de Milfontes Junta de Freguesia de Longueira/ Almograve Junta de Freguesia de S. Teotónio
FERMENTA Álbio Nascimento Carla Lopes Kathi Stertzig
Fábio Mestrinho CACO - Associação de Artesãos do Concelho de Odemira
Mercado Municipal, Loja 6, 7630 - 141 Odemira, Alentejo – Portugal geral@cacoartesanato.pt | www.cacoartesanato.pt 2015
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