26ª Bienal de São Paulo (2004) - Artistas Convidados / Invited Artists

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do imaginário rural do Nordeste brasileiro. Apesar das diferenças, obras como essas têm claramente em comum o fato de que nelas a realidade constitui tanto a fonte imaginária quanto a física, de que se alimenta a criação artística. Além disso - e também aí de maneira análoga ao que acontecia há mais de trinta anos com as primeiras obras de Kounellis ou Zorio -, a descontextualização dos materiais projeta indiretamente a arte para fora do contexto em que é mostrada. Depois de ter sido contemplado de uma perspectiva artística num contexto privilegiado, o material pobre é lido e entendido de maneira diferente também no ambiente de onde fora extraído, e não só pelo artista mas - e é o que mais importa - pelo observador. É exatamente nisso que reside um dos maiores méritos da arte geral: apropriando-se de materiais comuns, ela age sobre a nossa percepção da realidade, amplia os horizontes e, de fato, melhora a nossa qualidade de vida, enquanto possibilita uma reavaliação puramente intelectual do mundo, irredutível a qualquer consideração econômica. Paralelamente, essa estratégia estética também funciona como armadura contra a construção indesejável de qualquer arcabouço ideológico. A opção por não construir mitologias se traduz, talvez involuntariamente, numa operação política e estratégica de extrema coerência: restringindo seu próprio significado ao valor inerente aos materiais que as compõem, essas obras se opõem a qualquer instrumentalização fácil. Assim como as línguas gerais, aderem ao que há de mais durável e autêntico, sem sofrerem a influência de significados ou mensagens transitórias. Se a produção artística e, em geral, a produção cultural, ao longo da história brasileira, foram marcadas, predominantemente, pela inesgotável criação, ou recriação, de mitos, a arte geral situa-se no extremo oposto de um hipotético espectro criativo. Em lugar de mitos fundadores, tais como os mitos - em níveis diferentes, mas todos igualmente significativos - do Paraíso Terrestre, do tratado de Tordesilhas, da onomástica nacional e até da utopia positivista, a nova arte põe de lado a mitologia e todo e qualquer universo fantástico para afundar suas raízes em terrenos sólidos e férteis. A Bienal de São Paulo pode ser considerada - se não por outra razão, pelo menos pelo fato de sediar-se no antigo Pavilhão das Indústrias do Parque do Ibirapuera - o lugar ideal para uma avaliação aprofundada dessa tendência, que extrai sua primeira razão de existir do contraste entre o malogro de certo ideal industrial e a precariedade de materiais como a madeira podre. Vitrina da arte brasileira e cenário ideal para o confronto entre seus desenvolvimentos e os das tendências internacionais, a Bienal demonstra, nesta edição, a representatividade da arte geral. E para demonstrar como esse tipo de produção é sintomática do Zeitgeist, obras provenientes de todo o mundo confirmam uma atração generalizada pelos materiais menos vistosos, pelas ruínas e pelos detritos das nossas sociedades aterrorizadas. Assim como no tempo da explosão transnacional (nos anos 1960 e 1970) de movimentos independentes, mas de certo modo análogos, como a Arte Povera, a Land Art e a Arte Conceitual, a consideração de que tendências semelhantes começam a afirmar-se em países geográfica, política e ideologicamente distantes, como México, China, Cuba e até Itália, Espanha ou os Estados Unidos (onde uma arte desse tipo poderia ser considerada menos "necessária"), leva-nos a perceber sua real importância. A fácil leitura local dessa arte como lógica conseqüência da proverbial tendência brasileira à improvisação, à gambiarra, é invalidada exatamente pela freqüência com que a precariedade, seu atributo fundamental, aparece em obras de artistas dos cinco continentes, a ponto de permitir considerá-la característica fundamental da sociedade contemporânea. Como deixar de ler, nessas construções de fragmentos, uma canhestra e tímida tentativa de represar as ansiedades de um século jovem e já tão profundamente marcado pelo horror e pelo medo? A sensibilidade que leva a privilegiar os materiais mais imediatos, mais disponíveis, esconde um desejo latente de recusar as construções virtuais e tecnológicas, tão onipresentes quanto intocáveis. Em seu lugar, a nova era da ansiedade propõe uma solução quase banal na sua imediatez: apropriase de materiais refugados e os enobrece através de uma operação estética. Com esses tijolos improvisados será possível, talvez, construir as bases de uma nova sociedade. São, como teria dito T.S. Eliot, os fragmentos para escorarmos nossas ruínas.

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Ieda Oliveira, Peca-Dor, 2004, confessionário, milho e música [confessional, corn and musicJ, dimensões variáveis [dimensions variableJ, procedência [provenance] Paróquia [parish] Varzedo, foto [photo] Josué Ribeiro

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