Cassandra

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Nesse número de Orpheu que há de ser feito Com rosas e estrelas em um mundo novo. - Fernando Pessoa, SÁ CARNEIRO (1934)

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de alunos para alunos elaborada na

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N O T A

E D I T O R I A L

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uem somos nós? Quem era Cassandra? Suponho que sejam essas as questões que primeiro subam às mentes dos nossos leitores, e aquelas que eu terei de responder neste texto. Sou da opinião que, para responder à primeira mais completamente, terei de começar pela segunda questão, e abordar quem era a Cassandra a quem esta revista presta homenagem. Dizia o académico romano Higino: “Cassandra, filha do rei e da rainha [de Troia, compreenda-se], no templo de Apolo, exausta da veneração, diz-se ter adormecido; Apolo desejava possuí-la, mas ela negou-lhe o seu corpo. Por causa disso, ele amaldiçoou-a a, quando profetizando visões do futuro, não ser acreditada.” Eis Cassandra, a nossa Cassandra, amaldiçoada pelo maior crime dos Gregos – ir contra a vontade dos deuses; e castigada de maneira muito severa – condenada a ver o futuro e nunca ser acreditada, ver todos a desprezar os seus avisos e as suas profecias, a desconfiar da sua palavra, a ignorar os seus conselhos; filha de Troia, ela viu a sua cidade em chamas mal Helena entrara nesta, enquanto todos os outros a celebravam. Mas a Guerra de Troia passou-se há muitos milénios, e nenhum dos que contribuíram para esta revista é uma princesa profetisa ou uma sacerdotisa sibila, e nenhum de nós se pode queixar de assédio sexual por parte do deus Apolo; em suma – o que vemos nós em Cassandra? Em primeiro lugar, apreciamos a luta de Cassandra, e admiramos a sua força; ela lutou pelo que era dela, contra o que lhe era ditado por quem se lhe impunha como uma autoridade inquestionável. E, punida e ostracizada, continuou a tentar, no seu sofrimento, fazer tudo quanto conseguia pelos seus. Era livre e determinada; um verdadeiro modelo. Mas também conseguimos rever a maldição de Cassandra como ainda presente em nós próprios. Durante os últimos meses, tivemos a oportunidade de ler estes breves extratos de pensamento impresso dos nossos colegas; é, por vezes, difícil de imaginar uma

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consciência por debaixo do ser inebriado, cansado e mecanizado que o quotidiano cria, mas por um breve momento apareceu um vislumbre de toda uma humanidade, toda uma existência, um ser novo e que nunca antes fora deixado respirar, sufocada na pressão da escolaridade e da vida. E o que saiu de lá? Em geral, muito cinzento, muita desolação… Um medo de desapontar, um medo de errar, um medo de viver uma vida mal vivida, uma vida de tristeza, sem ambições. Um medo do medo, que é a única coisa a temer. E, tal como Cassandra, um olhar perturbador perante o futuro, que parece tão realístico quanto é vergonhosamente deprimente, um futuro no qual as estruturas falharam, os sonhos foram esmagados e o sofrimento é comum. Consegue-se perceber de onde vem tal pessimismo; nascemos num mundo no qual a violência, a irracionalidade cresciam, no qual as sementes do ódio floresciam; se nos últimos anos temos visto as suas flores desabrochar, há que temer no futuro sermos nós a colher os seus frutos, não quem os semeou. Seria injusto dizer que é uma melancolia pessimista que reina suprema. Existe também um maravilhoso otimismo, uma esperança num futuro a vir, um futuro de amor, paz e fraternidade, tão bom ou melhor do que os nossos sonhos mais doces; sonhámos com eles também, e sorrimos ao ver, nesses tão carregados colegas, existir um brilho de vida, um amor à existência tão natural quanto o seu mundo é artificial. Dá esperança a qualquer um. Isso leva-nos a outra pergunta que acabará por ser concebida; o porquê? porquê uma revista? porquê textos? porque nós? Talvez não haja porquês para nós, que aqui estamos, presos no âmbar do tempo. Mas tentarei responder. A existência desta revista deve-se essencialmente a duas entidades ou, melhor dito, à maneira como essas duas entidades interagiram. E que entidades são essas? A primeira é o Professor Paulo Moura, que, para além de Professor de Português, serve também como Professor Bibliotecário na ESMAVC, supervisionando a velha e honrada instituição


A Ú LT I M A R E U N I Ã O

Grupo editorial, da esquerda para a direita: Américo Alves, David Almeida, Inês Teodoro, Beatriz Pereira, Miguel Mauritti, Guilherme Ferreira, Gabriel Gonçalves, Maria Melo e Afonso Maria

da Biblioteca Escolar. A segunda é uma turma de 12.º ano do Curso de Ciências e Tecnologias, com as disciplinas opcionais de Física e Aplicações Informáticas B; informática enquanto ramo tem a reputação de trazer uma super-maioria masculina, tradição que esta turma segue, com três raparigas e mais de uma vintena de rapazes; e vale a pena ressaltar que esta turma, enquanto sistema num registo físico, seria um a quem a inércia se imporia com tirania, principalmente ao lidar com assuntos de um cariz mais humanístico, como a literatura Portuguesa nos nossos currículos de Ensino Secundário (afinal, se escolhemos Física e Informática, não o fizemos para lidar com versos mas sim com linhas de código). A criação desta revista foi uma maneira de fazer cooperar essas duas entidades, um plano elaborado pelo Professor

Paulo Moura para dar sentido e visibilidade às produções escritas da turma para além da mera avaliação, fria, sintética, para depois ser engolida pelo esquecimento. Simultaneamente, tratou-se de um desafio a atingir: a publicação numa futura revista para outros lerem e apreciarem. Resultou? Talvez. Veremos. É verdade que pareceu existir um maior empenhamento na produção literária por algumas almas que provavelmente lhe seriam adversas; alunos que tinham noção da improbabilidade de vir a ter um texto selecionado pelo conselho editorial e, portanto, se esforçaram mais para concretizar esse objetivo. São esses a quem devemos prestar homenagem, quer tenham conseguido ou não; o seu esforço adicional, a sua empatia literária foi o sonho que fez nascer esta revista em primeiro lugar.

FICHA TÉCNICA Autores: Américo Alves, Beatriz Pereira, Carlota Camarate, David Almeida, Gabriel Gonçalves, Gonçalo Mateus, Gonçalo Peres, Guilherme Ferreira, Margarida Baptista, Margarida Fernandes, Maria Melo, Miguel Mauritti Ilustrações: Afonso Maria, Lara Alexandra, Miguel Mauritti, Ricardo Alves Design Gráfico: Afonso Maria, Américo Alves, Miguel Mauritti Capa e Contracapa: Miguel Mauritti Professor Coordenador: Paulo Moura

Revisão: Paulo Moura Coordenação de Edição: Miguel Mauritti Edição: Afonso Maria, Américo Alves, Beatriz Pereira, David Almeida, Gabriel Gonçalves, Guilherme Ferreira, Inês Teodoro, Maria Melo

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Í N D I C E S AT U R N O | C R O N O S

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D E U S D O T E M P O, L I B E R TA Ç Ã O E I N S A N I D A D E

JÚPITER | ZEUS

38

D E U S D O C É U , T R O VÃ O E J U S T I Ç A

MARTE | ARES DEUS DA GUERRA , VIOL ÊNCIA E TERROR

S O L | A P O LO

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DEUS DA MÚSICA , POES IA E VERDADE

VÉNUS | AFRODITE

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DEUSA DO AMOR, MÚSIC A E SEXO

MERCÚRIO | HERMES D E U S D O C O M É R C I O, L A D R Õ E S E V I A J A N T E S

LUA | AR TÉMI S D E U S A D A C A Ç A , M A G I A E F LO R E S TA S

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Um Estudo em Cinzento As Verdadeiras Cores do Século XXI

O semáforo brilha num vermelho que me ofusca. Ainda assim, é bom ver cor. Enquanto atravessava solenemente a passadeira, debati se aquele vermelho se aproximava mais do magenta ou do carmesim. Eis a primeira grande ofensa, a primeira grande falha no meu conhecimento que se tinha manifestado, agora que os meus horizontes se tinham expandido; na minha extensa educação fora ensinado a distinguir magenta do amarelo e esses do azul; verde, laranja e violeta como sendo as misturas de duas dessas cores primárias e, claro, o velho branco e preto, insólitos, além-classificação. Mas nada mais. E que é feito do escarlate? Não era útil, ao que parece. De que serve saber distinguir os tipos de vermelho, o azul celeste do marítimo? Nada. Talvez seja esse o problema. Talvez seja essa a essência da grande falha do Ocidente, aquilo que nos condena a cair. Meditei em tudo o que me fora ensinado pelo sistema, enquanto rodava a chave e subia metodicamente as escadas. Aprendi Física, não para um dia subir aos céus e navegar nas estrelas, mas para construir escadas como as que subo agora, edifícios como aqueles que habito. Biologia? Isso serve para receitar analgésicos aos doridos e estupefacientes aos iluminados, não para admirar os leopardos na natureza. Ensinaram-me poesia, é verdade, mas apenas porque as frases poéticas fluem bem e são bem construídas, e é mais fácil ler um relatório de alguém que sabe colocar fluência na banalidade; aumenta o rendimento do trabalhador. As escadas acabaram e, enquanto abro uma última fechadura, já me estou a perguntar acerca de outros templos da minha vida que descobri serem meras fachadas.

UM ESTUDO EM CINZENTO A S V E R D A D E I R A S C O R E S D O S É C U LO X X I M I G U E L

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semáforo brilha num vermelho que me ofusca. Ainda assim, é bom ver cor. Enquanto atravessava solenemente a passadeira, debati se aquele vermelho se aproximava mais do magenta ou do carmesim. Eis a primeira grande ofensa, a primeira grande falha no meu conhecimento que se tinha manifestado, agora que os meus horizontes se tinham expandido; na minha extensa educação, fora ensinado a distinguir magenta do amarelo e essas do azul; verde, laranja e violeta como sendo as misturas de duas dessas cores primárias e, claro, o velho branco e preto, insólitos, alémclassificação. Mas nada mais. E que é feito do escarlate? Não era útil, ao que parece. De que serve saber distinguir os tipos de vermelho, o azul celeste do marítimo? Nada. Talvez seja esse o problema. Talvez seja essa a essência da grande falha do Ocidente, aquilo que nos condena a cair. Meditei em tudo o que me fora ensinado pelo sistema, enquanto rodava a chave e subia metodicamente as escadas. Aprendi Física, não para um dia subir aos céus e navegar nas estrelas, mas para construir escadas como as que subo agora, edifícios como aqueles que habito. Biologia? Isso serve para receitar analgésicos aos doridos e estupefacientes aos iluminados, não para admirar os leopardos na natureza. Ensinaram-me poesia, é verdade, mas apenas porque as frases poéticas fluem bem e são bem construídas, e é mais fácil ler um relatório de alguém que sabe colocar fluência na banalidade; aumenta o rendimento do trabalhador. As escadas acabaram e, enquanto abro uma última fechadura, já me estou a perguntar acerca de outros templos da minha vida que descobri serem meras fachadas. Amamos? Não… Não amamos. Mas partilhamos a cama, porque é útil ao sistema que nos reproduzamos, que façamos mais como nós; e a nós é-nos útil a instituição de fuga aos impostos apelidada de casamento. Além disso, um operário que partilhe a cama com quem seja ameno dorme mais horas e como quem dorme mais horas é mais produtivo; é-nos permitido o divórcio, para encontrar outra pessoa que nos seja mais tolerável. Deixo cair ao chão a fonte do esclarecimento, um livro de um excêntrico irlandês acerca de um rapaz britânico, Dorian Grey. Sorrio. Dorian Grey amara. Dorian Grey sabia as cores, e recitálas com poesia autêntica. Dorian Grey era belo, já ninguém é belo. Somos todos pálidos, mecânicos. Wilde escrevera por sentir, não para receber uma nota ou ser publicado numa revista. E era por isso que Dorian Grey era belo, e não pálido e mecânico. Trazia conhecimento verdadeiro, não factos industrializados. Mas para mim não havia esperança. Quando descobri isso, vieram-me lágrimas aos olhos; esperei chorar, mas apercebi-me de que não sabia como. Demorei um pouco a aprender como o fazer, nunca mo fora ensinado. Agora estou de pé, no parapeito do prédio, pronto a saltar, mas descubro que não o sei fazer. Saltar não é útil, pelo que não me ensinaram a fazê-lo.

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UMA PRIMEIRA VEZ DEV ERAS MARCANTE G U I L H E R M E

F E R R E I R A

o longo da nossa vida, temos muitas primeiras vezes, umas tendo mais impacto em nós que outras; umas perecem no esquecimento e outras são imortalizadas pela sua relevância. A primeira vez de que vou falar é uma das mais, senão a mais importante para mim! Refiro-me à primeira vez que toquei guitarra para um público. Para quem nunca teve a experiência, a adrenalina que se sente antes de uma atuação musical pode equiparar-se àquela euforia sentida antes do arrancar de um carrinho de uma montanha russa. A primeira vez que toquei, de facto, para um público foi na minha própria escola de música. Lembro-me que cada ação, por mais simples que fosse, tornava-se num problema insolucionável! Desde guardar a palheta naquele bolso pequenino que temos nas calças (para os guitarristas esse bolso tem, realmente, uma utilidade prática!), a afinar as cordas antes da atuação, a preparar o cabo para ligar a guitarra... Bem, acho que se percebe a ideia! Quanto mais simples era uma ação de se executar, mais nervoso eu ficava ao executá-la. Enquanto me preparava para ir para o palco, um outro grupo de alunos atuava; eu não me lembro que música estavam eles a tocar, mas estava a soar muito bem! E instaurou-se, em mim, o nervosismo mais irritante de sempre: “Depois de uma prestação destas quem dará valor à minha?”; e uma certa disforia começou a conquistar o meu bem estar. Estava ainda a matutar neste pensamento torturante quando chamam o meu grupo. Ao subir para o palco, foi como se a disforia de que falei há pouco não tivesse o poder de me acompanhar, abandonando-me. A euforia e aquele nervosismo saudável voltaram a tomar conta de mim. O público não ultrapassava as cem pessoas, mas eu sentia que esse valor era um valor exponencial, ao estar em palco; até que o pior que pode acontecer a um guitarrista aconteceu: sentir as mãos frias. Não queiram conhecer a sensação... é como se ficassem impotentes, como se a vossa arma mais poderosa vos tivesse sido tirada. Em 10 segundos íamos começar a tocar e eu nesta deprimente figura. Estes 10 segundos rapidamente tomaram o valor de nanossegundos e, quando dei por mim, já estava a tocar. Na primeira palhetada, senti mil e uma sensações: as mãos emanavam calor; o público passou de ameaçador a amigável; o palco passou de intimidante a acolhedor; e, tal como uma droga muito forte, ainda nem tinha saído do palco e já estava completamente viciado naquela sensação. Esta foi, de facto, uma primeira vez muito marcante para mim! Apesar de o palco ser de ridículas dimensões, de o público tomar um número bastante humilde e de se tratar apenas de uma atuação de nível académico, eu senti que, a partir daquele momento, algo novo tinha suscitado em mim: uma avidez de atuar mais vezes, para mais pessoas e em palcos maiores.

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screver sobre medos é fácil, há tanta coisa que me assusta. Tenho medo de sofrer e de falhar. Tenho medo de tudo o que me possa fazer feliz, pela simples possibilidade de poder acabar e me fazer miserável. Tenho tantos medos. Mas, e sonhos? Há quem sonhe com ter filhos ou em ser diretor de um hotel. Eu não sei. Acho que não tenho nenhum sonho em especial. Se calhar isso é um bocado triste, mas não me incomoda. Podia ser pior. Eu só quero ser feliz e, sim, já sei que isso é muito cliché, mas não é isso que todos queremos? Para mim, sonhos possíveis não são sonhos, mas objetivos e, por isso, os sonhos que tenho são impossíveis. Quero saber como é ser o mar, ter todo um mundo dentro de mim e sentir-me a rebentar contra as rochas. Quero saber como é ser o vento, mais livre é impossível. E quero saber como é ser o fogo, tão quente e cheio de vida. Mas, se eu fosse o mar não podia senti-lo entre os meus dedos, nem podia nadar nele. Se eu fosse o vento, não podia senti-lo na minha cara. E, se eu fosse o fogo, não podia ver o quão belo pode ser algo que é tão perigoso. Por isso, contento-me com o que é possível. Quero amar alguém e dar a volta ao mundo com essa pessoa. Quero nadar em todos os oceanos e aprender a pilotar um avião. Não quero ficar parada quando há tanto para descobrir. Não quero fazer planos com a minha vida, gosto de descobrir as coisas a seu tempo e, por isso, vou fazer o que quiser quando me apetecer. Penso que tudo é mais divertido quando não há planos, por isso, não os vou fazer. A diversão é meio caminho andado para a felicidade. E oh! Como eu sou feliz!

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FELICIDADE M A R I A

M E L O


VENI, VIDI, RELINQUI M I G U E L

M A U R I T T I

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uando saí de casa dos meus pais pela primeira vez, não conhecia o mundo. Tinha ouvido histórias; em muitas acreditava, outras ignorava, tomando-as como mitos, superstições, e delas troçava. Quando saí, não houve alarido; a minha mãe abraçou-me; o meu pai perguntou se eu tinha tudo o que precisava. Respondi que sim. Diz-se que é natural os filhos saírem de casa dos pais — entre os que vivem junto a um rio chamado Mississippi, as crianças limitam-se a ir numa jangada rio abaixo até ao seu destino. Jurei ir ver esse rio. Nunca o consegui encontrar. Achei estranho. A primeira cidade onde eu cheguei tinha sido construída por um herói mítico de uma epopeia; mais tarde, fora totalmente destruída por um terramoto devastador; era sabido que haveria um novo sismo, mas ainda assim reconstruíram a cidade por cima dos escombros. Perguntei a um habitante porquê. Ele não me soube responder; falou-me de reis mortos e perdidos no nevoeiro. Depois desculpou-se; tinha de ir ver um jogo na televisão. Achei estranho. Apercebi-me de que não gostava daquela cidade ou dos seus habitantes. Pintavam de cor-de-rosa o passado e para o presente tinham os seus próprios ópios. Decidi continuar; pelo que ouvira dizer, o mundo era maior do que isto. Andei muito até voltar a parar. Era outra cidade; esta tinha uma torre metálica que se erguia desafiadora, e quando perguntei o que fazer na cidade, levaram-me a edifícios antigos para ver pedaços de madeira pintada — arte. Vi uma senhora a sorrir-me esfingicamente. Sorrilhe de volta. Mais tarde, arranjei tela e tinta; tentei a minha própria arte. Quando a mostrei, desprezaram-na. Disseram-me que era noviça; levaram-me aos seus mestres; vi que eram corruptos, que viviam para o dinheiro apenas. Nesse mesmo dia abandonei a cidade dos artistas; o seu tipo era uma sombra difusa do que antes teriam sido. Achei estranho. A terceira cidade a que cheguei era, em termos de vícios, pelo menos honesta. Lá, levaram-me a um bairro onde todos os néones brilhavam pela noite adentro de vermelho, nas montras dançavam manequins vivos, e nas suas casas de café, o fumo era espesso e sonhavam com arco-íris. Achei estranho. Apreciei a honestidade, mas não fiquei lá muito tempo; não me odiava o suficiente para ter de fazer da hedónica euforia narcótica uma vivência.

Peregrinei mais para encontrar uma nova cidade; nesta, segui uma multidão que ia a ouvir um homem vestido de ouro a apelar à humildade; a multidão ajoelhavase em louvor a um homem torturado; explicaram-me que o Crucificado era o seu Deus, e que o seu Deus era o seu tudo. Achei estranho. Mais tarde, percebi que todos os homens têm um Deus. Para uns é o Crucificado ou alguma variação. Outros louvam a Lei ou a Democracia; outros veem-se a si próprios como deuses. Voltei para a casa paterna. Aquele mundo estava visto. Não fizeram grande alarido. Agora, por vezes, perguntam-me se quero pertencer a esse mundo. A minha resposta? Não, obrigado.

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SONHO DE UMA ESCOLA SECUNDÁRIA

M A R G A R I D A 13

B A P T I S T A


Ato I Cena I Passa-se numa escola secundária, num intervalo. Os corredores estão cheios e não se distinguem as conversas. Um rapaz, Tiago, está a correr pelo corredor. TIAGO – Pedro! Espera aí! Pedro, que está um bocadinho à sua frente, vira-se e ajeita a mochila. Tiago chega ao pé dele. TIAGO (põe um braço pelos ombros de Pedro, e continua a andar, arrastando Pedro) – Precisava de um favor teu… PEDRO (revira os olhos) – É claro que precisas de um favor. Não falas comigo a não ser que precises de um favor. Tiago considera isto, começando a reclamar, mas apercebe-se que é verdade. TIAGO – De qualquer forma, preciso da tua ajuda. Preciso que distraias a Tânia por um bocado… PEDRO (para, em frente a Tiago, fazendo-o parar também) – O que é que estás a planear, exatamente? TIAGO – Sabes aquele novo aluno que entrou na turma B no 2.º Período? No outro dia, tivemos Educação Física com o B e vi como ele jogava futebol. Queria tentar recrutá-lo para a equipa. PEDRO – E para que é que precisas que distraia a Tânia? TIAGO (ligeiramente irritado) – Aparentemente, ela viu-o a jogar vólei e já o tem na equipa dela. Os horários não possibilitam que ele esteja em ambas as equipas, e tentei que ela nos deixasse tê-lo, mas não cedeu. Portanto, preciso que tu a distraias enquanto eu o convenço a mudar e equipa. Voltam a andar. PEDRO – Tu e ela não tinham voltado a namorar? TIAGO – Não, acabámos outra vez. PEDRO (a sussurrar) – Pela terceira vez esta semana… TIAGO – O quê? PEDRO – Nada, nada. (Revira os olhos) Enfim, acho que te posso ajudar, sim. Depois aviso-te quando estiver tudo pronto.

TIAGO – Muito obrigado, meu, fico a dever-te uma! PEDRO (a sussurrar) – Já me deves muitas… TIAGO – O quê? PEDRO – Nada, nada. Pedro afasta-se e sai.

Cena II Tiago aproxima-se dos cacifos, abre um e começa a tirar livros da mochila e a pô-los lá. Duas raparigas, Mia e Helena, estão a tirar livros de um outro cacifo perto do seu e a falar. Nem ele repara nas raparigas nem as raparigas reparam nele. MIA – Já decidiste? Tiago repara nas raparigas e começa a ouvir a sua conversa. HELENA (suspira) – Não, nem sei o que vou fazer. A última vez que falámos, ele ignorou-me completamente. Disse-me que era de ti que gostava, Mia, e que eu nunca mudaria isso.

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Mia fecha o cacifo e abraça a amiga.

MIA – Peço desculpa, Helena. Se pudesse fazer com que ele deixasse de gostar de mim, fazia. (Encolhe os ombros) Já lhe tentei dizer que agora amo o Luís, mas o Diogo diz que não importa. Começam a afastar-se. HELENA – Não faz mal, a culpa não é tua. Só queria que ele percebesse o quanto eu gosto dele e tu não. Continuam a falar, mas afastam-se, e já não se ouve a sua conversa.

Cena III Tiago fecha o cacifo, pensativo, tira o telemóvel do bolso e faz uma chamada.

TIAGO (ao telemóvel) – Pedro, preciso de mais uma coisa. (Pausa) Ouvi duas miúdas a falar e preciso que as ajudes. (Pausa) Porque fiquei com pena delas. (Pausa) Agora não posso fazer uma boa ação? Não, não respondas. Ouve, uma das raparigas chama-se Helena e a outra Mia. Aparentemente, a Helena gosta de um tal de Diogo, que gosta da Mia, que parece que namora com um tal de Luís. Podes ajudar a Helena por mim? A cortina fecha, antes da resposta de Pedro.

Ato II Cena I Noutro corredor, com menos gente. Um rapaz, Luís, está a afixar cartazes para a peça da escola, “Um Sonho de uma Noite de Verão”. Pedro entra e depara com ele, pensando que é Diogo. PEDRO – Olá! LUÍS (desconfiado) – Olá… Pedro, não é? PEDRO (fingindo estar triste) – Sim. Olha, ouvi dizer uma coisa… E acho que devias saber. LUÍS (intrigado, pousa os cartazes e vira-se para Pedro) – O que é? É alguma coisa sobre a Mia? PEDRO – Sim… Ouvi dizer…. Disseram-me que ela ainda gostava do seu ex… Que só lhe estava a fazer ciúmes contigo. LUÍS (confuso) – O quê?! De quem é que ouviste isso? PEDRO (olha para o telemóvel, confirmando os nomes) – Da… Helena. Ela é que gosta mesmo de ti, parece-me. (Luís fica zangado) Até disse que tentou convencê-la a ver o que ela via em ti, mas ela não desistia do… do… (Pedro esquece-se do nome do Luís) LUÍS – Do Diogo?! Preciso de falar com a Helena! Ao ouvir o nome do Diogo, Pedro apercebe-se que trocou os nomes, enquanto Luís sai à procura de Helena. Fica confuso, sem saber o que fazer.

Cena II PEDRO (para o público, andando de um lado do palco para o outro) – E agora? Errei o alvo. Aquele era o Luís, não o Diogo! Estão a ver, eu tenho assim um dom (fica orgulhoso e começa a gabar-se). Sou capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. Por isso, o Tiago, que é o capitão da equipa de futebol, pede-me ajuda sempre que precisa de um favor destes (volta a ficar preocupado). Agora é que fiz asneira… Tenho de encontrar o verdadeiro Diogo e convencê-lo a ele. O Luís deve falar com a namorada dele e perceber a verdade a tempo. (Convence-se disso) Sim. Está tudo bem. É só encontrar o Diogo…

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Cena III Diogo entra em cena, com fones nos ouvidos, a ouvir música e com as mãos nos bolsos. Encosta-se a uma parede e não presta atenção a Pedro. Pedro repara em Diogo, mas desconfia se será quem procura. PEDRO (ainda para o público) – Acho que este é que é o Diogo… PEDRO (para Diogo) – Diogo, certo? DIOGO (tira os fones) – Sim… Porquê? PEDRO (aliviado) – Ah, tenho uma mensagem da Helena para ti. DIOGO (suspira e revira os olhos) – O que é agora?

PEDRO – Ela diz que já não quer mentir… E que todas as vezes que trocaste mensagens com a Mia estavas mesmo era a falar com ela. DIOGO (surpreendido) – A sério? Até os bilhetes que trocámos? PEDRO (tenta suprimir uma gargalhada, não com muito sucesso) – Sim, até os bilhetes. DIOGO (confuso e magoado) – E a Mia, disse alguma coisa? PEDRO – Apenas que era verdade, e que era altura de saberes, porque a Helena é que sempre gostou de ti. DIOGO (um pouco confuso) – Uau… acho que devia ir falar com ela, então… PEDRO – Boa sorte! (acena) Diogo sai. PEDRO (para o público) – Isto foi fácil… Estes tipos acreditam em tudo. (Olha para o relógio) Bem, acho que é hora de tratar da Tânia. Esperemos que ela seja tão credível como estes dois. A cortina fecha.

Ato III Cena I Estamos no auditório de uma escola. No palco está uma árvore falsa, algumas plantas, um grande cabide com vários disfarces e uma cabeça de burro. Tudo adereços para “Um Sonho de uma Noite de Verão”. Pedro entra, certificando-se que não está ninguém. Pedro chega até ao palco, pega na cabeça de burro e tira um tubo de supercola do bolso. Põe muita na cabeça de burro e tira da mochila umas folhas de jornal, enrola-as e cola na base na cabeça. Pedro esconde-se atrás das cortinas.

Cena II António entra, assobiando, e desce até ao palco. Inspeciona os disfarces, muda ligeiramente as plantas de lugar e repara na cabeça de burro. ANTÓNIO (olha para o relógio) – Já são horas de ensaio… Os outros devem estar atrasados… Bem, vou começando a rever as falas. Coloca a cabeça de burro com dificuldade, não se apercebendo da cola.

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Cena III Tânia entra, confusa, com o telemóvel na mão, assustando António. TÂNIA – Pedro? Recebi a tua mensagem! O que é que queres? (Repara em António) Olá. António tenta tirar a cabeça de burro, mas não consegue. Envergonhado, acena. PEDRO (sai detrás das cortinas, assustando os outros dois) – Tânia! Este é o meu amigo que te queria apresentar. António fica muito confuso. TÂNIA (espantada) – Este? Este é o Miguel da equipa de basquete? (Vira-se para António) Porque é que tens uma cabeça de burro?

PEDRO – Porque ele estava no grupo de teatro e a cabeça ficou-lhe presa (Tânia simpatiza com António e Pedro vira-se para António, a sussurrar). PEDRO – Alinha… Eu depois explico tudo e fico a dever-te uma. António considera, voltando a olhar de relance para Tânia, e acena com a cabeça para Pedro. Viram-se para Tânia, que está confusa. TÂNIA – Bem, vamos conversar… E tentar tirar essa máscara da tua cabeça. António e Tânia afastam-se, saindo do auditório, e Pedro parece aliviado, saindo do auditório por outro caminho.

Ato IV Cena I No bar da escola, estão algumas pessoas, mas em constante movimento, a entrar e a sair. O Pedro está numa mesa com Tiago e o novo aluno, Gabriel, que olha curiosamente para outra mesa, em que estão Tânia e António, que ainda tem a cabeça de burro. Helena está na fila do bar, ainda triste pela sua situação com Diogo. Luís entra, parecendo zangado, mas acalma-se quando vê Helena, lembrando-se do que lhe disse Pedro. LUÍS (a andar até Helena) – Helena! Preciso de falar contigo. (Chega ao pé dela e para) HELENA (ainda triste) – Luís, tudo bem? Passa-se alguma coisa?

LUÍS – Descobri tudo sobre a Mia. E depois de pensar nisso… Também acho que estamos melhor nós os dois juntos. HELENA (alarmada e surpreendida, sai da fila, a olhar para Luís) – O quê?! Do que é que estás a falar? LUÍS (ligeiramente confuso, mas chocado) – Bem, depois de saber a verdade sobre a Mia, só quero esquecê-la. Que fique com o Diogo. Mas também já sei que gostas de mim. HELENA (muito confusa) – O Diogo? O quê?

Cena II DIOGO (entra, e corre para Helena assim que a vê) – Helena! Já sei a verdade! Peço tantas desculpas por não ter percebido tudo antes! Consegues perdoar-me? HELENA (começa a parecer comovida e entusiasmada, mas fica rapidamente confusa) – Percebido o quê? DIOGO – Que eras tu o tempo todo, e não a Mia. Já não quero saber dela. LUÍS (irritado) – O quê? Depois daquilo tudo é que mudas de ideias? Paciência, olha, chegaste tarde de mais. A Helena está comigo, agora.

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HELENA – O quê?!

DIOGO – Acho que é ela que tem de decidir isso, não? As pessoas começam a observá-los, e Pedro e Tiago olham para elas com alarme. HELENA – Oh… Já percebi! Vocês estão a gozar comigo. Depois de tudo o mais, ainda vêm gozar comigo?! Porque é que fazem isto? Luís e Diogo ignoram-na, continuando focados um no outro, a discutir e quase a lutar.

Cena III Mia entra, confusa com a gritaria, e chega ao pé deles, surpreendendo-se com a cena.

MIA – Luís? Helena? O que é que se está a passar? Luís e Diogo ignoram-na, nem olhando para ela. HELENA (vira-se para Mia, passando de triste a zangada) – Foste tu, não foste?! Convenceste-os a fazer isto! Pensava que éramos amigas!

Cena IV Mia e Helena começam a discutir aos gritos, assim como Luís e Diogo. Tiago afasta Pedro da mesa, a cena focando-se neles e não conseguimos ouvir a discussão dos outros. TIAGO (zangado) – Mas o que é que tu fizeste? PEDRO (embaraçado) – Sou capaz de os ter confundido… TIAGO – O quê?! PEDRO – Bem, não é como se tivesses enviado fotografias! Tive que trabalhar por memória! TIAGO – De qualquer forma, arranja isto! Viram-se para a confusão.

Cena V Um professor entra, visivelmente irritado.

PROFESSOR (a falar mais alto do que os gritos) - Chega! Toda a gente! Para as aulas! As pessoas começam a dispersar, e Diogo, Luís, Mia e Helena saem apressadamente, nem olhando uns para os outros. PROFESSOR (repara em António) – Mas o que é isto?! António encolhe os ombros. PROFESSOR – Anda comigo, rapaz, vamos devolver isso ao grupo de teatro. O professor, António e Tânia saem, deixando apenas algumas pessoas no bar, incluindo Gabriel, Tiago e Pedro. TIAGO (num sussurro, para Pedro) – Arranja. Isto.

Pedro acena. Ambos se viram e continuam a falar com Gabriel. O som começa a diminuir. Não conseguimos ouvir a sua conversa, mas vemos o Tiago e Gabriel a darem um aperto de mão e a cortina cai.

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Ato V Cena I Estamos outra vez num corredor, com poucas pessoas. Luís está encostado à parede, a mexer no telemóvel, com um ar triste. Pedro entra e vai ter com ele. PEDRO – Já sei o que aconteceu. LUÍS (ligeiramente irritado) – Tu! Tu é que me meteste nesta confusão! PEDRO – Sim, sim… Desculpa, acho eu… Mas já sei o que aconteceu. Foi um erro. LUÍS (incrédulo e expectante) – Ah, sim?

PEDRO – Afinal, a mensagem não era para ti. A Helena queria que eu dissesse aquilo ao Diogo… E não era para dizer que a Mia ainda gostava do ex, era que ela agora gostava de outro. Tu. LUÍS – O quê?! Tenho de encontrar a Mia! Sai do corredor a correr, a marcar um número no telemóvel. PEDRO – Ok, assim o Luís fica com a Mia, a Helena com o Diogo, e eu já não tenho problema nenhum. Dramas de adolescentes… (sai, parecendo farto e cansado, mas aliviado. A cortina fecha)

Ato VI Cena I Passa-se uns dias depois. Estamos no auditório, mas agora está cheio de pessoas. No palco está o grupo de teatro, António incluindo António, a interpretar “Um Sonho de uma Noite de Verão”. Luís e Mia estão sentados juntos, ele com o braço sobre os ombros dela, felizes, assim como Helena e Diogo, que estão sentados umas cadeiras à frente. Na primeira fila, estão sentados em fila (por esta ordem) Pedro, Gabriel, Tiago e Tânia. Tiago e Tânia estão de mãos dadas. TIAGO (a falar baixo) – Então e o que é que aconteceu com o Miguel? TÂNIA (envergonhada) – Eu… Descobri que ele não era o que eu pensava. (Tiago e Pedro, cientes da verdade, esforçam-se para não se rir) PEDRO (para o público) – E tudo acabou bem… Por agora.

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U M A S E PA R A Ç Ã O K A F K I A N A G A B R I E L G O N Ç A LV E S

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C

erta manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Francisco viu-se acompanhado de uma linda mulher de cabelos loiros, que dormia com a cabeça apoiada no seu peito. "Quem será esta mulher?" — pensou. Isto não poderia ser um sonho, a sua mesa de cabeceira estava exatamente como a costumava deixar, testou-se várias vezes mordendo o seu dedo, verificando que sentia dor. Pensou também que esta situação poderia ser a consequência de uma noite boémia já esquecida pela manhã, mas descartou tal ideia ao verificar que, no lado da mesa de cabeceira da mulher, estavam fotos do casal e de dois idosos que nunca teria visto e que assumiu serem os pais da mulher. A mulher vivia com ele. Depois das suas tentativas fúteis de se tentar recordar da mulher na sua cama, Francisco decidiu acordá-la e resolver este assunto: — Olá? — disse Francisco com uma voz claramente nervosa. — Bom dia — disse a mulher com um enorme sorriso estampado na cara, já habitual — Está tudo bem? — questionou, apercebendo-se do nervosismo de Francisco. — Quem és tu? Porque é que estás na minha casa? — interrogou. — Francisco, não sejas parvo! O olhar da mulher alterou-se gradualmente ao aperceber-se de que, de facto, Francisco não estava a reconhecê-la, a felicidade dos seus olhos foi-se desvanecendo. Fitaram-se mutuamente durante longos momentos sem qualquer emoção para além da confusão nas suas faces, que foi dando lugar a sofrimento. Nos dias seguintes, a mulher fez de tudo para tentar recordar Francisco do seu passado comum: levou-o ao psicólogo e ao psiquiatra, ao padre e ao exorcista, a terapeutas de casal e a gurus do amor, e até a visitar os pais dela; tudo sem sucesso algum. Por cada tentativa falhada, o estado de depressão da mulher agravava-se; Francisco, por sua vez, ficava cada vez mais saturado e decidiu confrontá-la: — É inútil continuar com isto, eu nunca me vou lembrar da vida que vivemos juntos. Os bons e maus momentos que tenham havido são algo do passado e temos de aceitar isso. Portanto, eu vou sair desta casa e continuar a minha vida, e tu devias tentar fazer o mesmo — disse Francisco calma e compassivamente. — Eu não conseguirei viver sem ti, Francisco! Não me faças isso! – apelou a mulher desesperadamente.

— Desculpa, manter esta ilusão apenas nos tornará insanos! É melhor para os dois – disse Francisco enquanto saía de casa, evitando olhar para trás, sem se querer aperceber do dano emocional causado à mulher que tanto o desejava. Francisco, perdido nos seus pensamentos, nem reparou que ia chocar contra a porta; caiu prostrado no chão e olhou para trás, vendo uma mulher que o fitava com olhos vazios, sem vida, inundados de lágrimas de desespero. Aí, uma ideia iluminou-o. E a partir desse momento, Francisco viveu (ou não viveu) para que ela pudesse viver.

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ANABELLE D A V I D

A L M E I D A

S

ei o que sentes por mim porque eu sinto o mesmo por ti - algo intenso e verdadeiro da minha parte; da tua, sinto uma enorme ternura e um porto de abrigo quando estou mal, és aquela pessoa a quem eu recorro quando tenho algum problema, mas também aquela que é a primeira a saber quando algo corre da melhor forma, e que se depara com a minha euforia e felicidade, em primeiro lugar. Mas sabes tão bem quanto eu que há algo que nos separa e que vai para lá das minhas competências e dos meus apetites - a tua maneira de ser é intolerável, não só para os meus pais, mas também para toda a minha família mais chegada. Não consigo entender como pode alguém ou, neste caso, a minha família, ser tão egoísta ao ponto de apenas pensar naquilo que lhes agrada e não naquilo que sinto e que é melhor para mim. Dizem que és “uma moça que me leva para maus caminhos”, mas na verdade eu é que sei se tu me levas por maus caminhos ou não, e tu fazes-me imensamente bem. Quero que saibas que, por mais amor que tenha à minha família, pretendo lutar pela nossa relação, por aquilo que sinto por ti e por aquilo que que me faz sentir no auge da felicidade. Se a minha família não gostar? Se a minha relação com eles ficar diferente? O sentimento é algo abstrato, algo difícil de explicar a alguém; portanto, impossível de o fazer à minha família, que são puramente conservadores, dados a tradicionalismos no que diz respeito a relacionamentos. Quero que saibas que pretendo fazer-te uma rapariga feliz, não querendo de maneira alguma que te sintas mal na presença da minha família. Sou um rapaz de ideias fixas e, por isso, pretendo abrir os olhos à minha família, e se não conseguir convencê-los por completo de que és aquilo que quero, então, no mínimo, que te respeitem tal como és, enquanto pessoa - a tua forma de ser e a tua forma de vestir não dizem aquilo que és por dentro. Com isto, pretendo tornar o nosso relacionamento oficial. Vou marcar um jantar de família e discutir este assunto, de maneira a que percebam aquilo que significas para mim e que este sentimento é correspondido, não se trata de uma paixoneta. Esta situação pode acabar de duas formas muito distintas: ou eles aceitam aquilo que sinto por ti e aceitam a pessoa que és, tal como és, ou nunca mais ouvirás falar de mim a não ser no obituário.

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O ROMANTICÍDIO G U I L H E R M E

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F E R R E I R A


A

minha relação com ela durava há já seis meses. Começámos dia dois de maio (02/05) e, no dia três de novembro (03/11), cujo relato irei fazer, dei por terminada a nossa história. Não por não nos entendermos, ou pela existência de incongruências entre as personalidades de cada um, mas sim pelo vagaroso e torturante processo de decadência do meu sentimento para com ela. Tinham passado cinco minutos das duas da manhã (02:05), quando o telemóvel toca (Trim, trim, trim). Não podia acreditar... Era ela. Atendi. Apesar de a notícia provocar, de facto, uma autêntica erupção de angústia, independentemente da hora em que é recebida, esta tomou dimensões completamente descomunais ao ter sido recebida àquela hora! (Porquê? Não sei...) Ela ia cometer suicídio devido ao término do nosso namoro. Implorei-lhe para que não o fizesse e, sem pensar nas palavras que pronunciava, disse-lhe que ia ter com ela. Ela deu-me até às três horas e onze minutos (03:11). Não entendi o porquê, mas pouco me interessava... tinha de me despachar! Vesti umas calças de ganga por cima das do pijama, um casaco e fui buscar as chaves do carro; eram duas e quinze (02:15). Tinha cinquenta e seis minutos, mas porquê aquela hora? Pedi-lhe mais tempo visto que a viagem era de cerca de uma hora e meia; ela não fez caso, apenas me disse que tudo estava nas minhas mãos. No decurso da viagem, reinou uma sucessão bizarra de silêncios funestos e acesos debates relativamente ao que ela ia, ou não, fazer. Não estava a acreditar na situação com a qual me deparava. E, por mais razões que lhe desse, ela continuava incessantemente a repetir a hora limite: três e onze. Durante um dos silêncios, olhei para o relógio: marcava duas e quarenta e sete (02:47). Estava atrasado, porra! Foi então que comecei a aperceber-me do quão impossível era alcançar o destino que desejava no intervalo de tempo que me fora concedido. Comecei a entrar em paranoia: eram duas e cinquenta e oito (2:58). Foi então que testei os limites do meu carro: pressionei o acelerador até ao fundo, atingindo uma velocidade estonteante: vou chegar a tempo! Só faltam 3 quilómetros, são três e oito (3:08). Tic, tac... tic, tac... Chego... deparo-me com a vivenda dela, e o seu jardim mais nefasto que nunca. Subo as escadas para a porta de entrada, toco à campainha; são três e dez (03:10). Tic, tac... tic, tac... Reparo que a porta estava aberta, entro... Desato a correr para o quarto dela (tic, tac... tic,

tac...), entro. São três e onze (03:11). - Adeus – diz uma voz rouca e exausta. BANG! Um som seco rasga o ar. Segue-se um longo, quase infindável, momento de dor... a perplexidade dominame por completo. A atmosfera toma a ameaçadora figura de um vulto fúnebre, mórbido, fatal... - Porquê, Filipa? Por fim, reparo num bilhete gatafunhado na mesinha de cabeceira: “Só tu podias adiar esta hora, adiando a data do nosso fim...”.

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A PRIMEIRA VEZ QUE TE VI M A R I A

M E L O

Q

uando te vi pela primeira vez, pensei que o coração me ia saltar do peito. Senti borboletas ainda antes de saber o teu nome. Sempre disse que não acreditava em amor à primeira vista, mas então, o que era aquilo? Agora sei que não era amor. Mal falámos nessa noite, mas todos sentiram a química que havia entre nós, os nossos amigos não paravam de se meter connosco. Era só isso, não era? Química, as hormonas que não deixam os adolescentes em paz. O raio das hormonas. Pensei em ti todos os dias durante um mês e, quando já estava a perder a esperança, tu apareceste. Onde andaste? Senti exatamente a mesma coisa. Só te queria tocar, sentir os teus lábios nos meus. Sempre que te ias embora, eu só queria que voltasses. E tu voltavas, mas não quando eu queria. Porque é que estava a sentir isto? Não fazia ideia do que estava a sentir. Na verdade, ainda não sei e muito sinceramente acho que nunca vou saber. Quando finalmente aconteceu, eu não queria descolar os meus lábios dos teus, demorou tanto tempo e depois foi tão rápido. O que foi que nos aconteceu? Odeio deixar as coisas a meio, mas foi assim que ficámos e agora nunca mais te quero ver, porque sei que vou sentir o mesmo. As nossas oportunidades foram sempre nas alturas erradas. Ou então não, se calhar nós somos errados. Quem é que nos diz que devíamos estar juntos? Como é que alguém pode estar tão longe e tão perto ao mesmo

tempo? Ter tanto em comum sem ter nada a ver? Por vezes, quando estou na rua, sinto o teu cheiro, olho à volta e não estás lá, parece tortura. Onde andas? Tenho saudades tuas, vejo-te em todo o lado sem nunca te ver. Foste embora tão depressa. Odeio-te. Quando voltas?

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G O S TO D E T I M A R I A

M E L O

G

osto de ti. Gosto de ti, e agora não sei o que faça. Sempre me disseram para seguir o coração, mas se soubessem que o meu coração te quer a ti… Nunca tive grandes planos, mas mesmo que os tivesse não farias parte deles. Não me leves a mal, sabes o que quero dizer. Sinceramente, nunca pensei que fosse encontrar alguém como tu, percebes-me tão bem, às vezes acho que consegues ler os meus pensamentos, somos tão parecidas. Oficialmente, não somos nada mais do que amigas, mas eu quero-te tanto. Sabes que sim. E eu sei qual é a condição para te ter, queres que eu diga aos meus pais que, para mim, o que importa no amor é a pessoa e não os órgãos sexuais. E eu vou dizer. Prometo que sim. Só não sei quando. Acho que eles me vão deserdar, mas, sinceramente, pouco me importa. Eventualmente vão aprender a lidar com isso. Isto faz parte de mim e honestamente acho que tu também já fazes. Quem me dera que os meus pais fossem tão compreensivos quanto os teus. Se soubesses o escândalo que a minha avó fez quando lhe disse que não acreditava em Deus, só não começou a rezar porque estava a conduzir. Se calhar, quando eu lhe contar, vai-me levar à igreja mais próxima só para me atirar água benta. Acabei de tomar uma decisão. Por mim e por ti, mas especialmente por nós, vou-lhes contar. Vou-lhes contar esta semana. Não. Vou-lhes contar amanhã. Voulhes contar e eles vão ter de lidar com a pessoa que eu sou. Não posso fingir ser outra pessoa só porque eles não acreditam no amor entre pessoas do mesmo sexo. Não que eu te ame, porque não amo, mas posso vir a amar e não é por os meus pais serem conservadores que vou ignorar um sentimento tão forte. Nós temos uma ligação tão rara. Gosto de ti. Gosto de ti e eles não me podem impedir.

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M I G U E L

M A U R I T T I

A M A L D I Ç Ã O D O S L I T E R AT O S

A UTOPIA

Os Helénicos descansam, mortos, jazidos

À borda do escuro empírico abismo

Os Olímpicos a outros mundos cometidos

Esse sorri, assobia juvenis tons

Novos nascemos, velhos morremos agora

Esse não teme do mundo o cataclismo

Sem intervenção ou interesse de fora

Canta aos seus deuses terrenos pelos seus dons

Meus pobres olhos nunca viram o Dilúvio

Na cidade desse vivem todos por um

E nunca respirei as cinzas do Vesúvio

E livres de o fazer por próprio mérito

Não estava lá quando a caixa abriu Pandora

Em grandes salões celebram o desjejum

Nem para nenhum dos grandes mitos d’outrora

Aí vivem em fortaleza, em adérito

Onde eu vivo não há espaço para Argonautas

São prósperos, fome é um desconhecido

E não sabemos voar em asas de cera

Eles não roubam pois não têm porque roubar

E achamos Amazonas muito incautas

Com todos partilhar tudo é costume tido

Apaixonara-me pelo que antes lera

Esse inventa músicas a assobiar

E quis ver no mundo aventura, mudança

E pinta as pinturas com todas as cores

Mas agora vejo que não há qualquer esperança

Da vida está poupado todos os horrores

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M I G U E L

M A U R I T T I

ÍCARO O ALADO

A MORTE DE APOLO

Voa, meu Ícaro, vá, bate tuas asas

Poderá o dia não reaparecer?

Quebra as leis deste universo que te prende

Está Apolo morto e crucificado?

Agora sobre o azul oceano rasas

Estará condenado a definhar, morrer?

E o fogo humano ainda mais acende

Deixaram assim o Homem condenado?

Tu já és o novo herói da Humanidade

Lembra-me o luminífero sol no rosto

Levas firmemente a nossa tocha eterna

E o sabor de pêssegos primaveris

És forte, livras-nos da servil humildade

E o assar de castanhas em fogo posto

Acordas o nosso orgulho que hiberna

Ter Terra e Céu unidos sob o arco-íris

Ó meu doce Ícaro, eu vi-te erguer

Mas esses sete não brilham com o luar

E sob áureo Apolo resplandecer

E mesmo Diana está algo fraca agora

E vi como do Céu tua cera chovia

E as estrelas se recusam a brilhar

Enquanto às ondas caías, eu lá sorria

Nevoeiro bloqueia a vista do de fora

Porque apesar de teu corpo ir quebrar

E em lágrimas meu próprio ser assolo

Para os meus olhos estarás sempre a voar

Como eu te choro, ó meu belo Apolo!

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M I G U E L

M A U R I T T I

A FONTE DA MEMÓRIA

A OLIMPOMAQUIA

A máquina do mundo é reacendida

Libertou-se das correntes o Prometeu

O fogo de Mitra forte de novo arde

O Sísifo já se escapou do Inferno

Orfeu canta novamente a sua arte

Orfeu ressurgiu, feliz, com amor seu

E a noite escura fica-lhe denegrida

E Ganimedes voltou do Olimpo eterno

A fonte da memória, rápida, renasce

Estão agora livres os escravos divinos

Onde flui, tudo tem vida e refloresce

Como o Trácio lutou contra Roma outrora

Onde se cria estéril, a vida recresce

Ateiam fogo ao altar, derretem sinos,

E tudo o que fora destruído refaz-se

O Homem dos Titãs revolta-se agora

O dourado amanhecer, em glória erguido

Mas como será derrota sequer possível?

Ressuscita todo esse mundo adormecido

Pois se todo Homem se erguer de uma vez

Profetiza: o espírito acordará

Não será esse Homem invencível?

Dizem: tudo roda, a noite voltará

Mas como será possível tal estupidez?

Respondo: não tenho medo, não terei mal

De novo submetidos e crucificados

Bebo da orfeica fonte, serei imortal

Então parecem ser estes os nossos fados

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M I G U E L

M A U R I T T I

O PA R A Í S O C O N Q U I S TA D O Dos serafins e querubins sorrisos morreram Quando viram o fumo que subia E subia, subia, subia Tapava a Lua e Sol reluzentes Cobria o júbilo dos arcanjos

E ao Deus dourado fumaças envolveram

Assombrava Babel, excedia-lhe Nem as águas do firmamento a afogavam Erguia-se mais forte que os céus de Gomorra E depois de chover cinzas não vem arco-íris

Agora os querubins morreram em sangue E os serafins alimentam os cães de caça Brilhantes arcanjos, estais crucificados E Javé está morto, e nós matámo-lo

Dividimos o átomo; Criámos um fogo maior que o do Seol

Uma chama que acanhava o Sol Fizemos Sodoma um rude assassinato À luz da destruição que causámos

Invadimos o Paraíso, saqueámos o Éden Comemos da árvore da vida E tornámo-nos deuses como eles

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M A R G A R I D A

B A P T I S T A

A BELEZA DO MAR O mar, no fundo,

Simplesmente ninguém o satisfaz.

Nos sítios mais profundos,

Ninguém ou nada ou move,

Esconde os segredos e a profecias

Este, que está sempre a soprar,

De profetas e humanos,

Não tem piedade e nada o comove,

A beleza e feitiçarias

Apenas serve o que o seu humor mandar.

De feiticeiros e mundanos.

Esta é uma comparação contrária: Esconde e revela,

Barcos e navios, borboletas e mariposas,

Mostra e retira.

Mares e ondas, ares e ventos.

O mar, o oceano, a água é bela

Há beleza em todos,

E, no entanto, a beleza tira.

Temporária ou persistente, Efémera ou para sempre.

Barcos, marinheiros, animais,

Há perigo, há medo,

Algas e todos os seus habitantes,

Há felicidade, há alegria,

Sim, porque um marinheiro

Há de tudo um pouco, um pouco de tudo,

É habitante do mar,

Na mais pequena borboleta,

Mesmo que em terra seja adjuvante.

E na onda menos discreta.

A beleza das borboletas, mariposas, lagartas,

Decide o observador

É das mais efémeras que dá o tempo.

O que é o quê

A beleza do mar, da água, das ondas,

Mas apenas para ele mesmo,

É capaz de ser para sempre.

Pois outro admirador Nunca achará o mesmo

Beleza na sua pacificidade, Beleza na agressividade, Beleza na alterabilidade, Beleza até à maior profundidade.

Beleza que vem com terror, Beleza que tem medo, Beleza que vem com coragem,

Beleza que causa miragem, O ar, que sopra nas asas, nas velas de ambos, Não serve de juiz capaz. Não é imparcial nem parcial,

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M A R G A R I D A

B A P T I S T A

À ESPERA DO FEITIÇO DO SONO Nas terras de além-mar,

Esperando os donos da terra,

Dormem os sonhos e

Esperando os corpos invisíveis para as reclamarem.

Nascem as areias, que,

Esperam até às montanhas,

Transformadas em relva

Esperam até à noite sombria,

Pelo feitiço do sono,

Esperam até à fuga da nau,

Crescem, crescem,

Que ameaça a sua partida.

Até sufocar o inimigo do medonho. O espaço vazio assim permanece, Espaços vagos preenchidos

Invisível, disforme.

Por formas disformes,

Conta a história da dor, do abandono,

Cadeiras sentadas,

Da dolorosa triste morte.

Camas deitadas, Na terra onde reina o feitiço do sono.

Morte do tempo, Morte do sonho,

Reina o feitiço e, ainda assim,

Morte do feitiço.

Todas as noites o sono chega roubado.

O feitiço do sono que está a deixar de reinar

As camas vazias, as poltronas vagas,

Lá nas terras de além-mar.

Esperando os corpos invisíveis para as ocuparem. As colunas brilham, vigilantes,

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A D M I R ÁV E L N O V O T R U M P C O M O R E C U Á M O S 3 3 A N O S AT É 1 9 8 4

om todo o seu vocabulário, maneirismos e aparência, Donald Trump encontra-se, para muitos, entre um pigmeu laranja saído de uma fábrica de chocolate e um vilão caricato de um filme de espiões da década de 60. No entanto, as suas ações dificilmente refletem isso. Para uns, Trump é a personificação do Inesperado, do Improvável, do Aleatório; para outros, é simplesmente mais um – até mais fácil de prever do que a pessoa comum. Para estes, Trump é unicamente um expectável fruto da cultura literária e um fruto inevitável da política que se tem feito. Como tal, penso que é possível, a partir da análise de dois grandes clássicos do século XX, 1984 (de George Orwell) e Admirável Mundo Novo (de Aldous Huxley), antecipar as ações daquele que será indubitavelmente um clássico do século XXI. Comecemos por 1984. Trump, com a sua cruzada contra os media, parece disposto a usar qualquer método possível para tornar a discórdia com ele em algo impossível e ilógico, à semelhança do governo da Oceânia com a sua novilíngua – ele mesmo tem vindo a implementar a sua própria novilíngua: “factos alternativos” (factos que favorecem Trump), “notícias falsas” (reportagens de media esquerdistas) ou “alt-right” (extremadireita). Trump também segue os ensinamentos de Orwell ao usar guerra

permanente como um método de controlo das massas. Isto não é algo novo para os presidentes americanos: desde 1945 que apontam para a Rússia como um grande urso assustador – “Sempre estivemos em guerra com a Eurásia” -, mas, à semelhança do Socing orwelliano, Trump insiste bruscamente que o verdadeiro inimigo é a China – “Sempre estivemos em guerra com a Lestásia”. Vejamos agora o que é que Huxley nos pode ensinar. No Admirável Mundo Novo, o Estado Mundial faz um enorme esforço para eliminar a cultura; na verdade, existe uma ridicularização do intelectualismo. Trump esforça-se por fazer o mesmo – vemos isso na maneira como o seu gestor de campanha, Corey Lewandowski, tratou uma das mais consagradas mentes da atualidade, Stephen Hawking. Quando este se referiu a Trump como um “demagogo que parece apelar ao menor múltiplo comum”, obteve como resposta: “Para um suposto génio, este foi um fiasco épico. Se o Professor Hawking quer causar dano, talvez devesse tentar falar em inglês da próxima vez.”; Hawking decidiu clarificar: “Trump homem mau. Homem muito mau”. Outra característica do Admirável Mundo Novo é o facto de os seus habitantes venerarem, em detrimento de asceticismos religiosos, o consumismo; para estes, Ford serve-lhes como

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encarnação do ideal consumista. Trump não lhe fica aquém – é magnata, é apresentador de reality-shows, é ator, é autor, usa o Twitter como meio de comunicação principal – é o consumismo americano feito homem. Posto isto, é inegável a correlação entre estes dois sublimes exemplos de ficção (considerados inverosímeis pelos contemporâneos à sua publicação) e a realidade atual da presidência Trump. Assim sendo, se este continuar a apresentar os comportamentos acima referidos, é de esperar que o regime de Trump venha ao encontro dos regimes instalados nos mundos destas narrativas – este cenário não é, obviamente, idílico para um cidadão sensato; é, portanto, inteligente que se acompanhe de perto as ações do admirável líder do Novo Mundo. Já que estas deixam algo a desejar quanto à felicidade do seu final, esperemos apenas que Trump consiga encontrar um original para a sua narrativa.

HuG

BIG BROTHER

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C

A L V E S

E

A M É R I C O

IS WATCHING

YOU


A S E S TA Ç Õ E S D O H O M E M

G A B R I E L

G O N Ç A L V E S

O

ano de 2017 do calendário Gregoriano será, acima de tudo, um ano marcante. Não necessariamente pela positiva, nem pelo contrário; apenas marcante. Existem demasiadas decisões que serão tomadas neste ano, decisões precipitadas pelo calor do momento, num caldo onde floresce o ódio e a intolerância. Será neste ano que serão eleitos (ou não) os primeiros líderes de extrema direita que a Europa experienciou nos últimos 50 anos. Apesar das guerras civis e golpes de estado em países poucos desenvolvidos, o foco deste ano será, sem dúvida alguma, a reação da Europa e América do Norte a estes problemas. Tivemos já a possibilidade de experienciar os problemas causados pela reação do Oeste aos problemas do resto do mundo – a eleição de Donald Trump. Este pequeno outono político na democracia poderá ter sido apenas o começo da primavera patriota anunciada já por alguns líderes de extrema direita que, provavelmente, serão eleitos para a liderança das nações mais poderosas da União Europeia. A confirmar-se a ocorrência desta primavera, que para muitos se assemelha mais a um inverno nuclear, ocorrerá o fecho de um ciclo. Esta estação já foi vivida na Europa anteriormente, toda a humanidade se recorda minimamente das consequências que o nacionalismo já teve no nosso modo de vida. Apesar disso, estes líderes partidários de extrema direita que, tal como os que os antecederam no século passado, discriminam etnias e fecham fronteiras, estão a ter a maior subida de popularidade registada nas últimas décadas. O ódio é bom persuasor, podemos vê-lo nos antigos líderes fascistas. Apenas com o recurso a alguns discursos falaciosos e a pequenos golpes de propaganda, conseguiram moldar a ideologia europeia

permanentemente, e os seus sucessores ameaçam seguir as suas passadas. Tal como nas estações do ano, começam-se a definir claramente estações da ideologia humana, mas, ao contrário das estações do ano, que são causadas por fatores externos, as estações da ideologia humana causam-se umas às outras, formando ciclos. As correntes nacionalistas são causadas pelo medo, pela intolerância e o receio de invasão eminente, normalmente por uma mudança em qualquer outro lugar, que anuncia o surgimento de um ideal. A onda de nacionalismo que só parece ter tendência a aumentar em 2017 foi originada por uma primavera, a árabe, que no meio de boas intenções e ideais democratas acabou com guerras civis e grandes migrações de refugiados. Esta migração começou a popularizar a ignorância e o medo, e, tal como no século passado, a extrema direita vai ganhando um lugar nas mentes dos europeus. Será 2017 a decidir se este lugar vale a pena o risco da repetição do ciclo das estações. Desta reflexão, apenas posso concluir uma coisa: os humanos, ao contrário das aves, não gostam de primaveras, chamam por ela durante anos, para logo a seguir migrarem para outro sítio para fugir dela. O problema deste século revela-se um pouco mais grave do que um “simples” genocídio e de grandes migrações, porque neste século todo o mundo vive a sua primavera, e se as flores europeias desabrocharem, não existirá para onde migrar. Ou talvez exista; a confirmarem-se as perspetivas para este ano, o mais seguro será mesmo esperar que as viagens a Marte se tornem possíveis. Se o ano não nos marcar pela política, que seja pela ciência.

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A RESSURREIÇÃO DIREITÍSSIMA G U I L H E R M E

F E R R E I R A

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em vindos a 2017, o ano da grande mudança de ares... ou não, esperemos. Com todos os acontecimentos recentes, e outros que se avizinham, 2017 promete ser empolgante. Por onde hei de começar? Ah! Habemus praesidens (na América) e aproximam-se as eleições em França e na Alemanha. Estes factos interligam-se pela simples razão de que, com a vitória de Donald Trump, e tendo em conta as suas ideologias e primeiras medidas, é quase certo que a extrema direita ganhe bastante força nas eleições em causa. Querem um conselho? Fujam TODOS! Não, mas a sério... Encontramo-nos numa situação muito preocupante mesmo. Em primeiro lugar, porque muitos dos ideais, leis e direitos estabelecidos até hoje serão vítima de uma violação colossal. Refiro-me a documentos oficiais e a leis tidas como universais, como a Constituição ou os Direitos Humanos. Em segundo lugar, porque será impregnado no mundo um sentimento de hostilidade, ódio e discriminação para com quem quer que seja diferente de nós. É evidente que, preconizando estes uma atitude nacionalista e egocêntrica, os partidos de extrema direita convirjam com variadas leis que constam em documentos oficiais (supostamente) soberanos e ainda com o próprio senso comum. Se estes partidos repelem indivíduos com determinada característica, seja ela qual for, então, só por aí, já está a ser cometido um ato inconstitucional. Há leis antidiscriminação e antirracismo, e se um presidente afirma algo, ou toma medidas, que vão contra uma dessas leis há que apontar e condenar tais medidas. Dando um exemplo recente, olhemos para a medida que Donald Trump quis levar para a frente, consistindo na proibição da entrada de indivíduos oriundos de 7 países nos quais predomina a religião muçulmana. Além da questão da violação de leis constitucionais e direitos universais, podemos ainda perspetivar o problema no campo da ética. Devido à ideologia nacionalista dos

partidos em causa, e ao crescimento alarmante da sua influência, muitos sentimentos/atitudes, como o ódio gratuito, o xenofobismo, o machismo, e muitos outros “ismos”, estão a ser ressuscitados de uma hibernação que já dura há um longo período. Uma hibernação parcial, é certo, na medida em que sempre houve pessoas partidárias destes comportamentos, mas estão a ganhar uma amplitude a que não estamos habituados. E, infelizmente, já há diversos casos de discriminação e mesmo violência (verbal e física) gratuita por parte de defensores extremistas para com pessoas de etnia, religião ou raça diferentes ou que possuam costumes distintos; são exemplo disso os inúmeros casos de privação de direitos e violência, tanto por parte dos civis como das forças policiais, contra os refugiados. Para quem acredita nos valores da civilização em que fomos educados, os discursos de ódio e as opiniões e políticas antirrefugiados têm atingido, na Europa, uma dimensão muito preocupante. Antes de finalizar, volto a frisar a importância das eleições que se avizinham, em França e na Alemanha, sendo os partidos de extrema direita, respetivamente, Front National, liderado por Marine Le Pen, e Alternative für Deutschland, liderado por Frauke Petry. Estes dois partidos e, consequentemente, os seus líderes têm feito uma campanha baseada no medo, no racismo e no nacionalismo reacionário, sendo o primeiro fator aquele que leva as pessoas a acreditarem e seguirem ideais errados e desumanos. Se a extrema direita ganha, de facto, uma voz mais alta e um poder maior, será uma catástrofe à grande e à francesa (e à alemã, claro).

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O L H E M Q U E M E S TÁ D E V O LTA ! M I G U E L

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emita, enquanto “filho de Sem”, significaria um membro do grupo de povos onde os hebraicos bíblicos, antepassados dos israelitas modernos, se inserem, mas a que também pertencem os povos árabes, como os sírios que têm afluído às costas. Isso significaria que, etimologicamente, um indivíduo que retenha preconceito ou ódio para com o povo árabe e a sua herança cultural, um hábito nefasto da extrema-direita que vai ficando popular entre as massas, seria um antissemita. O termo carrega consigo um merecido estigma e, portanto, a medo de ostracismo, um novo termo foi forjado – “islamofobia”. Justifica-se este ódio dando-lhe um carácter religioso, como se perseguição religiosa fosse algo de tolerável ou admirável. Mas mesmo o maior antissemita da História teria desprezo perante tal ódio: “por uma questão de tolerância, considerava injusta a sua [dos judeus] condenação por motivos religiosos. O tom [da imprensa antissemita] parecia-me indigno das tradições de cultura de um grande povo.” (HITLER, Adolf, Mein Kampf). É fascinante e trágico que tal monstro possa ser mais tolerante do que figuras políticas atuais. Poder-se-ia comparar então os dois fenómenos: o antissemitismo, com o seu apogeu no século XX, com a islamofobia que cresce na nossa sociedade vintecentista; a partir do estudo das influências do antissemitismo do passado tentaremos adivinhar o futuro. O mais proeminente resultado do antissemitismo foi a subida ao poder do regime nacional-socialista, entrando no pensamento político por via da popularização do antissemitismo nas massas; a crença de que os Judeus eram culpados pelos seus problemas e que deviam ser

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impedidos, segregados e exterminados. É uma lógica muito semelhante à empregada hoje pela extrema-direita: os muçulmanos são mostrados como pessoas violentas e selvagens que procuram destruir os grandes triunfos do cristão e caucasiano Ocidente; são culpados de vários problemas, como o decaimento socioeconómico da Europa, cujas raízes são claramente mais profundas. E, claro, esses oradores pedem que se impeçam os muçulmanos de entrar na Europa, e a sua segregação, o que deixa pouco à imaginação daquilo que será a sua “solução final”. A comparação com a Alemanha Hitleriana é justa e sensata. Uma outra coincidência interessante é a repetição do apelo populista a impedir “a maré invasora que irá conspirar para destruir os ideais portugueses”. É frequente romantizar-se os refugiados sírios, famintos e sem forças, traumatizados por uma guerra horrível, como uma hoste árabe que vem lutar D. Afonso Henriques na Avenida Gago Coutinho; políticos nacionalistas avisam sobre um apocalipse no qual as parcas centenas de sírios derrubariam o governo e instalariam a lei de Sharia. Eu associaria estes políticos aos estadistas salazaristas que defenderam não dar asilo aos 40,000 judeus europeus que fugiam da perseguição nazi (sendo os judeus um povo com afiliações conhecidas com o comunismo europeu). No entanto, tudo o que aconteceu com esses judeus foi eles ficarem enquanto necessário e depois partirem quando já era seguro, muito agradecidos pelo apoio português, sem nunca terem tentado derrubar Salazar. E eram dezenas de milhares. Portanto, comparando a evolução política do antissemitismo e da islamofobia, e refletindo acerca dos efeitos da primeira na Europa e no mundo, proponho que se trate esta crise como, em retrospetiva, gostaríamos de ter tratado a crise dos judeus europeus. E pode ser que, de novo, possamos ser os heróis da História.

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PORTUGAL E O MUNDO C A R L O T A C A M A R A T E & M A R G A R I D A F E R N A N D E S

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que é a Nação Portuguesa? Que característica nos torna num povo que se possa chamar ‘único’? Será o nosso talento para o futebol? Será a beleza das nossas paisagens? Será o sabor dos pratos da nossa cozinha que nos aquecem o estômago tão bem? Ou será a nossa posição, neste cantinho do mundo, com serras e vales férteis, tão invejada? Não. Há algo mais de ser português do que isso. Há algo mais que nos torna o invicto povo lusita-

no, que foi em tempos idolatrado e cujas histórias maravilharam o mundo. Até custa a acreditar que somos do sangue desses heróis cujas lendas nos enchem a História. Mas enfim, o que lá vai, lá vai. Portugal já não é o que era, e mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser. Algumas pessoas desanimam com isso, mas o ideal seria aproveitar essa oportunidade para definir a nossa própria História, e levar Portugal num novo sentido.

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Assim sendo, vamos pensar em como queremos definir a História de Portugal? Podemos vir a ser reconhecidos como um povo fechado, egoísta, narcisista que se limita a si mesmo e despreza o que se passa à sua volta como irrelevante. Podemos fazer-nos de cegos e fingir que o que acontece à nossa volta não importa. Ou então não. Podemos ver além das nossas quatro paredes, quatro fronteiras, para além das palas do burro que nos limitam a uma direção. Podemos ir para além disso, ir para além do previsto, e continuar a tradição milenar do nosso país de, contra todas as expectativas, ir mais longe e dar novos mundos ao mundo. Podemos dar nova esperança ao mundo, e, contra todas as expectativas estender a mão aos que mais precisam de uma ajuda neste momento. Temos em nós as qualidades dos intrépidos navegadores, mas acabamos por retraí-las para um mero Velho do Restelo, para ideologias retrógradas que veem a mulher como o sexo mais fraco, a Terra como plana e o Homem como uma ilha. Ideologias que aconselham olhar somente para nós. Ideologias que põem o ser-se português como um conceito racial, de origem divina, e não como a construção de séculos de uma mistura de povos, conceitos e esforços. O que somos nós senão os bastardos dos gregos que fundaram Lisboa, os Romanos que construíram as estradas, os Mouros que ocuparam Sintra, os Filipes Espanhóis, que foram nossos Reis por 60 anos? E não tivemos também o contributo dos brasileiros e indianos, cujos países visitámos? Isso não nos marcou? Não nos fez o que somos hoje? Não se nasce português, tornase português! Com o suor do sol algarvio e as lágrimas tão salgadas quanto o mar! Nós somos a construção do mundo que nos rodeia! Assim sendo, é ridículo pensar fechar as nossas fronteiras; seria extinguir o mesmo alento que criou a nação portuguesa. Como podemos sequer considerar impedir indivíduos de entrarem no nosso país, de partilharem connosco o que ainda temos? Que justificação poderá haver em recusar a entrada de refugiados, de criticar que os ajudem? É terem medo de perder o emprego? A globalização é um processo inevitável, e fomos nós que a começámos! Porque não querem misturas? O povo português é feito de misturas! Lusitanos, romanos, mouros e africanos que nos fazem o que somos! Porquê, então? Porque não ajudar os outros tanto quanto consigamos? É verdade que não estamos no nosso melhor; existem crianças portugue-

sas que comem porque a escola lhes fornece refeições. E isso não pode ser. Há que ter solidariedade, com o nosso povo, o português e o humano. É difícil colocarmo-nos no lugar de outros e de tomarmos certas decisões na devida altura sem termos em conta todos os detalhes que as levaram a esse ponto, mas não parece difícil imaginar o desespero de uma família que entra num barco (pouco mais que uma jangada), para atravessar as cruéis ondas do mar feroz, sem escolha, porque a alternativa, de viver entre fanáticos e ditadores, é insuportável. Como se sentir alheado de uma situação como essa, que deveria afligir toda a Humanidade? Podemos não o querer imaginar, mas é necessário. É necessário, por vezes, abalar o nosso mundo para tomarmos certas decisões difíceis, mas indispensáveis. Temos de pensar nas crianças que morrem a tentar escapar desses infernos na Terra. Crianças que querem aprender a ler e escrever, que querem brincar. Em vez disso, morrem em praias do Mar Egeu. É difícil de imaginar, sem dúvida. Vivemos numa sociedade na qual as nossas crianças recebem um brinquedo, usam-no por dez minutos e então esquecem-se da sua existência, distraindo-se com outro qualquer brinquedo. As outras, em contraste, não têm nada. Nem roupa, nem comida, muito menos brinquedos. Seriam capazes de pegar nesses brinquedos de dez minutos e fazê-los durar dez anos. Parece ridículo negar-lhes ajuda, dar de comer a essas crianças, por medo de assim não podermos comprar uma PlayStation ou um iPhone. Parece indigno não podermos usar sete dias das nossas férias para lhes dar setenta anos de vida. É necessário refletir e exercer compaixão nos outros que nos rodeiam. Eis-nos, então, enquanto povo. Temos necessidade de começar um novo capítulo, uma nova aventura, e eis que nos surge uma excelente história que poderemos seguir, um ótimo caminho para começarmos a jornada para voltarmos a ser os heróis que já fomos. Cabe-nos agora pegar na espada deixada pelos que vieram antes de nós e escrevermos a nossa própria epopeia, que seja maior do que todas as outras.

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O PROBLEMA DA EVOLUÇÃO

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oi na antiguidade clássica que surgiram os primeiros pensamentos sobre a Inteligência Artificial. Contudo, só nas últimas décadas é que este termo se começou a tornar realidade, sendo que atualmente está associado a um crescimento exponencial muito devido à evolução tecnológica. A inteligência artificial surgiu com o objetivo de simplificar a vida às pessoas e, neste momento, já se encontra presente na maioria dos dispositivos tecnológicos. Desde que a raça humana apareceu, o homem sempre procurou ir mais além, escapando aos seus limites, na tentativa de descobrir algo novo. Atualmente, a filosofia é a mesma, sendo que a única mudança está relacionada com as consequências que vêm associadas à evolução. No início, funcionava como um método de auxílio, porque o homem só tinha a capacidade de criar algo novo para o auxiliar enquanto que, hoje em dia funciona como um método de substituição, ou seja, muitos dos empregos que existem estão a começar a ser ocupados por robôs. Empregos como médicos, taxistas, agricultores, polícias, etc... irão todos desaparecer, tornando-se assim, natural que, num futuro não muito longínquo, os únicos empregos que terão a capacidade de resistir serão os relacionados com programação e desenvolvimento tecnológico. Chegaremos a um momento onde existirão cada vez mais pessoas a trabalhar apenas numa área e o resultado disso será que a evolução se irá expandir em proporções inexplicáveis. A consequência é o aparecimento de robôs que terão a capacidade de substituir os humanos nos poucos empregos que ainda restavam. Poderíamos chamar a isto a última fase de substituição, onde apenas seriam precisas poucas dezenas de pessoas para repararem e controlarem os robôs. A humanidade sempre teve um objetivo com a evolução, que se pode resumir à criação de um mundo onde não é preciso trabalhar e aparece tudo feito. Se fosse possível antever o futuro, com grande probabilidade constataríamos que o mundo conhecido por nós hoje havia desaparecido. Poderíamos imaginar este mundo como um supercomputador em que cada pessoa seria um programa que estava a correr nele. Poderia um mundo assim ser chamado real? Todavia, irá aparecer uma contrariedade exterior a toda esta evolução, visto que só quem possui posses financeiras elevadas conseguirá fazer parte deste novo mundo. Aparece aqui o problema final, dado que as pessoas que não pertencessem a esse grupo não se iriam contentar com este novo mundo e assim iriam originar-se guerras que poderiam provocar danos irreversíveis. 2017 será um ano que ficará marcado pela invasão de dispositivos bastante evoluídos, devido a recorrerem a mecanismos que têm na sua base inteligência artificial. A evolução é algo que se pode associar à transformação e se há transformação, há mudança. Para concluir, a mudança que irá ocorrer não será uma mudança benéfica para todos, fazendo com que o caminho que a evolução está a percorrer seja posto em causa.

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O E S TO I C I S M O E O A M O R M I G U E L

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“Se estivesses numa relação de seis meses e soubesses que não ia dar a lado nenhum, mas, caso lhe pusesses fim, a outra pessoa ameaçasse cometer suicídio, o que farias?”

estar comum, do utilitarismo. Sendo uma criatura racional (porque para o Estoico o viver corretamente, de acordo com a Natureza e virtude, é viver de maneira lógica e racional, de maneira que apenas o Homem é capaz), o Estoico fará aquilo que trará, de um ponto de vista empírico, o melhor desfecho geral. Pode não acreditar que isso realmente trará mudança, mas não lhe custa tentar. O resultado final é-lhe um indiferente. Seguindo essa lógica, vamos então desbravar o terreno para analisar esta situação; pois se Marco Aurélio, Séneca ou outros filósofos do passado ancião nunca passaram por esta situação em específico, deixaram o suficiente para definir o que o nosso Estoico faria. Mesmo não acreditando plenamente que pudesse impedir ou provocar a morte de outro, sabe que o melhor é não tomar esse risco, e que evitar a morte de outrem é algo de bom e virtuoso. E a sua felicidade? Chorais pelo Estoico que não chora por si mesmo? Ele vê a sua felicidade como sendo sua, e nada do que é seu lhe pode ser tirado por outros; ele é feliz por sua vontade, e continuará feliz por sua vontade, independentemente da intervenção alheia. Sendo assim, temos duas situações, dois caminhos no qual a ação do Estoico o leva; acabar com a relação, e ver a outra pessoa cair, ver o caos e sofrimento que daí vêm para os outros; ou manter-se na relação, e ver a outra pessoa feliz, mantendo-se feliz também, independentemente da sua situação. E assim vai, sereno, o Estoico, não revelando o segredo que, mesmo parecendo estar numa situação infeliz, nada neste mundo o afeta.

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questão que é colocada, retirando-lhe todos os apetrechos e ornamentos da narrativa, é se a felicidade de um indivíduo é superior, igual ou inferior à vida de outro; neste caso em específico, temos uma disputa entre a felicidade de uma pessoa que procura sair de uma relação que se tornou infeliz e venenosa, mas receia que isso leve a outra a cometer suicídio, destruindo a sua vida. Existem vários pontos de vista sobre o assunto, e existindo à face da Terra pouco mais de sete mil milhões de indivíduos, diferentes entre si (a maioria dos quais, provavelmente, a pedido, opinaria acerca de um assunto) escolho apresentar a perspetiva estoica, herdada dos Helenos antigos, neste tema vasto e complexo. Pois o que diz o velho Estoico? Para ele, apenas o que o próprio faz lhe é relevante; a sua felicidade depende apenas do seu próprio mérito, pensamento e sensação. A reação dos outros ao que ele faz, e aquilo que os outros fazem, está fora do seu poder para alterar, e é-lhe, portanto, um irrelevante. Nesse sentido, o Estoico ponderaria se está de facto nas capacidades do indivíduo assolado por este problema prevenir ou não o suicídio da pessoa amada. Mesmo assim, o Estoico também diria que é mais virtuoso (e ao Estoico nada lhe interessa tanto quanto a virtude) tentar o que lhe é impossível em prol do bem-

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GLÓ RI A ETERN A O U GLÓ RI A VI VIDA

G U I L HE R ME

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FE R RE I R A

er-se reconhecido, enquanto vivo, e esquecido para toda a eternidade (sendo esta última demasiado vasta para a nossa compreensão), ou ser-se reconhecido, depois da nossa morte, e lembrado durante toda essa mesma eternidade? É, de facto, um dilema um tanto desagradável, talvez até cause algum desconforto na grande maioria. Por um lado, temos a vantagem de experienciar o sabor da glória que alcançámos; por outro lado, temos, de certo modo, uma imortalização da nossa memória. Após um extenso momento de introspeção, vejo-me inclinado para a segunda opção. Dentre os motivos que levam as pessoas à preferência de serem reconhecidas enquanto vivas, é incontestável que o mais predominante é o facto de poderem vivenciar essa glória. E penso ser um motivo bastante justificável, sobretudo, numa sociedade na qual estão instalados o egocentrismo e a necessidade de sucesso pessoal e alcance de conquistas. Como podemos constatar, uma pessoa que encare a vida numa perspetiva mais mundana não irá escolher uma glória da qual não possa tirar partido. Depois de morrer, permanece-se morto! Portanto, há que vivenciar e experienciar o máximo possível enquanto se está vivo, carpe diem! O que me transtorna nesta maneira de encarar a questão colocada é o facto de a nossa vida, ou melhor, o nosso tempo de vida, ser algo realmente insignificante e repentino, inserido na imensidão da incompreensível infinidade do tempo. Ou seja, ainda que nos seja possível saborear todos os prazeres que advêm do reconhecimento das nossas conquistas, por parte de terceiros, sinto que se trata de uma glória tão ínfima e tão desprezável, que não merece que lhe seja atribuído qualquer valor. Na outra perspetiva, a que me desperta mais o interesse, o cerne está na possibilidade de “escapar à morte”; por outras palavras, não cair no esquecimento. É, de certa forma, um caminho para atingir a imortalidade, ainda que somente espiritual. A ideia de que a minha memória seria inextinguível é algo que me fascina; ser uma das personalidades das quais as pessoas vão falando, ao longo dos séculos. Trata-se duma perpetuação da marca que deixei no mundo. Vejamos, por exemplo, os filósofos que vão sendo falados e citados, desde Sócrates a Nietzsche; ou os matemáticos e cientistas, desde Newton a Einstein. Por muitos anos que tenham passado, as suas descobertas e as suas vidas vão sendo sempre relembradas e é como se tomassem um lugar no presente. Tendo em mente ambas as perspetivas relativamente ao problema apresentado, posso afirmar que a ideia de uma glória perpétua, ainda que não experienciada, me é verdadeiramente mais aliciante do que a sua oposta. Não obstante a minha posição, considero plausível a outra alternativa de abordagem ao problema.

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O N D E E S TÁ A E V O L U Ç Ã O ? G O N Ç A L O

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M A T E U S

oje em dia, reparamos que, cada vez mais, os estudantes, principalmente do ensino secundário, apenas se preocupam em tirar boas notas, esquecendo-se assim do principal objetivo da escola, que é aprender. Isto acontece porque eles sabem que se quiserem entrar numa faculdade o principal critério é as notas relativas aos testes e exames, sendo a parte social e humana esquecida. A verdade é que a forma mais justa de avaliar os estudantes é classificando-os com base em testes. Porém, essa não deveria ser a única forma de os avaliar. Sabendo que, cada aluno tem um ritmo de aprendizagem próprio e apenas existe um professor para várias dezenas deles, é natural que alguns acabem por não ter a atenção necessária, o que faz com que não consigam alcançar os resultados pretendidos. Observando isto, concluímos que a forma de avaliação que tem por base os testes não é muito justa. Se olharmos para a sociedade atual e para o sistema de ensino, nos últimos anos, percebemos que existe um grande desfasamento. Enquanto que, na sociedade atual, a evolução se faz ouvir, o sistema de ensino não sofreu qualquer alteração. Sendo percetível que a evolução tem um grande impacto onde surge, já é altura de também aparecer nas escolas, não só para que os alunos possam ser avaliados de modo a que haja uma maior justiça, mas também para que eles possam retirar mais daquilo que lhes é ensinado. Contudo esta evolução já está a acontecer em alguns países do mundo, como, por exemplo, na Finlândia. Lá, os alunos são confrontados com um sistema de ensino completamente diferente do nosso, onde os estudantes têm menos horas de aulas, menos trabalhos de casa, ou seja, um sistema onde é valorizada a necessidade que eles têm de fazerem o que gostam. Os valores que lhes são passados baseiam-se na felicidade e cooperação e não na competição pelas notas. Ainda assim, o que torna este método de ensino eficaz é o facto de os alunos acabarem por conseguir retirar bastante daquilo que aprendem e ainda desenvolver muito a parte social e humana. Apesar de o sistema de ensino na Finlândia ainda não ser cem por cento plausível, o sucesso da evolução só se dá através de várias tentativas por isso, esse sistema de ensino tem de ser visto como uma forma para se poder chegar ao que se pretende. Os estudantes precisam de deixar de lado o pensamento de só querer tirar boas notas e a escola tem de começar a arranjar formas de os avaliar de outras maneiras. Porém, enquanto as escolas não têm possibilidades de avaliar a dimensão social e humana, pelo menos têm de conseguir desenvolvê-las ao máximo.

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B E M - V I N D A À FA M Í L I A S E N TA - T E O N D E Q U I S E R E S G O N Ç A L O 51

P E R E S


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um dia de escola, estava com os meus amigos a aproveitar o nosso intervalo quando surge uma linda rapariga. Apro-

ximou-se, perguntou se podia passar o intervalo connosco e nós dissemos que sim. Surpreendeu-me que ela tivesse perguntado e achei-o enternecedor. Não só era delicada e simpática, como também uma linda rapariga com uns maravilhosos olhos azuis. Com o passar do tempo, parecia que nos cruzávamos cada vez mais. Finalmente, tive coragem de a convidar para um almoço e foi aí que ambos confessámos os nossos sentimentos um pelo outro. Depois de alguns meses juntos, ela disse que estava na altura de conhecermos as respetivas famílias. Eu não achei que fosse uma boa ideia, tinha quase a certeza de que a minha não lhe iria achar grande piada, visto ela ser diferente daquilo a que estamos acostumados lá em casa. O que me fez pensar assim foi o facto de, sempre que lhe falava dos nossos jogos, ela ficava um pouco surpreendida e garantia-me que a sua família não fazia nada dessas coisas. Mas desde quando é que uma família não joga ao acordar dos mortos? É um jogo que fazemos desde que comecei a gatinhar. Vamos todos para as traseiras da casa, onde está o nosso cemitério privado, e desenterramos os familiares enquanto partilhamos histórias sobre as suas mortes. Outro jogo que a minha namorada desconhecia, e que me chocou imenso, era o jogo da cadeira elétrica. Como é possível ela nunca ter jogado este clássico? Eu e o meu pai passávamos horas a ver quem aguentava mais tempo. Para não falar da habitual esgrima até ao primeiro derrame de sangue... Como já disse ela não era normal e, se calhar, era isso que me atraía. Fui eu o primeiro a ser convidado para conhecer a família dela e nunca me esquecerei daquele nervosismo de não

querer causar uma má impressão aos pais. Foi um jantar e correu lindamente, eram muito simpáticos, foi uma boa experiência. Mas confesso que achei estranho eles não terem um cemitério privado. Agora era a vez de ela conhecer os meus pais. E continuava com o pressentimento de que algo não ia correr bem. Para prevenir quaisquer situações constrangedoras, falei com os meus pais, Sancho e Paulo. Disse-lhes o quão importante ela era para mim e avisei que ela tinha costumes diferentes dos nossos. Para surpresa minha, eles responderam: "Filho, és tudo para nós. Temos muito orgulho no jovem em que te estás a tornar e, por isso, vamos respeitar a tua namorada seja ela como for. Não nos cabe a nós privar-te da felicidade." Nesse momento apercebi-me do quão sortudo era por ter uns pais assim e de seria disparatado ter medo de estar com quem estou. Para eles, primeiro está o meu bem-estar. Se assim não fosse, eles é que teriam de se adaptar, não prejudicando a minha felicidade.

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A Q U E D A D O T E R C E I R O T E M P LO G A B R I E L

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eus está morto e os russos mataram-No.

Encontro-me no topo de uma colina, debruçado sobre o que um dia foi o Éden, choro descontroladamente. Eles mataram o meu Deus, eles mataram o Grande Ariano! Admiro as ruínas de Berlim como que procurando por um sinal d’Ele que me oriente. Mas sei que tal sinal não vem; o meu Deus está morto e permanecerá morto para sempre. Os hereges tomam posse do Reichstag e esvoaçam na cidade as suas bandeiras vermelhas. Deitam abaixo as figuras do antigo regime, grandes águias de pedra jazem quebradas no chão, águias estas que jamais voltarão a voar. A gravidade desta derrota e a queda da Alemanha fazem-me refletir. É a prova concreta de que os ensinamentos do profeta desta religião política são e sempre foram falaciosos. Verdadeiros deuses não perdem guerras de Homens. A confusão do outrora povo escolhido é evidente. Vejo pessoas com gargantas cortadas e nós ao pescoço – pobres coitados que não conseguem suportar a ideia do ateísmo. Há também outros que se tentam adaptar; observo um grupo de rapazes que ainda há uns dias treinavam para lutar pelo nosso Deus a profanar um busto do Profeta com desenhos fálicos e frases agramaticais sobre a Sua pessoa. Penso no quão demoníacos estes hereges são. São criaturas de hábitos animalescos, terríveis e incivilizados: durante a nossa cruzada responderam a qualquer tentativa de conversão com tiros. Vejo-os agora, vitoriosos, a divertirem-se violando as nossas mulheres e assediando, para seu entretenimento, os sobreviventes com quem se deparam. Agora fico condenado a pensar no que significa viver num mundo sem Ele. Saber que tudo em que acreditava estava errado. Serão agora os semitas boas pessoas? Recuso-me a acreditar em tal coisa! Será ilegítimo agora queimar livros comunistas na fogueira? Terão os incapacitados direito à vida? Poderão os homossexuais casar? Já não saberei dizer; Ele era a minha resposta a todas as perguntas, era da boca escondida pelo Seu bigode ímpar que saía a Boa Nova. A Sua simples imagem esclarecia-me qualquer dúvida. Ouvem-se sussurros esperançosos; diz-se que, depois da violação do bunker que serviu como túmulo para o Nosso Profeta, não Lhe foi encontrado o corpo. Talvez, à semelhança do profeta dos cristãos, o Seu corpo tenha desaparecido para retornar ao fim do terceiro dia, tendo vencido a Morte com a ajuda dos seus soldados caídos. Sempre fui um soldado fiel e não será agora que desertarei. Se existe a mais ínfima possibilidade de lutar a Seu lado numa última batalha, então a Ele me juntarei; ergo a minha hóstia de cianeto e, num último suspiro, ingiro-a. Depois disto, nada mais que vazio. Toda a esperança está perdida. O Terceiro Templo caiu.

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SER OU NÃO SER PESSOA G A B R I E L

G 55O N Ç A L V E S


C

omo sempre, Fernando encontrava-se no seu

-tava-lhe plenamente fora do alcance. Teria imaginado

quarto com a sua namorada e companheira Ofélia, escre-

algumas vezes como o faria, mas todos os seus planos pa-

vinhando versos em papéis soltos. Fernando apreciava o

reciam ter um grau de incerteza demasiado grande para

conforto do seu espaço; este era o único local onde podia

serem postos em prática. Ofélia, sempre muito transpa-

desfrutar plenamente da companhia da sua musa, o único

rente, mostrava efusivamente o seu entusiasmo com os

local onde ninguém o julgava a si nem à sua companheira

planos de Fernando, acenando e sorrindo enquanto os

pelas suas ligeiras diferenças, como acontecia no mundo

ouvia atentamente, e, de seguida, acrescentando um por-

exterior.

menor que tornava tudo mais certo; Ofélia completava Fernando, como se os pensamentos de ambos tivessem

Fernando nunca percebera o motivo de tanto

origem numa só cabeça. No entanto, para tristeza do ca-

espanto cada vez que ele mencionava a sua Calíope. Esta-

sal, surgiam obstáculos constantes que os impediam de

va certamente ciente daquilo que os distinguia, mas conti-

atingir o seu refúgio divino permanente.

nuava a questionar-se sobre o motivo de tanta exclusão no seio de um país tão liberal, que abandonara os velhos cos-

Certo dia, após o almoço, Fernando viu-se ilumi-

tumes há tanto tempo. Nunca percebera também a deci-

nado pela visão da saída daquele seu mundo de infelicida-

são dos seus pais de ignorarem completamente a sua exis-

de; a lâmina da chave para o seu retiro divino brilhava à

tência; certamente não os deixaria entrar no seu refúgio,

luz do sol da sua janela, como se algo ou alguém a apon-

mas gostaria de ter o apoio deles nas suas decisões e de os

tassem, para que ele não tivesse dúvidas da sua ida para

ver periodicamente. Não percebendo o motivo para tal

tal retiro. Fernando, procurando coragem, fitou Ofélia até

rejeição por parte da sua família e da sociedade em geral,

as suas essências se fundirem numa só. Pegaram na chave

decidira refugiar-se com Ofélia no seu cubículo arrendado;

e abriram as portas para o seu paraíso, enquanto recita-

era pequeno, mas era o seu isolamento do mundo e o úni-

vam:

co local onde a sua felicidade e amor podiam prosperar.

“Morrer — dormir, nada mais; e dizer que pelo

Fernando passava muito do seu tempo a refletir

sono se findam as dores, como os mil abalos inerentes à

sobre como encontrar um mundo maior que o seu cubícu-

carne — é a conclusão que devemos buscar.”

lo para ser feliz e aceite com o seu amor, e, até então, ape-

Abandonaram então o nosso mundo aqueles que

nas teria encontrado uma – suicídio – mas tal solução es

nunca nele viveram. Ao ouvir um tilintar de talheres, proveniente de um dos quartos, os enfermeiros do hospício dirigiram-se à origem do ruído, deparando-se com uma cena sangrenta: Fernando, jazia sozinho no chão com o pescoço rasgado e sangue a jorrar, formando uma poça, e, no centro desta, a

chave do paraíso.

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UMA CRÍTICA À ARTE MODERNA A N Ó N I M O

Q

uando me foi pedido para examinar a mais recente criação do meu amigo, eu jamais teria imaginado o quão distorci-

da era a sua mente. Ele descreveu-me a sua obra como a sua visão do sentido da vida. Algo pouco comum para um artista representar, visto que cada um tem a sua interpretação para o sentido da vida e da condição humana. Parecia-me até algo um pouco abstrato demais para se representar fisicamente. Mas, enfim, lá concordei em examinar a sua obra. Para isso, dirigimo-nos ao seu atelier.

Durante todo o caminho, ele não se cansou de enaltecer o seu trabalho. Considerava que era esta a obra que mudaria o rumo da sua carreira. Chegou mesmo a declarar que este seria o seu legado para as gerações vindouras. Mostrava-se completamente enlouquecido, convencido e pretensioso. Quando entrámos na sala, os meus olhos ficaram ofuscados pela luminosidade. Holofotes iluminavam uma tela branca… com algo avermelhado no centro do quadro. Ao aproximar-me, pude constatar que se tratava de uma gota de sangue. Recuei repugnado com o que via. Surpreendido, o meu amigo aproximou-se de mim e explicou-me que a gota de sangue representava o quão insignificantes somos em relação ao passar eterno do tempo, um mero batimento cardíaco na eternidade. Revelou-me também que o sangue na tela era seu. Naquele momento não consegui conter mais as minhas emoções e disse-lhe exatamente o que pensava da sua “obra”. Que era uma abominação, que jamais alguém conceberia a mensagem que ele pretendia partilhar e que a única coisa que essa sua pintura demonstrava era que estava a perder a sua sanidade. Certamente só um louco pensaria em pintar com o seu próprio sangue e nem que fosse pelo facto desse líquido ter pouca durabilidade na tela. Finalizei ao declarar que isto era um desperdício de tela e de eletricidade e que, se ele queria ter sucesso na carreira, teria de mudar radicalmente o seu estilo artístico e seguir uma corrente menos excêntrica e mais aprazível ao público geral, de forma a obter algum rendimento pelo seu trabalho.

A seguir a este episódio, deixámo-nos de falar, certamente por ter ferido a sua sensibilidade artística. Ao que consta, ele ainda se dedica à pintura e as suas últimas criações são ainda mais extravagantes.

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NADA A M É R I C O

H

oje acabei com ela. Talvez ontem, não sei bem. Recebi o último SMS: “Não consigo viver assim. Tu já não me dás atenção.” Ela tinha alguma razão naquilo que dizia — eu realmente nunca lhe tinha dado atenção: eu, de facto, não sentia nada por ela. Aliás, não sentia nada, de todo, há já algum tempo. Hoje (talvez ontem) senti: calma e nada mais. Seis meses. Seis meses num harmonioso, silencioso inferno. Seis meses em que nada saiu da minha boca apesar de ela muito falar, mas nada dizer. Seis meses em que nada senti, apesar de ela aparentemente muito ter sentido. Seis meses em que estive alheio a todo o mundo. Ela está morta e nada há a fazer. Talvez pudesse ter feito algo ontem. Algo que não descarregar nela o acumular de seis meses de uma raiva desmesurada que nem o mais íntimo dos eus sabia que encarcerava: mas foi isso que fiz. Ainda assim, ela merecia. Alguém que ameaça matar-se por causa de uma mera relação falhada não merece de todo a oportunidade de viver. Ela jamais a algum lado se levaria e pior mesmo só seria o seu efeito no grande plano das coisas. Ela era um inimigo do desenvolvimento, da evolução. Percebo que a ideia do suicídio possa ser algo que ajude a atravessar muitas noites, mas pensar em pô-la em prática é algo próprio de uma criatura que não tem qualquer futuro. Aquele que não possui uma vontade de poder, uma vontade que guie todas as decisões que toma, não consegue viver. Não pode viver. Não merece viver. Mesmo assim, o ponto de vista dela não é completamente ilegítimo. De que serve viver uma vida em que nada há para além de sofrimento? De que serve viver uma vida em que somos constantemente assombrados pelo pensamento de termos sob a nossa responsabilidade uma morte? Acima de tudo, uma morte de alguém que confiava em nós, alguém que esperava o melhor de nós, alguém que queria o melhor para nós... E nós, simplesmente, não

A L V E S fomos capazes de corresponder, quanto mais retribuir, todas essas esperanças depositadas. A ideia do nada é, por vezes, algo que me conforta imensamente — um vazio, a ausência de qualquer emoção, de qualquer substância — talvez por ser mais o meu estado habitual que outra coisa. Do que vi, a vida não tem verdadeiramente um significado: tanto quanto sei, a resposta mais plausível para essa pergunta pode muito bem ser saber se deve ser terminada ou não. Talvez o suicídio confira um significado à vida. Talvez o nada seja a única salvação possível para esta vida de sofrimento que todos levamos. Talvez deva aprofundar essa ideia. Talvez deva ceder. Hoje (talvez amanhã) penso nisso. Hoje (talvez ontem) senti o nada. Eu agora pertenço -lhe e isso reconforta-me.

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APÓS O NADA O U A P R I M E I R A V E Z Q U E V I O PA R A Í S O A M É R I C O 59

A L V E S


A

cordei. Gentilmente, um clarão forçara-me a abrir os olhos. Não percebia como era possível tudo aquilo estar a acontecer – eu pertencia ao nada. Estava numa pura sincronia com ele. Eu era o nada. Mas agora, eu era forçado a ver. A ver que o nada que tanto me reconfortava era, na verdade, tudo. Sentia vento a correr-me os cabelos. Ouvia risos de crianças. Eram detestáveis. Diante de mim encontrava-se aquilo que todos aqueles que já haviam vivido, haviam sonhado – os Campos Elísios, os Campos de Junco, a Valhalla, o harém das 72 virgens, o Eldorado descoberto, a Atlântida renascida da Cimopoleia, o Éden replantado – aquele era o Paraíso. Apesar do de o conceito poder agradar a todos, em mim, despertava os mais íntimos sentimentos de escárnio. Eu queria sentir o nada outra vez. Decidi, então, ver o que poderia ser feito. Lestamente, avancei. O chão que pisava era verde, o verde mais verde que alguma vez vira; a relva aparentava ter sido acabada de cortar, mas tinha perfeita noção de que ela se mantinha eternamente assim. Percorria uma larga avenida, ladeada por edifícios feitos do mais puro e brilhante ouro; chegueime perto de um e vi o meu reflexo: nunca antes me vira tão perfeitamente – era uma criatura profundamente imperfeita, fraca, corcunda e esfomeada. Agarrei-me à esperança de que o Deus que tinha criado tudo isto não fosse feito à minha imagem. Ao fundo da avenida, erguia-se imponente, passível de ser idolatrada, tal Osíris, uma estátua. A seus pés, uma multidão estava concentrada. Aproximei-me para perceber qual o motivo desta reunião, descobrir porque rezariam àquele deus – haveria hereges no Paraíso? Isso explicaria por que razão estava eu também aqui. A multidão de atlantes encontrava-se no seu estado original, tal como Deus as tinha colocado no mundo, sem roupas; reparei que eu também me encontrava em tal situação. A multidão jogava croquet; sorrisos rasgavam o rosto de todos eles; uma festa de chá decorria simultaneamente. Finalmente aproximei-me da estátua. Vi a seus pés escrito: “Onde há uma vontade forte, não pode haver grandes dificuldades”. Era Maquiavel que se erguia perante mim. Soube mais tarde que onze mais estátuas e onze mais citações se elevavam pela cidade: Nietzsche, Marx, Aristóteles, Locke, Spinoza, Bacon, Crisipo, Stuart Mill, More, Huxley e Jesus Cristo.

Virei-me. Atrás de mim encontrava-se o derradeiro dos edifícios. No coração da cidade, erguia-se a Fortaleza, profana como Babel, titânica como o Coliseu, massiva como Gizé – o Cofre dos Céus. O Cofre encerrava o único capaz de me amparar, o Altíssimo, O Todo-Poderoso, criador eterno dos Céus e da Terra, o Alfa e o Ómega. Caminhei durante dias até lá chegar. Finalmente, ultrapassei as últimas portas para entrar no Sacrário. Ao contrário da cidade imaculadamente limpa, deparei-me com o mais barbárico dos cenários. No trono divino, não se sentava Deus. Sentava-se, de perna cruzada, o maior dos Anticristos, o Além-Homem, Friedrich Nietzsche. Disse-me: “Deus está morto e nós matámo-lo. Vem, meu irmão, banqueteemo-nos com o seu sangue.” Eu fui e bebi do Santo Graal.

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A M É R I C O

A L V E S

U M Ú LT I M O B A R C O PA R A VA L I N O R

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V

iver ou não viver – eis a questão que me exacerba a

debilitação física e mental do resto dos meus dias. Suponho que me tenha perturbado desde o início, quando era jovem, vigoroso e de cabelo lustroso. Sempre foi algo que me demarcou dos outros. Para a grande maioria, a escolha é simples – viver deve ser bom. Para mim, nem tanto. Agora que o meu fim se aproxima, sou forçado a fazer tal escolha; sinto a sociedade respirar ofegante no meu pescoço. Nestes últimos anos, a maior angústia que

algum ser já sofreu tem-me afligido. A cada passo dado, a morte toma o meu pensamento de assalto; atormenta-me uma claustrofobia existencial. Suponho que tenha sido isso que sentiam os meus

Mas todos vivemos assim. Todos sonham com o

remotos antepassados. No tempo em que a morte era uma

Amanhã. O Amanhã é bom, é calmo. No Amanhã, tudo

inevitabilidade, a conduta ditava a passagem para o Éden

existe, não existindo. No Amanhã, não há sonhos – há

ou para o Sheol, para os Campos Elísios ou para o Tárta-

realidade. No Amanhã, somos deuses omnipotentes e pa-

ro. Embora hoje saibamos que isso eram apenas sonhos

radoxais. No Amanhã, todos podemos conviver; podemos

de loucos ou iluminados, algo de que muitos deles tam-

viver, finalmente. Eu gostava de ter vivido no Amanhã.

bém estariam cientes, não quer dizer que esses sonhos

Estou demasiado cansado. 111 anos é demasiado

não tenham tido influência; a esperança do paraíso e o

tempo; é difícil ter paciência para tantas décadas. Princi-

medo do inferno ensinaram-lhes a comportarem-se. Diz-

palmente, quando não se é bom nem a comer nem a ser

se que a era deles foi uma de felicidade. De inocência. De

comido.

ambições. De amor. De bondade.

A sombra do suicídio visitava-me frequentemente.

Hoje não temos nada disso. Com uma garantia do

Muitos ponderaram antes sobre cometer tal atrocidade.

além-vida, sabemos que há um Amanhã, independente-

No entanto, ninguém é capaz de fazê-lo; não fomos feitos

mente do nosso Hoje. E é isso, nada mais. As nossas vidas

para isso; não nos programaram dessa forma. Diz-se que

resumem-se a isso. Aquilo que somos resume-se a isso.

um de nós uma vez conseguiu. Superei várias noites com

No Hoje, ninguém é feliz. Ninguém é inocente. Nin-

essa esperança. Suponho que o meu insucesso mostre que

guém tem motivações. Ninguém ama. Ninguém é bom.

esta era infundada.

Ninguém sente. Todos vivemos num completo, alcoólico,

Como invejo os meus antepassados, o Último Ho-

degradante êxtase. Comer e ser comido – eis a vida do

mem… A natureza de ser Além é penosa.

Imortal. Vivemos tão rápido que não chegamos a viver. E

Receio que o sol se ponha no Hoje e que o Amanhã

sem a morte que se tema, a vida torna-se uma não-vida,

tenha de chegar, independentemente dos meus desejos. Se

um estado temporário de miséria, de vergonha – tenho

ao menos eu tivesse nascido no resplandecente Amanhã e

nojo daquilo que vejo, daquilo que faço, daquilo que sou.

não no imundo Hoje…

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S O B R E P E S S O A S E M U LT I D Õ E S M I G U E L

M A U R I T T I

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O

céu está de um azul mediterrâneo, intenso. Observo uma nuvem, branca como uma noiva em núpcias, que é puxada pela brisa. Começa toda uma mancha, e, por influência de uma corrente de vento, ou qualquer outro fenómeno, meteorológico, atmosférico, com certeza de fora do poder da nuvem, fatal como o destino, separa-se em fragmentos. Esses fragmentos divergem por um tempo, mas acabam por se reagrupar; no fim, a nuvem original recria-se, sai da minha vista. Estou sentado no café A Brazileira, no Chiado, numa mesa junto aos vidros que separam o estabelecimento e as conversas, discussões que se passam lá dentro, entre cafés e uísques, de filosofia, poesia e arte, dos problemas e queixumes da Lisboa quotidiana, essa desolação da Humanidade. Gosto de passar a tarde aqui, sozinho com a minha breve cigarreira; o sol brilha e o mundo é quente e inspirador. Mas hoje não estou sozinho, antes pelo contrário – faço parte da mesa com a discussão mais acesa do café. Até me admira que os outros fregueses não olhem para aqui, a fulminarem-nos com o olhar de curiosidade e presunção próprio dos portugueses. Estou rodeado de amigos; amigos barulhentos, na verdade. À minha esquerda, está o meu jovem mestre, Alberto Caeiro, que está a visitar a cidade, depois de muita insistência nossa. Vê-se que está constrangido e desconfortável. É tão calado quanto eu, mal fala, na verdade. Limitase a olhar e a ouvir. Como eu, estava a olhar para o exterior. Pergunto-me se terá visto a nuvem e a sua evolução, e o que pensará de tal. Que pergunta ridícula. Não pensa nada, claro! Ele nunca pensa, sorte a sua. À minha frente, o cosmopolita Álvaro de Campos, nascido na pacata Tavira para ser educado na atarefada Glasgow. É alto e magro e elegante e o seu monóculo por vezes fere-me a vista, pois reflete a luz solar. Cada vez que abre a boca sente-se o perfume do ópio que ele consumiu antes de vir ter connosco. Talvez isso explique como está tão animado e melancólico. Por fim, à minha direita, virado para o café, está o moralista do Ricardo Reis. Tem debaixo da mão um qualquer livro grosso que trouxe a passear, e na lapela do fato traz um alfinete dourado com o velho escudo monárquico. Como gosta ele de se armar em político (estar contra a ordem é tão popular, atualmente). Gostam muito de discutir, esses três, uns com os outros. E comigo também, eu é que não lhes dou troco. De

qualquer forma, agora quem discute nem sou eu nem o mestre, que é deixado respeitavelmente descansar da viagem desde o seu amado Ribatejo. Neste momento, debatem Reis e Campos, sobre o mérito das máquinas, do futuro, e dos Helénicos (estes do passado). Campos exulta demasiado, e Reis é demasiado sentencioso, quase parece cristão com todos os seus mandamentos morais. — Mas, meu amigo, veja! Veja como as luzes elétricas brilham no fundo do café e compreender-me-á! Ouça! Ouça os sons das engrenagens e perceberá o que digo! Que todo esse Horácio, Epicuro, Crisipo e Sócrates que preza está mais presente que nunca dentro das máquinas… Pois estas são o fruto do futuro brilhante da Humanidade, futuro que veio desses mesmos velhos Gregos! — Você é um doido, pior do que aqueles sentados na Assembleia! Então vai-me dizer que os clássicos são como essas ruidosas máquinas, que o jardim epicurista está no carvão que as alimenta? Os futuristas sonham em dominar o tempo e destino, e nisso falham! Porque o futuro não é deles, apenas o presente serve ao Homem! Siga o antigo ditado, carpe diem, meu amigo! — Mas Reis, você é que é um tolo… O Binómio de Newton é belo, tão belo quanto a Vénus de Milo. Só que nem você nem ninguém o consegue perceber! Enfim, perceberiam, se tirassem os narizes desses grossos e poeirentos livros latinos e olhassem em redor! Aí, perceberiam! Aí, sentiriam o mundo! Não acha, Mestre? Alberto Caeiro pareceu surpreendido por ser chamado à conversa, o que não admira porque ele sente-se surpreendido com tudo. Olhou para Campos e Reis, e depois para mim, antes de falar. — Não conheço nem o binómio de Newton nem qualquer Vénus do Milo. Ou o Milo que seja de quem essa Vénus é. E não percebo porquê o desassossego de discutir o mistério do mundo. As máquinas não escondem nada senão as peças no seu interior, meu amigo. As coisas são assim, para olhar para elas e estarmos de acordo, Campos. Não vejo porquê colocar-lhes algo mais. — Bem-dito – afirmou Ricardo Reis, como infantil pupilo a pensar-se vitorioso e digno da afeição do mestre. — E você, Ricardo, não teme demais o futuro? Vive a vida hoje, mas vive-a por medo da aflição do futuro. Afasta-se do Homem e vai para a natureza, como eu, mas é por ter medo do Homem, não amor à natureza. Refugiase nos gregos e romanos há muito mortos por medo de morrer também. Pensa demasiado sobre não pensar. Eis o

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seu problema. Nunca deixe o futuro perturbá-lo. Encontrá -lo-á, se tiver de ser, com as mesmas armas de razão (e observação) que tem no presente. Porquê pensar nisso? Ferido (algo muito estranho num Estoico), Ricardo Reis esvaziou o seu copo. — Rejeita os clássicos enquanto cita Marco Aurélio… Observando que já não havia um único copo cheio, assinalei que nos trouxessem mais quatro bebidas. O homem fez-me uma cara estranha, como se tivesse pedido quatro copos estando sozinho, um verdadeiro alcoólatra. Então não via que eu tinha de dar de beber a quatro? Enquanto se preparavam as bebidas, discutiram-se outros assuntos. Campos falou, entre a melancolia e o êxtase, do que tinha visto nos estranhos reinos do Oriente. Parecia estar algo desanimado, tendo perdido o louvor dado à vida com o sermão. E talvez fosse também do ópio, cujo efeito (e odor) desaparecia. Ricardo Reis continuou a criticar a política republicana do governo, as suas engrenagens e geringonças. Alberto Caeiro observou uma mosca que, aflita, tentava sair do estabelecimento, mas apenas encontrava vidro límpido. Talvez revendo-se nela. Finalmente chegavam as bebidas. Enquanto agradecia ao rapaz que as trouxe, reparei num outro rapaz que me observava, com intenção de ser discreto, enquanto se sentava ao balcão do outro lado do café. Passei as bebidas, mas rapidamente me vi com problemas. Caeiro recusou a sua; demasiado álcool deturpava a visão. Reis também a recusou; talvez tentasse voltar às boas graças do mestre, talvez fosse verdadeiro o seu intuito epicurista de não se deixar levar por tais prazeres inferiores. Quem aceitou de bom grado foi Campos, e lembrei-me então que este, quando bêbado, em vez de se alegrar, entristece, e tornase uma figura de piedade e transtorno emocional. O efeito foi rápido; mal tinha engolido de um trago o líquido e já estava Álvaro de Campos a trazer à mesa um assunto constantemente mencionado – o triste destino da sua família. Estavam todos mortos, era sabido. Na verdade, éramos maioritariamente órfãos à mesa, mas quem mais com isso sofria era Campos e eu, sem dúvida. Partilhávamos muita nostalgia da infância, e era um assunto demasiado triste para descrever aqui. Basta dizer que verti uma lágrima muito salgada. A nossa conversa foi interrompida com a chegada de um jovem; o jovem que me tinha observado desde o balcão. Ele pediu licença para se sentar e fazer-me compa-

nhia, já que me encontrava sozinho, ou assim aparentava. Verificou que eu não esperava ninguém. Era muito amável, convém mencionar. Chamava-se Almada Negreiros. Era um artista que recentemente tinha sido alvo de uma crítica minha pela sua exposição inaugural. Agradeceu-me, vez após vez, pela crítica feita, comentou na sabedoria e amabilidade das minhas palavras, do olho que eu tinha para a arte… Falou durante muito tempo. Enquanto ele falava, eu ia distraidamente rabiscando num guardanapo. Quando dei por mim, tinha escrito a palavra “ORPHEU” sem sequer perceber o porquê de tal. Olhei para o jovem Almada, que continuava a falar animadamente. Não percebendo muito bem porquê, estava a começar a gostar daquele novo amigo. Embora tivesse alguma estúpida teimosia de juventude, dizia muita coisa acertada. Mas estava errado acerca de algo. Eu não estava sozinho. Nunca estive sozinho, e penso nunca vir a estar sozinho no mundo. Sou, como a nuvem, o coletivo feito unidade.

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