Aurora #1

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decupagem final do filme – baseado no material que foi filmado, evidentemente. Se a decupagem em muitos filmes é somente um ato burocrático de dividir a cena em planos é porque, antes disso, não houve mise en scène real (não estou dizendo aqui que todos os filmes ou todas as cenas precisam ter uma). Mas se houve mise en scène e a montagem não percebeu isso, aí o problema é da montagem. Você comenta sobre a “evidência” como um conceito chave da mise en scène. Foi uma palavra muito usada pela crítica francesa nos anos 1950, de certa forma até meio curinga, servia tanto para cineastas mais clássicos quanto para os modernos. Como você entende o conceito a partir da mise en scène? Michel Mourlet falava em “evidência do mundo” de uma maneira próxima, mas diferente da de André Bazin. Para Mourlet, a arte está em deixar, pela neutralidade clássica, essa evidência aparecer; já Bazin achava que a arte deveria deixar o real exprimir sua ambigüidade, o que envia ou pelo menos deixa o terreno para uma idéia bem mais moderna de evidência. Basta ler alguns escritos de

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Rivette ainda nos anos 1950 para deduzir rapidamente que mise en scène, para ele, estaria mais próximo dessa idéia baziniana que do que defendia Mourlet. O problema é que uma coisa é teorizar sobre isso, na prática da crítica cinematográfica, outra é criar sua própria mise en scène – ou melhor, descobrí-la. O que só acontece, evidentemente, aos poucos. Mas acho que uma revelação é uma palavra que descreve melhor a mise en scène de Rivette, pois mantém o caráter ambíguo de evidência e se libera do real. No cinema de Rivette, você encontra três principais períodos. A mise en scène é uma questão determinante para tal separação? Acho que sim. No que identifico como primeira fase, Rivette estava ainda aprendendo a filmar, o que, em outras palavras no caso dele, estava aprendendo o que colocar em cena (mettre en scène). No primeiro longa, Paris nos pertence, marcado intensamente pelos problemas de produção, a tentativa de se montar uma peça ecoa o clima de paranóia mundial que o filme capta muito bem. Ou seja, a mise en scène invade a narrativa do filme. Já em A Religiosa, a opção é mais direta


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