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foto: Arquivo MDS


Cardápio da diversidade Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome, segundo a FAO, braço da ONU para a alimentação e agricultura. Por outro lado, são crescentes os índices de sobrepeso e obesidade da população. Uma das reportagens desta primeira edição da Revista de Segurança Alimentar e Nutricional relaciona esses dois aspectos da realidade brasileira ao lema da 5ª Conferência Nacional – “Comida de verdade no campo e na cidade”. Apesar de o Brasil ter saído do Mapa da Fome, mais de 3% dos brasileiros ainda sofrem com a insegurança alimentar grave, num país que, ano após ano, bate sucessivos recordes de produção de alimentos. Além disso, cerca de um terço dos alimentos são desperdiçados, entre a produção e o consumo. Este paradoxo é outro tema de reportagem, que revela dados preocupantes e apresenta análises e propostas de especialistas. Por falar em especialistas, esta edição traz os pontos de vistas de conselheiras sobre assuntos que estão na pauta permanente do conselho. A conselheira Ekaterine Karageorgiadis, que representa o Instituto Alana no Consea, aborda as relações entre consumo e publicidade de alimentos, defendendo a regulação da propaganda que é dirigida ao público infantil. Já as conselheiras Anelise Rizzolo e Elisabetta Recine, que são professoras do curso de Nutrição da Universidade de Brasília, assinam artigos sobre os dez anos da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) e os caminhos apontados pela 5ª Conferência Nacional, respectivamente. A revista publica entrevista concedida pela presidenta do Consea, Maria Emília Pacheco, cuja gestão se encerra em novembro. Ela fala sobre os avanços e desafios da segurança alimentar no Brasil, analisando o contexto e abordando as principais propostas defendidas pelo conselho. Esta edição ainda traz relatos pessoais e análises de assessores técnicos do Conselho sobre assuntos como água, agrotóxicos, gênero, racismo, atuação internacional do Consea e outros. É um cardápio de saberes e sabores, tão próprios da pluralidade e diversidade do nosso país. Boa leitura.

Expediente Revista SAN é uma publicação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Participaram desta edição Secretário-executivo Marcelo Gonçalves Equipe técnica Luiz Dombek, Mirlane Klimach, Roberta Sá, Rocilda Moreira, Thaís Lopes Rocha Coordenadora/Ascom Michelle Andrade Jornalistas Beatriz Evaristo, Carlos Eduardo Fonseca, Ivana Machado, Marcelo Torres Estagiário Rafael Rioja

Projeto Gráfico e Diagramação Daniel Tavares Bullets design: www.freepik.com Foto de Vandana Shiva por Augustus Binu. Este arquivo está licenciado sob a Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0. Ilustração Capa Philippe Lepletier Tiragem 14.000 exemplares Consea Palácio do Planalto, Anexo I, sala C2 Praça dos Três Poderes CEP: 70.150 - 900 – Brasília - DF Telefones: (61) 3411.3349/ 2576 E-mail: ascomconsea@presidencia.gov.br

Revista SAN Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Ano 1, n.º 1, 2016 – Brasília: Consea, 2016 V. : Il. Color. 1. Segurança Alimentar e Nutricional I. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons - atribuição - não comercial - c ompartilhamento pela mesma licença 4.0 internacional. É permitida a re­ produção parcial ou total desta obra, des­de que citada a fonte. http://www4.planalto.gov.br/consea.


Sumário 6

Entrevista com Maria Emília Pacheco Assim falou Vandana Shiva

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Atuação internacional Da fome à obesidade

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A gente quer comida de verdade

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Consumo, publicidade e obesidade

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A fome e o desperdício de alimentos

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Viagem ao encontro das águas

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A atuação das mulheres Racismo em discussão

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A história dos avós deste mundo Dez anos de Losan

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Caminhos apontados pela 5ª Sisan Debate global e o pão nosso Comendo veneno invisível Comida é arte

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O sabor das flores

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Bruno Mota

Entrevista

ENTREVISTA: MARIA EMÍLIA PACHECO - PRESIDENTA DO CONSEA Beatriz Evaristo*

Maria Emília Lisboa Pacheco, antropóloga, nasceu em Leopoldina (MG) e trabalha na Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase). Integra o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e é conselheira do Consea desde 2004. Em abril de 2012, foi escolhida para presidir o conselho no biênio 2012/2013. Nesta entrevista, a presidenta do Consea fala fala sobre políticas públicas e perspectivas para a segurança alimentar e nutricional. Qual a avaliação dos avanços de segurança alimentar e nutricional nos últimos anos no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)? Nos últimos anos, o Consea ampliou e aprofundou o debate extremamente importante sobre a segurança alimentar e nutricional nos centros urbanos e também sobre o consumo do alimento adequado e saudável. Em relação a esse primeiro tema dos centros urbanos, foi muito importante termos contado com uma participação ativa dos conselheiros e conselheiras, e em diálogo com a Articulação Nacional de Agroecologia, para chegarmos à formulação de uma Política Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. A integração de práticas agrícolas agroecológicas no planejamento urbano e na agenda da reforma urbana é ainda pouco trabalhada. Temos o desafio de superar a visão das cidades apenas como 6

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consumidora de recursos e exportadora de resíduos. A agricultura urbana e periurbana envolvem a produção de alimentos e o manejo sustentável, e contribuem com a gestão territorial e ambiental das cidades.

que o consumidor tenha o direito à informação. Aquele sinal “T” que nos avisa que o alimento tem transgênico precisa ser mantido. Precisamos avançar também na proposta de rotulagem nutricional.

O debate sobre o consumo do alimento adequado e saudável também foi muito importante porque, através dele, nós aprofundamos a nossa compreensão sobre a necessidade da educação alimentar e nutricional. Hoje, no Brasil, nós já temos um marco de referência que qualifica essa educação. Reconhece princípios e valores como sustentabilidade, valorização da cultura alimentar local, respeito à diversidade de saberes, participação ativa dos sujeitos, dentre outros.

Há outros temas em debate no Consea?

Recentemente, nós tivemos uma conquista importante, um decreto que regulamenta a lei sobre a comercialização de alimentos para lactantes e crianças na primeira infância. Ainda assim, temos um longo caminho a percorrer em relação à regulação da publicidade de alimentos para as crianças. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente desenvolveu um trabalho muito importante quando, em 2014, emitiu uma resolução que diz respeito à proibição de publicidade para crianças. Nós sabemos o quanto as crianças ficam fragilizadas diante de uma publicidade intensiva e recorrente. Temos um quadro preocupante de aumento da obesidade infantil no Brasil, com o crescimento do consumo de produtos alimentícios ultraprocessados. Por isso, a regulação da publicidade de alimentos é necessária. Quero acrescentar que é preciso resistir em relação aos riscos de retrocesso. Há um debate no Congresso para alterar a legislação em relação à rotulagem dos transgênicos e nós precisamos continuar contestando. É preciso

Pra que tenhamos uma alimentação adequada e saudável, nós precisamos de uma mudança nos padrões da produção. Por isso, nós apoiamos ativamente a construção e o lançamento da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Esse debate recebeu uma atenção muito especial do Consea. Nós também entendemos que uma interação mais permanente entre o Consea, a Comissão Nacional de Agroecologia e o Conselho Nacional do Desenvolvimento Rural Sustentável é uma necessidade. Essa interação interconselhos é que permite também que sigamos encontrando pontos comuns no plano nacional das respectivas políticas e também na construção de proposta de transição para um outro modelo agrícola no país. Não podemos continuar com o avanço sem limites do agronegócio, que incorpora terras, que devasta nossos biomas, contamina as águas e os alimentos. Por isso, a Política Nacional de Agroecologia é essencial. Ela tem uma dimensão tecnológica mas também tem uma dimensão social de reconhecimento do papel ativo dos agricultores e agricultoras familiares, das comunidades tradicionais e dos povos indígenas na produção do nosso ali­mento, da defesa da nossa biodiversidade e da agrobiodiversidade. Não haverá uma alimentação adequada e saudável sem uma alimentação variada, sem uma alimentação de qualidade que é produzida graças à diversificação desses sistemas alimentares. Revista SAN

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Outra iniciativa foi ter trazido à tona o debate sobre o impacto dos agrotóxicos e dos transgênicos. Nós inauguramos no Consea um novo método de trabalho, com a realização de mesas de controvérsias. Os resultados dessas mesas juntaram-se a outras manifestações da sociedade, como a Campanha Nacional Pela Vida Contra os Agrotóxicos, o Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, criado por representantes do Ministério Público; o Dossiê de Alerta dos Impactos dos Agrotóxicos na Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva; e também do trabalho realizado na Comissão Nacional de Agroecologia, que se consolidou na proposta do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos, o Pronara, mas que ainda não foi lançado. O Consea continua ativamente com a missão de monitoramento das políticas. Analisamos o impacto positivo do Programa “Um Milhão de Cisternas” e do Programa “Uma Terra e Duas Águas”. Os programas fazem parte de uma parceria do Ministério do Desenvolvimento Social com a Articulação Social do Semiárido construindo a convivência com o semiárido. Cada vez vai ficando mais claro que a convivência com o semiárido está baseada em estoque de água, terra e semente. Foi criado um programa de apoio aos bancos comunitários e familiares das sementes crioulas, da semente da paixão, da semente dos avós, e tantos outros nomes que a semente tem nessa região do Brasil. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome. Quais políticas públicas foram determinantes para esse resultado? É essencial considerar a articulação de iniciativas no campo da economia. Nós tivemos, por anos seguidos, a valorização do salário mínimo e 8

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crescimento na oferta de emprego no país. Mas há um programa específico no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Pnae. A partir de 2009, esse programa passou por mudanças significativas, introduzidas graças à participação ativa de conselheiros e conselheiras na formulação da nova lei que garante a compra de pelo menos 30% dos alimentos da agricultura familiar. Esse programa não só favorece o acesso ao alimento nas escolas como também estimula a diversificação na produção, a organização da produção por parte dos agricultores e agricultoras familiares, possibilita também o reconhecimento do valor da cultura alimentar e dinamiza a economia local. O Pnae teve uma importância grande nesse resultado do Brasil. Acrescente-se a esses, os programas de transferência de renda, como Bolsa-Família, que tiveram impacto favorecendo que esses recursos chegassem às mulheres chefes de família. Para que o Brasil continue um país fora do Mapa da Fome, programas e políticas como essas precisam ser asseguradas. Por isso, nós temos preocupação com as medidas relativas ao ajuste fiscal. Temos assistido o aumento do desemprego. As medidas que estão sendo pensadas em relação à Previdência, por exemplo, com certeza terão um impacto muito negativo em trazer de volta o cenário de violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada. Diante do contexto atual da economia e cortes no orçamento, quais temas merecem mais atenção do governo para que o Brasil continue avançando nas políticas de SAN?


Nós precisamos assegurar a continuidade de programas e políticas conforme já mencionei. Mas precisamos de políticas estruturantes como a democratização da estrutura fundiária, com base no direito humano à terra e territórios, e implementar um Programa Nacional de Reforma Agrária e reconhecimento dos direitos territoriais e patrimoniais dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais e a garantia de sua soberania alimentar. Devemos continuar nos mobilizando contra a PEC 215, que viola os direitos dos povos indígenas, e contra a Ação Direta de Inconstitucionalidade, em curso no Supremo Tribunal Federal, que fere os direitos constitucionais das comunidades quilombolas. Outros exemplos são o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos. São políticas que também precisam ser asseguradas porque ampliaram a possibilidade de melhoria de renda, de reconhecimento do papel de agricultores e agricultoras familiares no abastecimento alimentar no Brasil e na qualidade do alimento que nos oferece. Além disso, as políticas “Um Milhão de Cisternas” e “Uma Terra e Duas Águas” também foram essenciais pra assegurar a convivência com o semiárido e no reconhecimento dos direitos dessas populações. Durante a 5ª Conferência de Segurança Ali­ mentar e Nutricional, houve uma expectativa frustrada da sanção do Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos (Pronara). Qual a importância e urgência do Pronara para o Brasil?

Na 3ª Conferência Nacional de Segurança Ali­ mentar e Nutricional, que se realizou no Ceará, firmamos um consenso na definição de alimentação adequada e saudável que significa não só garantir o acesso ao alimento, mas a um alimento de qualidade e que seja livre de agrotóxicos e de transgênicos. A proposta do Pronara, que nós temos defendido de forma articulada com a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e com Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, fazendo eco das campanhas que cada vez mais crescem e se ampliam na sociedade, é importante porque relaciona vá­ rias medidas. Uma delas é a tributação. Nós precisamos adotar uma medida em relação aos agrotóxicos como foi adotada em relação ao cigarro, acabando com os subsídios e isenção nos impostos, destinando a arrecadação destes ao fortalecimento dos sistemas agroecológicos. Não podemos continuar financiando a comer­ cialização de agrotóxicos. Também é preciso banir as substâncias que já foram banidas em outros países e proibir a pulverização aérea. Não só há uma crescente contaminação do alimento mas também do solo e das águas. Mas, para avançar nessa perspectiva, precisamos da mobilização da sociedade, tanto no campo como na cidade, nas florestas. É possível produzir alimentos em outras bases e por isso defendemos a transição dos padrões de produção e consumo com base na agroecologia. ● * Beatriz Evaristo é jornalista no Consea.

O Programa Nacional de Redução do Uso de Agrotóxicos é fundamental. O Brasil continua sendo campeão do uso de agrotóxicos e nós precisamos mudar essa situação. É possível produzir sem venenos. Revista SAN

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ASSIM FALOU VANDANA SHIVA * Roberta Sá

“Sathya significa verdade; agraha é a luta pela verdade. Gandhi usou este termo várias vezes para lutar contra as leis injustas dos britânicos: satyagraha. O trabalho que vocês realizam para defender a comida de verdade no campo e na cidade é o satyagraha de hoje, contra o sistema alimentar brutal, injusto, não científico, desonesto e não democrático que está sendo imposto sobre nós.”

Augustus Binu

Vandana Shiva, novembro de 2015, na 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

A doutora Vandana Shiva graduou-se em Física na Universidade do Punjab (noroeste da Índia) e obteve seu doutorado em Física Quântica pela Universidade Western Ontario, no Canadá. Após um período realizando pesquisas interdisciplinares em ciência, tecnologia e políticas ambientais, fundou, em 1982, um instituto de pesquisa independente – a Fundação de Pesquisa para Ciência, Tecnologia e Ecologia – dedicado a desenvolver pesquisas de alta qualidade sobre problemas sociais e ecológicos mais relevantes, em parceria com as comunidades locais e os movimentos sociais. Nove anos depois, em 1991, ela fundou o Navdanya, um movimento nacional para proteger a diversidade e integridade dos recursos naturais, especialmente as sementes nativas, e para promover a agricultura orgânica e o comércio justo. Desde então, Navdanya trabalhou com comunidades locais e organizações, apoiou mais de 500 mil agricultoras e agricultores, conservou mais de quatro mil variedades de arroz de toda a Índia, estabeleceu 1020 bancos de sementes pela região. Através de livros, publicações e de suas ações para defender a biodiversidade, os direitos das comunidades tradicionais, questões de gênero e os direitos das mulheres, ela contribui significativamente para mudar as práticas e os paradigmas da agricultura e do sistema alimentar, e em 2010 foi identificada pela revista Forbes como uma das sete mulheres mais poderosas do planeta. Ela esteve na 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e falou de forma bastante abrangente e apaixonante sobre o lema da conferência: “Comida de Verdade, no campo e na cidade”. Apresentando exemplos e sua própria experiência, discorreu sobre o tema interconectando agrotóxicos, transgênicos, agricultura industrial, sementes e extermínio das espécies; biodiversidade, agroecologia e nutrição e doenças crônicas; racismo alimentar, colonização, grandes corporações, patentes e propriedade intelectual. É impossível resumir sua fala com a mesma clareza. O melhor a fazer é ler o texto na íntegra, disponível na página eletrônica do Consea (http://www4.planalto.gov. br/consea/comunicacao/noticias/ativista-vandana-shiva-sauda-democraciaalimentar-do-brasil-e-alerta-sobre-agrotoxicos/view). Neste texto segue uma releitura resumida e pessoal de alguns pontos. Seu maior envolvimento com a militância em prol da agricultura orgânica se deu no início da década de 80, após o maior desastre industrial do mundo, em 10

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Bhopal, no centro da Índia, quando 40 toneladas de gases tóxicos vazaram de uma fábrica de pesticidas da empresa norte-americana Union Carbide, matando três mil pessoas imediatamente; 30 mil desde então; e milhares estão nascendo deformados até hoje, mais de 30 anos após o vazamento de gás. Segundo Vandana Shiva, não se pode chamar o ocorrido de desastre ou acidente, “porque todas as agrotoxinas, todos os pesticidas agrícolas têm suas origens em guerras, foram criados para matar pessoas. Foram desenvolvidos como gases venenosos e neurotóxicos para serem utilizados nos campos de concentração ou na própria guerra e, quando as guerras acabaram, aqueles que tinham se acostumado a vender venenos como armas químicas de guerra apenas os remodelaram como agrotóxicos e mudaram totalmente a agricultura, criando falsas crenças de que sem agrotóxicos não podemos cultivar alimentos.” Ao longo de sua fala ela citou falsas crenças e falsas soluções, apresentando argumentos e dados para rebatê-las. Começando pela agricultura industrial e os organismos geneticamente modificados (trans­ gênicos), o maior mito é de que não podemos cultivar alimentos suficientes sem as grandes cor­ porações, sem transgênicos e sem agrotóxicos. Se­ gundo ela, as corporações não nos trazem ali­mentos e sim tóxicos e comida adulterada, de mentira, nos privando de nutrientes. E a privação de nutrientes passa pela redução da diversidade. A diversidade de alimentos da biodiversidade, de plantas alimentares não cultivadas, de alimentos silvestres, o conhecimento tradicional e a cultura alimentar de cada povo oferecem a nutrição e a saúde necessária. “E eu nunca vi culturas indígenas em qualquer lugar sofrendo com doenças, desde que não tenham

sido infectadas pelo exterior. Suas próprias dietas tomaram conta de sua saúde.” Nós costumávamos nos alimentar com mais de dez mil espécies de plantas. Hoje no mundo apenas quatro culturas de organismos geneticamente modificados (OGMs) têm sido cultivadas: milho, soja, canola e algodão. Até mesmo arroz e trigo têm sido deixados de lado. Segundo ela, a única razão pela qual temos OGMs é para que as empresas possam coletar royalties. “Quando sua diversidade se vai, seus nutrientes se vão. Primeiro, porque precisamos de diferentes plantações no nosso solo para que seja sustentável, e precisamos de uma variedade de plantações para nos proporcionar uma nutrição equilibrada.” “Grande defensora da agroecologia, que está rela­ cionada com permitir que as funções ecológicas da natureza cumpram seu papel em renovar a fer­tilidade do solo, controlar pestes e controlar o supercrescimento desnecessário de uma espécie”, Vandana descreveu pesquisas realizadas em 200 propriedades rurais na Índia e o cálculo de ren­ dimento nutricional de cada cultivo. Os dados mos­ tram que, de maneira geral, encontram-se duas a três ve­zes mais nutrição em propriedades agroecológicas que em propriedades que utilizam agrotóxicos. O mundo poderia alimentar o dobro da população mun­dial, com alimentos nutritivos, sem aumentar a área cultivada, através da intensificação da ecologia, da biodiversidade, não pela intensificação de químicos e tóxicos e do controle corporativo. “E não é somente alimentos e nutrição que produzimos mais, e nós não medimos rendimento por acre, porque rendimento é uma medida de commodities que vão para o mercado. Nós queremos ver o quão saudável são nossos alimentos, então medimos saúde por acre, nutrição Revista SAN 11


por acre, e em nutrição por acre as propriedades ecológicas têm performance muito melhor, e propriedades industriais são muito empobrecidas, elas estão produzindo commodities tóxicas e nutricionalmente vazias.” Por outro lado, a agricultura química ou industrial é baseada no que ela chama de monocultura da mente: “Produtos químicos oriundos da guerra são utilizados na agricultura, e por isso não é possível ter 20 tipos de plantações em um mesmo solo, é necessário ter uma cultura única, adaptada para aquele agrotóxico. É por isso que a agricultura industrial acaba com a nossa diversidade, e com ela, acaba a nutrição”. E para suprir essa redução do valor nutritivo da comida, o sistema alimentar vigente, e principalmente as grandes corporações, nos oferecem comida de mentira, adulterada. A palavra adulteração vem do termo latino adulterare, que significa poluir ou corromper. Nossa comida está sendo corrompida e poluída com agroquímicos, pesticidas, traços de OGMs, promotores virais, antibactericidas, marcadores de resistência à herbicidas e toxinas, e in­gredientes que nunca foram alimento em ne­nhuma cultura, desenvolvidos em laboratório - como o caso do xarope de milho rico em frutose, presente em muitos alimentos ultraprocessados, que desestabilizam nosso metabolismo, e que formam as bases para a epidemia de doenças crônicas como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Em 1985 havia 30 milhões de pessoas com diabetes no mundo. Este número já aumentou para 135 milhões, e está projetado para ser 380 milhões em 2025, levando a quatro milhões de mortes. Para ela, a ligação do agronegócio com a saúde humana e do planeta é clara: não estão preocupados com a nossa saúde, e de fato “eles ficam mais felizes se nós ficamos doentes, porque as mesmas empresas que nos trouxeram armas químicas, 12

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se tornaram a indústria agroquímica, depois se tornaram a indústria da biotecnologia e engenharia genética, e são também a indústria farmacêutica”. Outra narrativa falsa citada por ela foi a de que os alimentos não fornecem os micronutrientes e a nutrição necessária, e por isso é necessário suplementá-los através da biofortificação. “As mesmas empresas que nos fornecem alimentos nutricionalmente deficientes, sistemas agrícolas e sistemas de processamento que roubam a nutrição de nossos alimentos, querem agora nos empurrar a biofortificação, através da engenharia genética”. Os casos citados foram do arroz dourado, modificado através de engenharia genética para aumentar seu teor de vitamina A, e o da banana geneticamente modificada, na Índia, para aumentar seu teor de ferro. No caso da vitamina A, as folhas de coentro, folhas de amaranto, ou a surpreendente árvore de moringa, podem fornecer 300% a 400% mais vitamina A, além de outros nutrientes, sabor e qualidade. O projeto falhou na Índia e nas Filipinas, mas está sendo financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates em Bangladesh, o que ela considera um ato criminoso. No caso da banana, após 20 anos de pesquisa na Austrália, patrocinada pela mesma fundação, obtiveram níveis de 0,44 unidades de ferro por 100 gramas, podendo chegar a 2-3 unidades, enquanto a cúrcuma oferece 67 unidades, a moringa oferece 28, as folhas de Gram de Bengala oferecem 23. Para Vandana, se há comprometimento dos financiadores para remoção das deficiências nutricionais dos alimentos, a solução é entregar os recursos financeiros para as comunidades locais, para que criem hortas em todos os lugares, inclusive nas áreas urbanas; e para que as mulheres ressuscitem seus conhecimentos sobre biodiversidade e nutrição.


“Diversidade é a resposta para a subnutrição. Comida de verdade nas mãos de gente de verdade, e soberania de conhecimento, junto com soberania das sementes e soberania alimentar são as respostas à subnutrição. Mas não somente à subnutrição, à epidemia de doenças também.” Outro mito apresentado foi o da alergia ao glúten do trigo. Segundo Vandana, as pessoas com doença celíaca precisam de cuidados e seus direitos garantidos, mas o trigo por si só não causa alergia, é a reprodução industrial e o processamento industrial que estão levando às alergias ao glúten. Devido à reprodução de sementes da Índia ter sido feita por agricultores familiares, existem variedades conservadas que não contribuem para alergias ao glúten. A Monsanto tentou registrar estas variedades de trigo, solicitando patentes para semente, grãos e para todos os produtos em qualquer lugar do mundo. O interessante é que no pedido de patente estava descrito o quão grande o mercado do trigo sem glúten seria. Vandana Shiva e o Navdanya desafiaram e lutaram contra as patentes do trigo, assim como do neem e do arroz basmati - o arroz aromático indiano. Em todos os três casos foram vencedores e o gigante das corporações perdeu. O Navdanya criou até hoje 1020 bancos de sementes comunitários na Índia e tem resistido a toda lei que retira os direitos fundamentais dos agricultores de poupar, trocar sementes e o direito dos consumidores. Nos últimos, anos a organização tem se dedicado ao trabalho com agricultores e cidadãos através do mundo para defender as sementes livres, tendo em vista que as corporações tentam escrever leis para tornar as sementes locais ilegais. “Comida de verdade somente vem de sementes de verdade”.

Segundo a especialista, as sementes de verdade possuem três qualidades: são renováveis, se reproduzem, se multiplicam - uma semente pode se tornar dez sementes, ou 100 sementes, ou um milhão de sementes; proporcionam nutrição, pois nossos ancestrais não estavam reproduzindo sementes sem pensar em o quanto de qualidade, sabor e nutrição eles estavam adicionando à comida; e têm resiliência, pois não as reproduzimos para a vulnerabilidade, não as reproduzimos de uma forma que uma seca venha e as plantações sejam devastadas ou de modo que uma chuva inesperada destrua as plantações. Afirmou que é importante estarmos atentos para expor as más intenções de destruir a diversidade que alimenta o mundo. As leis que tornam as sementes locais ilegais, e as de segurança alimentar que tornam a comida artesanal ilegal têm que ser revogadas. Aconteceu na Índia, na Europa, Colômbia, em qualquer lugar que o povo lutou contra. “Cada vez mais a comida é usada como arma, para controlar as pessoas. Nós seremos livres, porque a liberdade é muito preciosa e a li­ berdade é o que nos dá nossa cultura, nos dá saúde e nos dá nossos meios de subsistência. E não vamos permitir que a liberdade seja de­ finida pelas corporações através de acor­dos de livre comércio, onde elas mesmas escrevem as leis de propriedade intelectual, os acordos de agricultura, e os processadores que falam sobre valor agregado, enquanto é valor roubado, falam de medidas sanitárias e lutam por medidas sanitárias, as normas de saúde. Sua próxima tentativa desesperada será criminalizar nossas liberdades.” ● * Roberta Sá é assessora técnica do Consea.

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ATUAÇÃO INTERNACIONAL

Países querem saber o que o Brasil fez para vencer a fome Thaís Lopes Rocha*

Em novembro do ano passado, em Brasília, a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional recebeu representantes de 30 países de todos os continentes. Eles se reuniram um dia antes do evento oficial para um encontro específico, no qual discutiram e fizeram sugestões sobre os desafios do Brasil e da comunidade internacional. Os estrangeiros vieram não apenas conhecer as experiências brasileiras – em políticas públicas, participação e controle social –, como também debater o contexto e as perspectivas para a segurança alimentar em âmbito mundial. 14

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A realização de um encontro internacional na Conferência Nacional e a elaboração de propostas sobre o papel do Brasil nas suas relações com países, blocos e organismos (sugestões aprovadas no documento final) ilustram uma importante linha de ação do Consea – a atuação internacional. O conselho defende em nível internacional a aplicação de conceitos, linhas e diretrizes que são norteadores de sua atuação nacional, como por exemplo, a igualdade de gêneros, o inseparável vínculo entre alimentação e nutrição e a intensificação da relação entre o campo e as cidades e entre consumidores e produtores na construção da percepção do alimento como um bem comum. Neste contexto, muitos são os desafios que se apresentam ao conselho na garantia da participação da sociedade civil internacional em relação à Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) e ao Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável (DHAA). Aparentemente pode parecer inviável que a segurança alimentar e nutricional seja discutida com outras nações, uma vez que o conceito leva em consideração as especificidades da cultura alimentar regional. No entanto, tal qual no âmbito nacional, a defesa do DHAA deve ser feita em diálogo com múltiplos atores. Principais Desafios Uma das propostas defendidas pelo Consea é a ampliação de espaços de participação da sociedade civil em todas as regiões, pois maior interlocução entre governo e sociedade na formulação, implementação e monitoramento da política de segurança alimentar e nutricional a torna mais efetiva. Neste sentido, o conselho é a favor de alianças regionais (como a cooperação SulSul) e internacionais que permitam maior inserção da sociedade civil global nas discussões desta política pública. Outra preocupação do Consea refere-se a maiores avanços no enfrentamento da fome e outras formas de má nutrição (como se verificou na África, América Latina e Caribe), o que depende do compromisso político de governantes de países distintos associado a uma visão intersetorial. Este tema deve ter enfoque compartilhado, por exemplo, com a valorização da agricultura familiar, camponesa, indígena e de povos e comunidades tradicionais. Revista SAN 15


Ademais, gera preocupação a captura corporativa, no cenário internacional, de espaços de go­ vernança e participação – em especial no campo da nutrição –, o que tem intensificado a entrada de grandes corporações em detrimento das leis de terras e sementes. Acontecimentos desta natureza reduzem a visão do DHAA à ajuda alimentar – esta por vezes embasada tão somente na importação de alimentos. Neste aspecto, o Consea se posiciona contra concepções de arranjos multiatores (multistakeholders), com os quais se pretende nivelar a participação de governos e sociedade civil com a de entidades privadas, abrindo espaço para a captura corporativa. O conselho também avalia como mudanças em várias outras áreas do cenário internacional podem afetar a segurança alimentar e nutricional. Assim, as mudanças climáticas chamam a atenção, uma vez que afetam os sistemas de produção familiar de modo a incrementarem a vulnerabilidade e a insegurança alimentar e nutricional dos povos. Adicionalmente, é im­ portante o acompanhamento que o Consea faz sobre acordos internacionais como os centrados no aumento da produtividade e tecnificação da agricultura, que podem gerar prejuízos à agricultura familiar. Também se monitora a de­ fesa de uma Revolução Verde para a África, devido à possível relação desta com violações do direito à terra, à água e às sementes. Todos estes desafios foram discutidos durante a última Conferência Nacional e o rico debate deu origem a recomendações consensuais sobre como deve ser a atuação do Consea na esfera internacional. Recomendações da Conferência Em resposta à preocupação de inserção da so­ ciedade civil como efetiva participante da política 16

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de SAN, sugere-se que haja o fortalecimento de espaços públicos multilaterais, de modo a garantir a participação continuada da sociedade civil organizada. Em complementariedade à expansão de espaços multilaterais, opina-se também pela promoção de articulações globais, regionais e nacionais de organizações e movimentos sociais a fim de que o intercâmbio de experiências entre eles forme mais representantes com enfoque multinível (local, nacional e internacional); gerando, portanto, representantes mais hábeis a participarem de espaços públicos multilaterais. Em termos de fóruns regionais, recomenda-se intensificar alianças para o efetivo engajamento dos governos nacionais na promoção do DHAA e da SSAN. De forma objetiva, aconselha-se: fortalecer os mecanismos de participação da sociedade civil no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP); criar maiores vínculos com África, América Latina e Caribe; estar mais presente em espaços de governança do Norte, considerando os altos investimentos em políticas alimentares alocados pelos países da União Europeia e dos EUA. Ademais, sugerese pactuar uma concepção Sul-Sul em DHAA e SSAN para que a cooperação Sul-Sul promova políticas nacionais intersetoriais, participativas e com controle social; restrinja ou vede todo o processo de colaboração que põem em causa o princípio da soberania alimentar a nível nacional, regional e internacional, tais como o ProSavana; e substitua a tradicional visão de transferência de políticas públicas por uma concepção horizontal de parceria e construção compartilhada de capacidades. Diretrizes voluntárias da terra Quanto ao monitoramento internacional de temas que possam afetar a segurança alimentar e nutricional, aconselha-se acompanhar a apli­


cabilidade das decisões que são tomadas em espaços regionais e globais de SAN. Recomendase, por exemplo, monitorar as diretrizes voluntárias sobre a governança responsável da posse da terra e de outros recursos naturais. Mas será que toda a sociedade brasileira conhece as diretrizes voluntárias da terra? As diretrizes são princípios e normas internacionalmente aceitos para práticas sustentáveis sobre a posse da terra e de recursos naturais, uma vez que estes são reconhecidos instrumentos para alívio da fome e da pobreza, melhoramento do meio

ambiente e apoio a um equitativo desenvolvimento econômico nacional e local. Foram ratificadas em importantes fóruns internacionais de SAN – como no Comitê de Segurança Alimentar das Nações Unidas (ONU) – e também discutidas no grupo de trabalho da ONU sobre corporações e direitos humanos. Neste caso, é importante que o Consea acompanhe debates regionais e globais sobre o assunto a fim de avaliar se as iniciativas em cursos afetam a política de SAN. ● * Thaís Lopes Rocha é assessora técnica do Consea.

Visitas internacionais Ainda no âmbito de sua atuação além das fronteiras nacionais, cabe ressaltar que o Consea recebe frequentes visitas de delegações estrangeiras, que demandam conhecer a sua expertise na implementação do diálogo entre governo e sociedade civil a respeito da segurança alimentar e nutricional. De 2012 a 2015, o Consea recebeu em torno de 30 delegações, da África, da América Latina e Caribe e, em proporção menor, da Ásia, Europa e América do Norte. A maioria almeja compreender em detalhes quais são os mecanismos que o Brasil utiliza para viabilizar a participação social na construção do DHAA para, a partir da experiência brasileira, verificar uma possível implementação de instituição semelhante em seus países. Outras delegações, de governos estrangeiros que já possuem estruturas próprias na área de SAN, vêm ao Conselho com o objetivo de estabelecer cooperação internacional, a fim de que trocas possam gerar uma relação ganha-ganha sobre este tema. Revista SAN 17


DA FOME À OBESIDADE

Brasileiros passaram a comer mais. O sobrepeso porém já atinge mais da metade da população adulta do país Marcelo Torres*

“A fome dizima as populações do terceiro mundo”, dizia Josué de Castro, em 1946, no livro Geografia da Fome. “A fome é escamoteada, é escondida, não se fala neste assunto, que é vergonhoso, a fome é um tabu”, afirmava ele. Josué de Castro [Recife – 1908, Paris – 1973] foi um humanista brasileiro, médico, nutrólogo, cientista social, geógrafo, escritor e ativista indicado três vezes ao Prêmio Nobel da Paz. Foi ele um dos precursores de estudos e pesquisas sobre a fome no Brasil e no mundo. “Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome”, disse ele. “A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do rio Capiberibe, nos bairros miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite”. Esta foi a sua Sorbonne: “A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo”. Menos de uma década depois (1955), outro pernambucano, o poeta João Cabral de Melo Neto, publicava um dos mais famosos poemas da língua portuguesa - “Morte e Vida Severina”. No texto, o poeta denunciava a miséria reinante no país, ao dizer que “somos todos Severinos [...], condenados à morte de 18

Revista SAN

velhice antes dos 30, de emboscada antes dos 20, de fome um pouco por dia”. Três décadas mais tarde, em 1984, ano da campanha pelas eleições diretas para a Presidência da República, o cantor e compositor baiano Caetano Veloso lamentava na letra de uma de suas canções: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer de fome, de raiva e de sede são tantas vezes gestos naturais”. Ou seja, até pouco tempo atrás, a fome era um assunto tabu e dizimava populações, segundo estudos de Josué de Castro; a fome matava diariamente milhares, talvez milhões de brasileiros, diziam os versos de João Cabral; por causa dos podres poderes, morrer de fome era algo natural, cantava Caetano. No início dos anos 90, cerca de 32 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da pobreza, segundo o “Mapa da Fome”, estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa


Ilustração: Philippe Lepletier

Econômica Aplicada (Ipea), em 1993, no governo Itamar Franco. No ano seguinte era criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e realizada a 1ª Conferência Nacional.

dos últimos tempos – que provocaram mudanças nos hábitos alimentares da população. Segundo pesquisas do Ministério da Saúde, mais de 50% da população adulta está com sobrepeso, sendo que a obesidade já beira os 20%.

O tempo passou e, em 2014, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) informou ao mundo que o Brasil – com menos de 5% da população em insegurança alimentar grave - saiu do Mapa da Fome Mundial, uma grande conquista para um país onde, segundo João Cabral, “morria-se de fome um pouco por dia”.

Já a pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), aplicada em 2014 e divulgada em 2015 pelo Ministério da Saúde revela: 52,5% dos brasileiros adultos estão com sobrepeso e, destes, 17,9% já estão obesos. A pesquisa foi feita por telefone, ouvindo 41 mil pessoas nas 27 capitais brasileiras.

A conquista brasileira, dizem especialistas, foi fruto de um somatório de fatores, como as políticas

Na sequência histórica da mesma pesquisa, os dados mostram tendência crescente nos índices. O sobrepeso em 2006 era 42,6%, subiu para 50,8% em 2013 e chegou a 52,5% em 2014. Já a obesidade era de 11,8% em 2006, subiu para 17,5% em 2013 e passou a ser 17,9% no ano passado. Só para se ter uma ideia do problema, números oficias indicam que o Sistema Único de Saúde, o SUS, gasta quase meio bilhão de reais por ano no tratamento de doenças relacionadas à obesidade, as doenças crônicas não transmissíveis. Isso tudo sem contar outros impactos na economia, como por exemplo, as ausências ao trabalho.

públicas e os programas sociais - que promoveram inclusão social e transferência de renda -, a atuação da sociedade civil e a luta de brasileiros como Josué de Castro e Herbert de Souza, o Betinho. Contudo, se hoje em dia mais brasileiros passaram a comer - e comer mais -, é fato também que outros problemas surgiram, com as mudanças sociais e econômicas

Neste contexto o Brasil realizou, em novembro do ano passado, a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com um lema bastante oportuno: “Comida de Verdade no Campo e na Cidade, por direitos e soberania alimentar” – levando os participantes a discutirem o que estamos e não estamos comendo. Revista SAN 19


Além do peso

Em 2004 esteve em cartaz nos cinemas de todo o mundo o documentário “Super Size Me – a dieta do palhaço”, de Morgan Spurlock, que era o ator e o diretor. Ele passou um mês se alimentando três vezes por dia numa famosa rede de fast-food, a fim de mostrar os efeitos que tal escolha exerce sobre uma pessoa. Ao final da experiência, o ator-diretor engordou 11 quilogramas, ficou com uma fisionomia de doente e apresentou mudanças de humor, disfunção sexual e impacto sobre o fígado, precisando de mais de um ano para perder o peso adquirido. 20

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No Brasil, a Maria Farinha Produções e o Instituto Alana produziram o filme “Muito Além do Peso”, um contundente documentário sobre a obesidade infantil, que mostra hábitos alimentares de crianças e traz a opinião de especialistas no assunto. Apesar de muita gente achar que segurança alimentar e nutricional é tão somente “combate à fome”, o conceito é muito mais amplo do que se imagina. Não é só comer, não é só “matar” a fome. Estamos falando de alimentação adequada e saudável, livre de agrotóxicos e transgênicos, que não prejudique sua saúde nem o meio ambiente. O conceito de segurança alimentar e nutricional também prevê o respeito e a preservação dos hábitos alimentares (cultura alimentar) de um povo, de uma região, de uma comunidade, como, por exemplo, as tradições alimentares dos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais, entre outros. A fome ainda não está de todo vencida, pois há ainda 3,8% de brasileiros privados do acesso diário ao alimento – e a situação é mais séria entre grupos vulneráveis (os mais pobres, os negros, os quilombolas, os indígenas, os povos e comunidades tradicionais, ente outros). O que se espera é que fique no passado – e não volte nunca mais – o tempo em que se morria de fome um pouco por dia, como no poema de João Cabral; o tempo em que morrer de fome era coisa natural, como na música de Caetano; o tempo em que a fome era um assunto tabu, como no livro de Josué de Castro. ● * Marcelo Torres é jornalista do Consea. Revista SAN 21


Bruno Mota

A GENTE QUER COMIDA DE VERDADE

Caminhos que levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome Ivana Diniz*

Comer. O simples ato de levar o alimento à boca. Pareceria mera trivialidade hoje, quando muitos estão acostumados a percorrer supermercados lotados de produtos vistosos e a engolir comida que não sabem do que é feita ao mesmo tempo em que digitam no teclado do computador, veem televisão ou dirigem um carro. Mas não. É direito universal inalienável de todo ser humano. Tarefa primeira de mães e pais. Política de Estado. Contudo no Brasil, tradicionalmente um grande produtor de alimentos, a fome era um problema endêmico nacional há até pouco 22

Revista SAN

tempo, pouco mais de duas décadas. Havia comida em abundância, mas a população sofria por não ter acesso a ela, pela distância em relação às áreas produtivas ou falta de renda – pois a fome e a miséria costumam andar juntas. Até 2001, a cada cinco minutos morria uma criança no país. Grande parte delas oriundas de família de baixa renda. E a maioria, de fome. Segundo dados oficiais da época, havia pelo menos 36 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave. Cidadãos que não sabiam quando teriam a próxima refeição.


Mas a situação caminhava para uma mudança surpreendente. Em 2014, relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) destacou que o Brasil havia alcançado em 2012 duas metas da entidade internacional: cortar pela metade o número de pessoas passando fome e reduzir esse número para menos de 5% da população. Oficialmente, o país estava fora do mapa da fome. Vandana Shiva, ativista ambiental e ecofeminista que em 1993 ganhou o Right Livelihood Award, o Prêmio Nobel da Paz alternativo, esteve no Brasil em novembro do ano passado, para participar da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. No encontro, a indiana comentou que iria se tornar uma embaixadora das políticas públicas brasileiras, pois o mundo precisa saber mais sobre como o país conseguiu superar esse desafio. Primeiras iniciativas Historicamente, o Brasil não tratava o combate à fome e à pobreza como política prioritária e nem de forma integrada. Foi apenas durante a segunda metade da década de 1930 que a fome foi identificada como problema social e de saúde pública. Reconheceu-se a a associação dela com a pobreza extrema e com práticas alimentares e serviços de saúde inadequados. E que somente a correção destas determinantes poderia levar a uma solução definitiva. O governo de então compreendeu que era um processo demorado, de longo prazo, durante o qual seriam necessárias medidas compensatórias, dirigidas aos grupos de

maior risco. A constatação o levou a definir, ainda na última metade da década, o salário mínimo, que deveria “satisfazer às necessidades normais do trabalhador e sua família”, correspondendo ao valor de uma cesta básica. Em 1940, constituiu o Serviço de Alimentação da Previdência Social (Saps), para promover a instalação de refeitórios em empresas maiores, fornecer refeições nas menores, vender alimentos a preço de custo a trabalhadores com famílias numerosas, proporcionar educação alimentar, formar pessoal técnico especializado e apoiar pesquisas sobre alimentos e situação alimentar da população. Em janeiro de 1945, fundou-se a Comissão Nacional de Alimentação (CNA), com a função de definir uma política nacional de alimentação. Outras ações se seguiram. Em janeiro de 1946, fundou-se o Instituto Nacional de Nutrição (INN), que incorporou o Instituto de Tecnologia Alimentar criado em 1944. E, em 1952, foi elaborado o plano Conjuntura Alimentar e Problemas de Nutrição no Brasil, abrangendo inquéritos nutricionais, expansão da alimentação escolar, assistência alimentar a adolescentes, programas regionais, enriquecimento de alimentos básicos e apoio à indústria de alimentos. Do projeto original sobreviveu apenas a campanha da alimentação escolar, sob o controle do Ministério da Educação a partir de 1955. Foi a CNA que, em 1952, quando já estava vinculada ao Ministério da Saúde e da Educação, estabeleceu o Plano Nacional de Alimentação – considerado um embrião do planejamento nutricional brasileiro. Revista SAN 23


Apesar de tudo, a fome resiste Com exceção da alimentação escolar, nenhum esforço teve sucesso de fato em reduzir em grande escala a fome no Brasil. Pesquisas e levantamentos revelavam a gravidade da situação. Entre eles, destacam-se os trabalhos do grupo de Nelson Chaves, na Zona da Mata (1965-1966); e o Estudo do Consumo Alimentar, pela Fundação Getúlio Vargas (1961-1963), que apontavam os altos índices de desnutrição rural e urbana. Era preciso identificar a origem precisa da questão fome-saúde, como um todo. A tarefa coube a um médico pernambucano. “Interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado”, cravou Josué de Castro, logo no início de sua memorável obra, Geografia da Fome. Nela, o autor mapeou toda a distribuição e concentração da fome no Brasil. E derrubou o mito de que ela decorria de influências climáticas ou da improdutividade de uma população ociosa, argumentos bastante populares ainda hoje. Josué dividiu o país em cinco regiões conforme as características alimentares, naturais e processos históricos, políticos e econômicos. Os resultados apontaram que a fome e a desnutrição não tinham apenas relação com fatores naturais mas também políticos. Não estavam conectadas à disponibilidade de alimentos no país. Mas ao acesso a esses alimentos e à renda, o que só seria alcançado com políticas públicas, entre elas a reforma agrária, defendia. 24

Revista SAN

Em 1962, Josué de Castro chegou ao posto de embaixador do Brasil na ONU. Mas, em 1964, com o golpe militar, foi destituído do cargo de embaixador-chefe em Genebra e logo depois, em 9 de abril, teve seus direitos políticos cassados por dez anos. O Brasil mergulhava na ditadura militar, que duraria duas décadas, durante as quais o assunto foi tratado dentro do tradicional conceito de segurança nacional. Aliás, foi no período entre guerras que o termo segurança alimentar surgiu pela primeira vez na literatura mundial, afirma o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em 1972, o Brasil criou o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (Inan), autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, para assistir o governo na formulação da política nacional de alimentação e nutrição; propor o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição (Pronan). O Pronan II (1976-1979) ofereceu o primeiro modelo de uma política nacional incluindo suplementação alimentar, amparo ao pequeno produtor rural, combate às carências específicas, alimentação do trabalhador e apoio à realização de pesquisas e capacitação de recursos humanos. A merenda passou a denominar-se Programa Nacional de Alimentação Escolar. Nos anos seguintes foram implantados, no âmbito do Pronan, dez programas e ações de alimentação e nutrição. Em 1975, foi assinado um convênio Inan-Banco Mundial em apoio ao Programa de Nutrição Brasil. Em todas essas políticas, o tema estava sempre vinculado à capacidade de produção, o que não era o único fator determinante para a fome, como já mostrara Josué de Castro.


No início da década de 90, os programas de alimentação e nutrição no país foram praticamente extintos. O governo Collor manteve somente o Programa Nacional de Alimentação Escolar, extremamente enfraquecido, e a distribuição de cestas de alimentos, por meio de estoques públicos de alimentos em risco de deterioração. A volta do irmão do Henfil Em 1979, com a Lei de Anistia, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, volta ao Brasil e funda, em 1980, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Betinho era irmão do cartunista Henfil, que havia ficado famoso na época da ditadura por personagens publicados especialmente pelo jornal “O Pasquim”, como Os Fradinhos, o Bode Orellana e a ave Graúna, que viviam na caatinga e falavam sobre a fome e a miséria no Brasil. Betinho era, ele mesmo, já de certa forma conhecido, por sua atuação na fundação da Ação Popular (AP), movimento armado que lutara contra a ditadura. Após o golpe militar de 1964, ele passou sete anos na clandestinidade e oito no exílio. Nessa época, serviria de inspiração para os compositores João Bosco e Aldir Blanc, que lançaram a música “O Bêbado e a Equilibrista”, em 1979, cujos versos diziam: “Meu Brasil... que sonha com a volta do irmão do Henfil, com tanta gente que partiu num rabo de foguete. Chora a nossa pátria mãe gentil. Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”. Ao retornar do exterior, Betinho daria outro passo importante, além da criação do Ibase,

para se tornar de fato um símbolo nacional na década de 1990. Ele liderou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Com essa campanha, o irmão do Henfil conseguiu mobilizar profundamente a sociedade brasileira para enfrentar a pobreza, as desigualdades e a fome. A repercussão levou o presidente interino Itamar Franco a definir imediatamente o combate à fome e à miséria como prioridades de governo, criando o primeiro Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Também em 1993, foi elaborado o Mapa da Fome, pelo Ipea, que indicou a existência de 32 milhões de brasileiros vivendo em situação de miséria. Em 1994, seria realizada a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. As primeiras diretrizes foram apresentadas e o relatório final da conferência foi encaminhado ao recém-empossado presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato. No entanto, o Consea foi extinto. Em 1995, o Programa Comunidade Solidária foi concebido como um plano de ação de combate à pobreza e à desigualdade. O programa considerou a pobreza como um problema a ser resolvido com ações de médio e longo prazo, combinadas com ações emergenciais para o atendimento das populações atingidas pela privação. Em julho de 1997, o Inan também é extinto e, no ano seguinte, adotado o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), como um dos pré-requisitos para a adesão ao programa de Incentivo ao Combate às Carências Nutricionais (ICCN), criado em 1999. Revista SAN 25


Segurança Alimentar – proposta de uma política de combate à fome no âmbito do O tema, no entanto, ti nha readquirido musculatura Ministério da Agricultura, em 1985, que própria na sociedade. Programas exibidos na detalhou as dimensões sociais e econômicas televisão brasileira transformavam os dados frios da questão. O segundo, de caráter político, foi das pesquisas em cenas candentes. Naquela a mobilização da sociedade civil pela realização época, a fome no país ainda se equiparava, em de uma Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição (CNAN), em 1986. algumas regiões, à de países da África. Mobilização da sociedade

A série de reportagens “Fome no Brasil”, do jornalista Marcelo Canellas, exibida no Jornal Nacional entre 18 a 22 de junho de 2001, por exemplo, mostrou os “cemitérios de anjos” no norte de Minas e no Nordeste, onde eram enterradas crianças ceifadas pela falta de alimentos antes de completar cinco anos. Meninas e meninos famintos, ao lado de adultos subnutridos, para os quais nenhum remédio se mostrava efi caz.

As proposições surgidas desse encontro concretizaram, entre outras iniciativas, a noção de segurança alimentar. Em ambos, havia a proposta de constituir um Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) que incorporasse as múltiplas dimensões da segurança alimentar e nutricional.

Previa-se como necessária a participação da sociedade civil na formulação, implementação e monitoramento das políticas públicas, ao lado Uma senhora que deu entrevista em um dos de um órgão de governo capaz de coordenar a episódios, morreu duas semanas depois, víti ma formulação e implementação de ações e prode pneumonia e desnutrição aguda. Em outro gramas nos vários setores englobados pela seguprograma, o médico de um hospital psiquiátrico do rança alimentar e nutricional: agricultura, abasCariri, no Ceará, descreveu a relação encontrada tecimento, desenvolvimento agrário, saúde, entre alguns distúrbios mentais e a defi ciência de alimentação e nutrição e educação, entre muitos nutrientes. Aos poucos, o Brasil retomava o fi o outros. da história e se conscienti zava de que era preciso A despeito de retrocessos como a extinção do avançar mais no combate à fome. Consea, em 1995, a Comissão Nacional de Alimentação e Nutrição (Cnan) antecipou a proposição A segurança alimentar e nutricional de instituir um Sistema Nacional de Segurança A proposta de criar um Sistema e uma Política Alimentar e Nutricional, com desdobramentos Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, nas esferas estadual e municipal, que veio a se abrangendo a atuação da sociedade e do materializar apenas duas décadas depois. Estado já tinha dois marcos iniciais relevantes, levantados na década de 1980. O primeiro, Em 2003, com a centralidade dada para questão mais técnico, foi a elaboração do documento: do combate à fome, o Consea é reconstituído. 26

R e vist vis t aSAN AN S


Desde então, o Consea realizou mais quatro Conferências Nacionais, nos anos de 2004, 2007, 2011 e 2015.

direito humano. Ela começa já com o aleitamento materno e deve ser assegurada em todo o ciclo de vida. Sua plena realização requer que os povos tenham acesso à água e possam exercer o direito soberano de produzir e consumir alimentos saudáveis, variados, in natura ou minimamente processados, com preços acessíveis, provenientes de sistemas sócio-ambientalmente sustentáveis, como os sistemas agroecológicos e circuitos de comercialização direta,” afirmaram os participantes.

5ª Conferência

Consolidação de conquistas

Mais de duas mil pessoas, entre delegados de todas as regiões do país e convidados do Brasil e do exterior, se reuniram em Brasília, de 3 a 6 de novembro de 2015, na 5ª Conferência. O lema do evento foi “Comida de Verdade no Campo e na Cidade: por Direitos e Soberania Alimentar”. No final do encontro, os participantesdefenderam a efetivação do direito humano à alimentação adequada e saudável para todos.

A saída do Brasil do Mapa Mundial da Fome em 2014, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), uma vitória do povo brasileiro, foi ancorada por políticas públicas que precisam continuar avançando, com a erradicação da extrema pobreza. Essa ameaça constante à segurança alimentar ainda encontra-se encravada em grupos populacionais específicos, como negros, indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais, que devem ser priorizados quando da implementação de políticas públicas.

A visão de segurança alimentar defendida pelo conselho se consolidaria na Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional/Losan (Lei 11.346/2006), que considera a questão da fome como um problema social a ser enfrentando por meio de uma política que dê conta tanto do caráter emergencial quanto estrutural do problema.

Por meio de amplos debates e painéis, foram destacadas as dimensões socioculturais da segurança alimentar e nutricional, para aproximar a produção de alimentos ao consumidor; estabelecer “pontes” entre o urbano e o rural; valorizar a agrobiodiversidade, os alimentos in natura e regionais, o respeito à ancestralidade negra e indígena, à africanidade e às tradições de todos os povos e comunidades tradicionais, o resgate das identidades, memórias e culturas alimentares próprias da população brasileira. “Comida de verdade é a salvaguarda da vida e do planeta, é saúde, é justiça socioambiental, é

Neste sentido, a presidenta do Consea, Maria Emília Pacheco, defendeu a continuidade de programas sociais. “Esses programas representam um passo importante, juntamente com os equipamentos públicos* de segurança alimentar e nutricional, para a construção de uma política nacional de abastecimento alimentar”, disse ela, referindo-se a ações como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Bolsa Família, entre outros. *Equipamentos públicos são restaurantesRevista populares, SAN 27 cozinhas comunitárias e bancos de alimentos


Fortalecimento do Sisan Os delegados eleitos trouxeram a Brasília as demandas levantadas em conferências regionais, realizadas antes de novembro no âmbito dos municípios, estados e do Distrito Federal (DF), em eventos que reuniram cerca de 30 mil pessoas. Para eles, uma política nacional de abastecimento alimentar é fundamental para o fortalecimento e a efetividade do Sisan, reivindicação que vem desde as quatro conferências anteriores. O Sisan foi instituído por meio da Losan em 2006, a fim de facilitar o acesso físico e econômico da população ao alimento adequado e saudável, na medida em que forem superadas as dificuldades para produzir, armazenar, distribuir, adquirir e consumir esses produtos. Cabe notar, entretanto, que os diferentes segmentos, grupos e indivíduos apresentam necessidades diversas para ter de fato a garantia de tal direito. Para avançar na implementação uma política nacional de segurança alimentar é preciso não apenas fortalecer politicamente o Sisan e suas instituições, mas também discutir seus “macroprocessos”, como a implementação de uma gestão intersetorial entre diferentes áreas (desenvolvimento agrário, abastecimento, saúde e educação, entre outras); além de evoluir na articulação entre o Sisan, o Sistema Único da Assistência Social (Suas) e o SUS. É necessário tornar os Conseas estaduais mais robustos e articulados entre si. Além de criar mecanismos que permitam a efe28

Revista SAN

tiva participação, nestes sistemas, de povos e comunidades tradicionais. Para que possa haver avanços na discussão sobre o financiamento do Sisan, é preciso não somente o engajamento de estados e municípios, mas ainda a normatização do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014), que define a relação entre organizações sem fins lucrativos e o Estado, e a participação das organizações com fins lucrativos. Por fim, o processo exigirá o monitoramento do direito humano à alimentação adequada, por meio de instrumentos que possibilitem cobrar do Estado o cumprimento da sua obrigação de efetivar tais direitos. Diversidade e proteção à cultura tradicional A forma de produção industrializada, oriunda de monoculturas em grandes extensões de terra, reduz a diversidade da produção alimentícia e a coloca longe do alcance dos consumidores. E dificulta o acesso à comida de verdade, que deve ser minimamente processada, a fim de manter seu valor nutricional, com preço justo. O acesso à terra, ao território e ao livre uso da biodiversidade é condição básica para a realização do direito humano à alimentação adequada de grupos sociais rurais, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. E a soberania alimentar dos povos indígenas e das comunidades tradicionais rurais depende da demarcação e da regularização de suas terras e territórios. Neste ponto, entre outros aspectos, Maria Emília, como a maioria dos presentes, criticou


a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215), que transfere do Poder Executivo para o Congresso a demarcação e a titularização de terras indígenas. “Precisamos avançar na garantia do território indígena e das comunidades tradicionais. Muitos alimentos da lista [de comidas saudáveis] são parte das tradições”, enfatizou. Outro tema relevante da 5ª Conferência foi o papel histórico das mulheres para assegurar a qualidade da alimentação familiar, lembrando que políticas públicas como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida têm contribuído para reconhecer seu valor e promover o empoderamento feminino ao colocá-las como responsáveis pela gestão destes bens e conquistas junto às suas famílias. Mesmo assim, os dados oficiais mostram que persiste um maior índice de insegurança alimentar em domicílios cuja pessoa de referência é a mulher. Daí porque é considerado estratégico ampliar as políticas públicas afirmativas para mulheres. Pacto Nacional pela Alimentação Saudável O decreto presidencial que criou o Pacto Nacional pela Alimentação Saudável, assinado durante a conferência de Brasília, tem, como um dos seus objetivos, firmar parcerias com governos estaduais, para combater o sobrepeso, a obesidade e as doenças decorrentes da má-alimentação. O programa inclui ações no ambiente escolar, no sistema de saúde e nos equipamentos públicos de alimentação e visa a ampliar o acesso a

alimentos saudáveis, criar na população o conceito de vigilância nutricional, além de estimular a prática de atividades físicas. O pacto prevê incentivos à produção de alimentos orgânicos, agroecológicos e da agricultura familiar, para assegurar a oferta regional e local desses produtos. Devem ser mobilizados os estados, o Distrito Federal e os municípios, além da sociedade civil organizada, dos organismos internacionais e entidades do setor privado. Estudos mostram que a mudança de padrão alimentar da população é responsável pelo aumento recente do excesso de peso e obesidade e das doenças crônicas. Ao mesmo tempo, observa-se a persistência da desnutrição infantil e carências nutricionais em populações específicas. As consequências da insegurança alimentar e nutricional, que decorrem desta mudança de padrão alimentar, recaem sobre o sistema de saúde e oneram toda a população do país, de acordo com dados levantados pelo Ministério da Saúde. Daí a importância fundamental de manter ações de atenção nutricional dentro da atenção básica: vigilância alimentar e nutricional, promoção do aleitamento materno, ações de prevenção, controle e tratamento de doenças por meio da suplementação de micronutrientes. Água como alimento e direito básico A 5ª Conferência Nacional buscou mostrar a importância da água como alimento e Revista SAN 29


recurso produtivo, sublinhando fatores que ainda limitam o acesso universal a esse bem. Destacou parcerias com instituições como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), que já atingiu a marca de mais de um milhão de cisternas construídas. Outra ação importante para universalizar o acesso a esse recurso no semiárido brasileiro é o programa Segunda Água, voltado para a produção. Na oportunidade, os participantes reafirmaram que o acesso à água de qualidade é direito humano básico. E apontaram, como desafios, a busca pela expansão de acesso à água de qualidade para outras regiões afetadas, como a Amazônia; a necessidade de proteger as fontes, expandir as tecnologias sociais de acesso à água, ampliar o saneamento básico e investir na recuperação de mananciais, nascentes e cursos de água. Combate aos agrotóxicos O Brasil está em, primeiro lugar no mundo no uso de venenos na agricultura. Nos últimos dez anos, o consumo de agrotóxicos pelos produtores nacionais praticamente dobrou, tornando urgentes as medidas de contenção. Em vista desta situação, os delegados da 5ª Conferência apoiaram o lançamento do Plano Nacional de Redução do Uso do Agrotóxico (Pronara). Segundo eles, o crescimento da produtividade pode ser estimulada por outros meios, além de adubos químicos e sementes terminator, como a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, que promove a transição agroecológica, para que os produtores possam abandonar o modelo baseado na compra 30

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de sementes geneticamente modificadas e estéreis (terminator) e de venenos, em prol da agricultura orgânica. Cooperação internacional A cooperação Sul-Sul é importante para disseminar e solidificar as diretrizes da política de segurança alimentar e nutricional de forma generalizada. Há uma crescente demanda por cooperação e ampliação da atuação internacional do Brasil em espaços relacionados à segurança alimentar e nutricional. Inspirado no aprendizado do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do Brasil, a FAO vem implementando, desde 2012, pilotos de compras locais de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar em cinco países: Etiópia, Malaui, Moçambique, Níger e Senegal. Lei de proteção à amamentação Durante o encontro, os delegados destacaram como um grande avanço a assinatura do Decreto Nº 8.552, que regulamentou a Lei 11.265 de 2006 – Norma Brasileira para Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Protetores de Mamilo (Nbcal). A lei veta a publicidade de produtos e alimentos que podem interferir na amamentação, como leites artificiais, papinhas, fórmulas, mamadeiras e chupetas. O objetivo é estimular e proteger o aleitamento materno, assegurando o uso correto desses produtos.


Caso descumpram a lei, poderão sofrer interdição, além de multa que pode chegar a até R$ 1,5 milhão. O decreto determina também que os órgãos públicos da área de saúde, de educação e de pesquisa e as entidades associativas de médicos pediatras e nutricionistas auxiliem na divulgação de informações sobre a alimentação de lactentes e de crianças. ● * Ivana Diniz é jornalista do Consea.

Divulgação Consea

Determina também que as embalagens não podem conter fotos, desenhos e textos que induzam o uso. Proíbe o apelo a expressões como “baby”, “kids”, “ideal para o seu bebê”, entre outro. Bem como o apelo de imagens de personagens de filmes, desenhos ou simbologias infantis. As embalagens devem trazer a idade correta para o consumo e, no caso de chupetas, mamadeiras e bicos, deve informar sobre prejuízos que o uso desses objetos pode causar ao aleitamento materno. O decreto determinou que os estabelecimentos terão um ano, a partir da data da assinatura, para se adequarem às medidas.

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Ilustração: Cadu Fonseca

CONSUMO, PUBLICIDADE E OBESIDADE

Imagens de bem-estar e saúde de propagandas passam longe da realidade

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Revista SAN

Beatriz Evaristo*


A publicidade anuncia de forma atraente produtos alimentícios ultraprocessados, que contêm excesso de sódio, gordura, açúcares, conservantes, baixo valor nutricional e não deveriam ser consumidos como substitutos dos alimentos frescos ou minimamente processados. Muitas dessas mensagens são direcionadas diretamente ao público infantil, o que não deveria acontecer, alerta a advogada Ekaterine Karageorgiadis, pós-graduada em Direito do Consumidor na Escola Paulista de Magistratura (EPM) e membro do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “É abusivo e, portanto, ilegal, direcionar publicidade que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”, alerta a conselheira. Em entrevista à Revista SAN, Ekaterine aponta como é possível denunciar essas práticas e ressalta que a legislação atual, em tese, já protege a criança de abusos do mercado. “Mas, na prática, há muitas mensagens comerciais que são direcionadas a elas, inclusive dentro do espaço escolar”. “Algumas dessas ações se propõem a ser educativas ou culturais. Mas, na verdade, são estratégias comerciais para apresentar as marcas e produtos às crianças e fidelizá-las desde muito cedo. Regras mais específicas, para proteger as crianças, poderiam representar avanços”, afirma a advogada. Confira a íntegra da entrevista a seguir.

Por que a publicidade é um obstáculo para a alimentação saudável? É preciso ter em mente que o objetivo da pu­­ blicidade é vender produtos e também marcas, destacando suas características com informações que, em muitos casos, não são suficientes, adequadas ou corretas. E, por outro lado, são bastante atraentes e convincentes para a população. Em geral, para despertar o desejo dos consumidores, a publicidade utiliza imagens positivas e promessas de saúde, bem-estar, felicidade, prazer, amizade, ainda que tudo seja fantasioso. A população o tempo todo está sendo convencida por essas mensagens atraentes a comprar e consumir. Afinal, quando falamos de publicidade estamos falando de um conjunto amplo de

Publicidade torna atraentes ao consumidor produtos com baixo valor nutricional e excesso de sódio, gordura, açúcares e conservantes em detrimento de alimentos frescos.

estratégias de comunicação mercadológica. Essas ações estão na televisão, na internet, no rádio, nos espaços públicos, como ruas, parques, praças e transportes coletivos, nos pontos de venda, dentro de escolas. Na área de alimentação, as estratégias pu­ blicitárias, via de regra, anunciam produtos alimentícios ultraprocessados produzidos pela indústria alimentícia, que contêm excesso de sódio, gordura, açúcares, conservantes, baixo valor nutricional e não deveriam ser consumidos como substitutos dos alimentos frescos ou minimamente processados. Muitas dessas mensagens são direcionadas diretamente ao público infantil, o que não deveria acontecer. O consumo habitual e ex­ cessivo dos ultraprocessados desde a infância — como Revista SAN 33


refrigerantes, bebidas adoçadas, biscoitos, margarinas, gelatinas, ma­car­rões instantâneos — estimulado pelas diversas ações publicitárias, acarreta sérias consequências à saú­de da população, como obesidade, hipertensão, dia­be­ tes, alergias, problemas respiratórios, renais.

ajcn.nutrition.org/content/103/2/519.abstract). Além disso, o relatório da Comissão para o Fim do Obesidade Infantil, publicado em ja­neiro de 2016 pela OMS, apresenta recomendações para o enfrentamento da obesidade, dentre elas o fim de publicidade de alimentos não saudáveis para crianças. (http://www.who.int/end-childhoodobesity/final-report/en/)

Infelizmente, esse é o cenário atual: ambientes urbanos ou rurais que favorecem a transição alimentar da população, que deixa de consumir A publicidade direcionada à criança, de qualquer alimentos tradicionais de sua dieta e passa a serviço ou produto, inclusive alimentos, é proibida consumir mais alimentos ultraprocessados, em no Brasil desde 1990. O Código de Defesa do grande parte em função da publicidade cada Consumidor (Lei Nº 8.078/1990) estabe­lece que é vez mais onipresente. E, abusivo e, por­ tanto, ilegal, com isso, adoece. Se con­ direcionar pu­bli­cidade que siderarmos as crianças, já se apro­veite da deficiência são 30% com sobrepeso de jul­gamento e experiência e 15% com obesidade, da criança. E determina pu­ Pesquisa do IBGE mostra que em segundo a POF 2008-2009 nições, como multa e con­­ 2008-2009 cerca de 30% das crianças [Pesquisa de Orçamentos trapropaganda, para as em­ brasileiras já estavam com sobrepeso Familiares, realizada pelo presas infratoras, além de e 15%, com obesidade. No mundo, IBGE]. Estudo recente da outras reparações no campo são pelo menos 41 milhões de OMS [Organização Mun­ do direito ci­ vil e penal. A crianças abaixo de 5 anos obesas ou dial da Saúde] identi­fi­ criança é especialmente pro­ com sobrepeso, diz OMS. cou que, no mundo, pe­ tegida porque a Constituição lo menos 41 milhões de Fe­deral de 1988 e o Estatuto crianças com menos de da Criança e do Adolescente cinco anos de idade estão (Lei Nº 8.069/1990) deter­ obesas ou com sobrepeso. minam que seus direitos são assegurados com prioridade Existe uma regulamentação da publicidade de absoluta, respeitado o melhor interesse da criança. alimentos ultraprocessados dirigida ao público E, em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da infantil. Como ela funciona? É eficiente? Precisa Criança e do Adolescente (Conanda) aprovou a avançar em algum ponto? Resolução Nº 163, que estabelece regras mais claras para identificar mensagens publicitárias abusivas - Muitos documentos e estudos tratam do impacto direcionadas às crianças. das publicidades de alimentos ultraprocessados sobre as crianças. Pra citar alguns exemplos, Toda essa proteção legal existe. Isso porque as uma pesquisa recentemente divulgada pela crianças são pessoas em peculiar estágio de Universidade de Liverpool, na Inglaterra, concluiu desenvolvimento biopsicológico, que ainda não que publicidades de alimentos pouco saudáveis têm condição plena de, sozinhas, se defenderem impactam mais as crianças do que os adultos (http:// de violações a seus direitos. É ilegal, e antiético, 34

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convencê-la a desejar consumir um produto. Ou utiliza-la como promotora de vendas, por meio do direcionamento mensagens comerciais transmitidas nos meios de comunicação e espaços de sua convivência. A legislação, portanto, protege a criança de abusos do mercado. Mas, na prática, há muitas mensagens comerciais que são direcionadas a elas, inclusive dentro do espaço escolar. Algumas dessas ações se propõem a ser educativas ou culturais. Mas, na verdade, são estratégias comerciais para apresentar as marcas e produtos às crianças e fideliza-las desde muito cedo. Há ainda muitos projetos de lei, em trâmite no Congresso Nacional, que buscam introduzir regras mais detalhadas sobre publicidade de alimentos. Mas é preciso ter em mente que a proteção legal, de um modo geral, já existe. Mas regras mais específicas, para proteger as crianças, poderiam representar avanços. Portanto, é preciso que todos protejam os direitos das crianças, dentro do seu campo de atuação, porque todos são legalmente responsáveis por garantir a prioridade absoluta dos direitos delas. As empresas têm que mudar suas estratégias comerciais e deixar de anunciar para as crianças. Os órgãos responsáveis pela fiscalização e aplicação da norma, como Ministério Público, Procons, Defensoria Pública, Ministério da Justiça, juízes, devem olhar com cuidado especial esse tema. As famílias precisam estar atentas às crianças, especialmente aos conteúdos que elas têm acesso e a seus hábitos alimentares. E a escola, certamente, precisa se negar a ser palco de ações publicitárias voltadas às crianças. Como o cidadão pode identificar que a publi­cidade, nesse caso, é abusiva e onde ele deve denunciar?

A análise é feita caso a caso e alguns elementos identificadores estão elencados na Resolução Nº 163 do Conanda. Em primeiro lugar, é preciso verificar se se trata de uma publicidade, com fins comerciais, ou uma propaganda que não tem fins comerciais, mas sim ideológicos, culturais, religiosos. Sendo publicidade, é preciso identificar se tem como público-alvo as crianças e busca convencê-las a consumir um produto ou serviço. Alguns elementos auxiliam essa identificação, como linguagem infantil, veiculação em canal de te­levisão infantil ou dentro de escola, uso de per­ sonagens conhecidos pelas crianças, desenhos animados, presença de itens colecionáveis. O projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, há exatos dez anos recebe denúncias de publicidades abusivas por meio de seu site (http://criancaeconsumo.org.br/denuncie/) e re­des sociais (https://www.facebook.com/pro­ jetocriancaeconsumo/?fref=ts). Depois de análise, elabora documentos que encaminha aos órgãos competentes. Qualquer pessoa pode denunciar uma mensagem abusiva para os órgãos fiscalizadores e aplicadores da norma. Ministério Público, Procons, Defensoria Pública e Ministério da Justiça são alguns dos órgãos competentes. Ba­sicamente, é preciso identificar a ação co­ mercial, onde ela foi veiculada (televisão, espaço público), data da veiculação. Alguns modelos de denúncias estão disponíveis no site do projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana (http://prioridadeabsoluta.org.br/areas-deatuacao/publicidade-dirigida-a-crianca/) ● * Beatriz Evaristo é jornalista do Consea. Revista SAN 35


Roberta Sá

Foto tirada em feira livre em Estância (SE)

A FOME E O DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS

Comida jogada fora poderia alimentar todos os famintos do mundo Marcelo Torres*

Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos/ Quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava/ Engolia com voracidade/ O bicho não era um cão/ Não era um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem. 36

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Esses são os versos de “O Bicho”, um dos mais famosos poemas de Manuel Bandeira. Foram escritos dois dias após o Natal de 1947, quando o poeta presenciou uma cena triste, mas bastante comum no país: um homem se alimentando de restos de comida jogada no lixo após as festas natalinas. De tão faminto, o personagem não chegava a examinar o alimento, apenas o engolia com voracidade, como se fosse um bicho irracional, como um rato ou um cachorro. Quase 70 natais depois, a cena permanece atual. Em muitas partes do Brasil e do mundo existem pessoas se alimentando de restos de comida jogada fora por outras pessoas. Esse quadro social denunciado pelo poeta nos remete a uma das maiores contradições humanas: hoje, enquanto cerca de 800 milhões de seres humanos passam fome no mundo, mais de um bilhão de toneladas de alimentos são jogadas no lixo neste mesmo mundo. Os dados são da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). O Brasil, que é o quarto país em produção de alimentos, está entre os dez que mais desperdiçam comida, segundo a FAO. Estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), realizados em 2007, revelaram que entre as perdas de alimentos no país, 10% ocorre na colheita, 30% nas Centrais de Abastecimento (Ceasas), 10% nos supermercados e entre consumidores e 50% no manuseio e transporte. Uma coisa é certa: a quantidade de comida jogada no lixo, caso fosse distribuída, seria suficiente para alimentar toda a legião de famintos do mundo - e ainda sobraria muita coisa. O Brasil saiu do Mapa da Fome, segundo relatório da FAO de 2014, mas 3,8% da população ainda passa fome. Os alimentos descartados no país, se fossem distribuídos, aplacariam, com sobras, a fome desse contingente. Não se pode, porém, achar que a redução do desperdício leva necessariamente à redução da fome. “Uma compreensão do senso comum que costuma induzir a erro é a que pretende estabelecer uma relação direta entre redução de perdas e desperdício de alimentos e a redução da fome”, diz Renato S. Maluf, professor do Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (Ceresan), do Curso de Pós-Graduação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPD/UFFRJ). “Quando se diz que o grande volume de alimentos que se perde Revista SAN 37


ou desperdiça seria mais do que suficiente para alimentar os famintos do mundo, cria-se a falsa expectativa de que se reduzindo as perdas ou o desperdício de uns, equaciona-se a fome de outros”, argumenta ele, que é conselheiro e expresidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Segundo Re­ nato, “estes são fenômenos distintos, que não se conectam de forma direta, quando se sabe que a condição de faminto resulta da incapacidade de acesso aos alimentos e não da falta de bens”. O ex-presidente do Consea, porém, aponta duas outras relações - bem diferentes – entre fome e perda ou desperdício de comida. “Uma delas é o aproveitamento de alimentos que estão na iminência do descarte e que são aproveitados para atender a populações carentes, como fazem os bancos de alimentos”, exemplifica o professor, lembrando que esta atividade tem importante significado, mas precisaria de maior alcance e repercussão. “A outra conexão possui repercussão mais geral e, talvez, mais significativa – é que a redução de perdas e desperdício aumenta a oferta, o que pode diminuir a pressão sobre os preços e, assim, permitir um maior acesso da população aos alimentos”, explica. Na 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em novembro do ano passado, em Brasília, o desperdício de alimentos foi tema de uma das atividades integradoras do encontro, que reuniu cerca de duas mil pessoas - delegados, convidados e observadores nacionais e internacionais (entre os estrangeiros, havia representantes de 30 países). Os debatedores foram o representante da FAO no Brasil, Alan Bojanic, o pesquisador Murilo Freire Júnior, da Embrapa, e o professor Walter Belik, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 38

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“A Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ressente-se da falta de diretrizes que possam reduzir as perdas e desperdícios que ocorrem em todas as etapas do processo produtivo e junto ao consumidor”, diz o relatório apresentado pelos participantes ao final do encontro. “No Brasil não existem campanhas, programas nem iniciativas que possam minimizar os efeitos das perdas e desperdícios de alimentos na segurança alimentar e nutricional da população”, apontou o documento. “O Consea deveria tomar a frente desse tema e elaborar, juntamente com os ministérios, representações empresariais e da sociedade civil, um plano para o combate desse problema”, propôs. O grupo também sugeriu a criação de uma equipe de trabalho formada pelo IBGE, Embrapa, universidades e outros órgãos e instituições para a elaboração e implementação de um levantamento sobre a situação. Também foi proposta, na atividade integradora, a criação de uma equipe de trabalho no Consea para acompanhar a legislação e as iniciativas relacionadas ao problema. Uma terceira proposição pede que o Consea e a Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional pressionem o Congresso Nacional para que o Parlamento aprove o “Estatuto do Bom Samaritano” ou outra lei que descriminalize a doação de alimentos. “Deve-se também fazer um esforço junto à esfera administrativa federal e no Poder Legislativo para que se estabeleçam novos critérios para a rotulagem de alimentos (data de validade), regulação da publicidade e campanhas edu­ cativas visando a redução do desperdício nos lares”, completa o documento. ● * Marcelo Torres é jornalista do Consea.


Para saber mais

Roberta Sรก

www.akatu.org.br www.bancodealimentos.org.br www.embrapa.br www.ideiasnamesa.unb.br www.sesc.com.br/mesabrasil

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VIAGEM AO ENCONTRO DAS ÁGUAS

A água é um alimento essencial à vida e um direito de todos * Rocilda Moreira

O ano era 2006. Após cerca de seis horas viajando pela estrada que liga Salvador a Irecê, no sertão baiano, num período de forte seca, paisagem árida, muitas pedras e quase nenhum verde, chega-se à cidade de Cafarnaum. Eu ia participar do encerramento de um dos cursos do projeto Policultura no Semiárido, promovido pelo Instituto de Permacultura da Bahia, com o propósito de capacitar famílias de agricultores a utilizar a agricultura sustentável, de forma a permitir a segurança alimentar, o convívio harmônico com o meio ambiente, o combate à desertificação, o aumento de renda e da qualidade de vida, além da fixação do homem no campo. Na visita às propriedades já se percebiam seus efeitos: ao contrário da paisagem árida da região, vê-se muito verde, plantas saudáveis e produzindo, tudo junto e misturado, árvores

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nativas frutíferas e não frutíferas, gergelim, feijão e milho, dentre tantos outros alimentos que garantem a segurança alimentar das famílias, promovendo a cidadania e o bemestar dessas pessoas. As casas, muito simples, estão muito limpas e arrumadas. As águas utilizadas nas casas, das pias e banho, são todas reaproveitadas. Do lado da casa, o que sobrou de um grande pé de sisal, que se pensara já ter dado de tudo, há uma mudinha de pé de manga, linda e viçosa, graças à água retida em seu velho caule. As crianças, saudáveis e cheias de energia, brincavam alegres. Este é o semiárido, que lembra água, chuva e seca. As chuvas nessa região são bastante irregulares, caem mais em alguns lugares do que em outros, concentram-se em poucos meses, sendo que mais de 90% não são aproveitadas devido à evaporação e ao escoa-


mento superficial. Dessa forma, um dos maiores desafios para essa região é a garantia universal de água para a sua população, sobretudo para os mais pobres. Durante o século XX, como forma de fixar a população na região do semiárido, optou-se pelo “combate à seca e seus efeitos” por meio do uso de tecnologias não sustentáveis, que privilegiavam o capital e, basicamente, as grandes obras de engenharia para represar a água, importando e impondo conhecimento. As ofertas de água eram concentradas para atender demandas também concentradas, como as das cidades e indústrias, além de perímetros irrigados. Atualmente se busca a “convivência com o semiárido”, baseado no manejo e uso sustentável dos recursos naturais, valorização dos saberes tradicionais sobre as potencialidades e fragilidades da região, além da participação da sociedade na construção e implementação de políticas públicas apropriadas, ações de sustentabilidade como premissas para o desenvolvimento e a segurança alimentar e nutricional.

No transcorrer da preparação para a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizou-se o Encontro Temático “Água, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional”, que contou com a participação de 132 representantes dos mais diversos segmentos que compõem os povos e comunidades tradicionais, indígenas e comunidades quilombolas. A proposta do encontro foi aprofundar o debate sobre a relação entre o direito humano à água e o direito humano à alimentação adequada, considerando os avanços e desafios no contexto das políticas de promoção da segurança alimentar e nutricional, e a garantia do acesso à água como alimento primeiro e fundamental. O evento foi organizado em torno de quatro eixos temáticos: segurança hídrica e questões estruturantes; água para consumo humano; água para a produção de alimentos saudáveis; produção da água e revitalização de bacias. Observou-se que nos últimos anos os principais avanços na garantia do acesso à água de qualidade no Brasil foram verificados justamente na região em que historicamente esse desafio sempre se

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mostrou mais significativo: o semiárido. Tratase de um processo de transformação política relevante, derivada, em primeiro lugar, da mudança de mentalidade quanto ao significado da seca, ao buscar ações de “convivência com o semiárido”. Em segundo lugar, da consolidação do entendimento de que a fome e a sede no semiárido são um produto humano, social e político, não um fenômeno natural. O Programa Cisternas, a partir de 2003, e o Água para Todos, implementado em 2011 no âmbito do Programa Brasil Sem Miséria, foram responsáveis pela construção de 1,2 milhão de cisternas no semiárido. O público do programa é justamente as famílias atingidas pela seca ou pela falta regular de água, dispersas na zona rural, geralmente chefiadas por mulheres, com crianças e idosos em situação de insegurança alimentar. De acordo com a Carta Política que resultou do Encontro Temático, os efeitos e impactos do Programa Cisternas e do “Água para Todos” foram de suma importância para a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) da população do semiárido: privilegia o uso de mão-de-obra e materiais locais, dinamizando a economia; rompe com dependências políticas locais; proporciona condições objetivas para a produção agroalimentar, promovendo maior 42

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diversificação dos alimentos produzidos e consumidos pela família; permite a geração de renda (monetária e não monetária) a partir da produção de alimentos para o autoconsumo ou para a comercialização de excedentes. Ainda segundo a Carta Política, as experiências bem-sucedidas com tecnologias sociais na região do semiárido têm estimulado a sua expansão para outras regiões nas quais existem populações em situação de insegurança hídrica. Por isso houve iinvestimentos governamentais recentes para desenvolver e implantar tecnologias sociais de acesso à água potável em localidades amazônicas. A agricultura, sobretudo aquela feita em grandes extensões com monocultivos, é uma das principais responsáveis pela contaminação da água e, indiretamente, pela quantidade de água disponível para consumo humano e outros. A destruição da vegetação natural para a implantação da agricultura e da pecuária, o uso inadequado dos espaços geográficos e territórios onde estão localizadas a maioria das nascentes, responsáveis pela produção da água para abastecimento e vida dos rios e cursos de água do Brasil, geram sérias repercussões para grandes bacias hidrográficas, como a do rio São Francisco. O uso intensivo de fertilizantes químicos e agrotóxicos tem provocado a contaminação da água superficial e subterrânea.


As graves ameaças ao cerrado, considerado a caixa d’água da América do Sul, responsável por quase 20 mil nascentes que abastecem oito das 12 regiões hidrográficas, sendo as quatro mais importantes as do rio Paraná, rio São Francisco, rio Araguaia e rio Tocantins, foi outro tema importante do encontro. A pecuária extensiva e a monocultura intensiva têm sido duas atividades que vêm trazendo graves riscos à preservação e à manutenção do cerrado. A utilização indiscriminada de agrotóxicos e fertilizantes tem contaminado também o solo e a água. A Carta Política reafirmou que “a água é um direito humano e não uma mercadoria, e carrega valores inerentes à vida, ao sagrado, ao alimento e a sua capacidade de produção da vida. O acesso à água de qualidade é um direito humano básico que necessita ser efetivado para toda a população. Para isso, é necessário que o Estado brasileiro atue no sentido de garantir o acesso a água, principalmente das populações em situação de vulnerabilidade, em especial povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, e de coibir toda e qualquer iniciativa de privatização, concentração, desperdício ou contaminação”. ● * Rocilda Moreira é assessora técnica do Consea.

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Ubirajara Machado MDS

Mãe Nalva (Virgínia Almeida) foi delegada pelo Pará na 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

A ATUAÇÃO DAS MULHERES

Por meio da troca de sementes e de segredos da terra, elas têm sido fundamentais na preservação das culturas alimentares * Mirlane Klimach

Será que toda a sociedade brasileira conhece de perto a atuação das mulheres na defesa e promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional (SAN)? Na cidade de Santa Isabel do Rio Negro, no estado do Amazonas, descobriu-se em 2007 que as práticas de cultivo da mandioca e plantas medicinais — utilizadas por várias etnias indígenas com majoritária participação das mulheres — contribuíram para a preservação de uma ampla variedade de espécies. As pesquisas realizadas para o registro desse sistema de produção agrícola como patrimônio cultural confirmaram cientificamente o que, há centenas de anos, as mulheres indígenas já sabiam a respeito da importância das trocas de sementes entre as diferentes etnias. Nossas mães, tias e avós sabem o que fazem e merecem todo o nosso respeito. A partir desse exemplo, podemos perceber a diversidade de culturas e realidades femininas no Brasil e sua imensurável contribuição para nossa soberania alimentar. Mulheres do campo, da cidade, das águas e das florestas, cidadãs, líderes, profissionais, mães, representantes de movimentos e organizações sociais, negras, indígenas, extrativistas, ribeirinhas, pescadoras artesanais, quilombolas, assentadas da reforma agrária, camponesas e agricultoras familiares e demais povos e comunidades tradicionais. 44

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Contudo, ainda que possuam tão importante papel, uma breve retrospectiva nos faz perceber as imensas desigualdades que as mulheres enfrentam no Brasil. Historicamente, a sociedade construiu uma divisão do trabalho que prejudicou e ainda prejudica o exercício de direitos das mulheres e restringiu seu espaço de atuação, tanto no contexto doméstico/familiar quanto no mercado de trabalho. Ao iniciar o processo de luta por direitos, como o acesso ao mercado de trabalho e geração de renda, a mulher passou a acumular atribuições e jornadas de trabalho dentro e fora de suas casas. A sociedade continuou responsabilizando exclusivamente a mulher pela condução das tarefas domésticas e a criação de filhos. Para agravar ainda mais a situação, muito de seu trabalho não é remunerado e não é valorizado. Consequentemente não é contabilizado como elemento constitutivo da renda familiar e muitas vezes é invisível para os formuladores de políticas públicas. A diversidade de realidades num país de tamanho continental como o Brasil requer uma postura governamental de permanente diálogo, para atender às diferentes demandas de cada con­ texto social, cultural e econômico. Esse respeito à pluralidade é um dos elementos que compõem o conceito de soberania alimentar – esta requer que as políticas públicas sejam desenhadas a partir das formas de vida de quem produz, distribui e consome os alimentos. Além disso, o setor privado não pode ter seus interesses econômicos prevalecendo sobre os direitos fundamentais das pessoas. Na perspectiva da segurança alimentar e nutri­ cional, isso significa o respeito e a garantia dos direitos de acesso aos recursos naturais da sociobiodiversidade, a democratização do acesso à terra e à água, o acesso aos mercados locais e aos meios de produção, às sementes e aos recursos naturais, o fortalecimento da produção

e do consumo local dos alimentos, o respeito aos direitos das mulheres consumidoras e os meios para a auto-organização das mulheres. Já existem muitas políticas do governo federal que são promotoras da autonomia e da participação das mulheres nos processos de decisão, sejam domésticos, sejam públicos. Destacam-se as tecnologias sociais de captação e armazenamento de água do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC e P1MC+2), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), o Programa de Organização Produtiva das Mulheres Rurais (POPMR), o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa Brasil Quilombola, o Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº 6.040/2007), a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo) e também na aprovação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) da posse conjunta da terra, o reconhecimento do protagonismo feminino no Programa Bolsa Família, o incentivo ao aleitamento materno e muitos outros programas e ações. A mobilização dos movimentos de mulheres gerou grandes avanços na redução da pobreza, da desigualdade social, da insegurança alimentar, da fome, da desnutrição e mortalidade infantil. Apesar do aumento da prevalência do sobrepeso e da obesidade na população em geral, as mulheres ainda consomem mais frutas e hortaliças e menos refrigerantes, leite com teor de gordura integral e carnes com excesso de gordura. No âmbito do Programa Bolsa Família, 93% das Revista SAN 45


famílias alcançadas são chefiadas por mulheres, das quais 68% são chefiadas por mulheres negras. Além disso, 67% das matrículas no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego Institucional (Pronatec) são de mulheres. Nas políticas de desenvolvimento rural, des­ tacam-se as políticas de documentação, que alcançaram 1.341.474 mulheres pelos mutirões do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR) entre 2004 e 2014 e o Programa de Aquisição de Alimentos, que passou a ter um percentual mínimo obrigatório de participação de mulheres no ano de 2011 que chegou a 41% em 2014. Contudo, há ainda outros desafios. Além da desigualdade de gênero já mencionada, per­ sistem desigualdades de raça e etnia. Essa questão é refletida inclusive na dificuldade de produção de indicadores que não se pautem em referenciais do universo masculino, pois invisibilizam a participação feminina. O que pode ser feito para a superação desses desafios? O primeiro passo é o enfrentamento do paradigma da divisão sexual do trabalho, inclusive na formulação de políticas públicas, e o rompimento com a lógica predominante que considera somente o valor monetário e de mercado dos trabalhos e daquilo que se produz. Toda a sociedade precisa rever a concepção equivocada de que a participação feminina na produção é meramente complementar à do marido ou que as atividades desempenhadas pelas mulheres, em diversos espaços e contextos (como a amamentação e a produção de alimentos para o autoconsumo), não têm valor mensurável e, por isso, não merece ser objeto de incentivos oficiais por meio de políticas públicas. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, as 46

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mulheres recebem o equivalente a 73,5% do rendimento masculino, ainda que possuindo mais anos de escolaridade. Essa diferença se acentua ainda mais no meio rural. A Pnad 2013 também revelou que a insegurança alimentar grave, nos domicílios chefiados por mulheres (3,9%), permanece maior do que nos domicílios chefiados por homens (2,8%). Outro importante indicador da desigualdade das relações de gênero é o tempo gasto com afazeres domésticos. Segundo os dados da Pnad de 2012, as mulheres despendem em média 20,8 horas semanais realizando afazeres domésticos, enquanto o público masculino dedica 10 horas. Você já parou para contar quantas horas você gasta com afazeres domésticos? A desproporção na divisão do trabalho doméstico aumenta nos domicílios rurais: as mulheres gastam cerca de 26,6 horas semanais enquanto os homens gastam 10,1 horas semanais com afazeres domésticos. E o que acontece quando o assunto é a posse da terra no meio rural? As mulheres ainda enfrentam muitas dificuldades no acesso à terra. Os dados do Censo Agropecuário de 2006 apontam que as propriedades rurais de mulheres como titulares são, em média, menores que as propriedades sob responsabilidade masculina. Além disso, a posse conjunta da terra não impede que a decisão do uso da terra seja tomada pelo homem. Além de tudo isso, muitas mulheres sofrem violência doméstica, que é uma das piores faces da desigualdade de gênero. É inegável o avanço obtido com a publicação da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) no combate e na prevenção de todas as formas de violência. Porém, os dados no Brasil ainda são alarmantes. De acordo com estudo do Ipea, de 2009 a 2011, o Brasil registrou


Banco de imagens MDS

16,9 mil assassinatos de mulheres, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos. De acordo com o balanço dos atendimentos realizados em 2014 pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPMPR), 43% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente. As mulheres sofrem violências físicas, psicológicas, morais, sexuais e patrimoniais. Mas o que isso tem a ver com a soberania alimentar e com a segurança alimentar e nutricional? A discriminação, a violência, a precarização e a perda de direitos são determinantes sociais para a vulnerabilização das mulheres, inclusive em relação à insegurança alimentar e nutricional. Já se falou em desafios, mas afinal qual tem sido o papel da mulher na garantia do direito humano à alimentação adequada? A resposta é resistência. As mulheres tem enfrentado o processo hegemônico iniciado pela Revolução Verde que massificou o uso de agrotóxicos e transgênicos em grandes extensões de terras e reduziu a diversidade alimentar por se basear em monocultivos. Merece destaque a histórica atuação das mulheres indígenas, quilombolas e as negras na preservação dos ecossistemas e das sementes locais tradicionais e/ ou crioulas, pois elas detêm um conhecimento vasto e tradicional sobre a biodiversidade. Toda a sociedade precisa se unir para combater as diversas manifestações de violências e violações de direitos, sobretudo o Direito Humano à Alimentação Adequada, a fim de enfrentar a desigualdade entre homens e mulheres, mulheres brancas e negras, mulheres urbanas e rurais, mulheres das águas e das florestas. ● * Mirlane Klimach é assessora técnica do Consea.

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Banco de imagens MDS

RACISMO EM DISCUSSÃO * Luiz Antonio Dombek

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Ao longo dos últimos dez anos houve uma redução de 27,4% para 11% dos índices de insegurança alimentar e nutricional moderada e grave na população negra. No entanto, fica evidente a diferença quando se compara com os índices de 4,1% da população branca (IBGE/PNAD 2004, 2009 e 2013). Porém, a responsabilidade de modificar esse quadro de insegurança alimentar e nutricional de­ ve ser compartilhada pelos três poderes, nas três esferas da federação, tendo como base os princípios do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), no qual, o poder público e a sociedade civil deverão buscar assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), como previsto no art. 1° da Lei n° 11.346/2006, Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, a Losan. Os altos índices de má nutrição entre negros e quilombolas comprovam que a mudança dos hábitos e práticas alimentares dessas populações, com a introdução de alimentos e bebidas industrializados e de baixo valor nutricional, decorre em larga medida da precarização do trabalho e renda, da falta de acesso à terra e ao território, questões que afetam diretamente as condições de vida, moradia e saúde e da pressão externa sobre os recursos naturais que garantem a reprodução física e cultural desses povos. Temos visto que o incremento do agronegócio, baseado no latifúndio, e a exploração de produtos primários, como minérios, celulose, grãos, carne, petróleo e etanol, ganharam importância estratégica nos mercados globais. Como são produções que demandam muita área, elas promoveram (e ainda promovem) a expulsão de milhões de pessoas da população do meio rural, particularmente dos povos e comunidades tradicionais.

Além das questões fundiárias, os impactos das grandes obras sobre esses recursos naturais e a degradação ambiental em função do uso intensivo do solo, do desmatamento, da perda da sociobiodiversidade e da contaminação das águas e do meio ambiente por agrotóxicos, são fatores determinantes nas condições de vulnerabilidade e insegurança alimentar e nutricional em que se encontram esses povos e comunidades. Com isso, observa-se que não é possível avançar na questão de segurança alimentar e nutricional sem enfrentar o debate sobre modelos de desenvolvimento e seus determinantes quanto ao acesso à terra e ao território e a efetivação do DHAA. A manutenção da estrutura fundiária brasileira intensifica as disputas territoriais e também reforça a invisibilidade de mulheres e povos e comunidades tradicionais por meio da exclusão do acesso aos seus territórios e aos recursos naturais. Como consequência, as áreas urbanas também são fortemente afetadas pelo ordenamento territorial marcado pela lógica de mercado, excludente e gerador de desigualdade sócio raciais. Cabe mencionar os inúmeros conflitos territoriais no meio urbano envolvendo a população negra e os povos tradicionais de matriz africana e povos de terreiro, impedindo a plena realização dos direitos fundamentais desses povos. A resistência histórica dos povos indígenas, a constituição de quilombos e a perseverança das populações negras urbanas e das populações livres pobres do mundo rural na manutenção de suas culturas levaram ao reconhecimento do que hoje chamamos de “Povos e Comunidades Tradicionais”, que são “grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como tais e possuem formas próprias de organização Revista SAN 49


social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, por meio de conhecimentos, inovações e práticas

autonomia, autodefinição e autodeterminação dessas populações, considerando sua cultura, tradições, costumes e religiosidade; a garantia da titulação e proteção de suas terras e territórios;

A seguir, algumas premissas para que o etnodesenvolvimento se concretize: - seu objetivo prioritário é satisfazer necessidades básicas do maior número de pessoas; - priorizar a visão dos povos indígenas na busca da resolução de seus problemas e satisfação de suas necessidades; nessa busca, valoriza e utiliza conhecimento, tecnologia, tradição e recursos locais; deve, também, garantir uma relação equilibrada com o meio ambiente e os recursos naturais necessários para a sobrevivência e o bem-estar dos povos indígenas; - proceder a uma ação integral de base, valorizando atividades mais participativas e evitando a centralização decisória.

gerados e transmitidos pela tradição” (Inciso I, Art. 3º, Decreto 6.040/2007). Além do Decreto 6.040/2007, os Povos e Comunidades Tradicionais são contemplados, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2003. Para reverter esse quadro negativo, o Consea defende o etnodesenvolvimento como uma diretriz a ser plenamente incorporada ao conjunto das políticas públicas do Estado brasileiro, e em especial nas políticas de segurança alimentar e nutricional, rejeitando, assim, as políticas que impliquem qualquer tipo de ação etnocida, evolucionista ou integracionista. O Etnodesenvolvimento pressupõe que os povos tradicionais tenham o controle de suas vidas, de suas terras, dos seus recursos naturais, de suas organizações sociais, observando-se o respeito à 50

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o consentimento livre e informado, com base em consultas diretas ou a seus representantes, sobre quaisquer políticas que possam afetar suas terras e/ou sua qualidade de vida (conforme Convenção nº 169 da OIT); e a ampla participação nos processos de formulação e implementação de ações com base em propostas endógenas de desenvolvimento baseadas na diversidade socioambiental e na valorização dos conhecimentos e técnicas desses povos. No Encontro Temático “Soberania e Segurança Alimentar para a População Negra e Povos e Comunidades Tradicionais”, realizado nos dias 7 e 8 de outubro de 2015, em São Luís (MA), propôsse aprofundar o debate e construir compromissos para efetivar o direito humano à alimentação adequada e saudável e garantir a comida de verdade para a população negra e povos e comunidades tradicionais, no contexto da soberania e segurança alimentar e nutricional (SSAN).


Soberania Alimentar consiste em sistemas alimentares pautados nos direitos e nas formas de vida de quem produz, distribui e consome os alimentos, e que não se sujeitam aos interesses do mercado e de grandes empresas multinacionais. Isso implica no respeito e garantia dos direitos territoriais e à sociobiodiversidade, a democratização do acesso à terra e à água, o acesso aos mercados locais e aos meios de produção, às sementes e aos recursos naturais, o fortalecimento da produção e do consumo local dos alimentos.

As discussões centraram-se nos temas rela­cionados aos direitos territoriais e patrimoniais; cultura alimentar e práticas ali­mentares tradicionais; políticas públicas e ra­cismo institucional; biodiversidade e Se­gurança Alimentar e Nutricional (SAN); e o etnodesenvolvimento e inclusão produtiva. Sempre com um olhar diferenciado e específico para a população negra e povos e comunidades tradicionais (PCTs). De modo sistemático, ao longo da história brasileira, povos e comunidades tradicionais, em larga medida descendentes de indígenas e negros, permaneceram invisíveis para o poder público, inexistentes como sujeitos de direitos. O encontro se propôs a dar visibilidade às várias formas de racismo que impactam na se­gurança alimentar e nutricional e determinam as condições de vida e as desigualdades. Re­­co­nhece-se o racismo como um dos determinantes de insegurança alimentar e nutricional, tal como já debatido em outros evento, a exemplo do que foi e expresso na Declaração da III Conferência Mundial contra o

racismo Xenofobia e In­tolerâncias Correlatas em 2001 – Durban, África do Sul. A seguir são citadas 3, das quase 60, propostas que foram tiradas nos debates do Encontro: a) Realizar ampla mobilização pelo arqui­ vamento da PEC 2151, pois a articulação em torno de sua elaboração e aprovação visa a tornar inviável o acesso ao território por parte de povos indígenas; b) Produzir indicadores e utilizar os da­dos de­ sagregados por raça/cor na formu­lação, im­ plantação, implementação, mo­ni­to­ra­mento e avaliação das políticas de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN); c) Garantir a terra, o território e a ter­rito­rialidade, a preservação dos patri­­mô­nios imaterial e material, a cons­trução coletiva da autonomia como instrumento para se alcançar o etno­ desenvolvimento nos ambientes rural e urbano.

1. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 propõe que as demarcações de terras indígenas, a titulação dos territórios quilombolas e a criação de unidades de conservação ambiental passem a ser uma responsabilidade do Congresso Nacional, ou seja, uma atribuição dos deputados federais e senadores, e não mais do Poder Executivo. Se aprovada, pode significar a paralisação dos processos de regularização dessas áreas protegidas. O projeto também pretende abrir as Terras Indígenas a grandes empreendimentos econômicos, como monoculturas, estradas e hidrelétricas etc.

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Já o racismo institucional garante a exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados (negros, indígenas, ciganos, entre outros). Destacase ainda a existência de racismo ambiental, caracterizado por um conjunto de injustiças socioeconômicas e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulnerabilizadas, gerando desigualdade nas oportunidades e nos resultados, e se expressa também em ações que geram impacto racial.

A criação do Programa Brasil Quilombola lançado em 12 de março de 2004 e que demonstra o quanto a agenda dos quilombolas passou a fazer parte das políticas públicas, embora permaneçam enormes desafios para sua concretização e implementação. A certificação das comunidades quilombolas consiste no primeiro passo para a garantia do direito à terra. Até dezembro de 2015, 2.648 comunidades foram certificadas (reconhecidas como tais) pela

Racismo institucional pode ser definido como o fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional e adequado às pessoas por causa da sua cor. O termo foi utilizado de forma pioneira em 1967 pelos ativistas Stokely Carmichael e Charles Hamilton, integrantes do grupo Panteras Negras, para especificar como se manifesta o racismo nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições

Nos últimos 20 anos e, em especial, ao longo das duas últimas gestões do governo federal, os povos e comunidades tradicionais vivenciaram uma experiência inédita na cena política, social e cultural brasileira, com o reconhecimento de direitos em nossa Carta Magna e a criação de novos direitos, definidos em decretos e outros instrumentos jurídico-administrativos, abrindo es­paços de par­ticipação e controle social e as­ segurando a im­plementação de políticas públicas específicas. A seguir temos exemplos de políticas públicas implementadas que trouxeram para a agenda política do Estado as pautas do combate ao ra­cismo, promoção da igualdade racial e de­ senvolvimento sustentável dos povos e comu­ nidades tradicionais, são eles: o Programa Bra­­sil Quilombola; e, o I Plano Nacional de De­­ senvolvimento Sustentável dos Povos e Co­ munidades Tradicionais de Matriz Africana. 52

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Fundação Cultural Palmares e 241 comunidades tituladas pelo Incra. O Consea esteve na 11ª Reunião da Mesa Permanente de Acompanhamento da Política de Regularização Quilombola, ocorrida em 19/4/2016, na sede do Incra em Brasília (DF), presenciando a presidenta do instituto, Maria Lúcia de Oliveira Falcón assinar algumas portarias de reconhecimento de mais territórios quilombolas e, mais do que isso, o atendimento de uma antiga demanda daquela população quer era o acesso dos agricultores familiares remanescentes de quilombos às políticas de inclusão social e desenvolvimento produtivo do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Já o I Plano Nacional de Desenvolvimento Sus­ tentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, lançado em janeiro de 2013, é um instrumento de coordenação e planejamento das ações do governo federal e foi elaborado


As garantias legais conquistadas pelos po­vos e comunidades tradicionais tiveram co­­­mo reflexo o fortalecimento de uma ins­­­titucionalidade e de políticas públicas es­pecíficas para estes setores. Isso deve ser cada vez mais fortalecidos, não apenas nos exemplos já destacados, mas também de outros programas e ações que perpassam a Políticas Públicas de Estado (e não de governo) que ora se apresentam.

Todavia, há importantes e inúmeros desafios a superar para garantir que o Estado e a sociedade brasileira consolidem os direitos já conquistados e avancem no sentido de saldar sua dívida histórica para com essas populações. Apesar dos avanços registrados, povos e comunidades tradicionais continuam a representar ampla parcela das populações mais pobres e social­mente mais vulneráveis do país, com graves consequências no que se refere à sua segurança alimentar e nutricional e garantia do direito humano à alimentação adequada. ● * Luiz Antonio Dombek é assessor técnico do Consea.

Foto: Divulgação Consea

sob a coordenação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em parceria com mais dez órgãos federais. O quadro de iniciativas e metas contém três eixos estratégicos: (i) Garantia de Direitos, (ii) Territorialidade e Cultura e (iii) Inclusão Social e Desenvolvimento Sustentável. Esses eixos estão organizados num total de dez objetivos, 19 iniciativas e 56 metas.

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Mário Vilela

A HISTÓRIA DOS AVÓS DESTE MUNDO

Os piores índices de desnutrição e mortalidade infantil estão entre os índios * Ivana Diniz

Aqui, nesta região do mundo, que agora se chama América. Nesta parte que se chama Brasil, muito antes de ser América, muito antes de ser Brasil, tinha um outro mundo. Na verdade, não era um mundo assim como se entende hoje. Era a história dos espíritos, dos elementos, de todos os povos antigos, que era contada sobre a criação do universo. Como a história da avó do mundo, da mitologia dos antigos Desana-Kehíripõrã, os Filhos do Sonho, do Rio Negro, do Rio Tiquié. Sobre os homens, as mulheres, os bichos, a terra, o céu, o sol e as muitas águas. E até do que havia no “Lago de Leite”, que é o oceano. Assim, conta a lenda que, no princípio, o mundo não existia. “As trevas cobriam tudo. Enquanto não havia nada, apareceu uma mulher por si mesma. Isso aconteceu no meio das trevas. Ela apareceu sustentando-se sobre o seu banco de quartzo branco. Enquanto estava aparecendo, ela cobriu-se com seus enfeites e fez como um quarto. Esse quarto chama-se Uhtãboho taribu, o ‘Quarto de Quartzo Branco’. Ela se chamava Yebá Buró, a ‘Avó do Mundo’ ou, também ‘Avó da Terra’”. 54

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Mas, de súbito, tal flecha afilada de taquara, chegam homens que interrompem a história dos povos antigos. Como a separação entre o dia e a noite, entre o sonhar e estar acordado. E o que era abundância, virou miséria. A vida tornou-se morte. Os invasores fizeram suas casas, construíram suas cidades, ergueram seu próprio mundo. E deixaram de fora dele aqueles que chamaram “índios” – nome de um povo que vivia longe, do outro lado da terra dos Desana. Elaboram projetos arquitetônicos, sociais, eco­ nômicos e culturais. E neles não estavam os “índios”. Estes ficariam excluídos da história que se desenrolaria nos próximos 500 anos – até os dias atuais. Durante o período em questão, os povos originários do Brasil que escaparam do genocídio inicial, na chegada dos europeus, permaneceram invisíveis para o poder público, inexistentes como sujeitos de direitos. Pior que isso. Foram percebidos e tratados como entraves e ameaça ao desenvolvimento do país, por sua resistência às ações ditas civilizatórias. Ao avanço sobre seus territórios, à transformação


forçada em trabalhadores “livres” assalariados ou em contingentes de mão de obra a serviço dos novos donos da terra. O processo se acentuou a partir dos anos 60, quando se acelerou a ocupação de grandes áreas do território nacional, antes refúgio dos sobreviventes e que permaneciam precariamente integradas à economia e sociedade nacionais. Além da eliminação física, mais evidente, as populações indígenas passaram por um processo contínuo de eliminação cultural. Foram impedidas ou eliminadas outras formas de pensar, agir, refletir o mundo. Hábitos alimentares, modos de vida, conhecimentos, rituais, línguas e outras manifestações culturais, específicas dos povos indígenas, são continuamente substituídos por formas de agir e pensar da sociedade ocidental hegemônica. A luta, a resistência e a lei Mas nos anos 60 e 70, o sangue da luta e da resistência desses povos acabou por irrigar o terreno onde buscavam inspiração os movimentos sociais que se batiam pela democratização do país. E, enfim, floresceu na Constituição de 1988. E em leis subsequentes, que proclamam que os povos indígenas e comunidades tradicionais são “grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como tais e possuem formas próprias de organização social. Que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, por meio de conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (Inciso I, Art. 3º, Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007). Assim, pela primeira vez na história brasileira, povos indígenas e comunidades tradicionais passaram a se constituir como sujeitos de direitos, o que lhes garantiu, sobretudo, algum acesso

institucionalizado aos seus territórios ancestrais e aos tradicionais e aos recursos para a sua reprodução cultural, social e econômica, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária. Como é observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem o artigo 231 da Constituição e artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações. Do papel para a panela Entre as boas leis e a realidade, todavia, acha-se um grande abismo. São inúmeros desafios a superar para garantir que a sociedade e o Estado brasileiros consolidem os direitos legais já conquistados e avancem no sentido de saldar a dívida histórica da “civilização branca” para com os povos indígenas. Trata-se de superação essencial para que o país possa, de fato, construir um modelo de desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente sustentável, onde as diferenças étnicas e raciais não se traduzam em desigualdades sociais. Sabe-se que é preciso reconhecer e proteger a rica diversidade social e cultural dos povos indígenas e comunidades tradicionais, que se expressa na multiplicidade de modos de vida, saberes, línguas e etnias. Que se expressa na culinária, ameaçada pelo esquecimento, pela invasão dos alimentos processados. Mas poucos resultados são alcançados. A consequência da dizimação cultural é também a fome e a desnutrição. Principalmente entre as crianças. Registram-se índices alarmantes de desnutrição e mortalidade infantil entre os índios, os piores indicadores de todos os segmentos sociais do Brasil, segundo a Ata da 5ª Reunião da Comissão Nacional de Política Indigenista, realizada em 18 de junho de 2008. Por exemplo, a mortalidade infantil é de 48,5 por 1.000 nascidos vivos. Ou seja, Revista SAN 55


mais que o dobro do índice nacional. Estas taxas se relacionam, entre outros aspectos, com a perda de recursos naturais nas terras indígenas, provocadas pelo desenvolvimento econômico predatório no entorno ou dentro delas, caso de ocupações ilegítimas das terras em processo de demarcação, quase sempre longos. Portanto, grande parte dos problemas resultam das dificuldades dos populações indígenas no acesso aos seus territórios e às políticas públicas oferecidas aos demais segmentos da sociedade brasileira. E ainda do não-reconhecimento de suas singularidades e do despreparo dos órgãos e agentes públicos para lidar com tais grupos. Dados colhidos até 2010 mostram que havia no Brasil 817.962 indígenas, que pertenciam a 305 etnias e falavam 274 línguas diversas. Estes povos representam um contingente populacional e uma dimensão territorial significativos, somando aproximadamente cinco milhões de famílias, 25 milhões de pessoas, que ocupam cerca de ¼ do território nacional. Eles devem e precisam estar incluídos em qualquer plano que diga respeito ao presente e ao futuro do Brasil. “O que precisa mesmo é [a lei] sair do papel para os nossos roçados. E para nossas panelas”, resume Antônio Ricardo Domingos Dourado, originário da Aldeia Lagoa dos Tapebas, que fica próxima ao município de Caucaia, no Ceará. A herança e o compromisso Dourado Tapeba conta que, três dias após ter nascido, sua mãe foi o levou à lagoa. “Antes mesmo do umbigo cair, ela foi me banhar. Aí, ela achou que eu era parecido com um peixe. Aí, ela disse: ‘Não, esse aqui vai ser o meu Dourado’. Aí, pegou”. Dourado só descobriu que se chamava Antônio Ricardo quando foi para a escola, aos dez anos de idade. “Não gostei 56

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do nome. Eu era conhecido como Dourado e depois de uma luta de 18 anos, eu consegui incluir o nome Dourado Tapeba [no registro]”. “Nossa infância era boa. Era uma infância humilde, a gente tinha problema de questão de alimento, era escasso. E a gente não brincava. Praticamente, a gente brincava trabalhando, ajudando os pais da gente”, recorda. Aos oito anos, aconteceria um fato que o marcaria para sempre. “Meu pai colocou que nós éramos índios. E que eu tinha que retomar a luta que ele não tinha conseguido fazer”. Depois de fugir de casa para estudar, se casar e morar em diversas cidades por muitos anos, sentiu que era hora de voltar para ver o pai. Ligou para a família e foi informado que ele estava doente. Voltou imediatamente ao Ceará. “Assim que ele me viu, abriu os olhos e falou: ‘Meu filho, você se lembra da época quando você tinha oito anos? Quando eu queria que você ajudasse a resolver o problema da nossa terra? Pois é isso, então tá na hora, que eu estou partindo’. Aí, deu o último suspiro. Minha mãe falou que ele estava só me esperando”. Dourado cumpriu a promessa e se engajou na batalha. É sindicalista e uma grande liderança para seu povo. Já foi vigilante e defende os direitos da categoria. Foi assessor da Secretaria Especial de Saúde Indígena e hoje representa os indígenas da Região Nordeste. Também é ligado à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que luta para fortalecer a união dos diversos originários do país e a articulação entre as diferentes regiões e organizações indígenas nacionais. É também integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Mas Dourado está longe de se considerar satisfeito com os resultados obtidos. “Eu imaginava, antes de eu entrar nesse movimento, que ia ter essa terra em Lagoa dos Tapebas demarcada bem rapidinho.


[Agora] eu imagino que daqui 20 anos ainda vai ter mais problema”, lamenta. “Meu maior sonho é ver essa terra regularizada, todo mundo trabalhando coletivamente”. Questões indígenas na 5ª Conferência É com esse espírito que Dourado Tapeba participa do Consea, onde é coordenador da Comissão Permanente de Segurança Alimentar e Nutricional de Povos Indígenas Em 2015, ele articulou o Encontro Preparatório de Delegados e Delegadas Indígenas da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), realizada de 3 a 6 de novembro de 2015, em Brasília. Para Dourado, os principais pontos discutidos durante o encontro foram os relativos à segurança alimentar dos povos indígenas. “Em primeiro lugar, para se ter uma segurança alimentar regular era preciso ter nossas terras regularizadas, homologadas e desintrusadas”, quer dizer, retirar delas os “intrusos”, ou invasores, explica. Os participantes defenderam o papel estratégico dos Equipamentos Públicos de Abastecimento, Alimentação e Nutrição (Epan) – restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos – na garantia do acesso à alimentação adequada e saudável das populações em situação de insegurança alimentar e nutricional – incluindo nessa política o acesso para os povos indígenas. Demandaram a implementação de ações e políticas públicas que garantam o incentivo à soberania alimentar e autossuficiência da agricultura familiar e tradicional por meio da agroecologia, que contemplem sua sociobiodiversidade ao promover e valorizar a cultura e a tradição alimentar, me­ dicinal, ritualística dos povos indígenas. A pro­ dução diversificada a partir de sementes crioulas, plan­tas medicinais, plantas alimentícias não con­ ven­cionais (Pancs), frutíferas nativas locais e

regionais (valorização, recuperação, preservação e multiplicação). Consideraram importante estabelecer parcerias intersetoriais e multiprofissionais com ins­tituições de educação (como universidades, institutos federais, Sistema “S”) e organizações de fomento – ONGs, Empresas de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) dos esta­dos, ministérios, prefeituras, instituições de Assistência Técnica e Extensão Rural, Conseas – para auxiliar os produtores e pro­dutoras rurais, capacitando-os a alcançarem mercados de venda de seus produtos. Dourado destacou a importância de criar projetos de auto sustentabilidade, como o extinto Carteira Indígena, programa de apoio à produção de alimentos, agroextrativismo, artesanato, gestão ambiental e revitalização de práticas e saberes tradicionais associados às atividades de autosustentação das comunidades indígenas. E de promover o abastecimento de água nas aldeias para o consumo humano e demais necessidades. Garantir o acesso à água de qualidade e segura demanda promover assistência técnica qualificada e permanente, que trate da gestão e uso racional da água, levando em conta o conhecimento dos agricultores e das agricultoras, indígenas, não havendo hierarquia de saberes. O grupo, reunido antes da 5ª Conferência, rei­ vindicou a implementação de um Plano de Aquisição de Alimentos (PAA) específico para os po­vos indígenas e um programa de compra direta. “Para finalizar, vale apenas salientar que todas essas reivindicações vêm desde a 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. E até hoje, a maioria delas continua no papel”, protesta Dourado Tapeba. Para ele, o Brasil ainda trata com descaso as políticas públicas referentes aos povos indígenas e essa situação precisa ser mudada. ● * Ivana Diniz é jornalista do Consea. Revista SAN 57


Ilustração: Philippe Lepletier

Artigo

DEZ ANOS DE LOSAN

A agenda afirmativa de direitos sociais garantiu inserção da segurança alimentar e nutricional no campo das políticas públicas brasileiras * Anelise Rizzolo

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privado, se organiza dialogando com atores sociais e instâncias políticas em diferentes dimensões da estrutura alimentar. Envolvendo, desde a origem, produção e abastecimento, passando pelos processos de trabalho relacionados à distribuição, comercialização e acesso até chegar no consumo e disponibilidade nutricional, por meio de formas de processamento, manipulação e preparação da comida. Esta complexa cadeia percorre inúmeras tensões na sua configuração. No atual contexto global, a comida é identificada como mercadoria e os conflitos de interesses passam a ser um aspectochave para compreender as dificuldades encontradas para constituir e avançar na alimentação adequada e saudável como um direito humano e social.

Em 2016, celebramos uma década de aprovação da lei 11.346/2006, a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), que visa à garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável para todos os cidadãos e cidadãs brasileiras. De lá para cá, diferentes cenários configuraram o seu contorno social, com avanços e desafios que buscam qualificar e dar significado às políticas públicas relacionadas a esses temas. O Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), integrado por órgãos e entidades da União, estados, Distrito Federal e dos municípios, além de instituições de direito

Em relação ao conflito de interesse, de acordo com o manifesto de criação da Frente pela Regulação da Relação Público-Privado (disponível em http:// regulacaopublicoprivado.blogspot.com.br/p/ manifesto.html), “o setor privado vem atuando de várias formas no sistema alimentar brasileiro: na produção e comercialização de sementes, produtos transgênicos, insumos agrícolas, pesticidas, equipamentos produtivos, indústria farmacêutica (medicamentos para animais e humanos – dentre outros); na utilização do solo para diferentes fins (produção, coleta de água subterrânea); na adição de nutrientes a alimentos (farinhas adicionadas de minerais, sal iodado); na comercialização de refeições (inclusive para o setor público, como no caso da alimentação escolar terceirizada); na produção de fórmulas industriais para pacientes hospitalizados; e na produção, comercialização e estímulo ao consumo de alimentos ultraprocessados. Da forma como vêm sendo predominantemente conduzidas, essas ações comprometem a segurança alimentar e nutricional da população Revista SAN 59


e a soberania alimentar do país, conformando um sistema alimentar pautado em um modelo concentrador de poder e altamente dependente de corporações multi e transnacionais”. As oito diretrizes da Política e Plano Nacional sinalizam as prioridades e desafios do cenário político da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) e delimitam as fronteiras dos conflitos de interesse envolvidos neste tema, tanto do ponto de vista ético quanto político. Os debates sobre alimentação adequada e saudável, abastecimento, agroecologia, agrotóxicos, meio ambiente, saúde coletiva, educação alimentar e nutricional, acesso à água, biodiversidade, transgênicos, biofortificação de alimentos, acesso à terra e populações vulnerabilizadas socialmente, entre outros, são expressões das contradições da construção do Sisan no Brasil. Apesar da existência de uma Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, a fragilização do marco legal para regulação, controle e redução de agrotóxicos no Brasil se intensifica. E, no modelo agrícola vigente, o agronegócio continua recebendo a maior parte do subsídios públicos destinados à agricultura. Mesmo com a publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira, feita pelo Ministério da Saúde em 2014, com recomendações importantes acerca da segurança e soberania alimentar e nutricional, as práticas de publicidade e marketing avançam ardilosamente na promoção de modos de viver não saudáveis. Reconhecidamente, a compreensão e inserção política da Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional vêm se ampliando e sensibilizando novos atores. Porém, por tratar-se de um conceito polissêmico, apresenta uma margem de confusão que pode gerar importantes contradições. O interesse de participação da indústria de 60

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alimentos na organização de eventos científicos e acadêmicos é um exemplo da ambivalência e risco de conflito de interesse existentes. A implantação do Sisan precisa se dar de forma articulada ao contexto histórico-político de construção da SAN no país. Não se pode esquecer que o enfrentamento às ameaças políticas para a produção, abastecimento, comercialização e acesso à alimentos saudáveis, sustentáveis, culturalmente referenciados, adequados à saúde e socialmente justos precisa se expressar no contexto das relações políticas e sociais. Os aspectos preconizados na agenda política da Rede de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) precisam encontrar correspondência nas práticas de escolha, seleção e preparo de alimentos; precisam dialogar com os valores envolvidos na identidade da comida como um patrimônio social e político; precisam criar mecanismos que possibilitem o exercício da soberania alimentar em suas diferentes dimensões: desde a seleção da semente, pas­sando pela oferta e garantindo escolhas que dialoguem com a cultura alimentar dos diferentes grupos étnicos e sociais no Brasil. As desigualdades inerentes ao sistema econômico e ao processo produtivo, inclusive de alimentos, são fatores determinantes da má alimentação e das desigualdades sociais. Portanto, para que as medidas neste campo possam ser resolutivas, e deixem de ser apenas compensatórias de um problema gerado por um modelo de desenvolvimento excludente, é preciso ter coragem de enfrentar essa questão. O atual momento político é preocupante, pois as estratégias hegemônicas têm se aproximado de modelos neoliberais. O enfrentamento das desigualdades que demar­cam o processo de Insegurança Alimentar e Nutricional


Banco imagens MDA

impõe mudanças radicais. A po­ tencialidade das proposições da rede de políticas em SAN: Losan/ PNSAN/Sisan/Plansan incitam alterações profundas na estrutura política e econômica brasileira. Esse desafio se configura de imensa importância – seja por seu caráter universalista, seja porque pressupõe o alcance de bens públicos, como a sustentabilidade social, econômica e ambiental, o direito humano, os direitos de cidadania, à alimentação adequada e à cultura. Os princípios da Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) expressam a preocupação da universalidade tanto no respeito à diversidade quanto na busca de formas de participação com equidade para os diferentes grupos sociais. E, neste sentido, há muito a celebrar. A agenda afirmativa de direitos sociais garantiu inserção da SAN no campo das políticas públicas brasileiras. Contudo, a SAN não pode se resumir a um conjunto de políticas setoriais, pois é um eixo orientador de políticas que deve contribuir para que seus objetivos se incorporem no conjunto de políticas públicas nacionais que visem ao desenvolvimento social. Deve se configurar no eixo orientador de um modelo de desenvolvimento social e econômico que busca garantir o bem-estar social acima dos interesses de acumulação de capital. Urge que a sociedade se aproprie do tema e de seu significado, à luz do conjunto de dimensões envolvidas na sua construção. Pois somente a promoção de uma cultura afirmativa do conjunto dos direitos sociais poderá garantir sua potencialidade como categoria estruturante de um novo modelo social. ● * Anelise Rizzolo é conselheira no Consea. Revista SAN 61


Bruno Mota

A AGENDA DE SAN – CAMINHOS APONTADOS PELA 5a CNSAN Elisabetta Recine Nathalie Beghin

As tantas leituras e recortes possíveis dos resultados da 5a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN) apontam os caminhos que deverão orientar a atuação dos Consea nacional, estaduais e municipais. Do encerramento da conferência aos dias atuais se intensificaram as preo­ cupações sobre a sustentabilidade das con­ quistas alcançadas nos últimos anos e as reais possibilidades de avançarmos ainda mais.

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Assim, mais do que nunca, urge a efetividade dos mecanismos de participação e controle social para a interlocução interna no âmbito dos conselhos, com os governos, com os movimentos e organizações e com a sociedade em geral quanto aos temas centrais para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, realização do Direito Humano à Alimentação Adequada e à implementação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).


Nos produtos da 5a CNSAN, a Carta Política, o Manifesto, as propostas priorizadas no Eixo 2 “Dinâmicas em curso, escolhas estratégicas e alcances da política pública” e as propostas para o fortalecimento do Sisan, podemos identificar núcleos temáticos que articulam os diferentes setores envolvidos na agenda de SAN. Muitos destes temas são históricos e outros emergiram mais recentemente. O que é notável, e está registrado no Relatório Final da Conferência1, é o quanto já fomos capazes de articular as diferentes dimensões da SAN. As palavras-chaves desta articulação são aumento da produção de alimentos ade­ quados e saudáveis produzidos pelos pe­ quenos agricultores, famílias, povos indí­ genas, povos e comunidades tradicionais; livres de agrotóxicos e sem uso de sementes geneticamente modificadas. Garantia da terra e território para os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, pequenos agricultores e ampliação do apoio técnico e financeiro para a transição agroecológica. A implementação de estratégias claras de proteção e valorização dos modos de produção tradicionais, do saber ancestral e da nossa cultura alimentar. Recuperação e proteção das bacias e rios, investimentos em tecnologias sociais que garantam de maneira sustentável, água para beber e produzir e saneamento básico para todos. Ampliação

e facilitação de acesso às compras públicas; dos canais locais de abastecimento, que garantam a proximidade entre produtores e consumidores. Caminhos que poderão reduzir drasticamente a pobreza rural, res­ gatar o valor cultural, social e econômico da pequena produção de alimentos e assim torna-la uma alternativa atrativa para os jovens. Não queremos a produção de qualquer alimento, mas daqueles originários de sementes crioulas, que expressem a grandeza da nossa biodiversidade. Essa biodiversidade que garante não apenas a sustentabilidade ambiental, mas é a fonte genuína dos diferentes nutrientes que pre­ cisamos para garantir nossa saúde. Nos­ sa saúde que requer uma importante am­ pliação das ações de atenção nutricional, principalmente na atenção básica, que esta atenção nutricional tenha os alimentos co­ mo elemento central, desenvolvida por profissionais comprometidos com a pro­ moção da alimentação adequada e saudável desde o aleitamento materno. Que processos permanentes de educação alimentar e nu­ tricional sejam desenvolvidos nos dife­ ren­tes espaços sociais, serviços de saúde, escolas, ambientes de trabalho, organizações comunitárias, entidades da sociedade civil. Uma educação que seja feita junto com e não para as pessoas. Que problematize o que estamos comendo, mas principalmente

1. Para ter acesso ao Relatório, ver: http://www4.planalto.gov.br/consea/publicacoes/relatorio-da-5a-conferencia-nacionalde-seguranca-alimentar-e-nutricional/view

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porque estamos comendo da maneira que estamos. Que todos nós possamos as­ sumir uma posição critica que repercuta na estruturação dos modos de produção e comercialização dos nossos alimentos. Que o Estado exerça plenamente seu papel regulador para banir da produção e processamentos dos alimentos aquilo que vem adoecendo a todas e todos nós; para assegurar que os rótulos tenham informações claras e suficientes para uma escolha informada. Que as práticas de promoção comercial, como a publicidade, sejam reguladas para que, principalmente as crianças tenham seu direito à alimentação adequada protegido. Que os moradores das cidades possam ocupar os mais diferentes espaços para produzirem alimentos. Que no campo e na cidade as mulheres tenham o papel que já ocupam reconhecido. Que o acesso aos diferentes programas seja garantido, que haja ampliação de equipamentos públicos, como creches, escolas, cozinhas comunitárias, que se garanta a licença maternidade de 6 meses para todas as mulheres e que se invista seriamente na mudança do paradigma de que o cuidado é exclusivamente feminino. Que nossas pesquisas e sistemas de monitoramento deem visibilidade àqueles que ainda estão invisíveis. Que o saber tradicional e popular sejam evidencias tão válidas quanto o saber científico para a definição de políticas públicas. Que nossas ações no cenário internacional sejam pautadas pelos princípios que nos orientam internamente e que aprofundemos nossa 64

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presença nestes espaços e estreitemos nos­ sos laços e parcerias com a sociedade civil internacional. Todas estas demandas, que têm o potencial de mudar estruturalmente nossa sociedade, já estão ou deveriam estar previstas no âmbito de diferentes políticas públicas. O desdobramento imediato da 5a Conferencia foi a elaboração do 2o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (2º PLANSAN) que aguarda aprovação pelo Pleno Ministerial da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan). Para nós que militamos e atuamos neste campo, mantem-se, entre outros, os desafios de: que o 2º PLANSAN saia do papel para impulsionar a articulação entre programas e ações no âmbito do Sisan; fortalecer a rede de Conseas; intensificar e tornar mais eficiente o diálogo entre os Consea e as Caisan nos três níveis de governo; aprofundar o diálogo entre os conselhos que compartilham objetivos e prioridades; e, ampliar o diálogo com a sociedade. ● * Elisabetta Recine e Nathalie Beghin são conselheiras do Consea.


Roberta Sรก

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Divulgação Nações Unidas Roberta Sá

DEBATE GLOBAL E O PÃO NOSSO

Decisões tomadas em espaços multilaterais impactam diretamente a forma como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos no Brasil * Nathalie Beghin

As lutas cotidianas para conquistar soberania e segurança alimentar e nutricional do povo brasileiro consomem tanta energia que nem sempre temos tempo para dar a devida atenção às negociações e acordos que acontecem no cenário internacional. Mas deveríamos. Isto porque impactam diretamente nossas vidas 66

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e disputas, frequentemente minando nossos resultados, mas, em outros casos, felizmente, nos ajudando. Decisões tomadas por governos nas Nações Unidas ou em outros espaços multilaterais – como a Organização Mundial do Comércio


(OMC) – ou em blocos de países, como o Mercosul ou os Brics, impactam diretamente a forma como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos aqui no Brasil. Vejamos alguns exemplos negativos: A OMC e o risco de minar a agricultura familiar, camponesa e indígena Se não ficarmos atentos e atuarmos tanto junto ao governo como nas próprias negociações, os acordos no campo do comércio internacional poderão fortalecer ainda mais o agronegócio e resultar na progressiva eliminação de qualquer outro modelo de produção e consumo de alimentos que seja diversificado, saudável e culturalmente legitimado. O exemplo mais gritante de negociações comerciais danosas é o do Tratado de Livre Comércio para a América do Norte (Nafta, na sigla em inglês), assinado em 1992 entre Canadá, Estados Unidos e México. Como consequência do acordo, o México, que era exportador de milho, passou a ser importador. Milhões de camponeses, com seus familiares, deixaram suas terras devido aos baixos preços dos produtos e ao abandono governamental. Ao negociar a livre exploração de mercadorias, as empresas transnacionais e os agricultores estadunidenses (com enormes subsídios go­ ver­ namentais e modernas tecnologias de produção) inundaram os mercados mexicanos, em detrimento de comerciantes e agricultores nacionais. A COP e a financeirização da natureza As negociações em torno das mudanças do clima, que acontecem durante as Conferências das Partes (COP), realizadas a cada dois anos pela ONU, ameaçam nossas terras e territórios,

na medida em que esses passam a ser cobi­ çados por aqueles que emitem quantidades as­tronômicas de carbono – países e empresas transnacionais – e querem diminuir sua quota “comprando ar puro” de quem tem, como o Brasil, por exemplo, com suas vastas florestas. Ou, então, se dispõem a pagar o “pedágio” plantando monoculturas de árvores, que também servem a seus propósitos comerciais, como no caso do eucalipto. Como se a solução da crise climática se reduzisse a simples captação de carbono, sem enfrentar os impactos socioambientais que atividades como estas provocam. Nossos camponeses, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais serão duplamente lesados, uma vez que são os mais atingidos pelas consequências do aquecimento global e correm o risco de perder suas terras e territórios, doravante transformados em mer­ cadorias à disposição do mercado global de carbono. Isso sem citar propostas como a da Agricultura Climaticamente Inteligente, que busca o aumen­to da produtividade frente às mudanças do clima a partir de soluções como a utilização de mais e novas espécies transgênicas. Aqui também a população brasileira, como um todo, é afetada – já que, além da destruição da nossa sociobiodiversidade, as perspectivas de implementar um modo de produzir, distribuir e consumir alimentos saudáveis ancorado na agroecologia desaparece, em prol de uma agricultura industrial de larga escala. Medicalização da nutrição As negociações globais em torno da nutrição – que acontecem na Organização Mundial Revista SAN 67


de Saúde (OMS), no Programa Mundial de Alimentos (PMA), na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e no Comitê de Segurança Alimentar da ONU – vêm consolidando propostas que parecem vir de um filme de terror. Soluções tecnológicas como a biofortificação, que, por meio de seleção genética resulta em alimentos com maiores teores de vitaminas ou minerais, são vendidas como a solução de todos os males. Entretanto, tais práticas escondem que, se a biodiversidade não estivesse ameaçada perma­nentemente por práticas predatórias, ela garantiria de maneira sustentável, tanto econômica como social e culturalmente, todos os nutrientes de que necessitamos para garantir a saúde de nossos povos. Há ainda, neste caso, uma pergunta não respondida: quem detém os direitos destes “novos” alimentos? Também está havendo uma revalorização de fórmulas concentradas de nutrientes que descaracterizam e ameaçam os hábitos e a cultura alimentar local. As consequências diretas dessas falsas soluções são a eliminação da agricultura de pequena escala, o aumento da dependência dos países a soluções importadas para resolução de seus desafios alimentares e a abertura de um enorme mercado para as transnacionais da cadeia alimentar.

Guerra Mundial, derretem-se feito neve no sol e são substituídos por palavras tais como “objetivos” (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), parcerias e plataformas de múl­ tiplas partes interessadas, onde o setor privado e os governos estão em patamares decisórios semelhantes. Exemplos positivos Mas como o mundo é permeado de am­ biguidades e ambivalências, existem casos em que as negociações nos favorecem e a nossa atuação articulada e coordenada resultou em conquistas nada desprezíveis. Assim, podemos citar: A OMS e a proteção das crianças O Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno foi aprovado em 1981, na Assembleia Mundial de Saúde, após longa campanha realizada por grupos populares de pressão. À luz desse código, a OMS, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e os governos afirmaram que as pressões co­ merciais desencorajam e criam obstáculos à amamentação.

Em resumo

E que é preciso restringir, e mesmo eliminar, muitas das práticas de venda e propaganda usadas por empresas transnacionais na comercialização de alimentos infantis, mama­ deiras e bicos.

Nada disso é por acaso. Os espaços globais de negociação estão sendo capturados por empresas transnacionais e pelos interesses dos países que precisam abrir novos mercados. Com o sistema multilateral enfraquecido, os conceitos de público e de direitos humanos, duramente construídos no Pós-Segunda

Esse instrumento é de extrema relevância para a promoção de uma alimentação adequada desde a primeira infância. Com efeito, dados de países em desenvolvimento indicam que os bebês amamentados por menos de seis meses, ou que jamais receberam leite materno, têm uma taxa de mortalidade de cinco a dez vezes

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mais elevada no segundo semestre de vida do que aqueles amamentados pela mãe durante os seis primeiros meses ou mais. A OIT e a defesa dos direitos dos povos indígenas A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em 1989, significou avanços relevantes para os direitos dos indígenas e de povos e comunidades tradicionais. Es­pecialmente no que se refere ao acesso e controle sobre suas terras e territórios. Ademais, reconheceu-se de forma expressa o desejo dos beneficiários da convenção de assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico e manter e fortalecer suas iden­ tidades, línguas e religiões, dentro dos Estados em que vivem. A convenção representa uma conquista porque: (i) tensiona os Estados a efetivamente reconhecer direitos à terra; (ii) serve de ins­ trumento normativo de interpretação e re­ ferência do conteúdo de direitos reconhecidos pelos Estados, a exemplo do que ocorre com comunidades quilombolas e povos indígenas no Brasil; (iii) estabelece, ainda que com exceções, o direito dos povos não serem transladados de suas terras, bem como o direito de regresso às mesmas. Nesse sentido, sabendo que os povos e co­ munidades tradicionais são sujeitos de direito da Convenção 169 da OIT e que esse instrumento normativo propugna que os Estados devem reconhecer direitos relacionados à posse e à propriedade da terra, há viabilidade jurídica para desenvolver estratégias que visem a compelir o Estado a efetivamente reconhecer esses direitos.

O CSA e o progressivo reconhecimento do direito humano à terra Em 2012, o Comitê de Segurança Alimentar (CSA, da (ONU, pressionado por organizações e movimentos sociais de distintas partes do planeta, aprovou as Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, Recursos Pesqueiros e Florestais em um Contexto de Segurança Alimentar Nacional (DVGT). Essas diretrizes, por sua estrutura jurídica voluntária, não estabelecem ainda direitos relacionados à terra. Mas se propõem a ser paradigma de interpretação do direito nacional e internacional, bem como referência para a atuação concreta do Estado na realização de políticas públicas de acesso à terra e territórios. As DVGTs atestam os avanços no reconhecimento internacional de um direito humano à terra. Conclusão Diante desse cenário devemos nós, organizações e movimentos da sociedade civil, aprofundar e aperfeiçoar nossa atuação no cenário internacional. Temos como desafio nos apropriamos dessas agendas, incluí-las nas nossas lutas, fazer a conexão entre a atuação local e a global e incidir incansavelmente nessas negociações. Precisamos nos articular internamente para compartilhar nossos conhecimentos e nossas estratégias. Mas também internacionalmente, com nossos pares de outras regiões e países, para fazer frente a esta onda privatizante que só traz fome, pobreza, desigualdade e destruição ambiental, aqui e alhures. Precisamos somar esforços para defender os direitos humanos, os bens comuns e a justiça socioambiental. ● * Nathalie Beghin é Conselheira no Consea. Revista SAN 69


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Banco de imagens MDA


COMENDO VENENO INVISÍVEL

Brasil lidera consumo de agrotóxicos no mundo * Beatriz Evaristo

Um terço dos alimentos que vão para a mesa dos brasileiros está contaminado por agrotóxicos. O dado alarmante coloca o Brasil na liderança do consumo de agrotóxicos no mundo. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o setor cresceu 190% nos últimos dez anos.

Redução do Uso de Agrotóxicos (Pronara). O programa foi elaborado pela Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) e contou com contribuição de agricultores, camponeses, consumidores e movimentos sociais.

Banido em outros países, o glifosato ainda é altamente usado no país, principalmente no cultivo de soja transgênica. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo de alimentos com glifosato pode provocar câncer.

De acordo com o secretário-executivo da Cnapo, Rogério Neuwald, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) questionou no momento do lançamento do Pronara e sinalizou pela continuidade do diálogo.

Os problemas de saúde associados ao consumo de alimentos cultivados com agrotóxicos têm sido abordados continuamente pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A entidade reuniu informações de publicações científicas e publicou um dossiê para alertar a população sobre os riscos causados pelo veneno. “O consumo de agrotóxicos viola a soberania alimentar e os direitos sociais”, destaca Anelise Rizzolo, professora da Universidade de Brasília (UnB), conselheira do Consea e integrante da Abrasco. “Viola porque alimenta um modelo agrícola vigente, injusto sócio-ambientalmente, e porque tem impactos alarmantes sobre a saúde humana e o sistema de saúde do país, além de gerar insegurança alimentar e nutricional”. A saída apontada pelos representantes da sociedade civil com assento no Consea é a implementação do Programa Nacional para a

“A continuidade desse diálogo é fundamental para o lançamento do Pronara. Outro fator importante é não cairmos na análise de que o programa pode ser um retrocesso para agricultura brasileira. Pelo contrário, uma leitura atenta e com um olhar técnico na proposta do Pronara facilmente identificará possibilidades de avanços para a agricultura e para os consumidores”, explica Rogério Neuwald. Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo defende a urgência da implantação do programa. O pesquisador acredita que, com o tempo, haverá redução na venda de agrotóxicos e sementes transgênicas, assim como medicamento para doenças associadas ao uso de veneno. “Esta política trará, com o tempo, forte trans­ formação na base de produção de alimentos, nas políticas conservacionistas e nos custos Revista SAN 71


do Sistema Único de Saúde (SUS)”, afirma Melgarejo. “Agricultores familiares, assen­ tados, povos e comunidades tradicionais serão estimulados a transitar desde matrizes produtivas de­pen­dentes de venenos agrícolas para formas de produção mais amigáveis em relação à natureza, e mais saudáveis em relação à saúde pública”, diz. Segundo Melgarejo, “os benefícios serão enormes, te­ remos fortalecimento do tecido so­ cial no campo, com maior pro­tagonismo e autonomia dos agricultores familiares em processos de pansão na desenvolvimento local, com ex­ ofer­ta de alimentos limpos e redução nos ca­ sos de intoxicação. Ao mesmo tempo serão construídos elementos de au­tonomia nacional, de soberania e segurança alimentar”. O Pronara não determina a eliminação total dos agrotóxicos, mas sim a redução do uso, acompanhada de controle, além de um resgate do conhecimento tradicional, buscando al­ter­ nativas menos agressivas à saúde e ao meio ambiente. “Sabemos que é possível alimentar o mundo com outro tipo de sistema de agricultura e, diante deste contexto de ameaça à vida, devem-se pautar políticas e ações públicas que orientem para uma mudança na forma de produzir, levando à redução no uso de agrotóxicos e a promoção da agricultura de base agroecológica”, defende a professora da Faculdade de Nutrição, da Universidade Federal de Goiás (UFG), Veruska Prado. Uma parceria entre a Abrasco, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar. e Nutricional (FBSSAN), a Rede Bra­ 72

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sileira de Justiça Ambiental (RBJA) e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM) resultou na produção da cartilha “Pronara já! Pela Im­ plementação Imediata do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos”, disponível no site http://www.contraosagrotoxicos.org/. Agrotóxico e câncer Em 2015, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) divulgou um documento “contra as atuais práticas de uso de agrotóxicos no Brasil”. No texto, a instituição “ressalta os riscos à saúde nas causas do câncer”. O Inca defende “iniciativas de regulação e controle destas substâncias, além de incentivos a alternativas agroecológicas”. Na avaliação do Inca, “o modelo de cultivo com o intensivo uso de agrotóxicos gera grandes malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população em geral”. “Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer”, revela o documento.

“Sabemos que é possível alimentar o mundo com outro tipo de sistema de agricultura”. Veruska Prado


De acordo com o Inca, a liberação do uso de sementes transgênicas contribuiu para o aumento no uso de agrotóxicos, já que o cultivo de sementes geneticamente mo­dificadas exige o uso de grandes quantidades de veneno. Leonardo Melgarejo Engenheiro agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia de Produção. “Os agricultores familiares, quilombolas, assen­ tados, os povos e comunidades tradicionais serão estimulados a desenvolver linhas de trabalho mais ajustadas as suas condições fundamentais. São milhões de produtores de pequeno porte, que precisam trabalhar de forma a melhorar as características do solo e a proteção das fontes de água, de forma a assegurar rendimentos ao longo do ciclo de vida das famílias. Para isso, precisam de suspender o uso de venenos. E precisam que seus vizinhos mais afortunados, porque cultivam em grandes áreas, parem de jogar veneno de avião. A natureza receberá apoio para descontaminação gradativa de solos e águas, e os consumidores urbanos receberão alimentos saudáveis. Tudo isso trará impactos relevantes de médio prazo, com minimização dos fatores de riscos e portanto com redução das tragédias familiares decorrentes de mortes e intoxicações pelo uso dos venenos agrícolas. Além disso, os ministérios, os conselhos, as empresas públicas e as organizações po­ pulares envolvidas se perceberão protagonistas responsáveis por processo de transformação que recolocará o pais no rumo de um desenvolvimento autônomo, onde serão necessárias sementes

livres de patentes, adaptadas aos diferentes biomas e controladas pelos próprios agricultores.” Veruska Prado Bacharel em Nutrição, mestre em Nutrição Humana e doutoranda do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). “O tempo atual demanda uma nova forma de produzir e de gerar riqueza para o Brasil seja pelo tarem consumindo fato dos consumidores es­ alimentos altamente con­taminados com resí­ duos de diferentes agrotóxicos, seja porque os agricultores e as agricultoras e suas famílias estão expostos a todos os tipos de consequências decorrente do uso direto deste tipo de produto químico. Ou ainda seja porque este sistema produtivo baseado em um tipo de cultura (ex. soja, milho...) altamente dependente de químicos e das corporações transnacionais tem gerado perda da diversidade alimentar, danos am­bientais e sociais irreversíveis a longo prazo. O argumento de que o agronegócio produz riquezas para o Brasil deve ser revisitado sobre a lente da equidade e do desenvolvimento social, os custos desta riqueza são maiores do que os ganhos que ela leva. A vida, a soberania alimentar e a segurança alimentar e nutricional estão ameaçadas hoje no Brasil! O Pronara pode ajudar o país a traçar um caminho que promova a vida, por meio da oferta de alimentos realmente adequados e saudáveis e a um menor impacto das práticas produtivas no ambiente.” ● * Beatriz Evaristo é jornalista do Consea. Revista SAN 73


COMIDA É ARTE * Marcelo Gonçalves e Rafael Rioja

Documentário “Muito Além do Peso”

Se você gosta de unir entretenimento com informação de qualidade, assistir ao documentário brasileiro “Muito Além do Peso” é o programa ideal. Lançado em novembro de 2012 e dirigido por Estela Renner com o apoio do Instituto Alana, o filme relata de perto a triste realidade de crianças brasileiras que convivem com o excesso de peso, fator de risco para doenças cardiovasculares, diabetes e depressão. Em virtude da epidemia mundial de sobrepeso na infância, esta pode ser a primeira geração de crianças com expectativa de vida menor do que a dos pais.

tores, como profissionais da saúde, membros do governo, pais, representantes de escolas e até mesmo responsáveis pela publicidade da indústria de alimentos. Desta forma, o longa metragem provoca um debate crítico ao comparar fatos alarmantes, como o de que no Brasil uma em cada três crianças já apresentam sobrepeso, com os diferentes discursos de pais e crianças - diretamente afetados pelo problema - e a indústria de alimentos e marketing nutricional, que busca se eximir de qualquer responsabilidade nesta questão de saúde pública.

Durante a elaboração de “Muito Além do Peso”, foram colhidos relatos de representantes internacionais e nacionais dos mais diversos se-

O documentário pode ser assistido gratuitamente e com legendas em três línguas na página http:// www.muitoalemdopeso.com.br/. * Marcelo Gonçalves é secretário-executivo do Consea.

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Você já conhece a última versão do Guia Alimentar para População Brasileira lançado em 2013? Se sim, sabe por que ele ganhou destaque inclusive internacionalmente? O novo Guia é centrado no conceito de incentivar uma alimentação saudável em termos qualitativos, e não mais restrita a grupos alimentares quantitativamente. Sendo assim, ele orienta para escolha de alimentos in natura ou minimamente processados em oposição aos ultraprocessados, que apresentam em geral grandes quantidades de sal, gordura, açúcar e aditivos químicos. O outro destaque presente no guia é a valorização do ambiente alimentar através do comensalismo e o incentivo à prática culinária como ferramenta para ter hábitos mais saudáveis. Acesse a versão digital disponível para download do Guia, http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2014/ novembro/05/Guia-Alimentar-para-a-pop-brasiliera-MioloPDF-Internet.pdf.

Cozinhar: Uma história natural da transformação – Michael Pollan Nossa dica de leitura para quem procura ampliar a visão sobre o sistema alimentar é o livro ‘Cozinhar’, o mais recente escrito pelo renomado jornalista e ativista pró-alimentação saudável Michael Pollan. O livro confronta o modelo alimentar atual centrado cada vez mais na perda da autonomia e protagonismo dos indivíduos no preparo das refeições. Função esta que tem sido apropriada principalmente pela indústria de alimentos e redes fast-food. Os impactos negativos a saúde são inúmeros, e é inegável a associação deste estilo alimentar vigente com o aumento vertiginoso da obesidade e suas comorbidades. Dividido em quatro capítulos, Fogo, Água, Ar e Terra, as relações socioculturais que estão historicamente relacionadas com o ato de comer também são evidenciadas, e no contexto atual, o livro traz a reflexão sobre as nossas escolhas alimentares e como elas refletem um sistema que pode ou não, ser sustentável, saudável e socialmente justo. ●

Foto: divulgação

Foto: divulgação

Guia Alimentar

* Rafel Rioja .realiza estágio Revista SAN 75 acadêmico no Consea.


O SABOR DAS FLORES

Flor do Maracujรก da Caatinga Uauรก (BA) Foto: Roberta Sรก

Flor do Urucum Diorama (GO) Foto: Roberta Sรก

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Flor de Linhaรงa - Urubici - SC Foto: Roberta Sรก

Flor da Cebola - Pirenรณpolis (GO) Foto: Roberta Sรก Revista SAN 77


Arquivo MDA

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