PRIMEIRA PARTE I
A porta grande e branca fechou‑se atrás dele. Puxou o boné esfarrapado mais para cima dos olhos e começou a andar, naquele entardecer de Verão, para a paragem do autocarro, a dois quarteirões de distância. Era sábado à noite; tinha acabado de receber. A brisa constante que corria do mar secava‑lhe a camisa suada. Acima dele, nuvens vermelhas e roxas pairavam por sobre as cristas dos prédios. Ao apro‑
ximar‑se de um cruzamento, parou a olhar para o magro rolo de notas apertado na sua mão direita; à luz declinante do fim da tarde, contou a sua féria:
– Cinco, dez, quinze, dezasseis, dezassete…
Retomou a marcha, enquanto dizia para si mesmo, com uma risada: «Ah, ela nunca se engana.» Cansado e feliz, gostava da sensação de receber ao sábado à noite; durante sete asfixiantes dias, dera a sua força muscular em troca dos dólares com que pagar o pão e a renda da próxima semana. O dia seguinte, iria passá‑lo na igreja; quando regressasse ao trabalho, na segunda de manhã, sentir‑se‑ia com as ener‑ gias renovadas. Com cuidado, para não correr o risco de o perder, guardou no bolso direito das calças o apertado maço de notas novinhas em folhas, ficando de mãos livres. Os can‑ deeiros públicos acenderam‑se de súbito, e duas linhas ama relas, indolentes, convergiram gradualmente no espaço à sua frente.
– Aparar aquele relvado deixou‑me as mãos todas lixa‑ das – disse ele em voz alta.
À sua frente estava a cara branca de um polícia, a esprei‑ tar por detrás do pára‑brisas de um carro; outros dois brancos olhavam‑no do banco de trás. Por um instante que pareceu interminável, ele ficou parado, com a palma da mão cheia de bolhas voltada para cima, a fixar o rosto indistinto de um polícia que lhe apontava para os olhos uma lanterna, deixando‑o encandeado. Esperou que o polícia o interro‑ gasse, para lhe poder dar satisfações. Afinal, era membro da Igreja Baptista de White Rock; e trabalhava para o Sr. e a Sr.ª Wooten, duas das pessoas mais conhecidas de toda a cidade.
– Rapaz, chega aqui.
– Sim, senhor – disse ele automaticamente.
Num passo hirto, aproximou‑se da porta do carro de Polícia.
– Que andas aqui a fazer?
– Trabalho mesmo ali atrás, senhor agente – respondeu numa voz suave, ansiosa, suplicante.
– Pra quem?
– Prà Sr.ª Wooten, ali no número 5679, senhor guarda – respondeu.
A porta do carro abriu‑se de supetão e o polícia que esta‑ va ao volante saiu; de imediato, como obedecendo a um sinal pré‑combinado, os outros dois saíram também, e os três avançaram para o confrontar. Revistaram‑no dos pés à cabeça.
– Nada, Lawson – disse um dos polícias para o que tinha estado ao volante.
– Como é que te chamas? – perguntou o polícia a quem tinham chamado Lawson.
– Fred Daniels, senhor agente.
– Alguma vez te meteste em sarilhos, rapaz? – pergun‑ tou Lawson.
– Não, senhor.
– Estavas a pensar ir pra onde agora?
– Pra casa.
– Onde é que moras?
– Em East Canal, senhor agente.
– Moras com quem?
– Com a minha mulher.
Lawson virou‑se para o homem que estava à sua direita.
– É melhor levá‑lo pra dentro, Johnson.
– Mas, senhor agente! – protestou ele com um gemido. – Eu não fiz nada…
– Vá, calminha aí – disse Lawson. – Não te enerves.
– A minha mulher vai ter um bebé.
– Dizem sempre isto. Anda – ordenou o ruivo a quem tinham chamado Johnson.
Um acesso de indignação cresceu dentro de si e deu um passo atrás, afastando‑se deles. Sentiu nos pulsos o aperto firme das mãos deles, que o puxaram para o carro.
– Queres armar‑te em durão, é?
– Não, senhor – disse ele rapidamente.
– Então, entra na porra do carro! Entrou, empurrado pelos polícias; dois deles sentaram‑se à sua beira, um de cada lado, e enfiaram os braços nos seus, imobilizando‑o. Lawson sentou‑se ao volante. Mas, estra‑ nhamente, o automóvel não arrancou. Ele ficou à espera, atento, mas pronto para obedecer.
– Bom, rapaz – começou Lawson num tom vagaroso, quase amigável–, parece que te meteste num sarilho, hã?
O tom interrogativo de Lawson fez crescer a esperança dentro dele.
– Senhor agente, eu não fiz nada – disse. – Pode ir ali perguntar à Sr.ª Wooten. Ela acabou de me pagar a semana, e agora ia pra casa… – Como estas palavras pareceram inú‑ teis, ensaiou outra abordagem. – Ouça, sou membro da Igre ja Baptista de White Rock. Se não acredita em mim, pode perguntar ao reverendo Davis…
– Tens as respostas todas pensadas, hã, rapaz?
– Não, senhor agente – disse ele, abanando enfatica‑ mente a cabeça. – Estou a dizer a verdade…
Uma série de perguntas voltou a dar‑lhe esperança.
– Como é que se chama a tua mulher?
– Rachel, senhor agente.
– E esse bebé está pra nascer quando?
– A qualquer momento.
– Quem é que está com a tua mulher?
– A minha prima Ruby.
– Hum‑hum – fez Lawson, com um ar pensativo.
– Penso que este serve, Lawson – disse o polícia alto e magro que ainda não tinha falado.
Lawson riu‑se e ligou o motor.
– Bom, rapaz, vais ter de vir connosco – disse Lawson, com uma atitude onde havia um estranho misto de com‑ paixão e severidade.
– Senhor agente, vá falar com o reverendo Davis… Eu sou catequista, faço parte do coro da igreja e organizei o orfeão…
– Murphy, é melhor pôr‑lhe as pulseiras – disse Lawson.
O polícia alto e ossudo fechou‑lhe as algemas nos pulsos.
– Estás com medo, rapaz? – perguntou Murphy.
– Estou – respondeu ele, embora não tivesse percebido bem a pergunta. Só respondera por desejo de lhes agradar. Depois corrigiu‑se: – Ah, não, senhor agente.
– Onde estão os teus pais, rapaz? – perguntou Lawson.
– Desculpe? Ah, sim. Já morreram…
– Tens familiares na cidade?
– Não, senhor. Só a minha prima Ruby.
– Pronto, vamos levá‑lo – disse Lawson. Os olhos nublaram‑se‑lhe de lágrimas, as primeiras que derramava desde a infância. O automóvel seguiu para norte e ele reparou que começava a escurecer. Sim, estão a levar ‑me para a esquadra de Hartsdale, pensou. Não estava com medo; olhava em frente, sem ver nada, confiante de que aca‑ baria por dar uma explicação que o libertaria. Aquilo era um sonho, mas em breve iria acordar e maravilhar‑se com o facto de ter parecido tão real. O carro virou para Court Street e acelerou para oeste por cima dos carris de aço dos eléctricos. O que é que Rachel iria pensar quando não o visse chegar a casa à hora do costume? Ia ficar muito preo‑ cupada. Admirou‑se quando viu no grande relógio da mon‑ tra de uma loja que já eram sete horas. Sentiu uma contracção no estômago ao imaginar a comida quente à sua espera sobre a mesa da cozinha. Bom, assim que o identificassem devidamente na esquadra, mandá‑lo‑iam embora. E nessa mesma noite, ao lado de Rachel, sentado na cadeira de baloi‑ ço ao pé do rádio, iria rir‑se daquele pequeno incidente; ao contar a história, trataria de reter as partes mais dramá ticas, deixando Rachel ansiosa e cheia de perguntas. O automóvel prosseguia, e um leve sorriso aflorou‑lhe aos lábios. A buzina soou e ele recordou onde estava. Sim, tinha de dizer àqueles polícias que não era nenhum rufia e que o reverendo Davis, seu amigo, era uma figura pública
na comunidade negra. Ia fazer com que os polícias perce‑ bessem que não estavam a lidar com um vagabundo sem conhecimentos, sem família, sem amigos ou relações…
– É isso, rapaz. Trata de inventar um bom álibi – disse Lawson.
– Não, senhor – exclamou ele, com um ar culpado. Sen tiu que os olhos de Lawson eram como um raio‑X que lhe atravessava o crânio e lhe lia os pensamentos. Então, disse num tom choroso: – Senhor agente, eu não fiz nada. Juro por Deus, não fiz…
A sua voz esmoreceu, enquanto o automóvel resmunga‑ va sobre o asfalto. Aquele absurdo de estar a ser levado para a cadeia deu‑lhe vontade de rir, mas conteve‑se. Sentia‑se tão confiante que não podia levar aquilo a sério. Até ali os polícias não o tinham acusado de nada.
– Senhor agente, diga‑me – pediu ele, numa voz aguda e trémula, onde havia uma leve nota de censura – porque é que me estão a levar?
– O que é que fizeste ao dinheiro? – contrapôs Lawson.
– Que dinheiro? – perguntou ele, sobressaltado.
– Sabes muito bem do que é que estamos a falar, rapaz – disse Lawson muito alto. – O dinheiro que roubaste depois de os teres matado…
O pânico inquietou‑o. Os seus lábios moveram‑se várias vezes antes de conseguir falar.
– Matado quem? – perguntou. Precipitadamente, sem esperar uma resposta, a sua voz prosseguiu. – Senhor agen‑ te, eu não matei ninguém. Porque é que não vai perguntar à Sr.ª Wooten…?
– A Sr.ª Wooten chegou tarde a casa hoje, hã? – pergun‑ tou Johnson.
– Sim, senhor. Estive lá a trabalhar sozinho, como quase sempre, a polir o carro, a lavar as janelas, a pintar a cave…
– Já sabemos isso tudo – disse Lawson.
Teve a horrível sensação de que aqueles homens já sabiam o que ele iria fazer a cada momento da sua vida futura, independentemente dos anos que vivesse.
– Olha lá, põe‑te direito – disse Murphy.
Ele endireitou‑se no banco e Murphy tirou o rolo de notas e contou‑as.
– Onde é que está o resto? – perguntou Murphy.
– Não tenho mais dinheiro nenhum. Juro que não tenho!
Enquanto o carro avançava, Murphy introduziu as notas num envelope e guardou o envelope no bolso.
– Ele tem alguma mancha de sangue? – perguntou Lawson.
Murphy e Johnson esquadrinharam‑lhe minuciosamen‑ te a roupa, inspeccionaram‑lhe os dedos, olharam‑lhe para os sapatos, até o cabelo examinaram.
– Mudaste de roupa hoje, rapaz? – perguntou Johnson.
– Não, senhor.
O automóvel virou para um acesso e travou de súbito, projectando‑o com violência para a frente. Lawson saiu e bateu com a porta. Murphy e Johnson arrastaram‑no brus‑ camente para fora e empurraram‑no na direcção de um grupo de polícias.
– Que é que temos aí, Lawson?
– Estamos a tratar do caso Peabody – disse Lawson.
– Ele já confessou?
– Não. Vai ter de levar um aperto– disse Lawson.
Ele tentou virar‑se para trás para ver o polícia que tinha feito as perguntas, mas Murphy empurrou‑o para diante.
Fez um esforço para interpretar a expressão carrancuda de Lawson, mas não chegou a conclusão nenhuma. Condu‑ ziram‑no por um curto lanço de escadas de madeira até um corredor escuro. Continuaram por uma escada em caracol, estreita e empurraram‑no para uma sala pequena e suja, sem janelas. Ficou ali indeciso, os olhos a percorrerem as paredes. À sua esquerda estava uma cadeira de madeira. Do tecto pendia uma lâmpada com um quebra‑luz largo, de cor verde. A sala tresandava a mofo e ar viciado. A um canto, viu um escarrador de porcelana cheio de muco viscoso. O chão estava juncado de pontas de cigarro e de charuto.
Os polícias libertaram‑no das algemas e empurraram ‑no para a cadeira. Viu‑os despir os casacos, tirar os chapéus e pendurá‑los nos cabides fixados nas paredes. Arregaçaram as mangas das camisas com uma calma deliberada, em silêncio. Durante largos momentos, ninguém lhe dirigiu a palavra nem olhou para ele. Então, os três aproximaram‑se e plantaram‑se à sua frente. Murphy palitava os dentes com a ponta de um fósforo sujo.
– Eu não fiz nada! – disse ele, olhando de uma cara para outra.
– Vamos lá. Pára de tentar ganhar tempo – disse Lawson.
– Conta‑nos tudo…
– Senhor agente, juro por Deus…
Lawson mostrou os dentes e, inclinando‑se para a frente, desferiu‑lhe um sonoro bofetão na cara com a palma da mão nua e vermelha. Um clarão escarlate passou‑lhe diante dos olhos e todo o seu corpo pulou de insurreição. Sentiu os lábios gelados e entorpecidos; depois, quando desconge‑ laram, sentiu‑os doer e arder e sangrar.
– Talvez isto te refresque a memória – disse Lawson.
– Senhor agente, a sério, eu não fiz nada – disse entre‑ dentes, numa voz soluçante.
– A que horas saíste de casa da Sr.ª Wooten? – pergun‑ tou Murphy.
– Um bocadinho antes de vocês terem chegado no carro e me levarem – gemeu.
– Rapaz, não te faças desentendido! Estamos a falar antes disso!
– Mas eu antes não saí de lá, senhor…
– Saíste, sim! Entraste na casa ao lado!
– Eu não, senhor. Não entrei na casa ao lado.
– Não subiste à janela da Sr.ª Peabody?
– Não, senhor! Nunca na vida lá entrei!
– Não entraste em casa dos Peabodys depois de os teus patrões terem saído, hoje de manhã? – perguntou Johnson.
– Não, senhor, senhor…
Lawson virou‑se para os outros.
– Deve ter sido por volta das dez. O médico diz que eles estavam mortos há nove horas… – Lawson virou‑se de novo para ele. – Bem, ouve cá, rapaz, é melhor contares tudo. Saíste por volta das dez, não foi?
– Não, senhor! Por favor, senhor agente… Não sei do que é que estão a falar…
– A que horas é que o Sr. Wooten saiu de casa hoje de manhã?
– Pouco antes das nove.
– E a Sr.ª Wooten saiu a que horas?
– Por volta das nove e meia, senhor agente.
– Ficaste sozinho em casa depois das nove e meia?
– Sim, senhor. Não estava lá mais ninguém. Mas nunca saí de lá.
– És um tipo frio, hã, rapaz? – disse Lawson.