Tempo de Erros

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UMA FLOR SEM CHEIRO

Mal saí da camioneta, fui abordado por um miúdo, sujo e descalço, com uns dez anos de idade.

– Hotel? Procuras um hotel?

– O mercado de Kebibat, onde fica?

– Segue‑me.

Olhou para mim e para a minha mala decrépita. Queria carregá‑la. Dei‑lhe cinco cêntimos espanhóis. Agradece ‑ mos um ao outro e foi‑se embora. O mercado estava repleto de vendedores de géneros alimentícios e de roupas novas e usadas, uns em lojas e outros no largo do mercado. Uns com lugar fixo, outros ambulantes. O sol estava a pôr‑se. Do inte rior das lojas ouvia‑se o som das rádios árabes. Durante uns minutos deambulei pelo mercado. Perguntei a um vende ‑ dor de roupa decrépita onde ficava o café de sô Abdallah. Indicou‑me o caminho com um gesto rápido e indiferente, continuando a apregoar os preços das peças de roupa que carregava nos ombros e nas mãos. À entrada do café, do lado esquerdo, um balcão de madeira com comida exposta: peixe, pimentos fritos, ovos cozidos e fatias de pão escuro. Moscas por todo o lado. Perto do fogão, várias pessoas jogam às cartas em redor de uma grande mesa rectangular, outras em mesas mais pequenas, a maioria fumando kif 1. A miséria está patente nos rostos e nas roupas. Um ou outro repara em mim. Sento‑me a um canto, ao lado de uma pequena mesa imunda. Peço ao empregado um chá verde com hortelã‑ ‑pimenta. Pensei que fosse o sô Abdallah. Sentado perto de

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mim, um velho vende kif. Fez‑me lembrar o Afiuna do café do sô Muh, em Tânger. Comprei‑lhe uma saqueta. Encheu ‑me o fornilho* da sua própria bolsa†. De cada vez que lhe pedia o sebsi ‡ , passava‑mo cheio com o seu próprio kif e, depois, eu devolvia‑lho cheio com o meu kif. Fumava‑o ou passava‑o a alguém sentado perto§.

O sô Abdallah trouxe‑me o chá. Perguntei‑lhe pelo Miludi, o amigo do Háçane Azzailachi.

– Faz três dias que não aparece. À noite, o kif, a fome e a saudade bateram forte em mim. Bebemos chá dos copos uns dos outros. Senti‑me à vontade entre eles. Falei‑lhes de Tetuão, Tânger e Orão, eles falaram ‑me de Laraxe.

– Dizem que Tânger chora pelos que ainda não a conhe ‑ cem e que os que a conhecem choram por ela – disse‑me um deles.

– É uma cidade com história que facilmente conquista o coração das pessoas.

* Shəqaf : Aproximadamente com o tamanho e a forma de um dedal de costura, mas em forma de arco com dois orifícios. Geralmente é feito de barro ou, em casos raros, de alumínio, ou, em casos ainda mais raros, de ouro puro.

† Matwī : Bolsa pequena rectangular ou quadrada, geralmente feita de pele de cabra ou de outro tipo de pele. Para fechar, dobra‑se duas ou três vezes e amarra‑se com o fio de couro que possui na extremidade. Existe também a nəbūla tradicional, feita da bexiga de cordeiro ou de novilho. Em qualquer dos casos, serve para guardar o kif

‡ Səbsī: É um cachimbo para fumar kif, em forma de um tubo comprido em cuja extremidade inferior se insere o shəqaf. Construído geralmen‑ te em madeira, também pode ser feito em prata, para uso dos mais abastados. Conheci um fumador de kif, que enriqueceu a vender haxixe e kif, que tinha um sebsi feito de ouro puro, mas agora, depois de o seu negócio ter ruído, passa o tempo a olhar para o sol, desde que este nasce até se pôr, e tornou a fumar num sebsi feito de madeira.

§ Este é um hábito disseminado entre os fumadores de kif nos cafés que frequentam. Também têm por hábito trocar goles dos copos de uns e outros, como forma de atestar a sua confiança e amizade.

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– Mas toda aquela prostituição é uma vergonha que man‑ cha a sua beleza.

– Não deixa de ser bela, e a sua história remonta a tem‑ pos bem antigos.

Estava com preguiça de sair à procura de comida. A ima‑ gem das moscas, que vira quando entrei, apesar de naquele momento já terem desaparecido, suprimira qualquer desejo de pedir comida no café. Geralmente, nem sou esquisito e como de tudo. Estava cansado de estar ali sentado e daque‑ les rostos deprimentes. Sinto‑me dominado pelo sono. Fecho e abro os olhos languidamente. Vejo tudo pálido. A maioria dos clientes do café já se foi. As cadeiras e mesas também perderam a sua nitidez. Reparo em três salas com portas fechadas. Da porta à minha frente, saem e entram pessoas de ar miserável. As outras mantêm‑se fechadas. Da sala cuja porta se abre de quando em quando, vê‑se uma esteira, que é a única mobília. Penso em perguntar ao sô Abdallah quan‑ to custa dormir num daqueles compartimentos colectivos. Mas não. Tenho de economizar. Não sei o que me espera nesta cidade. Estava meio sonolento quando o dono do café me deu uma palmadita nas costas.

– Vamos fechar.

Três indivíduos fumam kif à roda da mesa de jogo. Per‑ guntei ao sô Abdallah se podia deixar a minha mala no café até ao dia seguinte. Pediu‑me que lhe mostrasse o que con tinha: duas fotografias pessoais grandes e emolduradas, umas calças, duas camisas e um par de meias.

Vagueei pelas ruas da cidade. Nenhum sinal da presença de polícias, nem de guardas de lojas ou de carros, tal como em Tânger. Meia‑noite ou mais tarde. Perdido, caminho. Nada nesta cidade amedronta. Uma noite amena e luarenta. Um jardim que dá para o mar. Luzes a brilhar sobre a água. Penso nas noites de Tânger, mortalmente sedutoras, na sua

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faina piscatória, em diversos lugares: o cabo do Farol, Mala‑ bata, as grutas de Hércules, Sidi Kankuch, Lamrissa, Merkala. Aqui estou eu, sozinho. A lua ora se tapa, ora se destapa. Colho uma flor branca do jardim. Cheiro‑a. Não desperta em mim nenhuma sensação. Umas flores belas. De onde nenhum aroma emana. Uma beleza deixada ao deus‑dará. Talvez por isso consigam florir aqui, até acabarem even‑ tualmente por murchar, ou até serem colhidas ou pisadas, sem que nisso haja qualquer sentido. Não tenho nada que receie perder nesta noite. Sou como esta flor que agora des‑ faço entre os dedos. Vou dormir aqui ou noutro sítio. A brisa marítima dificulta‑me o sono.

Voltei para Kebibat. Acocorei‑me debaixo da cobertura de uma das arcadas que circundam a praça. Apoiei a cabeça nos braços cruzados por cima dos joelhos. Enquanto estive acordado não ouvi passos de um único transeunte. Nada me atravessa a mente. Até as canções de que mais gosto se escapulem da cabeça mal as invoco. O meu pensamento está vazio como se tivesse sido lavado, como se não tivesse armazenado nenhuma recordação bela que me socorresse. Uma ligeira dor de cabeça e um zumbido. Parece‑me ouvir as batidas do coração. Talvez sejam os efeitos do kif e do estômago vazio.

Acordei cedo, com a bexiga dorida, por estar cheia, e, pela mesma razão, com o meu coiso erecto. O movimento na Praça de Espanha crescia. Comprei uma peseta de churros. Na casa de banho do café espanhol, o meu mijo jorrou para cima como uma fonte. Molhei as calças e a mão. Tomei um café com leite. O sítio é frequentado por pessoas em viagem. O café do sô Abdallah ainda não abriu. Apanhei o autocar‑ ro para o Bairro Novo para procurar a escola al‑Mutamid ibn Abbad 2 . Um bairro cheio de figueiras‑da‑índia, poeira, lixo e baldios. As casas são barracas de chapa e tijolo, os

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habitantes, campónios de rosto tão sinistro quanto os tra‑ pos que vestem. As crianças urinam e defecam junto das barracas. O porteiro, quando lhe pedi para ser recebido pelo director, respondeu‑me:

– Qual o motivo?

– Trago‑lhe uma carta.

– Então, dá‑ma.

– Tenho de lha dar em mão.

Olhou para mim como se eu tivesse insultado a sua con‑ dição profissional, depois foi consultar o director ou fingir que o fazia. No entanto, quando voltou, lá me levou ao direc‑ tor. Entreguei‑lhe a carta de recomendação. O envelope amarrotara‑se no meu bolso. Deu‑me licença para me sentar e começou a lê‑la. Sorria. O que lhe provocaria o riso? Será que o Háçane me pregou uma partida para gozar comigo? Pousou a carta sobre uns dossiers que estavam na secretária e perguntou‑me:

– És de onde?

– Do Rife.

– E os teus pais, onde moram?

– A minha mãe mora em Tetuão e eu fui para Tânger para me orientar na vida.

– E o teu pai?

– Morreu. – Na realidade, o meu pai morreria vinte e três anos depois, no Verão de 1979.

– O que fazias em Tânger? Eis que começa o interrogatório.

– Faço de tudo.

– Como assim, como podes fazer de tudo?

– Aprendo a fazer qualquer trabalho que me apareça.

– Alguma vez frequentaste uma escola?

Tem uma pronúncia montanhesa.

– Nunca.

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Caí numa cilada. O sangue sobe‑me à cabeça ferozmente. O Háçane não me avisou sobre este exame‑interrogatório. «Entregas a carta ao director e ele aceita‑te na escola», assim dissera ele. A testa enche‑se‑me de suor. Sinto gotas frias a escorrer sovaco abaixo.

– Desculpa, mas não posso aceitar‑te nesta escola. O me‑ lhor é voltares para Tânger. Aí poderás ganhar o teu pão como fazias dantes.

– Mas eu quero estudar e detesto o que fazia em Tânger. Cruzou as mãos sobre a secretária. Observou a carta de recomendação. Ergueu a cabeça.

– Que idade tens?

– Vinte.

– Sabes o que fez o Háçane há uns dias aqui em Laraxe?

– Não.

– Encontraram‑no embriagado na mesquita com um amigo. Foram ambos expulsos do liceu. Disse para mim: mas eu não vou andar por aí com nin‑ guém a fazer merda. Mais tarde soube que ambos dormiam no quarto de cima da mesquita, onde dormem os alunos que não têm bolsa nem alojamento. Com que então, o Háçane meteu‑me numa das boas! Respondi ao director no tom de quem se defende de uma acusação injusta:

– Eu não sou como ele. – O director sorri. – Nem sabia que ele tinha feito tal coisa. O que ele fez é pecado.

Na realidade, estava‑me marimbando para o que ele fizera. Em Tânger, dissera‑me: «Vou a Tetuão e, depois, volto para Laraxe.»

– Lamento, mas estás no nível escolar das crianças mais novas e já tens barba. E a maioria dos mais velhos já memo ‑ rizou o Alcorão, a al‑Ajurrumiyyah e Ibn Áshir.

De facto, tens razão e, além do mais, já tenho outra bar‑ ba no baixo‑ventre. Esfreguei o rosto instintivamente. Por

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norma, barbeava‑me diariamente, mas já há uns dias que não o fazia.

– Darei o meu melhor para aprender no mais curto espa‑ ço de tempo. Farei a barba todos os dias.

Pensei: Os profetas não precisavam de professores. Tudo lhes era revelado já pronto a usar. Mas quem não é profeta tem de aprender, como os macacos.

– Lamento – respondeu ele com uma calma mortífera. A campainha tocou. Através da janela do gabinete, vejo o recreio e os alunos a disputar lugares nas retretes e nas torneiras em grande azáfama e frenesim, empurrando‑se uns aos outros. Imaginei‑me entre eles. Já passou o tempo de isso poder acontecer. Entra um tipo presunçoso com livros na mão. O director pede‑lhe para examinar os meus conhecimentos de matemática. Chegou a hora do Julgamento Final. Assim pensei eu. Segui‑o até uma sala de aulas vazia.

Deu‑me uma tábua de xisto e ditou‑me números. Mas eu não sabia escrever números com zeros no meio. Claro que só poderia errar quando, depois de me ter ditado vários núme‑ ros que eu deveria escrever ordenadamente uns debaixo dos anteriores, me pediu para os somar, e, depois de me ter ditado outros números da mesma maneira, me pediu para os subtrair. Eu jamais fizera este género de operações, a não ser de cabeça. Depois, mandou‑me pôr os zeros. E que difícil foi colocá‑los entre os algarismos!

Voltámos para o gabinete. Aquele professor não me agra‑ dou. Até os macacos simpatizam mais uns com os outros, mas não foi o caso deste. Fiz um esforço extraordinário.

Pareceu‑me ter perdido um quilo dos meus cinquenta, tal foi o meu empenho.

No gabinete do director, estava outro tipo, vestido com jelaba. Em espanhol perguntou‑me o meu nome, o meu local de nascimento, a minha idade, e várias coisas sobre Tânger

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e sobre o meu trabalho. Respondi‑lhe, e o seu rosto iluminou‑ ‑se de satisfação.

– Onde aprendeste espanhol?

– Com os meus vizinhos ciganos e com os andaluzes de Tetuão e Tânger.

Não era carrancudo como o professor de álgebra. Percebi que provavelmente seria o professor de espanhol e que o director lhe teria pedido para me fazer um exame oral. O director disse‑me para voltar no dia seguinte. Caminhei de regresso à cidade. Voltei por um caminho diferente, secundário e sem asfalto. Um caminho de terra. Os pés enterravam‑se ‑me no piso poeirento e arenoso. De lado, havia sebes de figueiras‑da‑índia, barracas de onde saíam crianças descalças, seminuas, sujas, cães vadios, he‑ diondos e escanzelados, galinhas mergulhando o bico na merda. No final do caminho, um poço seco. Aproximei‑me. Empoleirei‑me na sua garganta. Um buraco fundo cujo fim se perdia nas trevas. O silêncio das suas profundezas atiçou‑ ‑me o desejo de me deixar cair. Um silêncio que acordou em mim todo o desespero, o silêncio eterno. Com esforço, levantei um enorme pedregulho e lancei‑o buraco abaixo. O som da queda subiu do fundo seco. Depois veio o silêncio, comigo empoleirado sobre as trevas, e um cheiro nausea‑ bundo e morno. Estaria estagnado e desprendera‑se então do fundo até chegar ao topo. Afastei‑me da garganta daquele poço fétido. O som da queda ficou‑me nos ouvidos durante uns instantes. Imaginei a minha própria queda e a pancada surda. Não sou uma pedra. Provavelmente ficaria a esvair ‑me em sangue até me desvanecer. Ou, pior ainda, não mor‑ reria. Não sou uma pedra. Retomei a marcha. O som da queda perseguia‑me como um feitiço, até que fui salvo por uma árvore, sob cuja frondosa sombra me estendi.

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Um tipo da minha idade atirou‑se para as rochas do porto de Tânger. A mãe veio da província, de Fahs, e foi ao cemitério. Contou a tragédia do filho ao porteiro.

«Não sei nada do que me conta. Nos últimos dias, enter‑ rámos muita gente. Vá à prefeitura, ao departamento respon sável pelo registo dos falecidos que não foram identificados. Conte‑lhes o que aconteceu ao seu filho. Lá vão dizer‑lhe o número da campa, se o souberem.»

«Que tempos estes! Nada ficou do meu querido filho Abdelwahid senão um número, se o souberem!»

A mulher estava desesperada: ergueu o rosto exausto para o céu e pôs‑se a chorar implorando a Deus que perdoas‑ se o pecado do seu filho. Chorou e lamuriou‑se tanto que perdeu os sentidos. Quando voltou a si, partiu de volta para a sua aldeia, destroçada por causa do filho. Lembrei‑me da minha mãe, também ela uma mulher desesperada: rezando por mim, implorando a Deus que me proteja de todas as adversidades.

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