Ned Ludd e a Rainha Mab

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O termo económico capital constante refere ‑se tanto aos recursos naturais como às máquinas, ou Natureza e Tecno‑ logia, como formas de exploração de capital variável, termo usado para definir a classe trabalhadora quando é ou não é assalariada, ou a força de trabalho quando é ou não é empregada.

O sistema do capitalismo começa a colapsar quando a força de trabalho se expressa como força do povo, atacando as máquinas que a aviltam e reassumindo a responsabili‑ dade pela terra. Isso pode ser feito em nome da democracia ou da soberania popular, ou pode ser feito em nome da dig‑ nidade e da sobrevivência humanas. Ambas as reivindicações são hoje necessárias. Os desastres naturais de 2011, terra‑ motos, maremotos, tornados e fogos são inseparáveis de catástrofes artificiais como o aquecimento global ou o der‑ retimento nuclear.

A mobilização popular no Cairo, a comunalização da Praça Tahrir, alimentou a esperança de que os oprimidos lutassem por direitos que nunca tiveram. Em Madison, no Wisconsin, os trabalhadores tomaram o Capitólio estadual em luta por direitos que estavam prestes a perder. O desas‑ tre de Fukushima abalou o mundo. O Occupy de Wall Street pega no que de mais abstracto (bancos) e exclusivo (proprie‑ dade privada) há no sistema e torna‑o concreto e comunal, representando, desse modo, o futuro no presente.

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Actualmente, todos sabemos que a tecnologia nos deixou num impasse e que tudo tem de ser visto de uma perspectiva global, mas esses lugares‑comuns não eram tão geralmente conhecidos há duzentos anos, quando a terra e os céus esta‑ vam em alvoroço e as pessoas, em nome de «Ned Ludd», pegaram no martelo da reparação para destruir máquinas. A origem do sistema industrial contém a semente da sua própria extinção, assim que usemos contra ele os nossos martelos e a nossa imaginação, que há duzentos anos já se tinham feericamente manifestado.

Em 1811, muitos pensavam que estavam em acção for‑ ças cósmicas. Durante grande parte desse ano, por 260 dias, foi visível no céu um cometa. Avistado pela primeira vez em Março, tornou‑se mais nítido em Outubro e desapareceu em Janeiro de 1812. A sua cauda tinha vinte e cinco graus de comprimento. Em todo o mundo, foi interpretado como um presságio.

Cinco de Julho de 1811 foi o Dia da Independência da Venezuela. Francisco de Miranda e Simón Bolívar encabeça‑ ram na. Um terramoto causou grande destruição em Março de 1812. Bolívar disse: «Se a Natureza se opõe a nós, lutare‑ mos contra ela e faremos com que nos obedeça.» Os cabe‑ cilhas da revolução burguesa estavam preparados para conquistar a Natureza.

Em 16 de Dezembro de 1811, o vale central do rio Missis‑ sípi foi abalado por um terrível terramoto, ao qual se segui‑ ram outros em Janeiro e Fevereiro de 1812. O terramoto desmascarou um crime cometido no Kentucky por sobri‑ nhos de Thomas Jefferson, que haviam matado um escravo à machadada, despedaçado o corpo e procurado queimá‑lo, até que o abalo provocou o colapso da chaminé, abafando o

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fogo e expondo as partes do cadáver à luz do dia.1 Entre os Creeks, povo indígena do Sul dos Estados Unidos, profetas dos Bastões Vermelhos2 tinham começado a exortar jovens corajosos a seguirem Tecumseh e a prepararem‑se para o caminho da guerra. Tecumseh e o seu irmão Tenskatawa celebraram a união com o terramoto.

Entretanto, em Inglaterra, Anna Laetitia Barbauld publi‑ cou um livro – um poema – chamado Eighteen Hundred and Eleven. Geralmente conhecida por publicar livros com letras grandes e margens largas para ajudar as crianças a ler, ela via a História com um olhar simultaneamente cronológico e geográfico, o que a provia de uma capacidade profética.

A guerra, a fome, a rapina e a doença do ano de 1811 trouxe‑ ram a catástrofe e a irrupção de forças subterrâneas. «A ruína, como no abalo de um terramoto, chegou», deixou o alerta.

Em 1878, Frank Peel ofereceu a primeira fonte impressa de memórias autênticas dos ludditas. Na primeira página, comparou o cometa a «uma espada flamejante»3 . Apenas alguns anos antes dos ludditas, William Blake escrevera um hino contra a fábrica mecanizada, essas «Fábricas Satâ‑ nicas tenebrosas», em que jurava:

1 Agradeço a Jesse Olavasky ter chamado a minha atenção para este crime. Ver Marion B. Lucas, A History of Blacks in Kentucky: From Slavery to Segregation, 1760 ‑1891, Lexington (Kentucky), The Ken‑ tucky Historical Society, 1992, pp. 47‑48.

2 Os Bastões Vermelhos (Red Sticks) eram uma das duas facções opostas dentro da Confederação Creek. A outra eram os Bastões Brancos (White Sticks). Enquanto os primeiros apelavam à guerra contra os colonos, os segundos queriam estabelecer relações pací ficas. (N.T.)

3 Frank Peel, The Risings of the Luddites, com uma introdução de E. P. Thompson, Londres, Cass, 1968 (4.ª edição), p. 1.

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Não dormirá na minha mão a Espada, Nem cessará na minha Mente a Guerra: Até vermos Jerusalém edificada Na Terra bela e verde de Inglaterra.

Teria a espada adormecida acordado? Estariam os segui‑ dores de Ned Ludd, como o cometa no céu, a exercer justiça cósmica? E será que ainda a exercem? Se for esse o caso, não aconteceu como Blake o imaginou, porque Jerusalém, cidade de conflitos e divisões, deixou de ser a utopia igualitária do milénio protestante. Uma observação ecologista, ao invés de uma nacionalista protestante, deverá agora concluir este belo e comovente hino.

Não dormirá na minha mão a Espada, Nem cessará na minha Mente a Guerra: Até que a terra comunal seja ocupada Para reverdecer e arrefecer a nossa ardente Terra.

No bicentenário das acções directas dos ludditas em nome da comunalidade, os poderes ctónicos subterrâneos e o espectáculo cósmico à superfície acompanharam a revolta contra a máquina. Os poetas românticos responde‑ ram a esta relação de duas maneiras. Primeiro, ampliaram a nossa visão, de uma perspectiva revolucionária à escala local para uma à escala macrocósmica. Segundo, ajudaram a que fosse possível olhar para a destruição de máquinas como uma forma de defender os comunais.

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4 William Blake, Milton, trad. port. Manuel Portela, Lisboa, Antígona, 2009, p. 31. (N.T.)

Os ludditas eram destruidores de máquinas do Norte de Inglaterra, que divergiam dos destruidores de ferramentas do passado ou de outros países por atribuírem a si mesmos um nome mitológico: Ned Ludd, ou Capitão Ludd. Os luddi‑ tas estiveram activos em três zonas da indústria têxtil inglesa: no West Riding do Yorkshire, onde a existência dos tosadores (aqueles que tosam, ou aparam, a felpa do tecido) foi amea‑ çada por máquinas de cardar ou de tosar; no Nottingham shire e noutras partes limítrofes das Midlands, onde os tricotadeiros (aqueles que tricotam meias) começaram a ser substituídos por máquinas de tricotar; e no Lancashire, onde os tecelões de algodão perdiam os seus empregos por causa da aplicação da máquina a vapor ao tear manual. Chamou‑ ‑se a esta área «o triângulo luddita». A principal resistência luddita ocorreu em 1811 e 1812.

Tanto a táctica geral de destruir máquinas como o caso mais especificamente conhecido como luddismo podem ser realmente consideradas «negociações colectivas atra vés da arruaça», para recorrermos à frase de E. J. Hobsbawm, mas iam além disso.1 «Procuro resgatar o tricotadeiro pobre, o tosador luddita, o “obsoleto” tecelão manual, o artesão “utopista” e até mesmo o desiludido seguidor de Joanna

1 E. J. Hobsbawm, Labouring Men: Studies in the History of Labour, Nova Iorque, Basic Books, 1964.

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Southcott da enorme condescendência da posteridade», escreveu E. P. Thompson em The Making of the English Working Class (1963). As primeiras três figuras (o tricotadeiro, o tosa‑ dor, o tecelão) correspondem aos três ofícios ligados às três regiões do luddismo e a três máquinas que os prejudicavam. Para Thompson, três desses cinco exemplos correspondiam a destruidores de máquinas, sugerindo uma identificação entre eles e toda a classe trabalhadora. A capacidade prefigu‑ rativa de uma táctica cronologicamente específica encontrou expressão como mito, e uma vez que o mito pode transcen‑ der o tempo e o lugar do seu nascimento, Ned Ludd conti‑ nua a empunhar o seu martelo séculos depois.

Semelhantes figuras mitológicas, como o porteiro em Macbeth, abrem os portões à história desde baixo. A história de Inglaterra está repleta delas – Robin dos Bosques, Pedro, o Lavrador, a Senhora Skimmington ou o Capitão Swing, por exemplo –, tal como a história da Irlanda, especialmente neste período (1811‑1812), quando o Capitão Knockabout ou o Capitão Rock se juntaram a Ned Ludd como personifica‑ ções da vingança sem nome, exercendo a justiça que de outra forma lhes era negada.

O mundo estava a ser vedado; a vida, isolada; as pessoas, confinadas. Em 1795, antes de ser silenciado pelo governo, o jacobino inglês John Thelwall referiu‑se ao «sistema de cercados», que definiu como «esse sistema de vedações mediante o qual os ricos assumem o monopólio de proprie‑ dades, direitos e possessões dos pobres»2.

Certamente, o sistema de vedações aplicava‑se às ter‑ ras que, uma vez vedadas, eram mercantilizadas. Em 1790,

2 «Report on the State of Popular Opinion and Causes of the Increa‑ se of Democratic Principles», The Tribune, n.º 28, Setembro de 1795.

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Segundo passo: enquanto os homens levantam a felpa, um rapaz extrai tufos de lã de cardas usadas, demonstrando que os artesãos controlavam os aprendizes.

Costume do Yorkshire (1814), de George Walker, ilustra o discurso oculto do luddismo. Primeiro passo: uma comunidade de mulheres e crianças colhe cardos‑penteadores nos comunais.

havia 25 leis de vedação aprovadas pelo Parlamento; em 1811, eram já 133. Inglaterra ficou conhecida com o país das vedações, dos muros de pedra, dos fossos e das sebes. No poe‑ ma Eighteen Hundred and Eleven, Barbauld escreveu que «limi‑ tes mais estritos dividem os campos cultivados». O resultado foi, de um lado, rendas altas e Jane Austen, e, do outro, despo‑ jamento, fome e John Clare, o lavrador e poeta dos comunais do Northamptonshire, que escreveu: «A vil vedação chegou e fez‑me/ Escravo da paróquia.»

O lar tornou‑se parte do sistema de vedações. Os géneros foram separados pela doutrina das duas esferas: a esfera privada para as mulheres e a esfera pública para os homens. «Os limites da casa eram as fronteiras do reino das mulhe res», escreve Linda Colley. A mulher deixou de ser persona ou de ter existência legal.3 O culto da maternidade prolífica

3 Linda Colley, Britons: Forging the Nation, 1707‑1837, Londres, Pimlico, 1994, pp. 239 e 256: «Na Grã‑Bretanha, a mulher estava subordi‑ nada e confinada. Mas pelo menos estava segura.»

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Terceiro passo: quatro tosadores sombriamente elegantes demoram se no corte enquanto o patrão observa a medo, com um pau na mão.

servia para fornecer ao império carne para canhão. A «explo‑ são demográfica» foi em parte uma consequência deste con‑ finamento ou repouso. 4

A divisão do trabalho em artes e ofícios permitiu que estes se tornassem parte do sistema de vedações à medida que a fábrica ia substituindo a oficina. A desumanização daí resultante foi antecipada em Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, de Adam Smith: «No progres‑ so da divisão do trabalho, a ocupação da enorme maioria dos que vivem do trabalho, isto é, da maior parte das pes‑ soas, está confinada a algumas operações muito simples, frequentemente uma ou duas. […] O homem que passa toda a sua vida a executar algumas operações simples […] torna‑ ‑se geralmente tão estúpido e ignorante quanto é possível conceber‑se numa criatura humana.»5

As infra‑estruturas dos transportes pertenciam ao sis tema de vedações. Os rios foram canalizados e grandes muros de cais cercaram o trânsito dos portos de Liverpool até Londres.6 O resultado foi a criminalização. No que diz respeito à punição, esta foi uma época de vasta constru‑ ção de prisões, protegidas por grandes muros de granito.

4 Lying‑in, no original, que em inglês significa o período de repou so pós‑parto. Curiosamente, a palavra inglesa confinement , além de reclusão, também significa parto, tornando bem claro aquilo a que o autor se está a referir. (N.T.)

5 Adam Smith, The Wealth of Nations (1776), org. Edwin Seligman, Londres, Dent, 1958, vol. ii, livro v, capítulo 1, p. 264 [Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, trad. port. Luís Cristóvão de Aguiar, vol. ii, livro v, capítulo 1, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, pp. 416‑417].

6 O autor refere‑se aqui à construção de uma rede de canais fluviais que teve início no século xviii, no dealbar da Revolução Industrial, e que permitia o transporte de cargas pesadas por todo o país. (N.T.)

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