Os Percursos da Danilo Santos de Miranda
Diretor Regional do SESC São Paulo
O encanto deste trabalho do Anima está, sobretudo, no modo delicado e intenso como somos conduzidos a um ambiente em que a convergência de linguagens e origens musicais distintas soa espontânea, orgânica, ancestral. O refinamento teórico e estético, que tem sido uma constante nas produções do grupo, chega a um momento de especial realização quando se alia ao discurso cristalino de Walnice Nogueira Galvão e às imagens instigantes e belas do artista plástico Adão Pinheiro. O tema escolhido assim o exige. A Donzela Guerreira tem atravessado o tempo a alternar feições históricas e literárias, as quais chegam por vezes a misturar-se e dar origem a figuras míticas no sentido forte do termo. Como imagem arquetípica, sua manifestação se dá em culturas tão distantes cronológica e espacialmente que nos faz atentar mais uma vez a uma questão proposta pelo romeno Mircea Eliade: a que respondem esses símbolos e mitos para terem uma tal difusão? Por difusão entendemos aqui sua presença marcante em variados contextos, trazendo à tona invariavelmente modos profundos e enigmáticos da existência humana. Por conjugar de maneira particular devires masculinos e femininos, a Donzela Guerreira problematiza, a partir da questão dos gêneros, a noção de pólos dados inicialmente como opostos e irreconciliáveis. Ao abrir matizadas possibilidades de síntese, essa imagem demonstra sua potência paradigmática e formativa, aparecendo ao mesmo tempo como modelo e espelho para aqueles em busca de uma experiência mais nuançada de elementos essencialmente contrastantes. Muitas são as narrativas que falam de transformações interiores envolvendo sua presença. É emblemático que Atena, uma das donzelas guerreiras fundamentais da civilização ocidental, apareça na Odisséia como guardiã e educadora de Telêmaco, filho de Ulisses. Na simbólica travessia para a idade adulta, cabe ao jovem traçar um caminho entre a excessiva ternura de menino criado com mimos pela mãe e o rompante violento e vingativo do filho que pretende honrar a figura paterna perante um grupo de usurpadores. As admoestações e exemplos de sua guia o encaminham para os feitos heróicos, em que a coragem e a afetividade aparecem unidas sob as égides da bravura, da humildade gentil e da sabedoria. O compromisso do SESC São Paulo com a educação permanente e a formação integral do indivíduo faz com que sua vinculação a este projeto seja algo natural. De forma esmerada e cuidadosa, o Selo SESC oferece ao público um precioso acesso aos muitos percursos da Donzela Guerreira.
The Paths of the Danilo Santos de Miranda
Diretor Regional do SESC São Paulo
The beauty of this work by Anima lies above all in the delicate and intense way we are transported to an environment where the convergence of languages and musical origins sound spontaneous, organic, ancestral. The theoretical and aesthetic refinement which has been constant in productions by this group reaches a crucial moment of special realization when it allies with the crystalline discourse by Walnice Nogueira Galvão and the provocative and beautiful images by plastic artist Adão Pinheiro. The theme chosen demands as much. The Warrior Maiden has travelled through time alternating historical and literary features, which will at times intertwine to give origin to mythical figures in the full meaning of the word. As an archetypical image, its manifestation occurs in cultures so distant in time and space which makes us pay heed once again to a question posed by Romanian Mircea Eliade: to what do these symbols and myths respond to have such diffusion? By diffusion we mean here its striking presence in various contexts invariably bringing to the surface profound and enigmatic forms of human existence. By specifically combining male and female transformations, the Warrior Maiden main focus is on the issue of gender, the notion of poles initially given as opposite and irreconcilable. By opening different possibilities of syntheses, this image demonstrates its paradigmatic and formative power presenting itself at the same time as a model and mirror of those in search for an experience with more nuances of contrasting elements in essence. The narratives that speak of inner transformations involving their presence are many. It is emblematic that Athena, one of the most important warrior maidens of western civilization, appears at the Odyssey as guardian and teacher of Telemachus, son of Ulysses. In the symbolic passage to adulthood, the young man has to trace a path between the excessive tenderness of a child spoilt by his mother and the violent vindictive outburst of the son who intends to honour the paternal figure before a group of usurpers. The admonitions and examples of his mentor lead him to heroic feats where courage and affection are released under the aegis of bravery, gentle humility and wisdom. SESC São Paulo’s commitment to constantly educating and developing the individual makes its involvement with this project second nature. With care and attention, Selo SESC offers the public a precious access to the many paths of the Warrior Maiden.
Walnice Nogueira Galvão Figura meio histórica meio mítica, a Donzela-Guerreira transgride simultaneamente duas fronteiras. A primeira delas entre os gêneros, ao colocar-se a cavaleiro do masculino e do feminino; a segunda, entre os estatutos do real e do imaginário.
PONTOS DE CONTROVÉRSIA Há pontos passíveis de controvérsia no exame do arquétipo literário: se ocorre por autoctonia ou por difusão; e se, além de literário, seria também histórico. E isso, porque o arquétipo visita tempos e espaços, sem que se possa precisar se nasceu ali ou se chegou por empréstimo. E, quando pensamos ter resolvido a questão, pondo-a à conta da literatura, surgem documentos que comprovam uma existência histórica.
NOS PRIMÓRDIOS A presença da Donzela-Guerreira se faz sentir logo de saída nos textos fundadores da tradição ocidental. Na Grécia computam-se numerosos mitos de mulheres que se recusam a casar, preferem a prática de esportes, entregam-se à caça e se vestem de homem. Povoaram a imaginação grega as hostes das amazonas, as quais migraram mais tarde para nosso país, dando nome a um estado e ao maior rio do mundo. O caso mais prodigioso é o da deusa Palas Atena, padroeira da polis. Seu pai, o deus supremo Zeus, foi acometido de uma dor de cabeça insuportável. Desatinado, implorou a seu filho Hades (Vulcano), o ferreiro, que lhe assestasse uma pancada com o malho de sua profissão. Embora assustado, o filho obedeceu, abrindo o crânio paterno, de onde saltou Palas Atena, envergando armadura, empunhando lança e escudo. Havia uma Donzela-Guerreira no Olimpo, portanto, com todo o seu prestígio de divindade e de criadora da civilização urbana. A deusa ofereceu aos homens a oliveira, que os nutria e iluminava suas noites, e batizou uma das primeiras cidades gregas. Nunca se casou nem teve filhos, e contam-se numerosas histórias de sua resistência aos homens. Como não teve mãe, é exemplo de gestação masculina, sem interferência de mulher. Nessas fontes arcaicas, às vezes a Donzela-Guerreira, meio delineada, aparece apenas como embrião ou resquício. Na Bíblia, o Velho Testamento faz a crônica de tribos nômades, que viviam em tendas, pastoreando ovelhas, e que só tardiamente se assentaram. Tais circunstâncias abriram extraordinárias oportunidades para mulheres dotadas de autonomia. Na fase histórica em que, anteriormente ao aparecimento da monarquia, o cargo mais alto naquela sociedade era o de juiz, constatam-se várias mulheres juízas. Entre apenas onze desses magistrados militares e civis que a Bíblia consigna, figura uma mulher, Débora, que conduziu exércitos e, dublê de poeta, compôs peãs à vitória. Outras são mulheres belicosas que atraíam a suas tendas o generalem-chefe das hostes inimigas, a quem seduziam e justiçavam, garantindo a seu povo o triunfo. Foi o destino que Judite deu a Holofernes, no livro bíblico que leva seu nome, e Jael a Sísara, conforme celebra (“Bendita sejas tu entre as mulheres, Jael”) o cântico de Débora.
CONVENÇÕES DO TEATRO No teatro elisabetano, contemporâneo do Renascimento, os atores, invariavelmente, eram do sexo masculino, pois o outro sexo não tinha acesso ao palco, como aliás se passa ainda hoje no Nô e no Kabuki japoneses, bem como na Ópera de Pequim. O que se via no teatro
de Shakespeare, portanto, era algo bastante complexo, de dar vertigem: homens vestidos de mulher que, se fosse o caso de uma Donzela-Guerreira como Rosalinda em Como lhes Aprouver, se vestiam de homem. Aqui pelo Brasil-Colônia os costumes eram os mesmos, e os viajantes assistiram e registraram espetáculos nos quais atores interpretavam papéis femininos. Durante a vigência do Romantismo, que se dedicou a uma redescoberta do bardo inglês, valorizado sobretudo por sua atenção às paixões da alma, ressurgem mulheres vestidas de homem. Mais tarde, observa-se um fenômeno bizarro, e que se poderia denominar “a vingança de Sarah Bernhardt”. Ciosa das belas pernas e do perfil andrógino, divergente da silhueta de ampulheta predominante na belle époque, a grande atriz francesa manifestava preferência por protagonistas masculinos. Um de seus maiores sucessos, reencenado vezes sem conta, foi Hamlet; outro, foi o papel-título de L’Aiglon, de Sardou.
SANTAS E RAINHAS Se deixarmos a literatura de lado e formos verificar o que a história nos diz, comprovaremos a existência de Donzelas-Guerreiras por toda parte. Se elas estão nos mitos, como o das amazonas, também estão documentadas, na Índia, na Rússia, na Inglaterra, no Vietnã, na Checoslováquia, na China ou na Grécia moderna, onde Bubulina, no século XIX, tornou-se uma heroína das campanhas contra o jugo turco. E quem nunca ouviu falar de Joana d´Arc, liderando os franceses contra o invasor inglês, queimada na fogueira como bruxa, para mais tarde virar santa? É tão freqüente a presença delas, associada ao nascimento ou à defesa da nacionalidade, que faz pensar no valor simbólico do sangue vertido ritualmente nas fundações da uma cidade ou de uma casa; e se, nesse caso, o sangue não seria o de uma virgem. Não podemos deixar na sombra a rainha Elizabeth I, que reinou por meio século, tornando a Inglaterra uma das mais poderosas nações do mundo. Sua crônica narra como relutou em tomar marido, embora apaixonada, porque sabia que seu poder diminuiria. Nunca se casou, e passou à história com o epíteto de Rainha-Virgem, o que evidentemente se referia apenas a seu celibato e ausência de filhos. Os filmes exploram o momento de sua tomada de decisão, enfatizando a cena em que ela tosa as madeixas.
ENTRE NÓS As Donzelas-Guerreiras abundam na história e na literatura brasileiras. Sejam elas completas ou apenas esboçadas, vão desde Dona Damiana a Escopeteira, em Lourenço, de Franklin Távora, até a caricatura que Alencar fez de Dona Severa, em Guerra dos Mascates. Temos notícia da cangaceira Maria Bonita, tanto quanto de Maria Curupaiti, voluntário da Pátria, que se alistou, envergou a farda de soldado e partiu para combater na guerra do Paraguai. Para escapar da crença na transmissão literária, ou do perigo de restringir-nos apenas ao fenômeno da difusão de um mesmo mito a partir de um único foco de origem, vejamos um exemplo em que a genealogia talvez seja comprovável. É o que se dá com a Balada de Mu-lan, que os portugueses poderiam ter trazido da China, gerando toda uma saga de baladas de Dom Varão ou Barão (“Ai minha mãe / Os olhos de Dom Barão / São de mulher, de homem não”). Mas nem sempre é assim, e para tanto seria salutar proceder a indagações em culturas ágrafas, talvez mais próximas de nós e do Diadorim de Guimarães Rosa. É verdade que este mantém a ambiguidade, pois tanto poderia ser fruto da tradição oral quanto da transmissão literária,
já que o próprio autor anotou, em “Uma estória de amor”, de Corpo de Baile, uma canção da Donzela-Guerreira, da qual transcreve alguns versos. Os antropólogos nos falam da festa de Iamaricumá, ainda hoje celebrada no Parque do Xingu, em que as índias tomam o poder por um dia, expulsando os homens e ocupando o pátio central da aldeia com sua dança. Vários mitos e ritos dão conta desse costume e de outros similares. Quanto às fontes africanas, provêm de um continente onde o matriarcado se afirma em vários setores da vida social. No candomblé mais ortodoxo, o sacerdócio supremo da mãe-de-santo é exclusivo das mulheres; e só por contaminação do patriarcado da sociedade brasileira é que os homens conseguiram se alçar ao prestígio da posição de pai-de-santo. Uma figura de nosso folclore, mais especificamente do congado, a rainha Jinga, foi de fato uma rainha de Angola que combateu o invasor português.
QUESTÕES DE GÊNERO A esta altura, algumas conclusões provisórias podem encaminhar a reflexão. A primeira delas diz respeito à verificação de uma assimetria incontornável que se faz presente em todos esses enredos. Sim, as mulheres sempre quiseram desempenhar papéis masculinos, mas o contrário não é verdadeiro: raramente os homens se prestam a desempenhar papéis femininos, a não ser numa exceção representada pelo carnaval, e aí é por deboche. Do que fala uma tal assimetria? Fala que o feminino jamais deixou de ser relegado a uma esfera inferior: basta pensar que o trunfo em disputa é o poder, de que os homens detêm o monopólio. E ainda mais: que as mulheres ou recalcaram, ou reprimiram, ou dissentiram, ou se ressentiram, mas não se resignaram. Tanto é que nunca deixaram de transgredir, tanto na ordem do empírico quanto do imaginário, os limites que lhes impuseram. A assimetria também nos ajuda a raciocinar pelo avesso. No caso da Donzela-Guerreira, que segue os passos do pai, a mãe foi eliminada. Torna-se necessária a verificação de quais são as instâncias – os mitos, as tradições, a iconografia – em que o contrário ocorre, ou seja, uma relação entre filho e mãe em que o pai foi excluído. Conhecidíssimo, quase um clichê, o arquétipo da Pietà ou da Mater Dolorosa domina as imaginações e preside a religiões. Ninguém ignora o par formado por Jesus Cristo e a Virgem Maria, ou seus correlatos em vários outros credos e sistemas. Já o par de que aqui tratamos, constituído por filha e pai, mais uma vez enfatizando a assimetria que reina nas paragens dos gêneros, permaneceu obscurecido. Examinando dois mitos fundadores – para fins de análise apenas dois, mesmo que os exemplos se multipliquem –, notamos um traço renitente. Naquele supracitado, do nascimento de Palas Atena diretamente da cabeça de Zeus, um elemento fica faltando, ou seja, a mãe. Um homem dá à luz sem intervenção feminina – o que deve ser corrente nos domínios do imaginário, tal a frequência com que vêm à tona. Na própria religião cristã vê-se que Jeová também criou Adão sem intervenção feminina, ou seja, sem mãe. Trata-se, como se vê, da concretização mítica de uma fantasia masculina de maternidade.
NO REINO DO IMAGINÁRIO Filha da fantasia de maternidade do pai, transparece na Donzela-Guerreira uma contradição severa entre lição e desejo. Lévi-Strauss mostrou que todo mito encerra uma lição, e essa lição é conservadora. O fato de que a Donzela-Guerreira esteja submetida alternativamente a apenas dois destinos – ou casar e ter filhos, deixando de ser Donzela-Guerreira, ou então morrer – mostra que a lição, além de conservadora, é uma ameaça: ou se enquadra ou morre, seja essa morte real ou simbólica.
Mas os mitos de modo similar sugerem que a transgressão é inovadora e criativa, e se Prometeu não furtasse o fogo aos deuses não haveria civilização. À lição – com sua ameaça – contida nos mitos da Donzela-Guerreira se contrapõe o desejo, que repetidas vezes desafia o interdito na demanda de um destino maior, embora recusado ao gênero. É o que mostra um dos mais importantes romances brasileiros, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Ao delinear a personagem Diadorim, a amada do narrador e protagonista, o escritor não poupou detalhes e abeberou-se nas fontes tradicionais, inclusive folclóricas. Em meio às lides do cangaço, os fragmentos vão surgindo e compondo uma mais do que completa Donzela-Guerreira. Órfã de mãe e filha única de grande chefe de jagunços, foi criada naquele meio e adestrada na arte de guerrear: pontaria certeira, manejo do punhal, prática de equitação. Vestia-se de homem, usava o cabelo aparado rente, portava um colete apertado e se banhava no escuro da madrugada. Dava exemplo de excelência, sem cansaço nem desfalecimento, e sua bravura não conhecia limites. Após a morte do pai, dedica-se a vingá-lo. E é executando a vingança que, justiçando o assassino, perecerá também. Cumpre o destino fatal da Donzela-Guerreira. Nas palavras de Guimarães Rosa, à guisa de epitáfio: “... que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...”. Graças à Donzela-Guerreira, com suas metamorfoses e aparições tão mutáveis, vai-se ampliando nossa percepção das infinitas possibilidades da aventura humana.
Walnice Nogueira Galvão
A half-historical, half-mythical figure, the Warrior Maiden simultaneously crosses two frontiers. The first is that between the genders, by straddling the male and the female; the second, between the laws of the real and the imaginary.
POINTS OF CONTROVERSY On examining the literary archetype, we find points open to controversy: whether it occurs by autochthony or by diffusion; and whether, as well as literary, it is also historical. This is because the archetype visits times and spaces without it being possible to establish if it arose there or arrived there on loan. And, when we think we have solved the question, putting it down to literature, documents emerge that prove its historical existence.
IN PRIMORDIAL TIMES The presence of the Warrior Maiden can be found from the start in the founding texts of the western tradition. In Greece, we find numerous myths of women who refuse to marry, prefer the practice of sports, devote themselves to hunting and dress like men. The Greek imagination was populated by hosts of Amazons, who later migrated to our country, giving their name to a state and to the world’s largest river. The most prodigious case is that of the Goddess Pallas Athena, patron of the polis. Her father, the supreme god Zeus, came down with an unbearable headache. Out of his mind, he implored his son Hades (Vulcan), the blacksmith, to give him a blow with the hammer of his craft. Although frightened, the son obeyed and opened his father’s skull, out of which jumped Pallas Athena, wea10
ring armour, and holding a spear and shield. Thus there was a Warrior Maiden on Olympus, with all the prestige of divinity and creator of urban civilization. The goddess offered men the olive tree, which nourished them and lit their nights, and gave her name to one of the first Greek cities. She never married or had children, and many stories are told of her resistance to men. As she did not have a mother, she is an example of male gestation, without interference by a woman. In these archaic sources, the Warrior Maiden sometimes appears as an outline, just an embryo or a trace. In the Bible, the Old Testament chronicles the story of nomadic tribes who lived in tents, herding sheep, and who only later became settled. Such circumstances opened up extraordinary opportunities for women endowed with autonomy. In the historical phase in which, prior to the appearance of monarchy, the highest position in that society was that of judge, we find various women judges. Among just 11 of these military and civil magistrates recorded in the Bible, a woman features, Deborah, who led armies and, doubling as a poet, composed paeans of victory. Others are bellicose women who would attract the general-in-chief of the enemy hosts to their tents, seducing and killing him, guaranteeing triumph for their people. This was the fate that Judith gave Holofernes in the book which has her name, and which Jael gave Sisera, as celebrated in Deborah’s song (“Blessed be Jael among women”).
THEATRICAL CONVENTIONS In the Elizabethan theatre, at the time of the Renaissance, the actors were invariably male, because, as the other sex did not have access to the stage, as is still the case in Japanese Noh and Kabuki, as well as the Peking Opera. What was seen in Shakespeare’s theatre, therefore, was something quite complex and bewildering: men dressed as women who, in the case of a Warrior Maiden such as Rosalind in As you Like It, dressed as a man. Here in colonial Brazil the customs were the same, and travellers wrote of seeing plays in which male actors played female parts. During the period of Romanticism, which devoted itself to a rediscovery of the English bard, valued especially for his attention to the passions of the soul, there was a resurgence of women dressed as men. Later, a bizarre phenomenon was observed, which could be called “Sarah Bernhardt’s revenge”. Aware of her beautiful legs and androgynous profile, quite unlike the prevalent hourglass silhouette of the belle époque, the great French actress displayed a preference for male roles. One of her greatest successes, repeated countless times, was Hamlet; another was the title role in Sardou’s L’Aiglon.
FEMALE SAINTS AND QUEENS If we leave literature aside and check to see what history tells us, we will find proof of the existence of Warrior Maidens everywhere. If they are in the myths, like that of the Amazons, they are also recorded in India, Russia, England, Vietnam, Czechoslovakia, China or in modern Greece, where in the 19th century Bouboulina became a heroine of the campaigns against the Turkish yoke. And who has not heard of Joan of Arc, leading the French against the English invaders, who was burned at the stake as a witch and later became a saint? Their presence is so frequent, associated with the birth or defence of nationhood, that it makes one think of the symbolic value of the blood shed ritually on the foundations of a city or of a house; and whether, in this case, the blood might not be that of a virgin. Nor can we leave in the shadows Queen Elizabeth I, who reigned for half a century, making England one of the most powerful nations in the world. Her story tells of her reluctance to 11
take a husband, despite being in love, because she knew that her power would be reduced. She never married and went down in history with the epithet of the Virgin Queen, which evidently referred just to her celibacy and lack of children. Films exploit the moment when she took the decision, emphasising the scene in which she cuts off her tresses.
AMONG US Warrior Maidens abound in Brazilian history and literature. Whether fully depicted or just sketched, they go from Dona Damiana a Escopeteira (the Carabineer), in Franklin Távora’s Lourenço, to the caricature that Alencar drew of Dona Severa in Guerra dos Mascates. We also know of Maria Bonita, the bandit, and Maria Curupaiti, who enlisted as a volunteer and went to fight in a soldier’s uniform in the war against Paraguay. To escape from a belief in literary transmission, or the danger of restricting ourselves just to the phenomenon of the diffusion of the same myth coming from a single source, let us see an example in which the genealogy may perhaps be proven. This is what happens with the Ballad of Mulan, which the Portuguese may have brought from China, giving rise to a whole saga of ballads about Dom Varão or Barão (“Ai minha mãe / Os olhos de Dom Barão / São de mulher, de homem não” – [ Ah mother, the eyes of Dom Barão / Are eyes of a woman, not of a man]). But this is not always the case, and it would therefore be salutary to look at unwritten cultures perhaps closer to us and to Guimarães Rosa’s Diadorim. It is true that the latter keeps up the ambiguity, as he could equally well be the fruit of oral tradition or literary transmission, since the author himself mentioned, in “A Love Story” Corpo de Baile, a song of a Warrior Maiden, of which he transcribes some verses. Anthropologists tell us of the feast of Iamaricumá, still celebrated in the Xingu Park, in which the Indian women take power for a day, driving the men out and occupying the space in the centre of the village with their dances. Various myths and rituals refer to this custom and other similar ones. As for African sources, these come from a continent where matriarchy holds sway in various sectors of social life. In the most orthodox candomblé, the supreme priesthood of mãe-de-santo is exclusive to women; and it is only through contamination by the patriarchy of Brazilian society that men have been able to rise to the prestige of the position of pai-de-santo. A figure in our folklore, the congado to be precise, Queen Jinga, was in fact an Angolan Queen who fought the Portuguese invaders.
GENDER ISSUES At this point, some preliminary conclusions may guide our reflections. The first concerns the realization that there is an unavoidable asymmetry which is present in all of these stories. Yes, women have always wanted to perform male roles, but the opposite is not true: men are rarely willing to perform female roles, except in special circumstances such as Carnival, and then only for fun. What does this asymmetry tell us? It tells us that the female has never ceased to be relegated to a lower sphere: we just have to recall that the trump at stake is power, over which men hold the monopoly. And furthermore that women may have repressed or dissented or resented, but have never given in. So much so that they have never ceased to transgress, both in the empirical and imaginary orders, the limits that have been imposed on them. Asymmetry also helps us to reason from the opposite direction. In the case of the Warrior Maiden who follows her father’s footsteps, the mother has been eliminated. We need to check where – in which myths, traditions, iconography – the opposite occurs; that is, a mother-child 12
relationship in which the father has been excluded. So well-known that it is almost a cliché, the archetype of the Pietà or Mater Dolorosa dominates imaginations and presides over religions. No one is unaware of the pair formed by Jesus Christ and the Virgin Mary, or their equivalents in various other creeds and systems. But the pair that we are concerned with here, consisting of father and daughter, once again emphasising the asymmetry that reigns in the realm of the genders, has remained obscured. If we examine two founding myths – for the purpose of analysis just two, even though examples are numerous – we notice a persistent trait. In the one mentioned above, about the birth of Pallas Athena from Zeus’ head, there is an element missing: the mother. A man gives birth without female intervention – which must be common in the realms of the imaginary, so frequently does it come to the surface. In the Christian religion, we see that Jeovah also created Adam without female intervention, that is, without a mother. This appears to be, as we can see, the mythical fulfilment of a male maternity fantasy.
IN THE REALM OF THE IMAGINARY Being the daughter of the father’s maternity fantasy, the Warrior Maiden presents a sharp contradiction between lesson and desire. Lévi-Strauss showed that every myth brings with it a lesson, and that this lesson is conservative. The fact that the Warrior Maiden is submitted to just two fates – either to marry and children, ceasing to be a Warrior Maiden, or to die – shows that the lesson, besides being conservative, is a threat: either you fit in or you die, whether this death is real or symbolic. But in a similar way the myths suggest that transgression is innovative and creative, and if Prometheus had not stolen the fire from the gods there would be no civilization. Opposed to the lesson – with its threat – contained in the myths of the Warrior Maiden, stands desire, which repeatedly challenges the prohibition in the demand for a greater destiny, although it is refused to their sex. This is shown in one of the most important Brazilian novels, Grande Sertão: Veredas, by Guimarães Rosa. In his portrayal of Diadorim, the narrator’s beloved and the hero of the story, the writer spared no details, drinking deeply from traditional sources, including folklore. Amidst the conflicts between the groups of bandits, fragments keep emerging to compose a more than complete Warrior Maiden. Motherless, and only child of an important bandit leader, she was brought up in that environment and trained in the art of fighting: marksmanship, the use of a dagger, horse riding. She dressed as a man, had her hair cut short, wore a tight jacket and washed in the darkness before dawn. She was an example of excellence, never tiring or weakening, and her bravery knew no bounds. After her father’s death, she devoted herself to avenging him. And it is while wreaking this vengeance, killing his killer, that she will also die. She fulfils the fatal destiny of the Warrior Maiden. In the words of Guimarães Rosa, by way of an epitaph: “... she was born to the duty of fighting and never being afraid, and to love deeply, without the pleasure of love ...” . Thanks to the Warrior Maiden, with her ever-changing metamorphoses and apparitions, our perception of the infinite possibilities of the human adventure continues to grow.
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o grupo Anima e a o encontro entre animus e anima
Luiz Fiaminghi
Desde sua fundação, em 1989, o grupo Anima dedica-se a trilhar caminhos pouco convencionais para um grupo de música de câmara. Se de início seu repertório provinha principalmente de fontes da música barroca européia, interpretado sob o ângulo da fidelidade aos textos musicais e instrumentos originais, em consonância com as correntes ligadas à performance musical historicamente informada (HIP – Historically Informed Performance), aos poucos os ideais estéticos do grupo foram adquirindo contornos musicológicos menos rígidos e mais permeáveis ao seu entorno sociocultural. Às perguntas metodologicamente corretas, a exemplo de “Quais as evidências históricas?” ou “Qual a verdadeira intenção do compositor?”, que a musicologia se esforça em responder, sobrepujaram-se outras igualmente importantes: “Que função tem o intérprete hoje?” ou mais genericamente, “Existe, no plano musical, um passado no presente?”. Ao nos abrirmos para questões que envolvem notadamente um fazer musical com um viés fenomenológico, que valoriza a intuição e a atuação do intérprete além da intelecção científica e mecânica, passamos a ouvir a tradição musical brasileira atentos para as riquezas depositadas em seus leitos, tais quais gemas formadas pela fricção entre culturas que se sobrepuseram umas às outras na sedimentação lenta de ritmos, cantos e danças, amalgamados nos rituais e dramatizados em suas celebrações. Como veremos mais adiante, a donzela guerreira tem uma íntima ligação com as opções do Anima como grupo musical. Mas antes, um pouco mais de história. Foi em 1991 que José Eduardo Gramani ganhou sua primeira rabeca. Nessa época ele tocava violino barroco no Anima e instigado pela flautista Valeria Bittar, cofundadora do grupo, teve sua curiosidade deflagrada para conhecer um instrumento próximo e ao mesmo tempo desconhecido: as rabecas brasileiras. Àquela altura, as rabecas eram apenas referências vagas em compêndios etnomusicológicos, na maioria das vezes citadas como sombras de seus pares urbanos mais famosos e oficializados, os violinos. Essas citações colocavam-nas subliminarmente ou explicitamente em posição de inferioridade, ou, ao contrário, do lado oposto da balança, como baluartes de um nacionalismo anacrônico, um último suspiro romântico em meio pós-moderno. Gramani inaugurou uma terceira via, aquela que convive com as diferenças e não as transforma em um impedimento para criação. Ao entender as rabecas como antítese da homogeneização, que consequentemente leva à cultura do igual e à padronização, ancorou os alicerces de seu processo criativo nas arestas e asperezas, abrindo assim espaço para diálogo intercultural, que recusa o monólogo característico da repetição dos cânones da cultura hegemônica. Sem se preocupar em teorizar sobre isso, Gramani tomou suas rabecas como porta-vozes desse processo, deixando-se levar por rastros e memórias desconhecidas. Através de novos interlocutores e transposições de tempo e espaço, Gramani mostrou o caminho. Deodora, uma de suas primeiras composições, originalmente escrita para rabeca e cravo e gravada pela primeira vez pelo Anima em 1993 (CD Trilhas), é um bom exemplo dessa prática. Dentro do eixo da atemporalidade e seguindo o caminho indicado por Gramani, que colocou em evidência a medievalidade presente no Brasil contemporâneo, mas também traçando o percurso inverso, ou seja, trazendo os instrumentos antigos como as flautas medievais e o cravo para novos contextos, o Anima constrói seus espetáculos baseando-se sempre nos pilares da música antiga e da música de tradição oral brasileira, que se alimentam mutuamente. A necessidade de construir um repertório a partir de uma escritura musical mínima, uma escrita aberta que clama pela intervenção criativa do intérprete, levou-nos a adotar um tema central 15
e um roteiro dramático como orientadores de nossas escolhas estéticas. Esta opção tornou-se evidente porque tanto o universo da música medieval quanto o da música de tradição oral carregam em si elementos ritualísticos no fazer musical, que remetem a uma era pré-moderna tais como os aspectos improvisatórios e o desenvolvimento baseado em repetições cumulativas. Diferenciam-se, portanto, da prática camerística corrente, derivada do ideal barroco de desenvolvimento temático, que é a base da música pura. Este ideal é representado pelas formas musicais canônicas (sonata, concerto, sinfonia, etc.) que, tendo se abstraído da sua função ritual, transformou o próprio ato da sua estrutura formal em objeto de sua existência. Nesse sentido, ter a donzela guerreira como eixo temático, foi para o Anima um grande desafio. Ao mesmo tempo que ao abordar um tema de tamanha profundidade nos sentíamos intimidados e inseguros quanto à nossa capacidade de tecer um roteiro musical à sua altura, nos sentíamos reconfortados ao ter como guias exemplos como o de Diadorim, do Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa e como a pesquisa sobre as donzelas empreendida por Walnice Nogueira Galvão, a quem devemos muitas das conexões de nosso roteiro. Consideramos as donzelas guerreiras também através das lentes arquetípicas, um retrato do encontro entre animus e anima. Sendo a guerra um emblema do animus, do espírito masculino, no qual a força e o ímpeto se sobrepõem à lógica e ao verbo – outros atributos do animus – e, por outro lado, tendo as donzelas guerreiras adotado Palas Atena como protótipo – cujo mito representa o tecer de estratégias, o combate por justiça e o convencimento pela sabedoria que são, juntamente com o dom da predição, a intuição e o espírito criativo, atributos também associados ao anima – as donzelas guerreiras transitam obrigatoriamente entre esses dois polos. As narrativas das donzelas guerreiras, que se metamorfosearam ao longo do tempo e das culturas, transmitem, portanto, a essência desse encontro. Emma Jung finaliza seu livro Animus e Anima, onde expõe esses conceitos em um amplo espectro psíquico que supera o antagonismo superficial entre masculino e feminino, de forma contundente: “A nova avaliação do princípio feminino exige que a natureza também receba a veneração que lhe é devida após o ponto de vista do intelecto dominante na era da ciência e da tecnologia ter levado mais à sua utilização, e até mesmo exploração, que à sua veneração... Produzir a união desses contrários é uma das tarefas mais importantes da psicoterapia atual” (JUNG, E., 1990, p. 99). Fazemos assim uma analogia com o movimento empreendido pelo grupo Anima, descrito nos primeiros parágrafos, que caminhou para a periferia das práticas musicais em busca de um afrouxamento das amarras do discurso musical lógico/racional. Emma Jung ressalta que “A ‘anima’, sendo o feminino no homem, possui justamente essa receptividade e falta de preconceito em relação ao irracional, e por essa razão ela é qualificada de mensageira entre o inconsciente e a consciência. Este comportamento feminino desempenha um papel importante especialmente em homens criativos; não é à toa que se fala da ‘concepção’ de uma obra, de seu ‘nascimento’ ou da ‘gestação’ de um pensamento” (JUNG, E., 1990, p. 68). Mais adiante, Emma Jung focaliza um aspecto importante do feminino: “O dom da visão e a arte da adivinhação são atribuídos especialmente à mulher, que está em geral mais aberta em relação ao inconsciente que o homem” (Idem). Deste modo, abrimos a primeira parte do roteiro musical da Donzela Guerreira, sob os preceitos da visão premonitória e do culto à Virgem. Na música das índias Kaxinawá, que fala sobre as visões e a maneira de chegar até elas através das ervas da floresta, o canto recitado ritmicamente e imitado pelo vaso de cerâmica percutida (a cerâmica foi um dos ensinamentos de Palas Atena às mulheres), contrasta com o som contínuo das flautas indígenas, imbuídas do nascimento do som pelo sopro que faz vibrar, dá vida, ao corpo do bambu. É uma alegoria da ação do Tempo, Cronos¸ na matéria amorfa, o som, o Sopro da Vida. Como a ordenar a profusão de visões eclodidas pelos chás alucinógenos, a Sibila do Reno, como era conhecida 16
a monja Hildegard von Bingen, irrompe com um tropos de contornos claramente delineados pela antífona em louvor à Virgem, um dos temas centrais desta primeira seção do roteiro. Não a Virgem oficial, canonizada pela Igreja, mas aquela que representa a Grande Mãe e sublinha a ligação da Virgem à Fonte e a Água da Vida. Nesse sentido, Emma Jung cita um fato histórico importante, que comprova a incorporação de rituais pagãos ao cristianismo: “Segundo um decreto do Concílio de Avignon do ano de 442, o culto de árvores, pedras e fontes e o fazer fogueiras ou acender luzes junto às mesmas foi proibido como práticas pagãs. Em vez disso, em muitos lugares, em países católicos, imagens da Virgem adornadas com flores e velas são até hoje levadas às fontes como expressão cristã de um sentimento primordial ainda vivo. Um dos apelidos de Maria é ‘pégé’= a fonte. A qualidade numinosa da água expressa-se também na antiqüíssima idéia de uma ‘água da vida’ que possui uma energia sobrenatural” (JUNG, E., 1990, p. 79). O canto das Caixeiras do Divino, que dá sequência ao roteiro, traz fortes traços dessas miscigenações. Esta primeira seção termina com a sobreposição da oração Ave Maria, adaptada para o tupi por Anchieta, com excertos de uma Ave Maria de Hildegard von Bingen, em uma interpretação que explora a improvisação dissociada de qualquer fragmento musical escrito. A congada introduz o tema da guerra, que vai se desenvolver em múltiplas formas, desde a subliminar “guerra entre palavras” (Ñaumu), passando por representações instrumentais da batalha (Estampie Belicha), referências a donzelas guerreiras históricas (Rainha Ginga), até a revelação da identidade do guerreiro feminino – “os olhos de D. João são de mulher, de homem não” – aludida no Romance da Donzela que Vai para a Guerra. Esta seção se encerra na fala de Riobaldo quando presencia o corpo sem vida de Diadorim – a chave do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa – enfocando a batalha interior travada pela revelação tardia de um amor impossível, que, entretanto, leva ao autoconhecimento marcado pela travessia das nossas próprias escolhas. Mandad’ei Comigo fecha, em forma de coda, nosso roteiro. Aqui, a donzela é apresentada no embate de sua guerra interior, no qual o peso de sua fidelidade ao amado que não retorna e o desfazimento de suas obrigações maritais ressaltam o papel antagônico entre a liberdade e o fado da mulher predestinada ao casamento. Fado que as donzelas guerreiras souberam quebrar, recusando-se a seguir os papéis que lhes foram impostos pela sociedade patriarcal. Compartilhando a ousadia da dama guerreira, ousamos também trabalhar sobre uma ampla gama de estilos musicais, encampando experiências musicais conflitantes e as mais diversas formas de se fazer música, desde arranjos escritos até improvisações e criações coletivas. O trânsito entre a música antiga européia, a música afro-brasileira e a música indígena só foi possível pela generosidade, cooperação e disposição de todos os sete músicos participantes deste projeto, que ao longo de dezoito meses de ensaios, conversas e discussões, trouxeram para o Anima suas experiências musicais mais profundas, disponibilizando pesquisas pessoais inéditas e de valor inestimável. Anima aqui é o desejo de algo novo, o processo que provoca um impulso ou equivale a uma intuição; seu encontro com Animus, ou seja, o conhecido, a lógica, o porto-seguro, é a síntese do próprio processo que perpassou este projeto onde não faltaram batalhas, travessias e sucessivas acomodações, cujo resultado temos o prazer de apresentar a todos. Boa audição!
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grupo Anima and the encounter between animus and anima
Luiz Fiaminghi
Since it was formed, in 1989, the Anima group has followed rather unconventional paths for a chamber music group. While its repertoire at the beginning came mainly from European baroque sources, faithfully interpreted from the original texts and on the original instruments, in line with the principles of historically informed performance (HIP), the group’s aesthetic ideals have gradually become less rigid and more open to the sociocultural environment. Methodologically correct questions such as “What is the historical evidence?” or “What was the composer’s real intention”, which musicology strives to answer, have given way to other equally important questions, such as “What function does the musician have today?”, or the more general “Is there a past in the present, on the musical plane?” By opening ourselves up to questions that specifically involve musical activity with a phenomenogical slant, which value the musician’s intuition and performance as well as scientific and mechanical intellection, we come to hear the Brazilian musical tradition with an awareness of the riches that it contains, like gems formed by the friction between cultures that have been overlaid in the slow sedimentation of rhythms, songs and dances, amalgamated in its rituals and dramatized in its celebrations. As we will see further on, the warrior maiden is closely linked to Anima’s choices as a musical group. But first, a little more history. It was in 1991 that José Eduardo Gramani was given his first fiddle. At the time, he was playing the baroque violin with Anima, and, encouraged by the recorder player Valeria Bittar, co-founder of the group, his curiosity was aroused to become acquainted with an instrument that was similar but at the same time unknown, the Brazilian rabeca. At that time, the fiddle was merely a vague reference in ethno-musicological literature, mostly cited as a shadow of its more famous and respectable urban counterpart, the violin. These references put it implicitly or explicitly in a position of inferiority or, rather, on the opposite side of the scales, as supporting an anachronistic nationalism, a last romantic sigh in a postmodern age. Gramani inaugurated a third way, the one which lives with differences and does not turn them into an obstacle to creation. By seeing the fiddle as the antithesis of homogenization, which leads to the culture of sameness and standardization, Gramani based the foundations of his creative process on its rough edges, thus making a space for intercultural dialogue, which rejects the typical monologue of the repetition of the canons of established culture. Without bothering to theorize about this, Gramani took his rabecas as spokesmen of this process, letting himself be carried along by traces and unknown memories. By means of new interlocutors and transpositions of time and space, Gramani showed the way. Deodora, one of his first compositions, originally written for fiddle and harpsichord and recorded for the first time by Anima in 1993 (CD Trilhas), is a good example of this practice. Within the axis of atemporality, and following the path shown by Gramani, who brought to light the medievality present in contemporary Brazil, but also tracing an opposite course, that is, bringing old instruments such as medieval recorders and the harpsichord to new contexts, Anima always bases its concerts on the pillars of ancient music and the music of 18
the Brazilian oral tradition, which feed one another. The need to build up a repertoire based on a minimal musical score, an open writing that calls for the creative intervention of the musician, led us to adopt a central theme and a dramatic script to guide our aesthetic choices. This alternative became evident because both the universe of medieval music and that of traditional oral music carry within them ritualistic elements in their performance, which go back to a pre-modern era, such as improvisation and development based on cumulative repetitions. They therefore differ from the current chamber music practice, deriving from the baroque ideal of thematic development, which is the basis of pure music. This ideal is represented by the canonical musical forms (sonata, concerto, symphony, etc.) which, having been abstracted from their ritual function, have transformed the very act of their formal structure into the object of their existence. In this respect, having the warrior maiden as a central theme was a great challenge for Anima. At the same time that dealing with a theme of such depth made us feel intimidated and insecure about our ability to put together a musical script worthy of it, we felt reassured to have as guides such examples as Diadorim, in Guimarães Rosa’s Grande Sertão: Veredas, and Walnice Nogueira Galvão’s research on maidens, to which we owe many of the connections in our script. We also consider the warrior maidens through an archetypal lens, a portrait of the encounter between animus and anima. War being an emblem of the animus, the male spirit in which force and impetus are superimposed over logic and speech – other attributes of the animus – and, on the other hand, the warrior maidens having adopted as their prototype Pallas Athena – whose myth represents the weaving of strategies, the fight for justice, and persuasion by means of wisdom, which are, together with the gift of prediction, intuition and the creative spirit, attributes also associated with the anima – the warrior maidens obligatorily move between these two poles. The narratives of the warrior maidens, which have metamorphosed across time and cultures, thus transmit the essence of this encounter. Emma Jung ends her book Animus and Anima, in which she expounds these concepts in a broad psychic spectrum which overcomes the superficial antagonism between male and female, in a striking manner: “The new evaluation of the female principle requires that nature also receives the veneration which is its due, after the point of view of the dominating intellect in the era of science and technology led more to its use, and even to its exploitation, than to its veneration ... To produce the union of these opposites is an essential task of current psychotherapy” (JUNG, E., 1990, p. 99). We thus make an analogy with the movement undertaken by the Anima group, described in the first paragraphs, which moved towards the periphery of musical practices in search of a loosening of the bonds of logic-rational musical discourse. Emma Jung stresses out that “The ‘anima’, which is the female in man, has precisely this receptivity and lack of prejudice in relation to the irrational, and for this reason is qualified as a messenger between the unconscious and consciousness. This female behaviour performs an important role specially in creative men; it is not by chance that we speak of the ‘conception’ of a work, of its ‘birth’, or of the ‘gestation’ of a thought” (JUNG, E., 1990, p. 68). Further on, Emma Jung focus on an important aspect of the female: “The gift of vision and the art of divining are specially attributed to women, who are on the whole more open in relation to the unconscious than men are” (Idem).
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We thus open the first part of the musical script of the Warrior Maiden under the precepts of premonition and the Cult of the Virgin. In the music of the Kaxinawá Indians, which tells of visions and how to achieve them by means of forest herbs, the chant rhythmically recited and imitated by the sound of the ceramic vase percussion (clay pottery was one of Pallas Athena’s teachings to women), contrasts with the continuous sound of the indigenous recorders, imbued with the birth of sound by blowing, which makes the bamboo vibrate, giving it life. It is an allegory of the action of Time, Chronos, in the amorphous material of sound, the breath of life. As if to give order to this profusion of visions unleashed by the hallucinogenic infusions, the Sybil of the Rhine, as the nun Hildergard von Bingen was known, bursts forth with a tropos of contours clearly delineated by the Antiphon in praise of the Virgin, one of the central themes of this first section of the script. Not the official Virgin, canonized by the Church, but the one that represents the Great Mother and underlines the connection of the Virgin with the Source and the Water of Life. Regarding this, Emma Jung cites an important historical fact, which proves the incorporation of pagan rituals into Christianity: “According to a decree by the Council of Avignon in the year 442, the cult of trees, rocks and springs, making fires or lights near them, was prohibited as pagan practices. Instead of this, in many places in Catholic countries, images of the Virgin adorned with flowers and candles are still taken to springs as a Christian expression of a primordial sentiment which is still alive. One of the names Mary is known by is ‘pégé’ = spring. The numinous quality of water is also expressed in the ancient idea of a ‘water of life’, which has supernatural energy.” (JUNG, 1990, E., p. 79). The chanting of the Caixeiras do Divino, which continues the script, bears strong traces of these miscigenations. This first section ends with the superimposing of the prayer Ave Maria, adapted to Tupi by Anchieta, with excerpts from an Ave Maria by Hildegard von Bingen, in an interpretation which exploits improvisation dissociated from any written musical fragment. The congada introduces the theme of war, which will be developed in multiple forms, from the subliminal “war between words” (Ñaumu), passing through instrumental representations of battle (Estampie Belicha), references to historical warrior maidens (Queen Ginga), to the revelation of the identity of the female warrior – “Dom João’s eyes are those of a woman, not of a man” – alluded to in the romance Donzela que Vai para a Guerra (The Maiden who Goes to War). This section closes with the words of Riobaldo when he beholds Diadorim’s lifeless body – the key to Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas – expressing the inner battle caused by the too-late revelation of an impossible love, which, however, leads to self-knowledge marked by the following of our own choices. Mandad’ei Comigo closes our script, in the form of a coda. Here, the maiden is presented fighting her inner war, in which the burden of her faithfulness to her lover who does not return and the release from her marital obligations highlight the antagonistic role between freedom and the fate of the woman predestinated to marriage. A fate that the warrior maidens were able to break, refusing to follow the roles imposed on them by a patriarchal society. Sharing the boldness of the warrior lady, we also dare to work in a wide number of musical styles, encompassing conflicting musical experiences and the most varied forms of making music, from written arrangements to improvisations and collective creations. The movement between ancient European music, Afro-Brazilian music and indigenous music was only possible thanks to the generosity, cooperation and willingness of all seven musicians who took part in this project, who throughout eighteen months of rehearsals, conversations and dis-
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cussions brought to Anima their most profound musical experiences, making available the priceless fruits of their own research. Anima here is the desire for something new, the process that sparks an impulse or is like an intuition; its encounter with Animus, that is, the known, logic, the safe haven, is the synthesis of the very process that permeated this project in which we faced battles, crossings and successive compromises, and whose the result we have the pleasure of presenting to you all. Happy listening!
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Ato 1 O TEMPO MÍTICO (ANIMA) p. 43 Act 1 THE MYTHICAL TIME (ANIMA) 1. VISÃO canto do cipó Kaxinawá – AC liana song, Kaxinawá people – Acre
BRSC40900050
02:40
2. O FRONDENS VIRGA Hildegard von Bingen (1098-1179)
BRSC40900051
02:27
BRSC40900052 3. ALVORADINHA Caixeiras do Divino Espírito Santo – MA The Drummers of the Holy Spirit (oral tradition) – Maranhão
02:11
BRSC40900053
03:47
BRSC40900054 5. NOSSA SENHORA DA GUIA Caixeiras do Divino Espírito Santo – MA The Drummers of the Holy Spirit (oral tradition) – Maranhão
02:19
BRSC40900055 6. AVE MARIA – TUPÃ CY canto gregoriano – Tupã Cy – improvisação sobre Hildegard von Bingen Gregorian chant – Tupã Cy – improvisation upon Hildegard von Bingen
04:57
4. ROSA DAS ROSAS Dom Afonso X, o sábio (1221-1284) Don Alfonso X, the wise
Ato 2 O SANGUE FECUNDA A TERRA (ANIMUS) p. 57 Act 2 BLOOD FERTILIZES THE EARTH (ANIMUS) 7. CORRA SANGUE PELA TERRA congada de São Sebastião – SP Brazilian oral tradition – São Paulo
BRSC40900056
02:09
8. ROMANCE DA DONZELA GUERREIRA romance – PB Brazilian oral tradition – Paraíba
BRSC40900057
03:05
9. ARVOREDOS coco – RN Brazilian oral tradition – Rio Grande do Norte
BRSC40900058
02:28
10. LAI – FOGO BRSC40900059 Gautier de Coinci (1177-1236) – congos de São Gonçalo do Amarante – RN Gautier de Coinci – Brazilian oral tradition – Rio Grande do Norte 24
02:37
11. ÑAUMU BRSC40900061 fragmentos e improvisação sobre texto Yanomami – RR fragments and improvisation of a text of the Yanomami people – Roraima
01:40
12. ESTAMPIE BELICHA anônimo, séc. XIV, LBM add. 29987 anonymous, 14th cent. LBM add. 29987
BRSC40900062
03:22
13. ABOIO DE ARRIBADA aboio – RO Brazilian oral tradition – Rondônia
BRSC40900065x
02:39
14. CALANGUINHO José Eduardo Gramani (1944-1998)
BRSC40900066
03:23
15. MANDADO DE RAINHA GINGA congos de São Gonçalo do Amarante – RN Brazilian oral tradition – Rio Grande do Norte
BRSC40900063
00:50
16. RAINHA GINGA congos de São Gonçalo do Amarante – RN Brazilian oral tradition – Rio Grande do Norte
BRSC40900064
03:01
Ato 3 A REVELAÇÃO E O ENCONTRO (ANIMUS e ANIMA) p. 77 Act 3 THE REVELATION AND THE ENCOUNTER (ANIMUS and ANIMA) 17. LA GUERRIERA tradição oral italiana, Jesi Italian oral tradition, Jesi
BRSC40900067
03:57
18. DONZELA QUE VAI PARA A GUERRA romance – BA Brazilian oral tradition – Bahia
BRSC40900068
05:14
19. EREMONA BRSC40900069 fragmentos de canto do ritual Bep, Mebengokrê – PA fragments of a Bep ritual song of the Mebengokrê people – Pará
05:15
BRSC40900070
06:31
20. MANDAD´EI COMIGO Martin Codax, séc. XIII Martin Codax, 13th cent.
Duração total / Playing time: 64’ 25
GISELA NOGUEIRA
viola de arame Brazilian baroque guitar Professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da UNESP. É doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, com a tese A viola com anima: uma construção simbólica. Como resultado de seus estudos sobre a música antiga, especializou-se na técnica da Viola de Arame, a convite de Anna Maria Kieffer, para participar da documentação fonográfica da música brasileira dos séculos XVIII e XIX. Estudou violão erudito com Isaías Sávio e titulou-se Master of Music in Performance pelo Royal Northern College of Music em convênio com The Victoria University of Manchester, Inglaterra. Apresentase em turnês por todo o Brasil e países europeus. Gravou os CDs: Cantares d’ Aquém e d’ Além Mar, Viagem pelo Brasil, Marília de Dirceu, Tocata Brasileira para Pinho e Arame e Na Trilha do Novo Mundo.
Professor in the Music Department of the Institute of Arts, UNESP, state of São Paulo. She has a doctorate in Communication Sciences from School of Communications & Arts ECA/USP, with the dissertation Viola with anima: a symbolic creation. As a result of her studies on ancient music, she specialized in the technique of the Brazilian baroque guitar (wire strung baroque guitar), at the invitation of Anna Maria Kieffer, in order to take part in the phonographic documentation of Brazilian music from the 18th and 19th centuries. She studied classical guitar with Isaías Sávio, and was awarded the title Master of Music in Performance by the Royal Northern Colle ge of Music in association with the The Victoria University of Manchester, England. She performs throughout Brazil and in Europe. She has recorded the following CDs: Cantares d’ Aquém e d’ Além Mar, Viagem pelo Brasil, Marília de Dirceu, Tocata Brasileira para Pinho e Arame and Na Trilha do Novo Mundo.
viola de arame construída por Roberto Gomes, São João Del Rey, MG, 1988, sobre modelo original encontrado em Tiradentes, Fazenda Capivari, Minas Gerais, datado do ano de 1765 Brazilian baroque guitar made by Roberto Gomes, São João Del Rey, MG, 1988, after an original model found in Tiradentes, Fazenda Capivari, Minas Gerais, dated 1765
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Doutor pela UNICAMP/SP, com a tese O Violino Violado. Estudou violino com Paulo Bosísio e Ayrton Pinto (UNESP). É bacharel em composição pela UNICAMP/SP. Especializou-se em violino barroco na Holanda com Marie Leonhardt e Alda Stuurop. Foi membro da Orquestra Barroca da Comunidade Européia e participa da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Música Barroca e Colonial de Juiz de Fora. Realizou especialização em “Cultura Barroca”, pela UFOP/MG, sob orientação do Prof. Dr. João Adolfo Hansen (USP) com a dissertação Violino e Retórica. Foi professor de violino na Universidade Estadual de Florianópolis (UDESC). Fundador do grupo Harmonia Universalis e do trio Carcoarco – com quem gravou e produziu o CD Tu Toca o Quê?.
É diretor executivo, diretor musical e produtor do Grupo ANIMA – ganhador dos prêmios APCA (1998) e Carlos Gomes (2000) – com o qual realiza turnês no Brasil e no exterior. Luiz Henrique has a doctorate from the University of Campinas, state of São Paulo, UNICAMP, with the thesis O Violino Violado. He studied violin with Paulo Bosísio and Ayrton Pinto (UNESP). He has a degree in composition from the University of Campinas – UNICAMP. He specialized in baroque violin in the Netherlands with Marie Leonhardt and Alda Stuurop. He was a member of the European Union Baroque Orchestra and plays in the Baroque Orchestra of the International Festival of Baroque and Colonial Music of Juiz de Fora. He took a postgraduate course in “Baroque Culture”, at the University of Ouro Preto – UFOP/MG, under the supervision of Dr. João Adolfo Hansen (USP), with the thesis Violin and Rhetoric. He has taught violin at the State University of Florianópolis (UDESC). He was founder of the Harmonia Universalis Group and of the Carcoarco Trio – with whom he recorded and produced the CD Tu Toca o Quê?. He is executive director, musical director and producer of the ANIMA Group – winner of the APCA (1998) and Carlos Gomes (2000) prizes – with whom he goes on tours in Brazil and abroad.
LUIZ FIAMINGHI rabecas brasileiras, vielle Brazilian fiddles, vielle
rabeca “Seu” Nelson construída por Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; madeira: raiz de jaqueira; afinação: Sol/Ré/Fá/Lá Brazilian fiddle “Seu” Nelson made by Nelson da Rabeca, Marechal Deodoro, AL; wood: root of jaca tree; tuning: Sol/Ré/Fá/Lá rabeca Fernando Vanini construída por Fernando Vanini, Campinas, SP; madeira: marupá; afinação: Lá/Ré/Lá/Ré Brazilian fiddle Fernando Vanini made by Fernando Vanini, Campinas, SP; wood: marupá; tuning: Lá/Ré/Lá/Ré rabeca “Seu” Martinho construída por Martinho dos Santos, Morretes, PR; madeira: caxeta; afinação: Sol/ Ré/Sol/Si Brazilian fiddle “Seu” Martinho made by Martinho dos Santos, Morretes, PR; wood: caxeta; tuning: Sol/ Ré/Sol/Si vielle construída por Fábio Vanini, São Paulo, SP; madeira: marupá; afinação: Sol/Ré/Sol/Si vielle made by Fábio Vanini, São Paulo, SP; wood: marupá; tuning: Sol/Ré/Sol/Si
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MARÍLIA VARGAS soprano
Iniciou os estudos de canto com Neyde Thomas. Obteve o Solisten Diplom na Schola Cantorum Basiliensis, Suíça. Foi aluna de Christoph Prégardien no Conservatório de Zurique, onde concluiu seu Konzert Diplom em Lied e Oratório em 2005, laureada “summa cum laude”. Freqüentou masterclasses com Montserrat Figueras e Silvana Bartoli Bazzoni. Premiada no II Concurso Internacional de Canto Bidú Sayão e no VI Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas. Em 2002 recebeu bolsa de estudos da fundação suíça Friedl Wald e, dois anos depois, foi premiada pela Fundação Margherite Meyer. Apresentou-se com diversas orquestras, entre as quais Orchestra of the Age of Enlightenment, Orquestra de Câmara de Zurique, OSESP, Sinfônica do Paraná, Camerata Antiqua de Curitiba. Apresentou-se com conjuntos de música antiga como La Capella Reial de Catalunya (direção de Jordi Savall) e Le Parlement de Musique. Realizou gravações para rádios e televisões européias, além de ter sua participação em diversos CDs. Professora convidada de festivais e universidades do Brasil. Em 2009 lançou o CD solo Todo Amor desta Terra.
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Marília started her singing studies with Neyde Thomas. She obtained the Solisten Diplom from the Schola Cantorum Basiliensis, Switzerland. She was a pupil of Christoph Prégardien at the Zurich Conservatory, where she completed her Konzert Diplom in Lied and Oratorio in 2005, laureat “summa cum laude”. She attended masterclasses with Montserrat Figueras and Silvana Bartoli Bazzoni. She was awarded a prize at the II Concurso Internacional de Canto Bidú Sayão and in the VI Concurso Brasileiro de Canto Maria Callas. In 2002, she obtained a scholarship from the Swiss Friedl Wald Foundation, and two years later she was awarded a prize by the Margherite Meyer Foundation. She has performed with various orchestras, among them the Orchestra of the Age of Enlightenment, the Zurich Chamber Orchestra, OSESP, Sinfônica do Paraná, Camerata Antiqua de Curitiba. She has performed with ancient music groups such as La Capella Reial de Catalunya (directed by Jordi Savall) and Le Parlement de Musique. She has recorded for European radio and television stations as well as taking part on various CDs. She has been an invited professor at festivals and universities in Brazil. In 2009 she launched the solo CD Todo Amor desta Terra.
Cantora, compositora e pesquisadora reconhecida por interpretar, difundir e valorizar a cultura e a música indígenas do Brasil. Recebeu os prêmios da Academia Alemã de Crítica (Schallplattenkritik, 1996) pelo CD IHU, Todos os Sons; o Prêmio Chico Mendes de Meio Ambiente (2005) e a Ordem do Mérito Cultural do MINC (2002). Dirige a Associação IHU Pro Música e Arte Indígenas, uma instituição cultural privada sem fins lucrativos. Apresentou-se e gravou com nomes expressivos da música brasileira: Egberto Gismonti, Gilberto Gil, Nana Vasconcellos e participou de gravação e turnê com Jack DeJohnette e John Surman. Trabalhou em filmes e documentários, recebendo o prêmio de melhor trilha sonora pelo filme de Luiz Alberto Pereira, Hans Staden (2002). Trabalhou com Hector Babenco/Saul Zaentz no longa-metragem Brincando nos Campos do Senhor (1992). Professora visitante na Chicago University pela Tinker Foundation, Dartmouth College; artistaresidente na Indiana University e no Dartmouth College. Bolsista da The John Simon Guggenheim Memorial Foundation para seu projeto de pesquisa e composição IHU, a Preservação e Recriação da Música Indígena do Brasil e pelo Map Fund – The Rockefeller Foundation, para a première do projeto IHU. Gravou os CDs: Olho d’ Água, Revivência, Rio Acima, Paiter Merewa, IHU-Todos os Sons e IHU-Todos os Sons – livro de partituras, Kewere – Rezar, Ponte entre Povos. A singer, composer and researcher, Marlui is wellknown for performing and spreading appreciation of indigenous culture and music in Brazil. She won a prize from the German Academy of Critics (Schallplattenkritik, 1996) prize for the CD IHU, Todos os Sons, the Chico Mendes Environment Prize (2005) and the MINC Order Cultural Merit (2002). She is a director of the Associação IHU Pro Música e Arte Indígenas, a private non-profit cultural organization. She has performed and recorded with important names in Brazilian music, such as Egberto Gismonti,
MARLUI MIRANDA voz e percussão voice and percussion Gilberto Gil and Nana Vasconcellos, and took part in recordings and a tour with Jack DeJohnette and John Surman. She has worked in films and documentaries, winning an award for best sound track for the film Hans Staden, by Luiz Alberto Pereira (2002). She worked with Hector Babenco/Saul Zaentz on the film Brincando nos Campos do Senhor (1992). She has been Visiting Professor at Chicago University via the Tinker Foundation, Dartmouth College, and resident artist at Indiana University and at Dartmouth College. Marlui won a scholarship at The John Simon Guggenheim Memorial Foundation for her research and composition project, IHU Preservação e Recriação da Música Indígena do Brasil and by the Map Fund – The Rockefeller Foundation, for the première of the IHU project. She recorded the following CDs: Olho d’ Água, Revivência, Rio Acima, Paiter Merewa, IHU-Todos os Sons and IHU-Todos os Sons – livro de partituras, Kewerê – Rezar, Ponte entre Povos.
flauta de pastores “Seljeflote” autor desconhecido, Noruega puru-puru (casco de tartaruga) confeccionado por Paxinã Poty Apalai, Amapá Seljeflote author unknown, Norway puru-puru (turtle shell) made by Paxinã Poty Apalai, Amapá, Brazil
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PAULO DIAS percussão percussion
Pianista, organista, percussionista e etnomusicólogo. Estudou piano com Alfredo Cerquinho e, na França, com Anna Stella Schic, Pierre Sancan e Marie-Madeleine Petit. Bacharelou-se em piano pela UNICAMP/SP, com Fernando Lopes, tendo seguido também os cursos de cravo de Helena Jank. Estudou órgão com Dorotéa Kerr. Pianista e professor de matérias teóricas no Coral da USP. Como percussionista de música popular, realizou shows e gravações com artistas como Eliete Negreiros, José Miguel Wisnik, Osvaldinho da Cuíca, Grupo Beijo, Virgínia Rosa, Paulo Tatit e Sandra Peres, Mônica Salmaso, Ivaldo Bertazzo. Participou dos cursos de etnomusicologia com Tiago de Oliveira Pinto e Kasadi wa Mukuna na USP. Desde 1988 realiza levantamento das tradições musicais populares brasileiras, e em especial das afro-brasileiras da Região Sudeste. O resultado desse trabalho tem sido divulgado em oficinas, publicações, rádio, TV, discos e exposições. Ministra regularmente cursos, palestras e participa de simpósios e conferências no Brasil e exterior. Faz parte do Conselho Estadual de Cultura da Secretaria de Estado da Cultura. Fundou o Grupo de Danças Populares Cachuera!, dedicado ao repertório afro-brasileiro do Sudeste, com apresentações em palco e praça pública e oficinas no Brasil e no exterior. Fundou e dirige a Associação Cultural Cachuera! que tem como objetivo a pesquisa, o registro e a divulgação da cultura popular brasileira. O amplo acervo desta instituição está disponível para consultas: www.cachuera.org.br.
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Pianist, organist, percussionist and ethnomusicologist, Paulo studied the piano with Alfredo Cerquinho, and in France with Anna Stella Schic, Pierre Sancan and Marie-Madeleine Petit. He graduated in piano from the University of Campinas – UNICAMP, state of São Paulo, with Fernando Lopes, having also studied harpsichord on courses by Helena Jank. He studied organ with Dorotéa Kerr. He is a pianist and teacher of theory with the University of São Paulo Choir. As a popular music percussionist, he has taken part in shows and recordings with artists such as Eliete Negreiros, José Miguel Wisnik, Osvaldinho da Cuíca, Grupo Beijo, Virgínia Rosa, Paulo Tatit and Sandra Peres, Mônica Salmaso, Ivaldo Bertazzo. He took part in ethnomusicology courses with Tiago de Oliveira Pinto and Kasadi wa Mukuna at USP. He has been carrying out research on Brazilian popular music traditions since 1988, particularly Afro-Brazilian music in the Southeast. The results of this work have been spread through workshops, publications, radio and TV broadcasts, discs and exhibitions. He regularly gives courses and lectures, and takes part in symposiums and conferences in Brazil and overseas. He is a member of the São Paulo State Council of Culture. He formed the Cachuera! Popular Dance Group (Grupo de Danças Populares Cachuera!), dedicated to the Afro-Brazilian repertoire of the Southeast, with presentations in theatres and in public squares, and workshops in Brazil and abroad. He founded and is director of the Cachuera! Cultural Association whose purpose is to research, record and disseminate Brazilian popular culture. This institution’s substantial collection is available for consultation at: www.cachuera.org.br.
agogôs de castanha (coco de castanha-do-pará) construído por Marinheiro, Feira de Santana, BA Brazil nut agogos made by Marinheiro, Feira de Santana, BA caixa de banda cabaçal (12˝) autor desconhecido, Juazeiro do Norte, CE side drum (12˝) author unknown, Juazeiro do Norte, CE caixa de congo (15˝) construído por Rômulo de Albuquerque, São Paulo, SP congo drum (15˝) made by Rômulo de Albuquerque, São Paulo, SP caixa do divino maranhense construída por Alex Macedo, São Paulo, SP Divino (Holy Spirit) drum from Maranhão made by Alex Macedo, São Paulo, SP caixa de moçambique (19˝) construída por Capitão João Lopes, Irmandade de N.Sª. do Rosário de Jatobá, Belo Horizonte, MG moçambique drum (19˝) made by Capitão João Lopes, Irmandade de N.Sª. do Rosário de Jatobá, Belo Horizonte, MG canzá (reco-reco de catupé) autor desconhecido, Perdões, MG canzá (rasp) author unknown, Perdões, MG caxixis autor desconhecido, São Paulo, SP caxixis (basket rattle) author unknown, São Paulo, SP caxixis duplos autor desconhecido, adquiridos na feira de S. Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ double caxixis author unknown bought at the S. Cristóvão market, Rio de Janeiro, RJ chocalho de aguaí e colar de semente de seringueira ticuna autor ticuna desconhecido, Alto Solimões, AM aguaí rattle and ticuna rubber tree seed necklace author of ticuna unknown, Alto Solimões, AM cinto de pequi caiapó construído por Miki Caiapó, Aldeia Gorotire, PA caiapó souari nut belt made by Miki Caiapó, Aldeia Gorotire, PA gongo (35˝) construído por Georg Ehrenwinkler, Campinas, SP gong (35˝) made by Georg Ehrenwinkler, Campinas, SP guizos de tornozelo autor desconhecido, Índia ankle bells author unknown, India
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gungas (chocalhos de tornozelo de moçambique) construído por Paulo Dias, São Paulo, SP gungas (moçambique ankle rattles) made by Paulo Dias, São Paulo, SP maracá de coité caiapó construído por Cramb-Am Caiapó, Aldeia Au-kre, PA coité caiapó maracas made by Cramb-Am Caiapó, Aldeia Au-kre, PA pandeiro (11˝) construído por Fernando Boi, São Paulo, SP tambourine (11˝) made by Fernando Boi, São Paulo, SP pandeirão maranhense de bumba-boi com tarrachas (18˝) construído por Alfredo Madredeus, São Paulo, SP large bumba-boi tambourine from Maranhão with screws (18˝) made by Alfredo Madredeus, São Paulo, SP patagonga ou patangome (chocalho circular de moçambique) autor descohecido, Uberlândia, MG patagonga or patangome (moçambique circular rattle) author unknown, Uberlândia, MG prato suspenso medium thin crash (18˝) marca Zildjian, Estados Unidos medium thin crash suspended plate (18˝) make Zildjian, United States prato suspenso splash (10˝) marca Zildjian, Estados Unidos splash suspended plate (10˝) Zildjian, United States preaca (arco-e-flecha de caboclinhos) construído por Caboclinho Sete Flechas, Recife, PE preaca (caboclinhos percussive bow and arrow) made by Caboclinho Sete Flechas, Recife, PE ritinta maranhense utilizada como tamborinho de congo (6,5˝) construído por Bicho Terra, São Luís, MA ritinta from Maranhão used as congo tambourine (6,5˝) made by Bicho Terra, São Luís, MA sinos de montaria autor desconhecido, Évora, Portugal riding bells author unknown, Évora, Portugal tambu de gameleira construído por Salomma Salomão (Salomão Jovino dos Santos), São Paulo, SP gameleira hand drum made by Salomma Salomão (Salomão Jovino dos Santos), São Paulo, SP vaso de cerâmica construído por Leonora Ferreira, São Paulo, SP ceramic vase made by Leonora Ferreira, São Paulo, SP
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SILVIA RICARDINO harpa medieval medieval harp Nasceu em São Paulo, onde iniciou seus estudos de piano e harpa. Foi aluna de piano de Henriqueta Ricardino e Fritz Jank, entre outros. Estudou harpa de concerto, em São Paulo, com Laura Ferraro, Elza Guarnieri e Henriqueta Ricardino. Aperfeiçoou-se em Paris com a harpista e compositora Annie Challan. Lecionou História da Música e História da Arte na Faculdade de Música Carlos Gomes, de São Paulo. Idealizou e apresentou uma série sobre a harpa em programas produzidos e transmitidos pela Rádio Cultura FM, de São Paulo. Foi professora de harpa da Escola Municipal de Música de São Paulo e foi membro da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Desde 1984 atua em duo com o flautista Marco Antonio Cancello. Dedicando-se preferencialmente à música de câmara, é intérprete de harpa de concerto, harpa celta e harpa medieval trovadoresca.
Silvia was born in São Paulo where she began her piano and harp studies. She studied the piano under Henriqueta Ricardino and Fritz Jank, among others. She studied concert harp under Laura Ferraro, Elza Guarnieri and Henriqueta Ricardino in São Paulo. She developed her technique further in Paris with harpist and composer Annie Challan. She taught Music History and Art History at the Carlos Gomes Faculty of Music in São Paulo. She devised and presented a series on the harp in programmes produced and broadcast by Rádio Cultura FM, São Paulo. She taught harp at the São Paulo Municipal School of Music and was a member of the Municipal Symphonic Orchestra of São Paulo. She has been performing in duo with the flutist Marco Antonio Cancello since 1984. Devoting herself mainly to chamber music, she plays the concert harp, Celtic harp and medieval harp.
harpa troubadour de 22 cordas Camac, França, 1984 22 string Troubadour harp Camac, France, 1984
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Fundadora do Grupo ANIMA, iniciou seus estudos de flauta com João Dias Carrasqueira. Bacharelou-se em flauta-doce na Universidade de Música e Artes Dramáticas de Viena, Áustria, como bolsista da Fundação Alban Berg de Apoio à Pesquisa de Música Contemporânea. Participou de masterclasses na Alemanha, Suíça, Holanda e Itália, tendo estudado com Kees Boeke (Holanda/Itália). Responsável pela direção executiva, direção musical e produção gráfica dos CDs Espiral do Tempo, Especiarias, Amares e Espelho (CD e DVD) do Grupo ANIMA, com o qual ganhou os prêmios APCA (1998) e Carlos Gomes (2000). É integrante do grupo Harmonia Universalis de música antiga. Desenvolve trabalho sobre a interpretação e o ato em música, através da presença física. É formada em Didática da Técnica Klauss Vianna e doutoranda em artes cênicas na UNICAMP/SP. Founder of the ANIMA Group, Valeria began her recorder studies with João Dias Carrasqueira. She graduated in the recorder from the University of Music and Dramatic Arts of Vienna, Austria, with a scholarship from the Alban Berg Foundation for the Support of Research in Contemporary Music. She participated in masterclasses in Germany, Switzerland, Holland and Italy, having studied with Kees Boeke (Holland/ Italy). She was responsible for the executive, musical and graphic production of the CDs Espiral do Tempo, Especiarias, Amares and Espelho (CD
and DVD) of the ANIMA Group, for which she was awarded the APCA (1998) and Carlos Gomes (2000) prizes. She is a member of the Harmonia Universalis ancient music group. She is currently developing work on performance and action in music, by means of physical presence. She graduated in the teaching of the Klauss Vianna technic and is currently taking a doctorate in dramatic arts at the University of Campinas, São Paulo – UNICAMP.
VALERIA BITTAR
flautas-doce históricas e flauta indígena brasileira historical recorders and Brazilian indigenous recorder
flauta contralto construída por Frederick Morgan, Austrália, 1980, a partir de modelo de J. C. Denner, Nürnberg, Alemanha, séc. XVIII alto recorder made by Frederick Morgan, Australia, 1980, after J. C. Denner, Nürnberg, Germany 18th century flauta tenor construída por Luca de Paolis, L´Aquila, Itália, 2005, a partir de modelo de C. Rafi-P. Grece, Veneza, Itália, séc. XVI tenor recorder made by Luca de Paolis, L´Aquila, Italy, 2005, after C. Rafi-P. Grece, Venice, Italy, 16th century flauta soprano construída por Helge Stiegler, Weyer, Áustria, 1999, a partir de modelo de Jacob van Eyck, Holanda, séc. XVI soprano recorder made by Helge Stiegler, Weyer, Austria, 1999, after Jacob van Eyck, The Netherlands, 16th century flauta contralto em sol construída por Abel Vargas, São Paulo, Brasil, 1993, a partir de modelo de Sylvestro Ganassi, Itália, séc. XVI alto recorder in G made by Abel Vargas, São Paulo, Brazil, 1993, after Sylvestro Ganassi, Italy, 16th century flauta yãkwá originária da tribo Enauenê Nauê, Serra da Bodoquena, Mato Grosso Yãkwá recorder from the Enauenê Nauê people, Serra da Bodoquena, Mato Grosso
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Ato 1 O TEMPO MÍTICO (ANIMA) Act 1 THE MYTHICAL TIME (ANIMA)
1. VISÃO fragmentos de cantiga de cipó, povo Kaxinawá, AC fragments of a liana song, Kaxinawá people, state of Acre Trata-se de fragmento adaptado de cantos do nishi pae (cipó), dos Huni Kuin, também chamados Kaxinawá ou Caxinauá, um povo de cerca de 4.500 indivíduos vivendo em aldeias às margens do rio Jordão, Acre, e cujo tronco linguístico é o Pano. Esses cantos são transmitidos pela Jiboia branca, que aparece quando se bebe ayahuasca para se ver “o mundo do cipó”, prática que ocorre aproximadamente duas a três vezes por mês; e alcançar Yuxin, ou seja, a força vital que permeia todo ser vivo na terra, cujo mito de origem relata que as mulheres aprenderam a fazer desenhos a partir de um ser que se metamorfoseia em mulher, a pele desenhada com os padrões geométricos copiados da pele da Jibóia branca, origem de todos os grafismos Kenê, o Kene Kuin (desenho verdadeiro), marca importante para a identidade Kaxinawá. Ao transformar esses padrões em desenhos materializados no mesmo momento em que se manifestam essas visões, ocorre a aproximação dos seres humanos com o “luminoso mundo dos deuses”. Essa manifestação da anima – Yuxin, espírito – representa o caminho que une a água ao sol. A mulher-cobra sai do fundo do lago que separa os mortais dos imortais, para transmitir todos os conhecimentos aos seres humanos, inclusive a música e os desenhos. Para aprender as músicas, fazer os bordados e os desenhos é preciso consumir as plantas que manifestam esse poder, o piripiri e ayahuasca. Com essas plantas a visão se torna mais acurada e as mulheres materializam essas imagens de Kenê captadas pela mente transformando-as em música, pintura corporal, bordados, tecidos, cerâmica, madeira, trabalhos em miçangas etc. Visão é, portanto, uma adaptação, licença poética sobre um fragmento musical de manifestação da beleza Kaxinawá, quando se bebe o nishi pae. This is a fragment adapted from nishi pae (liana) songs of the Huni Kuin, also known as Kaxinawá or Caxinauá, a people consisting of about 4,500 individuals living in villages on the banks of the River Jordão, in the state of Acre, and whose language belongs to the Pano family. These songs are transmitted by the white Boa, which appears when one drinks ayahuasca to see “the liana world”, a practice which occurs approximately twice or three times a month; the aim is to attain Yuxin, that is the life force, which permeates all living beings on earth, and whose origin myth tells that the women learned to make designs from a being that metamorphoses into a woman, her skin decorated with geometrical patterns copied from the skin of the white Boa, the origin of all the Kenê, o Kene Kuin (true design) graphisms, an important mark of Kaxinawá identity. By transforming these patterns into real designs at the very moment the visions appear, human beings approach the “luminous 43
world of the gods”. This manifestation of anima – Yuxin, spirit – represents the path that unites water with the sun. The snake-woman comes from the bottom of the lake which separates mortals from immortals to transmit all her knowledge to human beings, including music and design. To learn the songs, make the embroidery and designs it is necessary to eat the plants which manifest this power, the piripiri and ayahuasca. With these plants the vision becomes sharper and the women materialize these Kenê images picked up by the mind, transforming them into music, body painting, embroidery, fabrics, pottery, wood, work with beads etc. Visão (Vision) is therefore an adaptation, poetic licence, of a musical fragment of the manifestation of Kaxinawá beauty when one drinks nishi pae. Marlui Miranda
Ai ho ne nishi pona kaie Pona kaie piri mã pö nishi Pami kati Noíra ni ni - ni ni ni Noíra ni ni - ni ni ni A tama hüi ei hüi ei Piri mã püb kati Pami kati Noíra ni ni - ni ni ni Noíra ni ni - ni ni ni A mateguam matewa Pa nishi pami kati Noíra ni ni - ni ni ni Noíra ni ni - ni ni ni A da o kã hüi ei hüi ei Piri mã pö nishi Pami kati Noíra ni ni - ni ni ni Noíra ni ni - ni ni ni transcrição fonética phonetic transcription
Marlui Miranda voz / voice • Paulo Dias vaso de cerâmica / ceramic vase Valeria Bittar flauta yãkwá / yãkwá recorder adaptação / adaptation: Marlui Miranda • arranjo / arrangement: Marlui Miranda, Paulo Dias, Valeria Bittar
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2. O FRONDENS VIRGA Hildegard von Bingen (1098-1179), antífona in Symphonia harmoniae caelestium revelationum Hildegard von Bingen (1098-1179), antiphon in Symphonia harmoniae caelestium revelationum Dando continuidade à primeira parte do roteiro musical Donzela Guerreira, instigados pelos atributos da donzela de visionária, sábia e virgem, escolhemos a antífona O Frondens Virga (Ó Ramo Frondoso) da Sibila do Reno, Hildegard von Bingen. Hildegard teve sua vida inteiramente marcada pelas visões do universo, da criação e da transcendência. Criada desde cedo em um mosteiro às margens do Reno, na idade adulta dá vazão às suas visões por meio de trabalhos sobre “teologia cósmica” (Scivias), medicina (Causae et Curae) e composições musicais. Dentre estas, Symphonia harmoniae caelestium revelationum que contém sequências e antífonas (O Frondens Virga – faixa 2), hinos, responsórios (Ave Maria – faixa 6) e o drama musical Ordo Virtutum; são obras consideradas dos primeiros legados musicais escritos de autoria feminina. Segundo o medievalista e cantor Fernando Carvalhaes, o drama “Ordo Virtutum (Auto das Virtudes) é o primeiro auto de moralidade que se tem notícia; apresenta, por meio de diálogos poético-musicais, a batalha travada entre 16 virtudes em busca da alma (Anima) e o demônio. O texto é de teor altamente místico. As imagens vívidas dos poemas são acompanhadas por uma música de estilo improvisatório, rapsódico, que emprega fórmulas melódicas estruturadas de maneira estranha aos padrões da linguagem modal da época; há, por exemplo, constantes mudanças de modos, inclusive nas terminações” (DUARTE CARVALHAES, 2006). Inspirados nas possibilidades de improvisação de O Frondens Virga, construímos a linha da flauta sob a melodia da voz. Lançando mão de metáforas, o texto de Hildegard dirige-se à Vigem – comparada a um ramo frondoso “que em sua nobreza é como a aurora ao despontar” – rogando-lhe que nos livre dos hábitos perniciosos e nos eleve. Hildegard von Bingen manteve intensa correspondência com teólogos, papas e reis, o que a colocou em uma posição diferenciada entre as religiosas de seu tempo, chegando a fundar um outro mosteiro (St. Giselbert). Em sua obra no campo das ciências espirituais e naturais, a monja visionária sustenta que o mais alto patamar da vida espiritual é alcançado através da virgindade. Mesmo assim, escreve profusamente sobre a vida secular, inclusive sobre a maternidade, e é a primeira mulher a registrar uma espécie de tratado sobre a sexualidade feminina. Continuing on from the first part of the Warrior Maiden musical script, inspired by the maiden’s attributes as a visionary, wise woman and virgin, we chose the antiphon O Frondens Virga (O Leafy Branch) from the Sybil of the Rhein, Hildegard von Bingen. Hildegard had her life marked entirely by visions of the universe, creation and transcendence. Brought up from an early age in a convent on the banks of the Rhein, she found an outlet for her visions in adult life through works about “cosmic theology” (Scivias), medicine (Causae et Curae) and musical compositions, among them Symphonia harmoniae caelestium revelationum containing sequences and antiphons (O Frondens Virga – track 2), hymns, responses (Ave Maria – track 6) and the musical drama Ordo Virtutum; these works are considered to be among the first examples of written music by a woman composer. According to the medievalist and singer Fernando Carvalhaes, the “‘Ordo Virtutum’ drama is the first morality play that we know of; it shows, by means of poetic-musical dialogues, the battle waged among 16 virtues in search of the soul (Anima) and the devil. The text is highly mystical. The vivid images of the poems are accompanied by music of an 45
improvisational, rhapsodic style, which uses melodic formulae structured in a different way to the standard modal language of the time; there are, for example, constant changes in modes, including in the endings” (DUARTE CARVALHAES, 2006). Inspired by the possibilities of improvisation of O Frondens Virga, we constructed a recorder line under the voice melody. With the use of metaphors, Hildegard’s text addresses the Virgin – compared to a leafy branch “who in her nobility is like the breaking dawn” – begging her to rid us of our sinful ways and to raise us up. Hildegard von Bingen carried on an intense correspondence with theologians, popes and kings, which gave her a unique position among the nuns of her time; she even founded another convent (St. Giselbert). In her works in the field of spiritual and natural sciences, the visionary nun claimed that the highest level of spiritual life is achieved through virginity. However, she wrote profusely about secular life, including motherhood, and she is the first woman to write a kind of treatise on female sexuality. Valeria Bittar
O frondens virga, In tua nobilitate stans Sicut aurora procedit. Nunc gaude et laetare Et nos debiles dignare A mala consuetudine liberare, Atque manum tuam porrige Ad errigendum nos.
Marília Vargas soprano • Valeria Bittar flauta-doce tenor / tenor recorder arranjo / arrangement: Marília Vargas, Valeria Bittar
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Caixeiras do Divino Espírito Santo no Maranhão
Paulo Dias
Talvez o culto do catolicismo popular de maior alcance no Brasil, o Divino Espírito Santo ter-se-ia difundido a partir de Portugal no século XVII, trazido por imigrantes açorianos. Aqui chamada afetivamente de Divino, a terceira pessoa da santíssima trindade é celebrada cinquenta dias após a Páscoa – o tempo de Pentecostes da tradição bíblica, quando se manifestou aos apóstolos na forma de línguas de fogo, inspirando-os a falar diferentes línguas para divulgar Sua palavra nos quatro cantos do mundo. Inspirada por idéias do monge cisterciense Joaquim de Fiori, a rainha católica Isabel de Aragão institui o culto em Portugal em 1323, posteriormente proibido pela igreja. Trata-se, porém, de tradição muito mais antiga, provinda de rituais de primícias etruscos e hebreus. Segundo de Fiori, ao chegar a Era do Espírito Santo, se estabeleceria um contato direto entre homens e divindade, dispensando-se a intermediação da igreja. Não é por acaso que, no Brasil, a adoração ao Divino permanece mais fora que dentro da igreja, mantida quase exclusivamente pela tradição popular. As procissões ostentando bandeiras vermelhas com o Pombo ao centro, a coroação de imperador e imperatriz, a farta distribuição de alimentos, bem como a presença de grupos musicais ambulantes (folias) são marcas características do festejo por todo o país. No Estado do Maranhão, o culto ao Divino apresenta a peculiaridade de ser oficiado por mulheres, as Caixeiras do Divino Espírito Santo. O tambor, instrumento tabu para o sexo feminino na grande maioria das tradições populares brasileiras, é apanágio dessas sacerdotisas no Maranhão, as quais conduzem cada etapa ritual da Festa do Divino com cantos e toques de caixa específicos. As caixas do Divino, tambores de duas peles tendidas por cordas semelhantes às caixas de guerra européias, são percutidas em diferentes situações: quando as caixeiras se encontram sentadas em duas filas confrontantes diante da tribuna do Divino, caminhando nas procissões de rua ou dançando para saudar os Impérios sentados em seus tronos – imperador, imperatriz e seus mordomos, papéis desempenhados por crianças. 47
Fincando raízes na Idade Média européia, a música do Divino no Maranhão – e em diferentes regiões do Brasil – é rica em arcaísmos rítmicos e melódicos. As dezenas de padrões rítmicos dos diferentes toques das Caixeiras do Divino são em sua maioria ternários ou com subdivisão ternária, o que os aproxima da rítmica medieval, predominantemente ternária – o perfectum, exprimindo musicalmente a perfeição da Trindade –, assim como o uso frequente da hemiola, alternando binário composto e ternário simples (2 x 3 + 3 x 2 pulsos). É o caso do toque da Alvoradinha, utilizado para saudar o mastro do Divino nas horas fortes (correspondentes às horas canônicas: seis da manhã, meio-dia, seis da tarde), com versos alusivos às fases do dia. O outro toque aqui ouvido, Nossa Senhora da Guia, com padrão ternário e linha melódica em modo mixolídio, tem por função oficiar as passagens rituais do levantamento e do derrubamento do mastro. Tanto esta quanto a Alvoradinha (faixa 3) constam do repertório preservado pelas caixeiras do Divino da Casa Fanti-Ashanti, de São Luís-MA, templo afrobrasileiro liderado pelo Talabian Euclides de Menezes, e foram gravadas em CD (2002) pelas caixeiras da família Menezes: Anunciação de Maria (Dindinha), Maria José (Zezé), Maria da Graça e Bartira Menezes. A manutenção dessa tradição do catolicismo popular no Maranhão deve-se, principalmente, às afrodescendentes ligadas às casas de Tambor de Mina, versão local do Candomblé. O papel de protagonismo percussivo, musical-poético e ritual das sacerdotisas maranhenses do Divino – que é dos homens nos outros lugares do Brasil – tem a medida de sua importância expressa no reconhecimento e respeito dedicados à confraria das caixeiras em suas comunidades. O arranjo do Grupo ANIMA nas faixas 2 e 3 aproxima o canto espiritual dessas mulheres, a um tempo intérpretes, compositoras (as toadas são muitas vezes improvisadas) e profundas conhecedoras das sequências rituais da festa do Divino, aos da alemã Hildegard von Bingen (1098-1179), mulher compositora e ritualista que desafiou os padrões do tempo em que viveu. Na sequência (faixas 2, 3 e 4), a estrutura em hemiola do toque da Alvoradinha e o ternário perfectum de Nossa Senhora da Guia (faixa 5) encarregam-se de irmanar antigas tradições musicais maranhenses e ibéricas, ambas sobre versos alusivos à Virgem Maria, quando se alternam, e depois se superpõem brevemente, a toada das caixeiras e a cantiga Rosa das Rosas, atribuída ao rei-compositor Afonso X (século XIII). Drummers of the Holy Spirit in the state of Maranhão
Paulo Dias
The widespread devotion to the Holy Spirit in Brazilian Catholicism may have spread from Portugal in the 17th century, brought by immigrants from the Azores. Affectionately called Divine here, the third person of the Trinity is celebrated fifty days after Easter – the time of Pentecost in the biblical tradition, when He appeared to the apostles in the form of tongues of fire, inspiring them to speak different languages to spread His word to the four corners of the world. Inspired by the ideas of the Cistercian monk Joaquim de Fiori, the Catholic Queen Isabel of Aragon established devotion to the Holy Spirit in Portugal in 1323, but it was later banned by the church. However, it is part of a much older tradition, coming from rites of the ancient Etruscans and Hebrews. According to de Fiori, when the time of the Holy Spirit comes, there will be direct contact between men and God, making the Church’s intermediation un-
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necessary. It is no accident that in Brazil adoration of the Divine remains more outside than inside the Church, kept up almost exclusively by popular tradition. Processions bearing red flags with a dove in the centre, the coronation of the Emperor and Empress, the distribution of food and the presence of musical groups (folias) are characteristic features of the celebrations throughout the country. In the State of Maranhão, devotion to the Holy Spirit is unusual in that it is presided over by women, the Drummers of the Holy Spirit. The drum, a taboo instrument for the female sex in most popular Brazilian traditions, is a special characteristic of these Maranhão priestesses, who conduct each ritual step of the Feast of the Holy Spirit with specific songs and drum beats. The Holy Spirit drums, drums with two skins stretched by ropes like European military side drums, are played in different situations: when the drummers are seated in two opposite rows in front of the altar of the Holy Spirit, walking in the street processions or dancing to acclaim the Emperors seated on their thrones – emperor, empress and their attendants, roles performed by children. With its roots in the European Middle Ages, the music of the Divine in the state of Maranhão – and in different regions of Brazil – is rich in rhythmic and melodic archaisms. The dozens of rhythmical patterns of the different beats of the Drummers of the Holy Spirit are mainly ternary or with a ternary subdivision, which makes them similar to the predominantly ternary medieval rhythm – the perfectum, which expresses musically the perfection of the Trinity - as well as the frequent use of the hemiola, alternating compound binary and simple ternary (2 x 3 + 3 x 2 beats). This is the case with the Alvoradinha (little dawn) beat, used to acclaim the pole of the Divine in the strong hours (corresponding to the canonical hours: six in the morning, midday and six in the evening), with verses alluding to the phases of the day. The other beat heard here, Nossa Senhora da Guia, with a ternary pattern and melodic line in Mixolydian mode, has the function of accompanying the ritual passages of the raising and lowering of the pole. Both this and Alvoradinha (track 3) are part of the repertoire preserved by the Drummers of the Holy Spirit of the Fanti-Ashanti House in São Luís, Maranhão, an AfroBrazilian temple led by Talabian Euclides de Menezes, and were recorded on CD (2002) by the drummers of the Menezes family: Anunciação de Maria (Dindinha), Maria José (Zezé), Maria da Graça and Bartira Menezes. The keeping-up of this popular Catholic tradition in Maranhão is mainly due to the Afro-descendants connected to the houses of Tambor de Mina, a local version of Afro-Brazilian religion Candomblé. The importance of the rhythmic, musical-poetic and ritual role played by the Maranhão priestesses of the Divine – which is carried out by men in other parts of Brazil – can be measured by the recognition and respect dedicated to this sisterhood of drummers in their communities. The Grupo ANIMA’s arrangement on tracks 2 and 3 links the hymns of these women, at the same time performers, composers (the tunes are often improvised) and experts in the ritual sequences of the Feast of the Divine, with those of Hildegard von Bingen (1098-1179), the German composer and ritualist who defied the standards of the times in which she lived. In the sequence (tracks 2, 3 and 4), the structure in hemiola of the beat of Alvoradinha and the perfectum ternary of Nossa Senhora da Guia (track 5) bring together ancient musical traditions from the Iberian Peninsula and Maranhão, both using verses alluding to the Virgin Mary, when they alternate, and then briefly superimpose, the melody of the drummers with the song Rosa das Rosas, attributed to the composer-king Afonso X (13th century).
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3. ALVORADINHA Caixeiras do Divino do Maranhão (tradição oral). Fragmentos da versão interpretada em 2002 pelas caixeiras da família Menezes – Anunciação de Maria (Dindinha), Maria José (Zezé), Maria da Graça e Bartira Menezes –, da Casa Fanti-Ashanti, São Luís, MA The Drummers of the Holy Spirit from the state of Maranhão (oral tradition). Fragments of the version performed by the Menezes family drummers in 2002 – Anunciação de Maria (Dindinha), Maria José (Zezé), Maria da Graça e Bartira Menezes – of the Fanti-Ashanti House, São Luís, Maranhão.
Eu vou cantar alvorada Não sei se alvorada eu canto Vou cantar alvoradinha Do Divino Esp’rito Santo
O sol pensa que me engana Trago ele ao meu jeito Ele sai, eu me levanto Ele se põe, eu me deito Alvorada nova...
Alvorada nova Novas Alvorada De manhã bem cedo Sobre a madrugada Alecrim cheiroso Angeca dobrada No sair da estrela Ela foi c’roada
Lá vai o sol se escondendo Deixando o mundo sem luz Só peço que não me deixe Pelas chagas de Jesus Alvorada nova...
Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson • Marília Vargas soprano Marlui Miranda voz / voice • Paulo Dias caixa do divino maranhense / drum of the Divine of Maranhão Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Valeria Bittar flauta-doce soprano / soprano recorder adaptação / adaptation: Paulo Dias • arranjo / arrangement: Grupo ANIMA
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4. ROSA DAS ROSAS Dom Afonso X, o sábio (1221-1284) Don Alfonso X, the wise (1221-1284) Rosa das Rosas é um canto de louvor à Virgem contido nas Cantigas de Santa Maria, uma coletânea de mais de 400 cantigas atribuídas a D. Afonso X, rei de Leão e Castela. Escritas em galaico-português, narram os milagres de Nossa Senhora, representando um dos mais importantes documentos medievais que preservaram música, poesia e iluminuras. Considerando-se que talvez sejam mais o trabalho de uma equipe do que do próprio punho de D. Afonso X, as Cantigas de Santa Maria, com sua opulência e esmero no registro iconográfico, trazem a dimensão da importância que o trabalho artístico assumiu em sua corte. Segundo Bernardo M. de Castro, apesar do culto à Virgem ter movido sua concepção, “a criação das ‘cantigas’ tem uma dimensão exclusivamente voltada para a experiência da fruição, por ser o prazer do contato com a obra de arte (entre outros tantos prazeres) algo valorizado por D. Afonso. Isto é, a estética, enquanto esmero com as iluminuras, música e literatura, não possui [exclusivamente] um caráter doutrinário nem moral”. (CASTRO, 2005, p. 36) Rosa das Rosas is a song of praise to the Virgin, contained in the Songs of the Virgin Mary, a collection of more than 400 songs attributed to D. Alfonso X, King of Castile and Leon. Written in Galician-Portuguese, they tell the miracles of Our Lady, constituting one of the most important medieval documents that preserved music, poetry and illuminations. Given that they may be the work of a team rather than just by D. Alfonso X, the Songs of the Virgin Mary, with its opulence and care in iconographic records, is proof of the importance accorded to the arts in his court. According to Bernardo M. de Castro, although it was the cult of the Virgin that led to its conception, “the creation of the ‘songs’ has a dimension exclusively concerned with the experience of fruition, as the pleasure of contact with works of art (among many other pleasures) was something D. Alfonso valued. That is, aesthetics, as excellence in illumination, music and literature, does not have [exclusively] a doctrinaire or moral character.” (CASTRO, 2005, p. 36) Luiz Fiaminghi
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“Esta é de loor de Santa Maria, com’ é fremosa e bõa e á gran poder.”
Rosas das rosas e Fror das frores, Dona das donas, Sennor das sennores.
Devemo-la muit’ amar e servir, ca punna de nos guardar de falir; des i dos erros nos faz repentir, que nos fazemos come pecadores. Rosa das rosas e Fror das frores...
Rosa de beldad’ e de parecer e Fror d’alegria e de prazer, Dona en mui piadosa seer, Sennor en toller coitas e doores. Rosa das rosas e Fror das frores...
Esta dona que tenno por Sennor e de que quero seer trobador, se eu per ren poss’ aver seu amor, dou ao demo os outros amores. Rosa das rosas e Fror das frores...
Atal Sennor dev’ ome muit’ amar, que de todo mal o pode guardar; e pode-ll’ os peccados perdõar, que faz no mundo per maos sabores. Rosa das rosas e Fror das frores...
Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson • Marília Vargas soprano Marlui Miranda voz / voice • Paulo Dias caixa do divino maranhense / drum of the Divine of Maranhão Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Valeria Bittar flauta-doce tenor / tenor recorder arranjo / arrangement: Luiz Fiaminghi
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5. NOSSA SENHORA DA GUIA Caixeiras do Divino do Maranhão (tradição oral). Fragmentos da versão interpretada em 2002 pelas caixeiras da família Menezes – Anunciação de Maria (Dindinha), Maria José (Zezé), Maria da Graça e Bartira Menezes –, da Casa Fanti-Ashanti, São Luís, MA The Drummers of the Holy Spirit from the state of Maranhão (oral tradition). Fragments of the version performed by the Menezes family drummers in 2002 – Anunciação de Maria (Dindinha), Maria José (Zezé), Maria da Graça and Bartira Menezes – of the Fanti-Ashanti House, São Luís, Maranhão.
Nossa Senhora da Guia Ta co’a frente para o mar Para ver seu bento Filho Quando vem de Portugal
Quando o mastro for acima Eu quero ser a primeira Eu quero pegá nas asas Do pombinho verdadeiro
Nossa Senhora da Guia Me empreste o vosso manto Eu quero subir ao céu Domingo do Esp’rito Santo
Que bonito pé de arv’re Que nasceu pra sê feliz Pra servi de mastaréu Na festa da imperatriz
Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson • Marília Vargas soprano Marlui Miranda voz / voice • Paulo Dias caixa do divino maranhense / drum of the Divine of Maranhão Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Valeria Bittar flauta dupla (soprano e contralto sol) / double recorder (soprano and G alto) adaptação / adaptation: Paulo Dias • arranjo / arrangement: Grupo ANIMA
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6. AVE MARIA – TUPÃ CY anônimo gregoriano / improvisação sobre Ave Maria em língua Tupi / fragmentos e improvisação sobre Hildegard von Bingen (1098-1179), responsório Ave Maria in Symphonia harmoniae caelestium revelationum Gregorian Chant anonymous / improvisation on the Ave Maria in Tupi / fragments and improvisation on Hildegard von Bingen (1098-1179), Ave Maria responsory in Symphonia harmoniae caelestium revelationum Finalizamos a primeira parte de nosso roteiro com um arranjo musical que comporta três momentos de improvisação, que transitam num ambiente multilinguístico e cronológico não linear. A versão gregoriana de Ave Maria, que abre esta faixa, é extraída do Liber Usualis e seguida de uma improvisação melódica sobre a oração Ave Maria, transcrita em língua tupi. Essa Ave Maria, segundo o musicólogo Paulo Castagna, era provavelmente cantada nos séculos XVI e XVII com melodia gregoriana não determinada, cuja finalidade adaptava-se à catequização indígena. A esse improviso sobrepôs-se uma terceira improvisação, baseada em trechos de melodia do responsório Ave Maria da Sibila do Reno, Hildegard von Bingen. We come to the end of the first part of our script with a musical arrangement that contains three moments of improvisation, which move in a non-linear, multilinguistic, chronological environment. The Gregorian version of Ave Maria, which opens this track, is an excerpt from the Liber Usualis and is followed by a melodic improvisation on the Hail Mary prayer transcribed into Tupi. This Ave Maria, according to the musicologist Paulo Castagna, was probably sung in the 16th and 17th centuries with an undetermined Gregorian melody, whose purpose was to catechise indigenous people. A third improvisation is superimposed on this one, based on parts of the melody of the Ave Maria responsory from the Sybil of the Rhein, Hildegard von Bingen. Valeria Bittar
Gregoriano / Gregorian Chant: Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum, Benedicta tu in mulieribus, Et benedictus fructus ventris tui, Jesus. Sancta Maria, Mater Dei, Ora pro nobis, peccatoribus, Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.
Tupi: Ave Maria graça rece tyri cembae nde irunamo nde jara recou imombeu catu pyram ereico cunhamsui, imombeu catu pyrabe ndemembyra Jesu Santa Maria Tupã cy e Tupã mongetá ore angaipabarece Co-yr, oiar, oréieky, I oré ni mebino, Amen, Jesu. Ave Maria graça resé tynysembaé, nde irunamo nde iara sekou; i mombe’úkatupyramo ereikó kunhã suí; i mombe’ukatupyra bé nde membyra Jesu. Santa Maria, Tupã cy, etupãmongetá ore angaipaba resé. Ko ‘yr, ore iyeky ore. Amen Jesu.
Marília Vargas soprano • Marlui Miranda voz / voice • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson Paulo Dias maracá de coité caiapó / coité caiapó maracas • Carlos (KK) Akamine gongo / gong arranjo / arrangement: Luiz Fiaminghi, Marília Vargas, Marlui Miranda
Ato 2 O SANGUE FECUNDA A TERRA (ANIMUS) Act 2 BLOOD FERTILIZES THE EARTH (ANIMUS)
A memória da Rainha Ginga e dos Reis do Congo nas Congadas brasileiras
Paulo Dias
As congadas foram descritas no Brasil desde o século XVII, quase sempre associadas aos africanos e descendentes que integravam as Irmandades Negras de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Ifigênia. Sabe-se, hoje, o importante papel que desempenharam essas confrarias, na Colônia e no Império, como interface estratégica de sociabilização dos negros escravizados e forros: era no interior de uma instituição européia, a Irmandade, sob a égide de sua cristianização, que africanos de origem banto puderam rearticular, ressignificados, alguns de seus cultos ancestrais, como a reverência aos antepassados e às linhagens de nobreza. As festas em torno da coroação e os cortejos de monarcas negros, os Reis Congos, eleitos simbolicamente entre escravizados, representavam para estes talvez a única oportunidade de inserção na sociedade colonial brasileira. Segundo a crônica, o casal de soberanos negros fazia-se acompanhar de uma corte que representava danças, cantos, toques de instrumentos e dramatizações de guerra, a cargo de grupos de multiperformance que ficaram conhecidos como congadas. Hoje em dia, restam umas poucas congadas que mantêm o entrecho dramático, ou seja, falas e ações encenando embaixadas e lutas entre dinastas africanos, de permeio a uma suíte de cantos e danças (o que as inclui entre as Danças Dramáticas descritas por Mário de Andrade). Nota-se, aqui e ali, a interpolação de personagens da gesta de Carlos Magno e os Doze Pares de França, disseminadíssima no Brasil colonial, em gestas africanas de afirmação de orgulho étnico, em que um monarca é celebrado como grande vencedor na batalha contra seu rival. A sempre vigilante catequese contrarreformista insinua matreiramente os cavaleiros do rei cristão dos francos entre os pares do rei do Congo: assim, vamos encontrar os combatentes carolíngios Roldão e Oliveiros como dignitários daquele soberano nas congadas paulistas de Ilhabela e São Sebastião que, ao vencerem o inimigo Embaixador de Luanda, dão como condição para a paz o batismo deste e de todo o seu exército. A presença da fábula de conversão a ferro e fogo nesses folguedos não é mera casualidade, mas tem ligação com a memória coletiva em torno de uma série de dinastas africanos que historicamente adotam o catolicismo como estratégia para se aliar aos portugueses, durante o conflituoso período de preação escrava que justificava a presença colonial portuguesa na África CentroOcidental (região do Congo-Angola). A triste lealdade aos traficantes lusitanos de gente, a que são compelidos diferentes Manicongos – soberanos do Congo – torna-se alternativa única para o favorecimento militar na guerra preta. Interferindo diretamente na relação política entre o muene-kongo e os povos que lhe devem tributo, o poder colonial português incentiva conflitos em que os vencidos são transformados em mercadoria e desterrados para a construção do novo mundo. Nesse processo, os Reis do Congo vão adotando elementos culturais portugueses, de permeio com os seus próprios, como a religião, a língua falada e escrita, o fausto e luxo dos para57
mentos e insígnias reais. Mandam seus filhos estudar em Coimbra, e alguns deles voltam como prelados católicos. É, portanto, na forma de reis cristãos que eles se inscrevem nos quadros da memória coletiva afrobrasileira, e é como tal que figuram nas congadas. Seus inimigos? Nas congadas do litoral norte paulista são os soberanos (pagãos) de Angola, antigo Reino do Ndongo, que não aparecem fisicamente na encenação, mas representados por um Embaixador. Na faixa 7 ouvimos embaixadas (falas em versos) do Príncipe e do Secretário do Rei de Congo alertando sobre a invasão do território deste monarca pelos exércitos do Embaixador de Luanda. Na última estrofe segue-se a declaração de guerra proferida pelo Rei de Congo. Essas falas foram extraídas das embaixadas da Congada de São Sebastião, na versão gravada em CD em 1996. Dois agogôs de castanha-do-pará superpostos sugerem o toque corrido da marimba da Congada de Ilhabela, com solo de tambu (tambor de mão de uma pele) e caxixis propondo acentuações que subdividem de diferentes maneiras o clave banto-brasileiro de 12 pulsos (12/8). Se no confronto congadeiro os personagens polares Rei do Congo e Embaixador de Luanda encarnam memórias de um coletivo de líderes rivais do Congo-Angola sob o jugo europeu, ergue-se em meio a esses soberanos sem rosto uma altiva figura com personalidade histórica individual: a temível Nzinga Mbandi, rainha de Angola e Matamba. (faixas 15 e 16). Nzinga Mbandi nasceu em 1582, filha do Ngola Mbandi Kiluanji, líder máximo do Ndongo, território do que viria a ser a atual Angola. Combate os portugueses ao lado do pai até a derrota deste. Vai a Luanda como embaixatriz, e deixa boquiabertos os representantes do poder colonial português pela sua inteligência e fina sagacidade. Retira-se em seguida para o território de Matamba onde, após aliar-se aos jagas, torna-se sua líder, a primeira soberana mulher da história desse povo guerreiro. Daí em diante, razias e saques aos comboios em que traficantes lusos conduziam africanos escravizados foram sua marca registrada. As duras investidas de Nzinga Mbandi contra o poder colonial português incluíram uma breve aliança com os holandeses pelo controle de Luanda. Tendo a alma disputada por jesuítas e capuchinhos, converteu-se uma primeira vez ao catolicismo (por razões estratégicas?) em 1621 e se fez batizar Ana de Souza, abandonando logo depois a nova fé pelo retorno à religião dos ancestrais jagas. Conta-se que Nzinga, desafiando e invertendo os padrões civilizatórios vigentes (no caso, a poligamia africana), arrebanhou para si um harém com mais de cem rapazes. Ao final da vida, deixa-se batizar novamente, e morre em 1663, aos 82 anos, como cristã – pelo menos em aparência. Pois a rainha guerrilheira Ginga, como ficou conhecida nas congadas brasileiras, teve como marca o astuto ir e vir, atacar e em seguida recuar, conceder e negacear – como não por acaso sugere o verbo gingar no português do Brasil. Os missionários capuchinhos italianos Gaeta e Cavazzi, seus conselheiros dos últimos momentos, encarregaram-se de divulgar na Europa – não sem carregar nas tintas de seu “paganismo” e “barbárie” – os feitos extravagantes da bela e impetuosa soberana. A memória dessa mulher africana guerreira, insubmissa ao jugo colonial português – prefigurando em séculos as lutas anticoloniais dos países africanos – estende-se para além das fronteiras de seu tempo e lugar, inspirando textos de autores célebres, como Hegel. Ainda hoje, é grande o número de sites da internet que celebram o nome da Ginga, exaltado pelas congadas brasileiras, pelos rappers, pelos movimentos negros e pelas feministas afro-americanas. Em 1818, von Martius relata a presença do casal Rei Congo e Rainha Xinga (sic) numa congada cuja apresentação presenciara por ocasião da aclamação de Dom João VI em Diamantina, Minas Gerais. Trata-se do primeiro registro da presença da Ginga nas congadas. Mário de Andrade re-
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gistrou, em dezembro de 1928, o repertório musical e as embaixadas de um congo em Natal-RN, onde constam como personagens o Reis Cariongo (Rei de Congo) e a Rainha Ginga (ela, de fato, não aparece na cena, mas se faz representar por um Embaixador). No estudo Os Congos, onde apresenta e analisa esta coleta, Mário cita uma congada na Paraíba onde a rainha figura com nome e “sobrenome”, Ginga Ambangi (Nzinga Mbandi). No ano de 1999, tivemos contato com o Sr. Sérvulo Teixeira, contramestre de um grupo de congo da cidade de São Gonçalo do Amarante, nas proximidades de Natal-RN. De seu depoimento gravado constam algumas peças dos congos que, devido à semelhança com as grafadas por Mário, levam a crer que o grupo em questão é herdeiro daquele por ele estudado. Dentre as peças, duas fazem alusão direta à Rainha Ginga: uma é uma espécie de modinha cantada pelo Secretário do Reis Cariongo, dando voz de prisão ao Embaixador da Rainha Ginga (faixa 15), que viera ameaçar o Reis Cariongo em seus domínios; a outra é uma canção guerreira fortemente sincopada, entoada coletivamente quando os cordões do Rei de Congo e da Rainha Ginga combatem entre si, com versos caracterizadores da temível soberana: “Rainha Ginga é mulhé de batalha / Tem duas cadeiras ao redor de navalha”. Ambas são utilizadas em nosso arranjo, de maneira complementar e contrastiva. Rainha Ginga (faixa 16) inicia-se com o toque de candomblé quebra prato, privativo de Iansã, orixá feminino de personalidade guerreira e indomável. Acreditamos que a denominação Oyá Matamba, que Iansã recebe nos candomblés Angola, sugere uma confluência de imaginários – orixá guerreira/rainha guerreira de Matamba (Ginga) – nas franjas entre o mito e a história. Em seguida, duas caixas de congo (de guia e de resposta) e um canzá (reco-reco) homenageiam os congos de Minas Gerais com o toque dobrado, enquanto o tamborinho (tamboril agudo) executa um clave de maracatu, lembrando que este folguedo pernambucano é uma das múltiplas formas que a congada assume no Brasil. A trama se adensa em direção ao final, com a entrada do pandeiro e da caixa grave de moçambique executando figurações solistas, evocando o ímpeto guerreiro da personagem. Uma terceira peça dos congos do Rio Grande do Norte, Fogo, aparece em sobreposição ao Lai, na faixa 10, aludindo ao confronto guerreiro entre os exércitos do Rei de Congo e da Rainha Ginga.
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The memory of Queen Ginga and the Kings of the Congo in Brazilian Congadas
Paulo Dias
Congadas have been described in Brazil since the 17th century, nearly always in connection with Africans and their descendants who belonged to Black Brotherhoods of Our Lady of the Rosary, Saint Benedict and Saint Iphigenia. We now know of the important role these brotherhoods played in colonial and imperial times, as a strategic interface for the socialization of enslaved and freed blacks: it was inside a European institution, the Brotherhood, under the aegis of its Christianization, that Africans of Bantu origin were able to rearticulate and give new meanings to some of their ancestral cults, such as veneration of ancestors and noble lineages. The coronation celebrations and the processions of black monarchs, the Congo Kings, symbolically elected amongst slaves, perhaps represented the only opportunity for them to be part of Brazilian colonial society. According to historical accounts, the black king and queen were accompanied by a court who danced, sang, played instruments, and represented scenes of battle, all of this performed by groups which came to be known as congadas. These days there are only a few congadas which still perform these dramatic narratives, that is, recitations and actions depicting the negotiations and struggles between African dynasts by means of a sequence of songs and dances (which puts them among the Dramatic Dances described by Mário de Andrade). Here and there, we notice the interpolation of characters from the song of Charles the Great and the Twelve Peers of France, widely known in colonial Brazil, in African songs expressing ethnic pride, in which a monarch is celebrated as a great victor in the battle against his rival. The ever-vigilant catechisis of the counter-reformation astutely includes the knights of the Christian King of the Franks among the peers of the King of the Congo: thus, we will find the Carolingian knights Roland and Oliver as dignitaries of that sovereign in the congadas of Ilhabela and São Sebastião which, when the enemy, the Ambassador of Luanda, is defeated, make it a condition of peace that he and his whole army be baptized. The presence of the fable of conversion by force in this kind of popular drama is no mere accident, but is linked to the collective memory around a series of African dynasts who historically adopted Catholicism as a strategy to ally themselves with the Portuguese during the troubled period of the slave trade, which justified the colonial Portuguese presence in west-central Africa (the region of the Congo and Angola). This sad loyalty to the Portuguese human traffickers, into which different Manicongos – Congo sovereigns – found themselves forced, becomes the only alternative to receiving military support in the black war. By directly interfering in the political relations between the muene-kongo and the peoples who owe them tribute, the Portuguese colonial powers encouraged conflicts in which the losers were transformed into merchandise and shipped off for the construction of the new world. In this process, the Kings of the Congo come to adopt Portuguese cultural elements which become mingled with their own, such as religion, the spoken and written language, the pomp and luxury of royal robes and insignia. They send their children to study in Coimbra, and some return as Catholic prelates. It is therefore as Christian kings that they are registered in the Afro-Brazilian collective memory, and it is as such that they figure in the congadas. Their enemies? In the congadas in the northern coast of São Paulo it is the (pagan) sovereigns of Angola, the former Kingdom of Ndongo, who do not appear physically in the dramatization, but are represented by an Ambassador. On track 7 we hear embaixadas (speeches in verse) by the Prince and the Secretary to the King of the Congo warning about the invasion of the monarch’s territory by the armies of the
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Ambassador of Luanda. In the last stanza comes the declaration of war given by the King of the Congo. These speeches are excerpts from the São Sebastião Congada verse speeches, from a version recorded on CD in 1996. Two superimposed Brazil nut agogôs suggest the fast beat of the marimba of the Ilhabela Congada, with the solo on a tambu (a single skin hand drum) and caxixis proposing accentuations that subdivide in various ways the Bantu-Brazilian 12 pulse clave (12/8). While the opposing characters in the congada confrontation, the King of the Congo and the Ambassador of Luanda, embody memories of a group of rival Congo-Angola leaders under European domination, there rises from the midst of these faceless sovereigns a haughty figure with an individual historic personality: the fearsome Nzinga Mbandi, Queen of Angola and Matamba. (tracks 15 and 16). Nzinga Mbandi was born in 1582, the daughter of Ngola Mbandi Kiluanji, supreme leader of Ndongo, the territory which would come to be present-day Angola. She fights the Portuguese beside her father until he is defeated. She goes to Luanda as ambassador, and leaves the representatives of Portuguese colonial power speechless with her intelligence and delicate wisdom. She then withdraws to the land of Matamba where, after forming an alliance with the jagas, she becomes their leader, the first woman sovereign in the history of this warlike people. From then on, raids and attacks on the convoys in which Portuguese traders carried African slaves were her trademark. Nzinga Mbandi’s fierce struggle against Portuguese colonial power included a brief alliance with the Dutch for the control of Luanda. With both Jesuits and Capuchins trying to claim her soul, she first converted to Catholicism (for strategic reasons?) in 1621 and was baptized as Ana de Souza, giving up her new faith soon after and going back to the religion of her Jaga ancestors. It is said that Nzinga, defying and inverting the current standards of civilization (in the case, African polygamy), gathered for herself a harem of more than a hundred boys. At the end of her life she let herself be baptized again and died as a Christian – at least in appearance – in 1663, at the age of 82. So the characteristics that marked the warrior Queen Ginga, as she became known in the Brazilian congadas, were her astute coming and going, attacking then withdrawing, conceding then denying – as is suggested (not by chance) by the verb gingar (moving the body rhythmically from side to side) in Brazilian Portuguese. The Italian Capuchin missionaries Gaeta and Cavazzi, her advisers in her last moments, took it on themselves – not without first laying it on thick about her “paganism” and “barbarism” – to make the extravagant deeds of this beautiful and impetuous sovereign known in Europe. The memory of this African warrior woman, who refused to bow to the Portuguese colonial yoke – prefiguring by centuries the anti-colonial struggles of African countries – has transcended the frontiers of her time and place, inspiring texts by well-known authors such as Hegel. Even today, there are many Internet sites celebrating the name of Ginga, who is praised by the Brazilian congadas, rappers, black movements and Afro-American feminists. In 1818, von Martius described seeing King Congo and Queen Xinga (sic) in a congada in honour of Dom João VI’s visit to Diamantina, Minas Gerais. This is the first mention of the presence of Ginga in the congadas. Mário de Andrade registered the musical repertoire and verse speeches (embaixadas) of a congo in Natal, in the state of Rio Grande do Norte in December 1928, in which the characters were King Cariongo (King of Congo) and Queen Ginga (who did not in fact appear, but was represented by an Ambassador). In his study, Os Congos, in which Mário de Andrade presents and analyses this collection, he
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cites a congada in Paraíba where the queen is featured with a name and a “surname”, Ginga Ambangi (Nzinga Mbandi). In 1999, we talked to Sérvulo Teixeira, leader (contramestre)of a congo group in the town of São Gonçalo do Amarante, near Natal, Rio Grande do Norte. His recorded testimonial includes some pieces of congos which, due to their similarity with those registered by Mário de Andrade, lead us to believe that the group in question descends from the group he studied. Among the pieces are two which refer directly to Queen Ginga: one is a kind of modinha (ancient genre of popular song of Portuguese origin) sung by the Secretary to King Cariongo, arresting Queen Ginga’s ambassador (track 15), who had come to threaten King Cariongo in his own land; the other is a strongly syncopated warrior song, sung collectively when the followers of the King of Congo and Queen Ginga fight one another, with verses that characterize the fearsome sovereign: “Queen Ginga is a broad-thighed warrior / with her two thrones surrounded with daggers”. Both are used in our arrangement in a complementary and contrasting manner. Queen Ginga (track 16) starts with the candomblé quebra-pratos beat specific to Iansã, female orixá with a warlike, indominable personality. We believe that the name Oyá Matamba, which Iansã receives in Angolan candomblés, suggests a convergence of imaginary – warrior orixá/warrior queen of Matamba (Ginga) – on the fringes between myth and history. After this, two congo drums (lead and response) and a canzá (reco-reco) pay tribute to the congos of Minas Gerais with the dobrado beat, while the tamborinho (sharp drum) plays a maracatu clave, reminding us that this traditional cortège dance from the state of Pernambuco is one of the many forms that the congada assumes in Brazil. The plot thickens towards the end with the entry of the tambourine and of the deep moçambique drum executing soloist figurations evoking the warlike impetus of the character. A third piece from the congos of the state of Rio Grande do Norte, Fire, appears superimposed on the Lai, on track 10, alluding to the battle between the armies of the King of
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7. CORRA SANGUE PELA TERRA Congada de São Sebastião (tradição oral). Fragmentos da embaixada segundo versão interpretada em 2001 por Paulo do Nascimento (Príncipe), Buiú (Secretário) e Josué Fortunato (Rei de Congo). Associação Cultural Congadeiros do Bairro de São Francisco, São Sebastião, SP Congada of São Sebastião (oral tradition). Fragments of the verse speech according to a version performed in 2001 by Paulo do Nascimento (Prince), Buiú (Secretary) and Josué Fortunato (King of Congo). Cultural Association of Congadeiros of the São Francisco District, São Sebastião, São Paulo
Príncipe / Prince: Vai correndo, Secretário Vai ver que gente é Se for gente de guerra À campanha dá sinal
Secretário / Secretary: Soberano meu Rei de Congo Eu parte vos venho dar Que a frente da nossa terra ‘Tão querendo nos tomar *
Secretário / Secretary: Príncipe! Gente de guerra é Pelos trajes que trazem Mostram ser de Guiné
Rei de Congo / King of Congo: Vai correndo, Secretário Avisa meu filho, Príncipe Que arma é arma, guerra é guerra Morram todos degolados Corra sangue pela terra.
* Na versão original, no lugar desta quadra está uma fala do Príncipe – “Vai correndo Secretário / Ao meu pai Rei avisar / Que a frente da nossa terra / ’Tão querendo nos tomar” –, seguida pela fala do Secretário – “Soberano meu Rei de Congo / Eu parte vos venho dar / Que a guerra está muito forte / E nela eu não posso entrar”. Na adaptação aqui apresentada, são utilizados os dois primeiros versos da fala do Secretário ao Rei de Congo, seguidos pelos dois últimos versos da fala do Príncipe. * In the original version, instead of this stanza we have a speech by the Prince – “Go fast Secretary / To tell my father the King / That the front of our land / They want to take” – followed by the Secretary’s speech – “Sovereign my King of Congo / I came to inform you / That the war is too strong / And that I can join it”. In the adaptation used here the first two verses of the Secretary’s speech to the King of Congo are used, followed by the last two verses of the Prince’s speech. Marlui Miranda caxixis duplos / double caxixi • Paulo Dias narração, agogôs de castanha, tambu de gameleira / narrator, Brazil nut agogos, gameleira hand drum • Valeria Bittar flauta dupla (soprano e contralto em sol) / double recorder (soprano and G alto) adaptação e arranjo / adaptation and arrangement: Paulo Dias
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8. ROMANCE DA DONZELA GUERREIRA (parte 1) – Romance (tradição oral). Segundo versão interpretada por Elizabete Ferreira Barbosa, Tia Beta, recolhida por Roberto Benjamin, Bráulio do Nascimento e Altimar Pimentel, Cabedelo, PB (part 1) – Romance (oral tradition). According to the version performed by Elizabete Ferreira Barbosa, Tia Beta, collected by Roberto Benjamin, Bráulio do Nascimento and Altimar Pimentel, Cabedelo, Paraíba Em suas inúmeras variantes, o romance da Donzela Guerreira conta a história de um velho pai que lastima não ter filho varão para combater nas guerras santas da Península Ibérica. A mais jovem de suas sete filhas propõe-se desempenhar o papel do filho desejado. Vencendo a relutância do pai e renunciando aos predicados da feminilidade – cabelos longos, pés pequenos, seios altos, olhos garridos – a jovem assume o papel de soldado (Dom João, Dom Varão ou Dom Martinho, dependendo da versão) e parte para a guerra, sem que seja desmascarada. O arranjo musical dessa primeira parte do romance explora o rico contorno melódico do canto original (extraído da versão cantada por Tia Beta) e é construído em uma trama contrapontística a três vozes. Essa trama retrata o diálogo do pai com a filha e a abstração do pensamento da jovem, que usa todos os argumentos para ter a permissão do pai para ir à guerra. In its countless variations, the romance of the Warrior Maiden tells the story of an elderly father who regrets not having a male child to fight in the holy wars of the Iberian Peninsula. The youngest of his seven daughters proposes to perform the role of the longed-for son. Overcoming her father’s reluctance and renouncing to the traits of femininity – long hair, small feet, high breasts, bright eyes – the young girl takes on the role of a soldier (Dom João, Dom Varão or Dom Martinho, depending on the version) and sets out for war, without being unmasked. The musical arrangement of this first part of the romance exploits the rich melodic contour of the original song (taken from the version sung by Tia Beta) and is built on a contrapuntist storyline in three voices. The plot portrays the dialogue between father and daughter and girl’s abstraction of thought, as she uses all the arguments to get her father’s permission to go to war. Luiz Fiaminghi
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Pai / Father: Já está se formando guerra Nos campos de Aragão, Triste de mim que sou velho, Nas guerras me acabarão De sete filhas que tive, Não tive um só varão. Donzela / Maiden:Venham armas e cavalos, que serei seu filho varão. Narrador / Narrator: Responde a filha mais moça, com toda a resolução: Donzela / Maiden: Me mande, meu pai, pra guerra Serei seu filho varão. Pai / Father: Filha, tens os olhos garridos, Por filha conhecerão. Donzela / Maiden: Quando pra eles olharem, Eu os baixarei no chão. Me mande, meu pai, pra guerra, Serei seu filho varão. Pai / Father: Filha, tens os cabelos grandes, Por filha conhecerão. Donzela / Maiden: Mande chamar um barbeiro, Quero ver eles no chão; Me mande, meu pai, pra guerra, Serei seu filho varão.
Marília Vargas soprano • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Valeria Bittar flauta-doce contralto / alto recorder arranjo / arrangement: Luiz Fiaminghi
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9. ARVOREDOS Coco (tradição oral). Segundo versão interpretada por Chico Antônio, coletada em 1928 por Mário de Andrade, RN Coco (oral tradition). According to the version performed by Chico Antônio, collected by Mário de Andrade in 1928, Rio Grande do Norte Em 1928, Mário de Andrade empreendeu sua primeira viagem ao Nordeste brasileiro, coletando extenso material musical que foi posteriormente reunido por sua discípula Oneyda Alvarenga, no volume intitulado Os Cocos. Arvoredos é uma adaptação de uma dessas melodias coletadas por Mário no Rio Grande do Norte, que contém em sua letra a menção à perda do cabelo, um emblema importante na passagem para o masculino e para o espírito guerreiro, ato marcante de transformação da feminilidade e presente em todos os romances que fazem referência à donzela guerreira. In 1928, Mário de Andrade undertook his first journey to the northeast of Brazil, collecting extensive musical material that was later brought together by one of his disciples, Oneyda Alvarenga, in the volume entitled Os Cocos (the Coconuts). Arvoredos (Groves) is an adaptation of one of these melodies collected by Mário de Andrade in the state of Rio Grande do Norte, which mentions in the lyrics the loss of hair, an important symbol in the passage to masculinity and the warrior spirit, an act that marks the transformation of femininity and which is present in all the romances that refer to the warrior maiden. Luiz Fiaminghi
Mana, teus cabelos, mana, são os arvoredos. Toca fogo neles, mana, de manhã bem cedo.
Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson • Marlui Miranda voz / voice • Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Paulo Dias pandeirão maranhense de bumba-boi (18˝) / large bumba-boi tambourine from Maranhão with screws (18˝) adaptação / adaptation: Luiz Fiaminghi • arranjo / arrangement: Luiz Fiaminghi, Marlui Miranda, Paulo Dias, Silvia Ricardino
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10. LAI – FOGO Gautier de Coinci (1177-1236) – Congos do Rio Grande do Norte (tradição oral). Segundo versão interpretada em 1999 por Sérvulo Teixeira, contramestre dos Congos de São Gonçalo do Amarante, RN Gautier de Coinci (1177-1236) – Congos of Rio Grande do Norte (oral tradition). According to the version performed in 1999 by Sérvulo Teixeira, leader of the Congos of São Gonçalo do Amarante, Rio Grande do Norte O lai é uma forma musical de múltiplos aspectos. Ele pode ser apenas narrativo – como os lais de Marie de France – mas também pode ser lírico – como aqueles que compõem o repertório dos trovadores medievais e têm notação musical. Pode, ainda, ser parte de um romance em prosa, como os lais arturianos. Na origem, porém, parece ter sido uma peça instrumental para harpa, independente. Chegaram até nós pouco mais de 30 lais desse tipo e Gautier de Coinci é compositor de vários deles. Nascido em berço nobre, abraçou a vida religiosa e, a partir de 1219, compôs canções à Virgem que inspiraram diretamente Afonso X em suas Cantigas de Santa Maria. Por sua vez, também se baseou em lais, condutos e canções de outros autores, criando melodias que acompanham de perto o texto que lhes serve de inspiração. No caso do presente Lai, Gautier de Coinci inspirou-se na pastorela L’ Autrier Pastoure Seoit de Jocelin de Bruges. Dizem seus versos iniciais: “L’ autrier pastoure seoit lonc un buisson, aignials gardoit, si avoit flaiol pipe et baston: en haut dist et si notoit un novel son, en sa pipe refraignoit le ver d’ une chanson”. (Outro dia uma pastora estava sentada ao lado de um arbusto e guardava suas ovelhas, tinha uma flauta e um cajado; cantava alto e tocava uma nova música, com sua flauta repetia o verso de uma canção). The lai is a musical form with multiple aspects. It can be just narrative – like the lais of Marie de France – but can also be lyrical – like those that make up the repertoire of the medieval minstrels and which have musical notation. It can also be part of prose romance, such as the Arthurian lais. Originally it seems to have been an independent instrumental piece for harp. We know of a little more than 30 lais of this type and Gautier de Coinci is the composer of a number of them. Of noble birth, he embraced the religious life and, from 1219 on, composed songs to the Virgin, which directly inspired Alfonso X in his Songs to the Virgin Mary. He in turn also based himself on lais, conduits and chansons by other authors, creating melodies that closely follow the text that serves as their inspiration. In the case of this Lai, Gautier de Coinci was inspired by the pastorela L’ Autrier Pastoure Seoit by Jocelin de Bruges. The opening verses say: “L’ autrier pastoure seoit lonc un buisson, aignials gardoit, si avoit flaiol pipe et baston: en haut dist et si notoit un novel son, en sa pipe refraignoit le ver d’ une chanson”. (The other day a shepherdess was sitting by a bush watching over her sheep; she had a flute and a staff; she was singing loud and playing a new tune; on her flute she repeated the verse of a song). Silvia Ricardino Fogo e mais fogo, fogo até morrê! Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson • Marília Vargas soprano Marlui Miranda voz / voice • Paulo Dias pandeirão maranhense de bumba-boi (18˝) / large bumba-boi tambourine from Maranhão with screws (18˝) • Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp Valeria Bittar flauta-doce soprano / soprano recorder adaptação / adaptation: Luiz Fiaminghi, Paulo Dias • arranjo / arrangement: Grupo ANIMA
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11. ÑAUMU fragmentos e improvisação sobre texto do povo Yanomami, RR fragments and improvisation of a text of the Yanomami people, Roraima Os Yanomami são um povo que vive em Roraima e na Venezuela, com uma população de aproximadamente 8.000 indivíduos. A língua Yanomami é isolada. Ñaumu é uma adaptação de fragmento transcrito por Marlui Miranda, que fala sobre troca de objetos durante um diálogo cerimonial que acontece na maioria dos rituais e visitas entre os Yanomami. Diz Davi Yanomami que o Ñaumu é uma forma de comunicação: “Ñaumu traz muita notícia de longe pra nós... quando a gente chega na maloca com os amigos, quando a gente traz mensagem, notícias, significa: Ñaumu. (...) Então a gente começa mais ou menos às sete horas até mais ou menos cinco e meia da manhã. A noite inteira... Não é todo mundo que faz isso, não é mulher, mulher não faz isso, mulher só ouvir. (...) Ñaumu não é outra língua não, é Yanomami. Pega só as palavras boas que querem sair pela boca e entrar no ouvido do outro... fala de maneira diferente, não sei explicar... é notícia, tem que colocar certinho, colocar a verdade, colocar de maneira a não machucar o visitante, não estragar amizade, pra não ficar bravo, tem que falar calmo, tem que colocar certas coisas como o comunitário quer. Mas com esse Ñaumu às vezes quando o pessoal tá com raiva, briga, briga, mas depois continua amizade porque a briga ficou lá... pra não atacar ninguém, só pela boca, pelo Ñaumu... pra não machucar ninguém”. Davi Yanomami contou que, no início do mundo, havia uma mulher guerreira, a mulher-coragem, que podia praticar o Ñaumu. Para que outra mulher, hoje em dia, pudesse ter permissão para interpretar um Ñaumu, ele explicou que, por haver esse precedente, poderia abrir uma exceção. The Yanomami are a people who live in the state of Roraima and in Venezuela, with a population of approximately 8,000. The Yanomami language is isolated. Ñaumu is an adaptation of a fragment transcribed by Marlui Miranda, who speaks of an exchange of objects during a ceremonial dialogue that takes place in most rituals and visits among the Yanomami. Davi Yanomami says that Ñaumu is a form of communication: “Ñaumu brings us news from far afield ... when we get to the hut with friends, when we bring a message, news, it means: Ñaumu. (...) Then we start about seven o’clock and go on until about 5:30 am . All night long... It is not everyone who does this, it is not women, women don’t do this, women just listen (...) Ñaumu is not another language, it’s yanomami. It uses just the good words that want to come out of your mouth and be heard by the other... it speaks in a different way, I don’t know how to explain... it’s news, you have to put it the right way, put the truth, put it in a way so you don’t hurt the visitor, don’t spoil the friendship, so they don’t get angry, you have to speak calmly, you have to put certain things the way the community wants. But with this Ñaumu, sometimes when people are angry, they fight and fight, but afterwards continue friends, because the fight was left there... not to attack anyone, only through the mouth, through Ñaumu... so you don’t hurt anyone”. Davi Yanomami told how, at the beginning of the world there was a warrior woman, a brave woman, who could practise Ñaumu. So that another woman today could have permission to interpret a Ñaumu, he explained that, because of that precedent, an exception could be made. Marlui Miranda
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transcrição fonética - base para improvisação (phonetic transcription – basis for improvisation)
Marlui Miranda voz 1 / voice 1 • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Martinho e voz 2 / and voice 2 adaptação / adaptation: Marlui Miranda • arranjo / arrangement: Luiz Fiaminghi, Marlui Miranda
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12. ESTAMPIE BELICHA anônimo, séc. XIV, LBM add. 29987 anonymous, 14th cent., LBM add. 29987 Provavelmente uma forma de dança, as estampies podem ser polifônicas ou monofônicas. A Estampie Belicha, é um exemplo monofônico, encontrada numa fonte francesa do séc. XIV, LBM add. 29987. O nome e os motivos rítmicos dessa estampie remetem diretamente à guerra; a similaridade com a música árabe, em que a linha melódica é dobrada por vários instrumentos, com intersecções improvisadas e virtuosísticas de cada instrumento, pode ser um indicador de suas origens e uma bússola para nossa interpretação. A notação musical das estampies reflete mais o momento de uma música essencialmente improvisada do que a consolidação de uma composição musical rigorosamente estruturada. Isso permite uma grande abertura na escolha interpretativa, que pode ir além das opções de instrumentação e abarcar outras questões estruturais, como a forma e o ritmo. Um dos aspectos explorados nesse arranjo é a função percussiva/harmônica da viola-de-arame, instrumento muito utilizado nos séculos XVII e XVIII por suas inúmeras possibilidades de variações de rasgueados. Segundo Gisela Nogueira: “A Viola de Arame tem característica única na família das guitarras barrocas: possui cordas duplas e triplas em favorecimento de um volume maior em sua técnica de rasgueado. Foi descrita por Manuel da Paixão Ribeiro em sua obra intitulada ‘Nova Arte de Viola: que ensina a tocalla com fundamento sem mestre’, publicada em Coimbra pela Real Officina da Universidade em 1789. Algumas publicações históricas contêm descrições bastante precisas sobre a utilização da técnica de rasgueado e sua contextualização”. Probably a kind of dance, the estampies may be either polyphonic or monophonic. Estampie Belicha is a monophonic example from a 14th century French source, LBM add. 29987. The name and rhythmic motives of this estampie are to do with war; the similarity to Arabic music, in which the melodic line is doubled by various instruments, with improvised virtuoso intersections from each instrument, may indicate its origins and guide our interpretation. The musical notation of the Estampies are more a reflection of essentially improvised music than the consolidation of a rigorously structured musical composition. This allows a lot of room in the choice of interpretation, which can go beyond the options of instrumentation and take in other structural aspects, such as form and rhythm. One of the aspects explored in this arrangement is the percussive/harmonic function of the Brazilian baroque wire guitar, a very popular instrument in the 17th and 18th centuries because of its endless possibilities for variations of rasgueado. According to Gisela Nogueira, “the Brazilian baroque guitar (wire strung baroque guitar) has a unique characteristic in the family of baroque guitars: it has double and triple strings to allow greater volume in the technique of rasgueado. It was described by Manuel da Paixão Ribeiro in his work entitled ‘New Art of the Viola: which teaches how to play the viola properly without a master’, published in Coimbra by the Royal Office of the University in 1789. Some historic publications contain quite precise descriptions of the use of the technique of rasgueado and its contextualization”. Luiz Fiaminghi Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca Fernando Vanini • Marlui Miranda puru-puru / turtle shell • Paulo Dias pandeiro (11˝) / tambourine (11˝) • Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Valeria Bittar flauta-doce soprano / soprano recorder arranjo / arrangement: Gisela Nogueira, Luiz Fiaminghi, Marlui Miranda, Paulo Dias, Silvia Ricardino, Valeria Bittar
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13. ABOIO DE ARRIBADA Aboio (tradição oral). Segundo versão interpretada por Sebastião Crisóstomo em 1978, coletada por Marlui Miranda, RO Aboio (oral tradition). According to a version performed by Sebastião Crisóstomo in 1978, collected by Marlui Miranda, Rondônia No Princípio era o Aboio, Jogo e Júbilo. Fernando Carvalhaes Duarte escreveu um artigo com esse título, em 2007, no qual expõe aspectos importantes sobre o aboio que ultrapassam sua evidente função de canto de trabalho ligado à cultura do gado, especialmente no Nordeste brasileiro. Segundo Fernando: “A vocalização pura e contínua, sem palavras, configura o aboio genuíno. Mas outros aboios também ocorrem, derivações que brotam deste gesto primordial. Recebem o rótulo ‘aboio em versos’: trata-se de uma cantiga que se compõe de breves estrofes intercaladas com as interjeições típicas do aboio, empregadas como refrão”. Esse é o caso do exemplo cantado por Marlui, baseado no canto do vaqueiro Sebastião Crisóstomo. Fernando prossegue: “A mesma forma de discurso – cantigas com refrãos-aboios – aparece também como item importante dos festejos do boi; nos momentos de seu chamamento e de sua morte e ressurreição. Pode-se traçar entre essas ocorrências uma especial cadeia de ‘movência das formas de discurso’ orais, que remetem para o sentido original do gesto primeiro, o da ‘vocalidade’ pura. O que é de particular interesse para nós, é o que Fernando coloca sobre o impulso musical contido no aboio que o relaciona diretamente aos cantos litúrgicos de Júbilo: “Jubilus era, na Idade Média, o termo empregado para indicar a seção em melisma sobre a vogal final de ‘alleluia’. O júbilo teria penetrado no mundo romano a partir do Oriente, no século III, e mantido certos traços do canto extático, permitindo ao fiel ser inspirado ou possuído pelo divino”. Sua colocação sobre o caráter fenomenológico que envolve a noção de um “gesto interacional” (termo cunhado por Marcel Jousse [1974]) entre cantor, som e, eventualmente, o instrumento que o acompanha, é importante para aqueles que se dedicam a olhar além da partitura, especialmente para o intérprete-criador. Câmara Cascudo (1954, apud Carvalhaes Duarte, 2008) afirmou que “um aboio na partitura é um pingüim no Saara”. Sobre o caráter modal do aboio e sua relação timbrística, que envolve diretamente a colocação vocal diversa da entoação lírica, um aspecto também ressaltado por Mário de Andrade em suas abordagens sobre o assunto, especialmente nos textos em que teve em mente o embolador Chico Antônio, que Mário tanto admirava, Fernando diz: “Retornando ao aboio, a primeira fase consiste na explosão da energia sonora. Sendo basicamente um sintoma do agente, de quem o emite, tem características de um chamado, pelo qual o aboiador se coloca corporalmente no mundo, estabelecendo uma marca espacial por meio de sua voz-alento. A manutenção das vibrações é efetuada na segunda fase: tendo conquistado o espaço, o aboiador prolonga o som, como se respondesse a si mesmo em um eco. Um discurso ‘musical’ é então formado, em geral por cadeias de terças ou saltos harmônicos, intervalos compensados a seguir por passos diatônicos e, raramente, cromáticos. A elaboração das notas, porém, não chega a se inscrever no ‘espaço tonal’, e sim no ‘espaço intervalar-timbrístico’, peculiar à música modal, um espaço em que tensões intervalares das inflexões melódicas atrelam-se aos timbres dos registros vocais. Os neumas singulares formam-se nesse espaço, constituindo gestos melódico-timbrísticos mínimos”. In the Beginning it was the Aboio (Mournful cattle driver song or chant used to herd cattle), the Game and the Jubilation. Fernando Carvalhaes Duarte wrote an article with this title in 2007, in which he describes some important aspects of the aboio which go beyond its evident function as a worksong connected with cattle-raising, especially in the northeast in Brazil. According to Duarte, “Pure, continuous vocalization without words characterizes the genuine aboio. However 71
other aboios also occur, derivations of this primordial gesture. They are called ‘verse aboio’: this is a song composed of brief intercalated strophes with typical aboio interjections used as a refrain”. This is the case of the example sung by Marlui, based on the song of the cowboy Sebastião Crisóstomo. Duarte goes on: “The same kind of discourse – songs with ‘aboio’-refrains – also appear as an important element in the feasts of the Bull; at the time of calling it, and its death and resurrection. We can trace among these occurrences a special chain of ‘movements forms of oral discourse” which go back to the original meaning of the first gesture, that of pure “vocality”. What is of particular interest to us is what Fernando says about the musical impulse contained in the aboio which directly relates it to liturgical songs/chants of Jubilation: “Jubilus was the term used in the Middle Ages to indicate the section in melisma on the final vowel in ‘alleluia’. Jubilation would have come into the Roman world in the East in the 3rd century and kept certain traces of ecstatic song, enabling the faithful to be inspired or possessed by the divine”. His remarks about the phenomenological nature that involves the notion of an “interactional gesture” (a term coined by Marcel Jousse [1974]) between singer, sound and eventually the instrument that accompanies him is important for those who devote themselves to looking beyond the scores, especially the creator-performer. Câmara Cascudo (1954, apud Carvalhaes Duarte, 2008) said that “an ‘aboio’ in a score is like a penguin in the Sahara”. About the modal nature of the aboio and its timbral relationship, which directly involves a way of using the voice that differs from lyrical singing, an aspect also pointed out by Mário de Andrade in his treatment of the subject, especially in texts in which he had in mind the ballad singer Chico Antônio, whom Andrade so admired, Duarte says: “Going back to the ‘aboio’, the first phase consists of an outburst of sound energy. Since it is basically a symptom of the agent, of the person who emits the sound, it has characteristics of a call whereby the singer (aboiador) is placed physically in the world, establishing a spatial mark through his voice-animus . Maintenance of vibrations is effected in the second phase: having conquered the space, the singer (aboiador) prolongs the sound, as if he were answering himself in an echo. A ‘musical’ discourse is then formed, generally by chains of thirds or harmonic jumps, intervals compensated in the sequence by diatonic steps and rarely chromatic. The preparation of the scores, however, does not get to be inscribed in the ‘tonal space’ but rather in the ‘interval-timbre space’, peculiar to modal music, a space where interval tensions of the melodic inflections are linked to timbres of the vocal registrations. Unique neumes are formed in this space, constituting minimal melodic timbral gestures”. Luiz Fiaminghi Ô, hei, hei, hei, hei
No dia que eu nasci Minha sina Deus marcô Sê peão de boiadero E sê bom adomadô Hei, hei, hei
Vorta, vorta camarada, Cê me vem ness’ arribada Vai me buscar meu boi preto Que é a flor da minha boiada Hei, hei, hei
As morena da cidade Não penteia mais cabelo Elas só fica na janela namorando os boiadero Hei, hei, hei
Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Martinho • Marlui Miranda voz / voice adaptação / adaptation: Marlui Miranda • arranjo / arrangement: Marlui Miranda, Luiz Fiaminghi
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14. CALANGUINHO José Eduardo Gramani (1944-1998) Calanguinho foi composta em 07 de abril de 1994 para a rabeca que Gramani ganhou de João Carlos Ribeiro, construída por Martinho dos Santos, construtor de instrumentos e mestre de fandango em Morretes, Paraná. Essa mesma rabeca foi utilizada na presente gravação. A rabeca de Morretes tem uma história curiosa, assim descrita por Gramani: “A rabeca ficou na minha estante uns dois meses, e eu olhava para ela, dava uma passadinha de arco e não conseguia achar coisa alguma nela. Até que um dia eu peguei e comecei a tocar, comecei a sentir diferente a sonoridade dela. Aí eu percebi que eu já estava começando a mudar dentro de mim essa coisa do parâmetro, de fazer comparação com o som do violino. E comecei a gostar muito dela, a tocar bastante e a escrever pra ela” (Gramani, 2002, p. 26). Dar voz própria às rabecas foi uma tônica no trabalho de Gramani, e podemos perceber, por suas palavras, a importância que a rabeca de Morretes teve como deflagradora desse processo. Nossa versão, gravada com rabeca e pandeiro, sem a parte de cravo que consta na partitura original, ressalta os aspectos rítmico e improvisatório inerentes ao calango, um gênero musical existente no Sudeste, que explora a poesia improvisada e os jogos de agilidade verbal. Calango designa também baile e desafio, colocando em evidência o virtuosismo de seus intérpretes. Calanguinho was composed on 7 April 1994 for a fiddle made by Martinho dos Santos, an instrument maker and fandango master in Morretes, in the state of Paraná, a gift from João Carlos Ribeiro to Gramani. This fiddle is used in this recording. The Morretes fiddle has an interesting history, which Gramani described as follows: “The fiddle stayed on my shelf for a couple of months and I would look at it, play it a little bit, but it didn’t do anything for me - until one day when I took it off the shelf and started to play and felt the sonority was different. Then I realized that something was beginning to change inside me, this thing of parameter, of making comparisons with the sound of the violin. And I began to like it, to play it a lot and write for it” (Gramani, 2002, p. 26). Giving fiddles their own voice opened new doors in Gramani’s work and we can see from his words how important the Morretes fiddle was for triggering this process. Our version, recorded with the fiddle and tambourine, without the part with the harpsichord which is in the original score, highlights the rhythmic and improvisational aspects inherent to the calango, a musical genre that exists in the southeast, which exploits improvised poetry and games of verbal agility. Calango also refers to a dance and challenge, showing off the virtuosity of its performers. Luiz Fiaminghi
Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Martinho • Paulo Dias pandeiro (11˝) / tambourine (11˝) arranjo / arrangement: Paulo Dias
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15. MANDADO DE RAINHA GINGA Congos do Rio Grande do Norte (tradição oral). Segundo versão interpretada em 1999 por Sérvulo Teixeira, contramestre dos Congos de São Gonçalo do Amarante, RN Congos from Rio Grande do Norte (oral tradition). According to a version performed in 1999 by Sérvulo Teixeira, leader of the Congos from São Gonçalo do Amarante, Rio Grande do Norte
Preso e morto o embaixador Ai, esse cruel assassino. Veio assassiná meu reis A mando de Rainha Ginga
Gisela Nogueira viola de arame • Marília Vargas soprano adaptação / adaptation: Paulo Dias • arranjo / arrangement: Gisela Nogueira, Marília Vargas
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16. RAINHA GINGA Congos do Rio Grande do Norte (tradição oral). Segundo versão interpretada em 1999 por Sérvulo Teixeira, contramestre dos Congos de São Gonçalo do Amarante, RN Congos from Rio Grande do Norte (oral tradition). According to a version performed in 1999 by Sérvulo Teixeira, leader of the Congos from São Gonçalo do Amarante, Rio Grande do Norte
Rainha Ginga é muié de bataia, Tem duas cadera ao redor de navaia. Marchemo pros campo, vamo combatê! Pela nossa c’roa devemo morrê!
Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca “Seu” Nelson • Marília Vargas soprano Marlui Miranda voz e Seljeflote / voice and Seljeflote • Paulo Dias caixa de banda cabaçal, (12˝) / side drum (12˝), caixa de congo (15˝) / congo drum (15˝), ritinta maranhense (6,5˝) / ritinta from Maranhão used as congo tambourine (6,5˝), canzá / (rasp), caixa de moçambique (19˝) / Moçambique drum (19˝), pandeiro (11˝) / tambourine (11˝), pratos suspensos (18˝ e 10˝) / splash suspended plate (18˝ and 10˝), cinto de pequi / caiapó souari nut belt, chocalho de aguaí e colar de seringueira / aguaí rattle and ticuna rubber tree and seed necklace, sinos de montaria / riding bells • Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp Valeria Bittar flauta-doce soprano / soprano recorder adaptação / adaptation: Paulo Dias • arranjo / arrangement: Luiz Fiaminghi, Paulo Dias, Silvia Ricardino
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Ato 3 A REVELAÇÃO E O ENCONTRO (ANIMUS e ANIMA) Act 3 THE REVELATION AND THE ENCOUNTER (ANIMUS and ANIMA)
17. LA GUERRIERA trechos de ballata (tradição oral italiana). Versão interpretada por Armanda Animobono Mancini, registrada em Jesi, 20 de novembro de 1986. Publicada pela primeira vez na Itália por Constantino Nigra, em 1854. Extraída do CD Silenzio, Canta La Macina! – La macina canta trent´anni della sua storia: 1968-1998 excerpts from ballata (Italian oral tradition). Version performed by Armanda Animobono Mancini, recorded in Jesi, 20 November 1986. Published for the first time in Italy by Constantino Nigra in 1854. Excerpt from the CD Silenzio, Canta La Macina! – La macina canta trent´anni della sua storia: 1968-1998 Abrimos a última parte do roteiro musical Donzela Guerreira com trechos da ballata La Guerriera, seguidos de trechos semelhantes aos do romance da Donzela que vai para a Guerra, encontrado na Bahia (faixa 18). Nesta parte da ballata do norte da Itália, como também nos romances da donzela encontrados em Portugal, o nobre que acolhe a donzela disfarçada de soldado aconselha-se com sua mãe, confessando sua aflição perante um sentimento que desconhece: está enamorado de um soldado de guerra. A mãe sugere, então, que seu filho leve o rapaz a fazer pão, e que, se este for uma moça verdadeira, lavará suas mãos. A donzela, por sua vez, responde ao rapaz que um soldado de guerra não lava as mãos, somente com o sangue dos cristãos. Finalmente, a mãe do rapaz enamorado sugere que este leve o soldado a dormir e que, se ele mulher for, não se acostará com o enamorado. Ao ouvir esta proposta, a donzela deixa subentendida sua identidade, justificando que é chegada uma carta e que, por isso, terá de partir. We open the last part of our script of the Warrior Maiden with excerpts from the ballata La Guerriera, followed by excerpts similar to those from the romance of the Maiden who goes to war, found in Bahia (track 18). In this part of the ballata from the north of Italy, as well as in the romances of the maiden found in Portugal, the nobleman who gives shelter to the maiden disguised as a soldier asks his mother for advice, confessing his affliction in the face of a feeling he is not familiar with: he is in love with a soldier of war. The mother then suggests that her son take the young man to make bread and that, if he is really a girl, she will wash her hands. However the maiden tells the young man that a soldier of war does not wash his hands except with the blood of Christians. Finally, the enamoured young man’s mother suggests that he takes the soldier to sleep and that, if it is a woman, she will not lie close to the young man. On hearing this proposal, the maiden leaves her identity implicit by saying that a letter has come and so it is time to leave. Valeria Bittar 77
Filho / Son: Mamma la mia mamma Scola m’ hai da ’nsegnà’ Un soldatò di guera M’ ha fatto innamorà’ Mãe / Mother: Figlio mio bel figlio Portètela a ffá ’l pà’ Se il’ è una vera fija Si laverà le mà’ Filho / Son: Soldato mio bel soldato Llavatevi le mà’ Donzela / Maiden: Un soldatò di guera Non si lava le mà’ Solo che qualche volta Co’ ’l sangue dei cristià’ Mãe / Mother: Figlio mio bel figlio cosà ci hai ricavà’ Filho / Son: O mamma la mia mamma Scola m’ hai da ’nsegnà’ Mãe / Mother: Figlio mio bel figlio Portètela a ddormì’ Se il’ è una vera fija Non ce vorrà vvenì’ Filho / Son: Soldato mio bel soldato Andamocene a ddormì’ Donzela / Maiden: Ma mi è ‘rrivata ‘na lettera Che me conviene a ppartì’
Gisela Nogueira viola de arame • Marília Vargas soprano Paulo Dias caixa de congo (15˝) / congo drum (15˝) • Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp • Valeria Bittar flauta-doce contralto / alto recorder arranjo / arrangement: Gisela Nogueira, Luiz Fiaminghi, Marília Vargas, Paulo Dias, Silvia Ricardino
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18. DONZELA QUE VAI PARA A GUERRA (Romance da Donzela Guerreira parte 2). Trechos da segunda parte do romance (tradição oral) recolhido por Rossini Tavares de Lima, 1953, BA. Anotado no Romanceiro Folclórico do Brasil, pp. 79-81 (Romance of the Warrior Maiden part 2). Excerpts from the second part of the romance (oral tradition) collected by Rossini Tavares de Lima, 1953, Bahia. Annotated in Romanceiro Folclórico do Brasil, pp. 79-81 Após sete anos de luta, a jovem, travestida de guerreiro (Dom João) é recebida num castelo, onde o Capitão ou o Filho do Conde sente-se desconcertadamente atraído por Dom João. Aconselhandose com a mãe para desvendar a identidade do amigo – “os olhos de Dom João (Dom Varão) são de mulher de homem não” – o Filho do Conde trava um longo diálogo com a mãe (abreviado em nosso arranjo) que aconselha o filho com propostas e estratagemas para desvendar o sexo de Dom João. Estes revelam, um a um, os arquétipos da feminilidade cortesã: cuidado ao sentar-se; gosto pelos adornos (fitas); isolamento ao banhar-se. Desviando-se soberbamente de todas as armadilhas que, à semelhança de uma insistente conquista amorosa, são cuidadosamente construídas para fazê-la prisioneira, a donzela guerreira sucumbe, entretanto, quando recebe a notícia da morte do pai e das irmãs. Nesse momento, revela seu nome verdadeiro, Lianor ou Leonor (na versão recolhida na Paraíba e utilizada aqui) e aceita casar-se com o cavaleiro. Deixa claro, porém, que detém ainda o poder do livre arbítrio: “Sete anos guerreei, inda saí c’a minha flor / Entrei livre e saí livre, eu me chamo é Lianor / Se quereis casar comigo, vais no reis de Branca Flor”. Contrariamente ao desfecho trágico da estória de Diadorim e de outras donzelas guerreiras famosas, como Clorinda, uma das leituras possíveis do final feliz sugerido na versão recolhida na Paraíba (e que foi aqui adaptada à versão baiana recolhida por Tavares de Lima) é que o destino trágico não é o único fim destinado às mulheres que transgridem o papel e as funções reservadas ao universo feminino. Ao seguirem por um caminho voluntário que faz parte de uma longa travessia necessária para o reencontro com seu oposto, seja ele sexual, racial ou social, não obedecem a uma predestinação cultural, mas buscam a essência do feminino através do equilíbrio vital entre anima e animus. After seven years of fighting, the young woman disguised as a warrior (Dom João) is received in a castle, where the Captain or the Count’s son is disconcerted to find himself attracted by Dom João. Seeking his mother’s advice on how to discover his friend’s identity – “Dom João (Dom Varão)’s eyes are those of a woman, not a man” – the Count’s son engages in a long conversation with his mother (shortened in our arrangement), who suggests proposals and stratagems for revealing Dom João’s sex. These reveal, one by one, the archetypes of courtly femininity: care when sitting down; a taste for adornments (ribbons); privacy when taking a bath. Haughtily avoiding all the traps which, as if in an insistent amorous conquest, are carefully constructed to make her a prisoner, the warrior maiden succumbs, however, when she hears the news of the death of her father and sisters. At this point, she reveals her real name, Lianor or Leonor (in the version from Paraíba, which we use here) and agrees to marry the knight. However, she makes it clear that she holds the power of free will: “For seven years I have made war, I still came out with my flower / I went in free and came out free, my name is Lianor / If you wish to marry me, go to the king of the White Flower”. As opposed to the tragic ending of the story of Diadorim and of other famous warrior maidens such as Clorinda, one of the possible readings of the happy ending suggested in the version from Paraíba (and which was adapted here to the version from Bahia collected by Tavares de Lima) is that the tragic fate is not the only end destined to women who violate the role and functions reserved for the female universe. By choosing a voluntary 79
path, which is part of a long journey necessary for the reunion with their counterpart, whether sexual, racial or social, they do not obey a cultural predestination, but seek the essence of the female through the vital balance between anima and animus. Luiz Fiaminghi
Filho do Conde / The Count’s Son: Senhor pai, senhora mãe, Grande dor no coração, (porque) os olhos de [dom João] São de mulher, de homem não.
D. João: Novas me chegam agora Novas de [gran] pesar, De que minha mãe é morta E meu pai está-se a finar, De seis irmãs que eu tenho Daqui as ouço chorar.
Mãe / Mother: Convidai-o vós, meu filho, Para (ir) convosco ir feirar, Porque se ele for mulher As fitas há de pegar. Narrador / Narrator: A donzela por discreta Foi a espada apreçar. D. João: (ó) Que belos ferros e espadas P´ra com homens [ir] brigar Lindas fitas para as damas Quem lhas poderá levar.
D. João: Sete anos guerreei Inda saí c´a minha flor Entrei livre e saí livre, Eu me chamo é Lianor, Se quereis casar comigo Vai no reis de Branca Flor.
( ) palavras omitidas do texto original, [ ] palavras acrescentadas ao texto para adequação da métrica/prosódia ( ) words omitted from the original text, [ ] words added to the text for the purpose of metrical/prosodic adaptation
“Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.” João Guimarães Rosa Grande Sertão: Veredas. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1988, p. 530. Agradecemos à viúva de João Guimarães Rosa, Senhora Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, pela cessão de utilização de trecho de Grande Sertão: Veredas. Agradecemos à viúva de João Guimarães Rosa, Senhora Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, pela cessão de utilização de trecho de Grande Sertão: Veredas. Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi rabeca Fernando Vanini • Marília Vargas soprano Paulo Dias caixa de moçambique e patagonga ou patangome / moçambique drum (19˝) and (moçambique circular rattle) • Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp Valeria Bittar flautas-doce soprano e contralto / soprano and alto recorders arranjo / arrangement: Gisela Nogueira, Luiz Fiaminghi • arranjo de base / base arrangement: Grupo ANIMA
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19. EREMONA fragmentos de canto do ritual Bep, povo Mebengokrê, PA fragments of a Bep ritual song of the Mebengokrê people, Pará Eremona é o nome que dei a este fragmento adaptado de um canto Mekragnoti, da etnia Kayapó. Os Kayapó, cerca de 7.000 indivíduos, habitam uma grande área contígua que vai desde o norte do Mato Grosso até o sul do Pará, do afluente do rio Fresco ao rio Curuá, localizado a oeste. A maioria fala o Mebengokrê, uma língua do tronco Jê, língua que se tornou idioma de interação entre aldeias. Este canto menciona o trabalho das mulheres, e diz que “À luz do dia, de manhã cedo, quando acordamos, vamos andando até o rio, nos banhar no rio, e depois assar o peixe para comer. Eu estou cantando. Eu andei até lá, até o rio”. Esse canto foi interpretado durante o ritual do Bep, uma das inúmeras e variadas cerimônias que ocorrem entre os Kayapó, sendo essa relacionada à troca de nomes. Receber um nome faz parte do processo de evolução do indivíduo. No decorrer de sua vida, uma pessoa chega a acumular 35 nomes, transmitidos pela categoria de nominadores e que inclui várias posições genealógicas. Entre os Kayapó, as mulheres têm um papel preponderante e decisivo, além de serem elas as compositoras das músicas que são interpretadas, em grande parte, pelos homens. Eremona is the name I gave this fragment adapted from a Mekragnoti song of the Kayapós. The Kayapós, about 7,000 individuals, live in a large contiguous area that stretches from the north of the state of Mato Grosso to the south of the state of Paraná, from the tributary of the River Fresco to the River Curuá, located to the west. Most speak Mebengokrê, a language of the Jê family, which has become the language for interaction between villages. This song mentions the work of the women, and says “By daylight, early in the morning when we awake, we walk to the river to bathe and then bake fish to eat. I am singing. I walked there, to the river”. This song was performed during the Bep ritual, one of the many and varied ceremonies that take place among the Kayapó, and is related to the changing of names. Receiving a name is part of an individual’s development. During their lifetime, people can accumulate 35 names transmitted by the category of namers and which includes various genealogical positions. Among the Kayapó, the women have a predominant and decisive role, as well as being the composers of songs that are performed mainly by the men. Marlui Miranda Eremona pu ta’ tai tiporí ari gro’o are’ He he he he he he Eremona pu ta’ tai tiporí ari gro’o are’ He he he he he he
Iro maro maro’ waio wai ñe Waro waro ñe waro waro Apé djo maro Waro apudjo itá Apé djo maro Waro apudjo ita
Ara mõtcha agu gro’o Ara mõtcha agu gro’o I e he aripé ti e he aripé Oño ba ño gro I e he aripé ti e he aripé Oño ba ño gro
transcrição fonética phonetic transcription
Marlui Miranda voz e percussão na água / voice and water percussion • Valeria Bittar flauta-doce tenor / tenor recorder adaptação / adaptation: Marlui Miranda • arranjo / arrangement: Marlui Miranda, Valeria Bittar
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20. MANDAD´EI COMIGO Martin Codax, século XIII Martin Codax, 13th century A cantiga de amigo Mandad’ei Comigo, assim como as outras cantigas de amigo de Martin Codax que chegaram até nós – apenas sete no total, exemplos raros de poemas com suas respectivas notações musicais – retrata a ausência e a espera do amado pela donzela, um tema recorrente no universo feminino galego. Exploramos em nossa leitura o caráter aberto desta melodia, que possibilita sua intersecção em vários níveis: das sobreposições polirrítimicas e melódicas ao diálogo com outros temas correlatos. Da cantiga Par Deus, Coitada Vivo, de Pero Gonçalvez Portocarreiro (meados do século XIII) – que funciona como um tema B em nosso arranjo – restou somente a poesia. Ela fala sobre o rompimento com a espera, representado pela quebra com os símbolos do compromisso da donzela com seu amado. Segismundo Spina, em A Lírica Trovadoresca, entende esse gesto como um sinal de autonomia feminina: “A presença do costume de se ligarem os cabelos com sirgo, faz supor nessa cantiga as duas hipóteses do seu estado civil. O noivado era comumente selado por ‘dõas’, presentes inúmeros que o amigo fazia à futura companheira: toucas de Estela, panos para gonela (túnica), cintas de Rocamador, espelhos e fivelas, escaravelhos que ainda hoje não perderam a sua atualidade. A moça, diante das amigas que assistem ao desespero de sua coita pela demora do amigo, promete romper com as relações amorosas [como noiva ou viúva] e desfazer-se das dõas recebidas”. (SPINA, 1991, p. 323). Como terceiro tema, tomamos de empréstimo um dos aboios recolhido por Mário de Andrade, um dos favoritos de Fernando Carvalhaes, que o utilizou no espetáculo Fauvel, a Carreira de um Asno, com o Núcleo Tálea. Esse aboio refere-se à interferência na roda do destino (a Roda da Fortuna) de um bicho (uma força sobrenatural) causador do fracasso amoroso. A alternância de modos (menor/maior) e o amplo contorno melódico desse aboio contrastam com a primeira melodia, construída sobre um hexacorde (seis notas), claramente no modo mixolídio. A quarta e última seção funciona como um A’, ou seja, uma variação do tema já ouvido de Martin Codax. Nessa seção, as melodias ouvidas anteriormente são expostas em contraponto e em sobreposições rítmicas, já delineadas na primeira parte. Aqui são exploradas em sua totalidade, especialmente pela trama de ritmos sugeridos pelo tambor (tambu), que exploram os desenhos rítmicos do jongo (em 12 pulsos) e seus desmembramentos, evoluindo para o toque do batuque do Rio Grande do Sul, subdividido em todas as suas possibilidades pelos sinos indianos de tornozelos, gungas (chocalhos de tornozelos do moçambique mineiro) e pela preaca. The cantiga de amigo Mandad’ei Comigo, as well as other cantigas de amigo by Martin Codax – just seven altogether – are rare examples of poems with musical notations. They depict the absence and the maiden’s wait for her love, a recurrent theme in the Galician female universe. In our reading we have exploited the open nature of this melody, which makes intersection possible at various levels: from polyrhythmic and melodic superimpositions to dialogue with other related themes. Of the song Par Deus, Coitada Vivo, by Pero Gonçalvez Portocarreiro (mid 13th century) – which serves as a B theme in our arrangement – only the poetry remained. It speaks of giving up the wait, which is represented by the break with the maiden’s symbols of commitment to her beloved. Segismundo Spina in A Lírica Trovadoresca sees this gesture as a sign of female autonomy: “The custom of tying the hair with silk leads us to suppose both hypotheses of her marital status in this song. Engagement was commonly sealed by ‘dõas’, numerous presents that the friend would give his future companion: Estela hoods, materials for tunics, Rocamador belts , mirrors and buckles, scarabs which are still popular. The maiden, before her friends who watch her despair for the misfortune of the delay of her beloved, promises to break the love relationship [as a fiancée or widow] and get rid of the gifts received”. (SPINA, 1991, p. 323). As a third theme, we borrowed one of the herd chants (aboios) 82
collected by Mário de Andrade, one of Fernando Carvalhaes’ favourites, who used it in the performance of Fauvel, a Carreira de um Asno, with Núcleo Tálea. This aboio refers to the interference of a beast (a supernatural power) in the wheel of fate (the Wheel of Fortune), which caused the failure of the relationship. The alternation of keys (major/minor) and the broad melodic contour of this aboio contrasts with the first melody, constructed on a hexachord (six notes), clearly in the Mixolydian mode. The fourth and last section works as an A’, that is, a variation on the theme by Martin Codax which has already been heard. In this section, the melodies heard previously recur as a counterpoint and rhythmic layers, already delineated in the first part. Here are explored in their totality, specially by the sequence of rhythms suggested by the drum (tambu) which explores the rhythmic pattern of the jongo (in 12 pulses) and its developments, evolving into a drum beat from a batuque (Afro-Brazilian religion from Rio Grande do Sul), subdivided into all its possibilities by Indian ankle bells, gungas (ankle rattles of the moçambique from Minas Gerais) and by the preaca (percussive bow and arrow). Luiz Fiaminghi Mandad’ ei comigo Ca vem meu amigo: E irei, madr’ a Vigo
Ca vem meu amigo e vem san’ e vivo: E irei, madr’ a Vigo
Ca vem san’ e vivo e d’ el rei amigo: E irei, madr’ a Vigo
Comigu’ ei mandado Ca vem meu amado: E irei, madr’ a Vigo
Ca vem meu amado e vem viv’ e sano: E irei, madr’ a Vigo
Ca vem viv’ e sano e d’ el rei privado E irei, madr’ a Vigo
Par Deus, Coitada Vivo – Pero Gonçalvez Portocarreiro, século XIII / 13th century Par Deus, coitada vivo: pois non ven meu amigo: pois non ven, que farei? meus cabelos, con sirgo eu non vos liarei.
Pois non ven de Castela, non é viv’, ai mesela, ou mi-o deten el-rei; mias toucas da Estela, eu non vos tragerei.
Pero m’ eu leda semelho, non me sei dar conselho; amigas, que farei? en vós, ai meu espelho, eu non me veerei. Estas dõas mui belas el mi-as deu, ai donzelas, non vo-las negarei: mias cintas das fivelas, eu non vos cingerei.
Gisela Nogueira viola de arame • Luiz Fiaminghi vielle • Marília Vargas soprano Marlui Miranda voz, narração e preaca / voice, narrator and preaca (caboclinhos percussive bow and arrow) Paulo Dias pandeiro (11˝) / tambourine (11˝), caxixis / (basket rattle), tambu de gameleira / gameleira hand drum, guizos de tornozelo / ankle bells, gungas / (Moçambique ankle rattles) Silvia Ricardino harpa medieval / medieval harp Valeria Bittar flauta-doce conralto em sol / g alto recorder • Carlos (KK) Akamine gongo / gong arranjo de base / base arrangement: Luiz Fiaminghi • arranjo / arrangement: Grupo ANIMA
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Ficha Técnica Technical Details direção artística e executiva / artistic and executive directors: Luiz Fiaminghi, Valeria Bittar direção e dramaturgia musical / music and dramaturgic direction: Grupo ANIMA pesquisa de repertório / repertoire research: Gisela Nogueira, Luiz Fiaminghi, Marília Vargas, Marlui Miranda, Paulo Dias, Silvia Ricardino, Valeria Bittar fotos / photos: Gabriela Bernd pp. 3, 27, 30, 31, 32, 33, 37, 38 • Ed Viggiani pp. 22, 23, 26, 29, 34, 39, 40, 41, 54, 55, 69, 73, 84, 85 • Luiz Fiaminghi p. 28 • Daniel Bittar p. 44 • Paulo Dias pp. 47, 50, 51, 53 conceito gráfico inicial / initial graphic concept: Karla Wanderley, Mickael Jacques acompanhamento gráfico / graphic accompaniment: Valeria Bittar gravação / recording: Carlos (KK) Akamine assistentes de gravação / recording assistants: Silvio Romualdo, Gustavo Breier mixagem e sound design / mixing and sound design: Carlos (KK) Akamine assistência de mixagem / mixing assistance: Luiz Fiaminghi, Paulo Dias coordenação de estúdio / studio coordination: Shen Ribeiro masterização / mastering: Reference Mastering Studio - Homero Lotito web design: Ivana Cubas, Heleno Valle ilustrações / illustrations: Adão Pinheiro Carlos Julião (1740-1811) em: Riscos Iluminados de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro e Serro do Frio (‘Cortejo da Rainha Negra na Festa de Reis’ e ‘Coroação da Rainha Negra na Festa de Reis’, pp.). Acervo da “Fundação Biblioteca Nacional – Brasil”
Grupo ANIMA agradece o apoio da Associação Cultural Cachuera!, pela cessão do espaço, para realização de seus ensaios Grupo ANIMA acknowledges the support of Associação Cultural Cachera! in ceding their space to carry out rehearsals
Gravado no Estúdio Sala Viva – Espaço Cachuera!, em São Paulo, entre os dias 11 e 17 de julho do ano de 2009 Recorded in the Sala Viva Studio – Espaço Cachuera! in São Paulo from 11 to 17 July 2009 Agradecemos especialmente à Professora Walnice Nogueira Galvão e ao artista Adão Pinheiro por se colocarem generosamente ao nosso lado neste projeto. We would particularly like to thank Professor Walnice Nogueira Galvão and the artist Adão Pinheiro for generously supporting us in this project. Agradecemos à viúva de João Guimarães Rosa, Senhora Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, Nonada Cultural e tess advogados, pela cessão de utilização de trecho de Grande Sertão: Veredas. We would like to thank the widow of João Guimarães Rosa, Mrs. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, for ceding the use of an excerpt of Grande Sertão Veredas and TESS ADVOGADOS and NONADA CULTURAL for their support. Agradecimentos Acknowledgements Agenor Moraes, Associação Cultural Cachuera!, Cleudo Freire, Daniel Bittar, Jesser de Souza, Luiz Cláudio C. Ribeiro-Associação Cultural Congadeiros do Bairro de São Francisco-São Sebastião, Mauricio Coronado Junior, Neide Fuser, Omar Bittar, Paulo Castagna www.animamusica.art.br
anima@animamusica.art.br
Grupo ANIMA • Theatro Municipal de São Paulo • julho 2009 / july 2009
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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO SOCIAL SERVICE OF COMMERCE Administração Regional no Estado de São Paulo Regional Administration in the State of São Paulo Presidente do Conselho Regional Regional Council President Abram Szajman Diretor Regional Regional Director Danilo Santos de Miranda Superintendente de Comunicação Social Social Communication Superintendent Ivan Giannini Selo SESC SESC Record Label Gerente de Audiovisual / Audiovisual Manager: Silvana Morales Nunes, Adjunto / Assistant Manager: Ana Paula Malteze, Coordenador / coordinator: Gilberto Paschoal, Assistente de Produção / Production Assistant: Ricardo Tifona, Assistente Administrativa / Administrative Assistant: Yumi Fujihira Sakamoto Gerente de Artes Gráficas / Graphic Design Manager: Hélcio Magalhães Projeto Gráfico / Graphic Design: Fábio Pinotti 87