Revista Varal do Brasil - ed 23 - Especial da Saudade

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VARAL DO BRASIL - VARAL DA SAUDADE!

Os olhos viajando do breu do café na xícara à

não: meus amigos chegaram, eis-me de novo

aconchegante penumbra do café que me con-

sozinho entre homens... (onde estará a garço-

tém. E´uma escuridão que não nasce da au-

nete?).

sência de luz, mas de um desejo à espera de

Pedimos sorvete, saboreamos a garçone-

cores. Mergulho neste buraco negro; sou

te. Ela logo nos abandona, sorvemos solidão.

transportado a um fluxo caleidoscópico de

E falamos muito para tentar ocultá-la.

passados fragmentados, um mosaico multico-

Palavras. Sem cores. Inumeráveis... inú-

lorido composto pelo piscar de imagens multi-

meras desnecessárias. Filtradas pela memó-

facetadas pululando de sensualidades descon-

ria, erodidas pelo tempo, só as essenciais so-

tínuas que nos reconquistam ao aflorarem por

brevivem: um negativo em preto e branco que

geração espontânea nos momentos de ócio:

vai se revelando na escuridão branca deste

torsos, cabeças, rostos, pescoços, nucas, ore-

papel; reflexo obstinado de erupções verbais,

lhas, queixos, bocas, narizes, cabelos, olhos,

expelindo expressões excessivamente usadas,

olhos azuis, olhos que me olham, um olhar

repetidas e usurpadas – como “despedida” ou

verde provoca a minha boca, lábios, lábios ru-

“adeus”... Palavras lavram a lava ao nada.

bros, um beijo roxo com línguas lépidas e invi-

Difícil modelar este magma amorfo a que

síveis, amarelos visíveis em sombras inquie-

chamamos de conversa. Não me lembro bem

tas, cabelos dourados sugam faíscas volúveis

de como ou quem a iniciou - talvez tenha sido

da tênue luminosidade local, camuflam orelhas

eu mesmo, mas a autoria das palavras é me-

cujas formas cíclicas querem ser exploradas

nos significante do que o seu efeito... só sei

pelo meu nariz ao exibirem orgulhosas aos

que, de repente, materializado por alguma

mais curiosos dois pequeninos brincos negros

evocação involuntária

secretos, duas pupilas dançando nervosas nos

ali estava o meu avô

oceanos marrons dentro de esferas brancas, um olhar castanho claro se esquiva e dispersa

Envelhecido, embaçado, esquecido.

a minha atenção das mãos pálidas que se in-

Calado.

candescem se tocadas com a devida destreza

Imerso na minha própria despedida, ha-

ou se contraem tímidas acocoradas em cima

via obscurecido a sua... pois ei-la de novo,

de pernas que se esfregam, se cruzam e tal-

aqui e agora, fluorescendo bem na nossa fren-

vez se abram, pernas que ao caminhar salien-

te! Como uma escultura de silêncio a ocupar a

tam o perfil voluptuoso do busto e do lombo,

única cadeira vazia. Só. Contemplada com a

silhuetas complementáveis pelo deleite da

devida distância, se delineava como um pro-

imaginação, vultos de vulvas incontroláveis

cesso orgânico e até mesmo coerente, cuja

que aparecem e desaparecem, fêmeas que

longa duração – por conferir uma aparente

vêm e vão, dois vultos se aproximam, mas a

constância a este lento desprendimento, a es-

realidade sempre decepciona, são tão-

ta imperceptível saída da tela da vida – nos

somente dois homens, dois guarda-costas?,

cegava e sedava... (Segue)

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