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“A cenografia é a arquitectura do tempo limitado”

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João Mendes Ribeiro Texto: Ana Rita Sevilha | Fotos: D.R.

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No que é que estas duas “artes” se tocam? Entendo a cenografia como um acontecimento espacial, os dispositivos cénicos incorporam estruturas eminentemente arquitectónicas (tanto na forma como nos materiais), procurando reflectir sobre a passagem de um espaço destinado apenas à percepção visual, para um espaço vivencial, centrado no corpo do intérprete. A cenografia é, neste contexto, abordada do ponto de vista da experimentação de processos e linguagens comuns à arquitectura, a partir de temas como a autenticidade material e construtiva, ou o recurso a objectos geométricos e modulares. Os dispositivos cénicos convocam noções de volume, escala, gravidade, espessura, densidade, que remetem para a própria tradição da arqui-

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“Vermelhos, Negros e Ignorantes”, de Eduard Bond, encenada por Paulo Castro

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arquitecto e cenógrafo, e sublinha que esta última pode funcionar como extensão do trabalho da primeira. Entende a cenografia como um acontecimento espacial, ressalvando que é fortemente marcada pelo sentido da efemeridade. A cenografia pode funcionar como experimentação arquitectónica? Em que medida? Embora consideradas disciplinas substancialmente distintas, a cenografia pode constituir uma extensão do trabalho em arquitectura, enquanto experimentação de temas e linguagens comuns. Não se trata exclusivamente de reproduzir em palco modelos arquitectónicos, mas também de averiguar como pode a arquitectura ser representada a partir de usos que lhe são afins ou o modo como é entendida e habitada. Trata-se ainda da utilização de signos arquitectónicos para sugerir espaços e situações contidas na dramaturgia. De alguma forma, pode-se afirmar que a arquitectura se transforma em objecto cénico e este em elemento configurador do espaço numa estreita relação com o corpo do intérprete. As cenografias constroem espaço, propondo que o intérprete se mobilize, utilizando-o. Aproximando-se à arquitectura, enquanto lugar de vivências afectivas. É por meio da acção dos intérpretes e da sua relação com o espaço e objectos cénicos (elementos mediadores da relação com o lugar) que se pode sugerir a vivência desse lugar. Nesse sentido é necessário que as acções no palco, nomeadamente a relação dos intérpretes com os objectos, correspondam a uma vivência efectiva e não a uma prática simulada, para que os espectadores se possam relacionar (e identificar) com o lugar, o contexto do espectáculo.

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tectura e, simultaneamente, para a relação que esta estabelece com os intérpretes, convocando o corpo e afectando o modo como este experiencia os objectos cénicos. A cenografia pode ser entendida como arquitectura efémera? A cenografia é fortemente marcada pelo sentido da efemeridade do acontecimento cénico, da rápida passagem do tempo; é, por excelência, a arte do efémero e assenta num discurso próprio da sua precaridade. A cenografia é a arquitectura do tempo limitado, o desenho com prazo de validade. A arquitectura ligeira e nómada, projectada para a sua construção e também para o seu desmantelamento. Como refere a crítica de dança Mónica Guerreiro, “à arquitectura exigimos perenidade e adaptabilidade, resistência à circunstancialidade de significados e potencialidades; à cenografia, efemeridade, transportabilidade, sugestão cartográfica de movimento e percursos até à enésima repetição”. E a arquitectura, procura criar espaços cénicos? Interessa-me sobretudo o contrário,

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transportar a arquitectura para o palco, para surgir como uma nova linguagem que, levada ao limite, tenta criar pontos de rotura, subvertendo os papéis. De facto, os projectos cenográficos transformam elementos arquitectónicos em objectos simbólicos, sublinhando o seu valor plástico e conceptual. Contudo, este desvio funcional não os reduz necessariamente a meros objectos de contemplação estética, mas traduz um desvio face a uma concepção estritamente funcionalista da arquitectura, para acentuar a qualidade plástica dos objectos na construção da narrativa e na representação de uma realidade sublimada pela estética, pelo simbólico. Acha que a arquitectura incorpora valores cinematográficos e o cinema valores arquitectónicos? A relação e intersecção entre arquitectura e cinema existe desde que existe o cinema. O uso e a presença da arquitectura é recorrente na história do cinema. Penso que é sobretudo o cinema que incorpora valores arquitectónicos.


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caos dos sentimentos e do sentido, servindo a figura humana e diminuindo-a num contexto habitável. Procura-se explorar uma representação crítica da realidade a partir de um número concreto de actividades básicas do individuo e de elementos próprios da arquitectura. Expõem-se, assim, o conflito entre funcionalidade e comportamento humano, expresso pelos intérpretes a partir de pequenos absurdos e paradoxos. Do mesmo modo, no espectáculo “Entrada de Palhaços” encenado por António Pires, tal como o caos dos sentimentos das personagens, também o cená-

lização, investida de outra amplitude e significado. O cinema propícia inusitados modos de ver a arquitectura (com o olhar e a memória), numa adequação que oscila, com frequência entre o reconhecimento e a estranheza, o insólito e o exagero. A projecção num écran bidimensional funciona como um mecanismo de armadilhas perceptivas. A manipulação da escala, da massa e densidade dos edifícios, desorienta as distâncias, ilude os contextos. Trata-se de um processo de reelaboração da densidade dos materiais e de convocação de mecanismos que iludem a perspectiva, gerando uma equívoca percepção do espaço. Nesse sentido, no cinema, abdica-se conscientemente da percepção habitual da arquitectura para ver de maneira diferente e extraordinária. Trata-se, no limite, de apontar o momento em que o invisível, que se esconde em cada objecto, se torna matéria perceptiva. Na cenografia, a arquitectura pode ser usada para sugerir valores emocionais aos personagens? A transposição de formas e temas arquitectónicos para as artes cénicas está muitas vezes associada à retórica dos espaços cénicos e ao seu sentido semântico, enquanto oportunidade de abordagem crítica de fenómenos sociais e humanos no contexto da dramaturgia. A cenografia de “Propriedade Privada” de Olga Roriz constitui um dos exemplos da arquitectura tornada temática para reflectir uma visão singular e híbrida da paisagem urbana e do conflito absurdo do que move as personagens. Representa uma instalação habitada pelo

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“Casa de Chá”, nas ruínas do Paço das Infantas no castelo de Montemor-o-Velho

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Nesta relação entre as duas disciplinas a questão central é de que modo a arquitectura é vista pelo cinema. Uma das vocações mais evidentes do cinema contemporâneo tem sido a de enfatizar algumas das configurações possíveis da experiência do quotidiano, afastando-se da noção da capacidade metafórica artificial do próprio teatro. Ao contrário do teatro tradicional, o cinema volta-se mais para a vida do quotidiano, onde as rotinas diárias são analisadas para se transformarem em objecto da realização. Neste contexto, a apropriação de objectos arquitectónicos do quotidiano pode constituir uma matriz de leitura e identificação para o espectador. Esta corrente enquadrase na tendência geral que, nas artes, caracteriza a (re)utilização de materiais mundanos, urbanos e a reciclagem de produtos da sociedade de consumo. A fórmula do sucesso do cinema reside precisamente na capacidade de criar acontecimentos em que o público pode facilmente identificar-se, tendo como motivação a narrativa e a forma de levar o cinema a reflectir e a entrar no dia-a-dia, mesmo que seja só para criar ilusões. É neste contexto que a arquitectura pode ter um papel fundamental. No entanto, se, por um lado, o uso de elementos proporciona uma aproximação ou relacionamento empático entre o público e o objecto arquitectónico por outro, o reconhecimento de formas familiares é também motivo de estranheza, sobretudo se considerarmos a alteração de contexto. Muitas vezes, a arquitectura quando transportada para o cinema, perde a sua verdade quotidiana para entrar no plano poético da rea-

Frederico Colarejo

“A casa de Bernarda Alba”, de Federico Garcia Lorca, encenada por Diogo Infante


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“Escada Mecânica”, no castelo de Rivoli (Turim)

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ceito de visão incompleta de Tschumi (expresso em La Villete) tal como acontece no cinema, garante um impulso crescente de movimento e surpresa. A sequencialidade de espaços a partir de técnicas como fragmentação, desconstrução, desintegração e disjunção, traduz mais uma montagem do tipo cinematográfico do que as regras tradicionais de composição, de hierarquia e de ordem. Na tentativa de libertar a arquitectura de preceitos convencionais, os espaços são desenvolvidos de maneira sequencial, de tal forma que a significação de cada movimento está ligado tanto ao que o precede como ao que o segue. Também no campo das artes cénicas a multiplicidade de referências envolvidas no espaço cenográfico contemporâneo leva frequentemente a questionar e, nalguns casos, a ultrapassar as convenções teatrais, para abordar conceitos provenientes de outras disciplinas como, por exemplo, o cinema. No espectáculo “Propriedade Privada”, Olga Roriz aplica esta abordagem transdisciplinar como uma maneira de explorar novas vias de criação. Nesta peça, as memórias, relações e analogias com o cinema, constituem um pretexto para uma investigação alargada sobre as convenções associadas à dança. “Propriedade privada” é um espectáculo feito de alinhamentos de diversas cenas onde é clara a inspiração no cinema como arte curadora de um real que, por vez, se sobrepõe à própria realidade. Neste espectáculo todos os espaços de movimentação, e as cenas coreográficas adquirem um modo cinematográfico, quer a partir do próprio enquadramento formado pelas múltiplas aberturas, jogos de portas e janelas, quer

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Na sua opinião, o que é que a arquitectura retira do cinema e o cinema retira da arquitectura? Enquanto arquitecto, o que me interessa são as diferentes formas de ver arquitectura que o cinema nos propõe, desafiando a capacidade cinemática de fragmentar e reestruturar aquilo que se vê. O cinema constitui um mecanismo de medição do olhar que nos permite dar a ver simultaneamente o mais ínfimo e o mais vasto do espaço arquitectónico. As imagens mutantes e em movimento, procedendo a uma deslocação do ponto de vista, onde a relação entre as partes do objecto arquitectónico é mais importante do que os pontos de vista fixos, o que permite ao espectador, apesar de estático, uma aproximação à experiência arquitectónica. Ao contrário do teatro, o facto de não haver um modo de ver único e/ou privilegiado significa um aumento dos limites da visibilidade do objecto arquitectónico e, ao mesmo tempo, um aumento da capacidade destes objectos poderem figurar num universo mais amplo. Neste sentido, poderemos afirmar que o cinema se situa algures entre o teatro e a arquitectura. Acha que pode existir uma leitura cinematográfica da arquitectura, nomeadamente na relação plano / sequência? A experiência do espaço arquitectónico, do espaço sequencial, a partir do corpo em movimento pode aproximar-nos duma leitura cinematográfica da arquitectura. No ensaio teórico “The Manhattan Transcripts”, Bernard Tschumi define uma arquitectura baseada no confronto/relação entre espaço acontecimento e movimento, onde o espaço deve ser habitado de forma sucessiva. O utente descobre o edifício percorrendo-o, segundo enquadramentos sucessivos onde cada vista é sempre fragmentada. Este con-

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“Propriedade Privada”

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rio constitui uma estrutura híbrida servindo, por um lado, a figura humana e, por outro, constringindo-a no confronto com os espaços habitáveis. Em “Entrada de Palhaços”, uma colecção de objectos procede a reconversões simbólicas do quotidiano das personagens, estabelecendo novas relações contextuais de espaço e escala. Assim, de aparente resposta a um programa funcional, estabelece-se um absurdo contraponto onde o dispositivo cénico funciona como cavidade extensiva do corpo dos actores e, simultaneamente, como mecanismo de exclusão e repressão. Outro exemplo é o dispositivo cénico para a peça de teatro “A Casa de Bernarda Alba”, de Garcia Lorca, com encenação de Diogo Infante e Ana Luísa Guimarães. Neste espectáculo, o cenário materializa a opressão contida no texto de Lorca e suscita a atmosfera fria que se vive na casa de Bernarda Alba. De forma simbólica, o cenário sublinha a atenção entre a dominadora Bernarda Alba e as suas filhas, através de uma arquitectura que se impõem sobre as personagens. Sugere-se um espaço doméstico onde a casa é mais uma prisão do que uma extensão material dos seus habitantes. Numa clara alusão ao conceito dos “SkySpaces” de James Turrell recorta-se apenas uma abertura no centro do tecto, que representa a única possibilidade de contacto com o exterior, reforçando a impressão claustrofóbica e concentracionária da peça de Lorca. Na versão coreografada desta peça (coreografia de Benvindo Fonseca), o duo entre Adela e Pepe Romano, o macho desejado por todas as filhas e objecto da sua disputa, decorre dentro de um armário. Este objecto que encerra um espaço mínimo, serve de símbolo da casa/prisão em que Bernarda fecha as filhas, momento em que os corpos assumem plenamente o desejo e atracção mútuos, funcionando como uma casa-dentro-da-casa.


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“Entrada de Palhaços”

através dos movimentos que se sucedem em planos cinematográficos – um fluxo à maneira de Wim Wenders. Uma sequência de imagens “ao correr do tempo”, mais confinadas às reflexões do que às emoções. Como nas fotografias analíticas do movimento de Eadweard Muybridge do final do século XIX, o resultado evoca imagens cinematográficas, onde se reproduz uma sequência de movimentos, protagonizada pelos bailarinos e pelos objectos cénicos. Qual dos seus projectos considera que tenha um maior carácter cénico,

e porquê? Neste processo de sinalizar aspectos da encenação traduzidos no âmbito da arquitectura destaca-se a “Casa de Chá”, nas ruínas do Paço das Infantas no castelo de Montemor-o-velho: em primeiro lugar o próprio processo de implantação do edifício, com a construção de um plateau elevado, que não toca o solo, subverte a sua percepção e cria a impressão de um corte no tempo, de uma interrupção fixada num cenário onde se pressente algo não concluído, um objecto suspenso; em segundo lugar a escada de inclinação excessiva (como uma escada de mão encostada contra a parede) que sugere movimento e gera expectativa, convidando os utentes a subir e a contemplar a paisagem a partir de uma janela alta. Como refere o crítico de dança Daniel Tércio esta escada desenha-se entre duas polaridades: “a cenográfica e a cinematográfica, entendida esta a partir do conceito de cinesis (ou movimento)”. O exemplo do projecto da “Escada Mecânica”, no castelo de Rivoli (Turim), ilustra igualmente bem a passagem das artes de palco, nomeadamente da dança, para a arquitectura. Aqui um condutor do espaço constituído por três conjuntos de escadas rolantes propõem um movimento contínuo e condicionado desde a praça Bollani no centro histórico da cidade de Rivoli, até ao castelo, situado a uma cota mais alta. Este movimento inscreve-se e funde-se na encosta e nasce da dinâmica virtual entre quatro eixos visuais que incidem sobre os elementos excepcionais do tecido urbano. Procurando espessura, este espaço interior estrutura-se em triangulações tencionadas

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e é subdividido em elementos verticais (escadas rolantes) e elementos horizontais (“espaçamentos” entre escadas rolantes). Nestas plataformas, espaços de reencontro e convergência das escadas rolantes com as ruas existentes, pretende-se teatralizar, recriando uma rua coberta, como interface urbano. Com a introdução deste espaço, prolonga-se o espaço de acção e de visão, criando uma noção de extensão e reforçando a ideia de tempo. Para Daniel Tércio, a “aproximação deste projecto às artes do espectáculo reside tanto no respeito pela coreografia do lugar, pelos percursos existentes, como pela exposição do movimento do corpo do viajante, do actor que sobe e do actor que desce, como finalmente pela oportunidade de tornar o viajante, também, espectador do palco da cidade”. Como numa coreografia esta arquitectura constrói-se a partir da mobilidade dos transeuntes. Deste modo, o espaço incorpora o corpo em movimento. E, nesta medida, como refere Tércio, “a austeridade estática pode ser dissolvida pelo movimento e a arquitectura torna-se uma cinética”. Tal como descreve Bernard Tschumi em “The Manhatan Transcripts”, esta acumulação de acontecimentos tem como característica principal a sequência e envolve “uma sucessão heterógenea de enquadramentos que confrontam o espaço, os movimentos e os acontecimentos, as suas estruturas respectivas e as regras especificas”. Esta sequência acumulativa de enquadramentos traduz a experiência de uma “sequência arquitectural”, numa aproximação a temas e procedimentos cinematográficos. Entrevista

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